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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
versão impressa ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.39 Lisboa jun. 2018
DIÁLOGOS
(Des)Fazer género, (des)construir futuros. Diálogos sobre linguagem inclusiva e literacia crítica mediática
Carla Cerqueira*, Sara Isabel Magalhães**
*Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, Braga, Universidade Lusófona do Porto, carlaprec3@ics.uminho.pt
**Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Centro de Psicologia, saramagalhaes@fpce.up.pt
A partilha de projetos de investigação-ação e o ativismo no campo dos feminismos são o mote para este diálogo que aqui partilhamos, num cruzamento de saberes e experiências entre as ciências da comunicação e a psicologia crítica feminista. Vários têm sido os momentos de reflexão conjunta em torno da relevância da linguagem inclusiva e da necessidade de uma literacia crítica para/através/dos média, pois (des)fazer o género é uma tarefa que requer pequenas e múltiplas lutas feitas nas várias esferas do quotidiano e com diversos atores sociais.
No início vem a construção do género e a interseccionalidade
Sara Isabel Magalhães (SIM): A nossa reflexão começa com a investigação no âmbito dos estudos de género, ou estudos feministas, no sentido de nos posicionarmos académica e politicamente. Somos pessoas permeadas e construídas pelo género, por esta dimensão que nos atravessa sem que possamos deixar de a olhar de frente – para conformar, resistir ou deixar fluir. Partindo de uma epistemologia feminista crítica, a dimensão de género surge como um (de)limite social que molda a forma como somos percecionadas e posiciona-nos face a quem nos rodeia numa performatividade identitária constante. Esta performatividade sublinha a nossa diversidade de contextos e condições, privilégios e opressões, e vai além de uma visão uniaxial e hierarquizada que nos constrói e constrange, tal como abordámos num artigo publicado recentemente.
É sobre este prisma de um pensamento que (des)constrói o género, que vai além de um pensamento universal e de um eixo só, que é intersecional[1] l, que refletimos sobre a linguagem inclusiva (de género) e a literacia crítica mediática enquanto áreas de reflexão e intervenção fundamentais. Vemos, portanto, ambos como elementos dinâmicos e transformadores, como ferramentas que nos permitem (des)construir futuros.
Uma linguagem que (se) (des/re)constrói
Carla Cerqueira: É através da linguagem que nomeamos as pessoas e o mundo, daí o papel central que ela assume. Ela não é um modo neutro e objetivo de apreender a(s) realidade(s), mas sim um produto elaborado que reflete o complexo sistema de crenças, ideias, atitudes, conceções e valores da sociedade em que vivemos e que permitem dar sentido ao que nos rodeia. Enraizada na nossa cultura, muitas vezes a linguagem reflete e reforça estereótipos e papéis sociais de género. É por isso que as preocupações com esta esfera de ação não são nada recentes. Se nos debruçarmos sobre algumas das teóricas deste campo dos estudos de género, percebemos que, por exemplo, já Simone de Beauvoir referia: “ sei que a língua corrente está cheia de armadilhas. Pretende ser universal, mas leva, de fato, as marcas dos machos que a elaboraram. Reflete seus valores, suas pretensões, seus preconceitos”[2].
Sara Isabel Magalhães: Também Maria Isabel Barreno, na década de 1980, e no contexto português, questionava o uso do “falso neutro”, numa lógica de continuação da utilização do masculino como norma, como protótipo da espécie humana, como regra, enquanto o feminino é construído. A par disto, é de realçar ainda que há diversos exemplos, historicamente cristalizados, que nos mostram que o tratamento de homens e mulheres é claramente diferenciado (e.g., as mulheres serem tratadas apenas pelo primeiro nome com diminutivos; pela sua relação familiar e não pela sua condição individual; com características que realçam aspetos estéticos…).
Carla Cerqueira: Esta dicotomização do mundo é muito visível nas várias formas de linguagem que usamos ou com as quais nos confrontamos no quotidiano, e é por isso que a preocupação com esta área vai surgindo em vários trabalhos e reflexões de teóricas feministas, nas agendas de organizações e coletivos da sociedade civil e das instâncias governamentais. Contudo, esta é uma das esferas em que as mudanças parecem mais difíceis de efetuar. Por exemplo, ouvimos com frequência que não é um assunto prioritário no âmbito das lutas contra as desigualdades de género, que não há má intenção no uso, que sempre foi assim, que vai inflacionar as palavras, que as mulheres não se importam quando se usa o masculino como genérico, que limita a riqueza da linguagem, entre outras justificações que visam manter a ordem social dominante e patriarcal – onde, tal como nos dizia Maria Isabel Barreno, a mulher é invisível socialmente.
São estes discursos que é preciso questionar diariamente. Assim, consideramos fundamental olhar a linguagem como um organismo vivo e historicamente situado, que pode ser alterado e que depende das nossas práticas quotidianas. Além disso, quando pensamos em linguagem, a maior parte das vezes remetemos imediatamente para o domínio verbal; mas na nossa ótica é fundamental refletir sobre a dimensão verbal e também imagética, uma vez que ambas são transmitidas e reforçadas através de vários agentes de socialização (escola, família, pares, instâncias públicas, etc…). Aliás, numa época em que se vivenciam sexismos muitas vezes subtis ou encapotados, este olhar atento às várias formas de linguagem afigura-se como crucial, pois a mesma mensagem pode apresentar discursos que chegam a ser completamente contraditórios e que contribuem para este (re)produzir das assimetrias de género. Nas palavras de Maria Isabel Barreno, “a língua é uma ferramenta (...) que está longe de ser ‘neutra'. (...) revela, entre outras coisas, as estruturas de poder existentes na sociedade em que essa língua é falada[3]e, acrescentamos, mostrada.
Sara Isabel Magalhães: Claro que a linguagem, ao mesmo tempo que nos constrange, elenca-nos também novas possibilidades de resistência, empoderamento e agência pessoal e coletiva. Articular uma linguagem implicada, de género, significa ter presente a importância de considerar a visibilidade e a simetria das representações (textuais, visuais e, sobretudo, discursivas), apostando sobretudo na neutralização/abstração da referência sexual ampliando as possíveis (des/re)construções e performances de género. Parece-nos, assim, que aquilo que é primordial nesta área de reflexão e ação é a necessidade de consciencializar e agir no sentido da implementação de uma linguagem mais integradora, promotora de diversidade. Muitos são já os manuais que vão surgindo, sobretudo noutros contextos geográficos[4], mas é preciso que se explicite a complexidade que está presente no espectro linguístico e como é que esta pode ser aplicada no quotidiano, algo que exige um esforço contínuo de resistência e de desconstrução, não apenas das desigualdades de género mas também dos binarismos de género. Mais legislação e recomendações neste domínio são necessárias, mas consideramos que é preciso agir pelo fazer em conjunto com os vários atores sociais que podem funcionar futuramente como mediadores/as desta transformação.
Carla Cerqueira: Assim sendo, considerando a linguagem como viva, dinâmica e com capacidade de se moldar à realidade em que nos inserimos, cabe-nos o dever de reinventar a forma de nomear e representar todas as expressões de cidadania nos discursos que (re)produzimos quotidianamente.
Literacia crítica mediática – conceitos e desconcertos
Carla Cerqueira: Refletir e agir no sentido de uma linguagem mais inclusiva e promotora de maior diversidade implica trabalhar com os vários agentes de socialização, sendo que os média assumem aqui um papel fundamental, pois têm as várias formas de linguagem como ponto nevrálgico em todo o processo de comunicação.
Pensar em média, nos dias de hoje, implica um olhar dinâmico e permanentemente desafiador, onde a literacia crítica mediática assume um papel fundamental de constante reflexão e posicionamento num mundo que é cada vez mais fragmentado, diversificado e que está em constante transformação.
Sara Isabel Magalhães: Revemo-nos, pois, neste posicionamento que desafia a mera apropriação dos conteúdos mediáticos e se propõe como ponto de desconstrução e (re)construção constantes. Assumimos, assim, que nem os média, nem a literacia mediática podem ser neutros ou imparciais e que, sobretudo, não se podem separar de um enquadramento político, sócio-histórico e de poder. Confluem num projeto participativo e colaborativo que integra atividades que intensificam a democratização e a participação cívica de indivíduos e grupos.
De forma mais concreta, como sistematizámos anteriormente, a literacia crítica mediática consiste na:
Capacidade para aceder, compreender e avaliar, de forma crítica, os conteúdos disseminados pelos média (informativos), o papel que estes desempenham na (re)construção da realidade social, os contextos socioculturais, económicos e políticos nos quais estes são produzidos, bem como os mecanismos pelos quais os conteúdos podem ser contestados e/ou modificados.[5]
Ao desenvolver a literacia crítica mediática, pretende-se assim estimular práticas informadas e responsáveis através da promoção de uma maior compreensão e reconhecimento em relação aos conteúdos disseminados pelos média. É crucial que os públicos adquiram as competências necessárias para que, de forma sustentada, possam negociar os significados, pensar as (sub)representações e produzir os seus próprios média alternativos e complementares nas visões do mundo. Em súmula, esta literacia envolve a capacidade de acesso a diferentes média, bem como a sua interpretação e competências para produzir mensagens mediáticas nos mais variados contextos e plataformas, ganhando assim capacidades e ferramentas intelectuais que permitam uma participação mais efetiva na sociedade e na cultura.
Carla Cerqueira: Esta perspetiva confere às pessoas um papel central e ativo. A sua agência passa não apenas por refletir sobre os conteúdos mas também pela produção de significados e seu enraizamento cultural que desafiam a hegemonia mediática de visão uniforme e homogeneizada, tal como nos referia Stuart Hall, e que contestam discursos ideológicos de opressão com base no sexo/género, classe, orientação sexual ou outras categorias de pertença. Para este movimento de reflexão muito contribuem as epistemologias feministas, no sentido de permitirem uma reflexividade que nos afasta do senso comum e que perspetiva a possibilidade de uma mesma mensagem desencadear diferentes formas de ser apreendida, potenciando assim uma visão mais pluralista e democraticamente representativa. Esta capacidade de olhar simultaneamente ao global e ao particular confere à literacia crítica mediática uma ação política de transformação social que se faz visível pelo empoderamento pessoal e pelo ativismo de resistência/ agência social – em linha com a conceptualização de Judith Butler – e que permite precisamente a (re)invenção das diversas formas de linguagem.
Impactos nos/para/através dos quotidianos
Carla Cerqueira: Na abordagem que aqui partilhamos, a literacia crítica pode ocorrer para, com e através dos média, significando assim uma abordagem mais abrangente e completa que nos forma para ler/ouvir/ver e agir sobre e com os média, nos informa com recurso aos próprios meios mediáticos e nos incentiva à produção de conteúdos mediáticos equitativos e promotores de diversidade social.
Sara Isabel Magalhães: Carmen Luke, por exemplo, destaca esta capacidade de se afirmar como uma “pedagogia pública” que tem como objetivo modelar e influenciar as perceções sociais quanto a domínios vários como papéis de género, identidade(s) ou relações sociais. No seu trabalho surge um estreitamento entre um compromisso político feminista e a deteção de representações ilusórias e/ou deturpadas e de estereótipos sociais, baseando-se sempre em princípios de equidade e justiça social. Segundo Douglas Kellner e Jeff Share, quando se incluem determinados grupos e se excluem outros, as representações acabam por beneficiar os dominantes em detrimento dos dominados.
Como será percetível, um posicionamento subordinado permitirá, pelo confronto constante com a desigualdade, ter maior discernimento e compreensão das assimetrias que permeiam o nosso quotidiano. A literacia crítica mediática terá assim um papel importante nestas assimetrias, dando-lhes uma voz e um espaço para expressarem e impulsionando uma desconstrução das categorias geradoras de opressão. Do mesmo modo, as pessoas que mais comummente se perspetivam partindo de uma posição mais privilegiada terão mais dificuldade em ver as marcas discursivas que lhes são invisíveis e que integram inconscientemente. Também aqui a literacia crítica mediática assume um importante papel de visibilização da diversidade de posicionamentos e na construção de públicos mais informados e empoderados. Para alcançarmos uma maior equidade, será portanto necessário “uma fundamental mudança, no discurso do saber, que continua este num universo realmente humano em substituição do actual falsamente neutro[6].
Carla Cerqueira: Tal como a sociedade em que vivemos se complexifica e se reconstrói, também o mundo mediático deve ser (re)conceptualizado como sendo diverso e multideterminado. Neste sentido, temos considerado fundamental a promoção de um olhar triangulado, que ponha em debate os conteúdos que são produzidos, quem os produz, individualmente e no contexto das instituições, e quem os recebe. É a intervenção concertada nestas três esferas que vai permitir encontrar estratégias de superação e desconstrução dos modelos e discursos ideológicos dominantes e, assim, contribuir para a igualdade de género e para a diversidade social.
Assim, consideramos fundamental perspetivar, a curto prazo, a literacia crítica mediática como conteúdo pedagógico que acompanha o desenvolvimento pessoal (em espaço-escola) e a formação de identidades, crenças e valores, adquirindo desta forma uma centralidade proporcional ao seu potencial transformador em documentos oficiais no domínio da igualdade de género.
Igualdade e diversidade: um imperativo social que nos arrebata
Carla Cerqueira: Articulando as dimensões apresentadas, podemos sublinhar que, tal como sustentam os autores Douglas Kellner e Jeff Share[7], “a literacia crítica mediática não é uma opção, é um imperativo”. Estes autores também sustentam que se trata de um projeto crítico das abordagens mais conservadoras e, neste sentido, possui uma dimensão política implicada com a mudança social. Nesta linha, a literacia crítica mediática inclui questionar de forma intersecional e abrangente o lugar da classe social, raça/etnia, género, sexualidades e poder, ao mesmo tempo que se apresenta como meio de produção de uma alternativa questionadora da hegemonia mediática que coloca às minorias sociais o desafio de terem voz e às populações mais representadas a oportunidade de conhecerem realidades sociais mais abrangentes.
Carla Cerqueira e Sara Isabel Magalhães: Em suma, vários são os desafios que surgem neste campo que cruza o género, a linguagem e a literacia crítica mediática. Ressaltamos a pertinência de um olhar intersecional sempre que refletimos e aplicamos estas questões. É preciso pensar nos agentes de produção e nos públicos de uma forma mais plural e intersecional, nomeadamente através da utilização quotidiana da linguagem inclusiva, a qual vai permitir o (re)conhecimento das múltiplas identidades, (inter) subjetividades e experiências. Esta ideia tem sido apontada por nós nos vários trabalhos que temos desenvolvido a nível da reflexão teórica, mas também da prática empírica. Está atenta, assim, para uma dimensão política e transformacional, através do desenvolvimento de olhares críticos que convergem para um empoderamento semiótico, na linha do que tem sido postulado por Liesbet Van Zoonen, entre outras autoras.
[1] A respeito da Teoria da Interseccionalidade, é fundamental referir os importantes e pioneiros contributos de Kimberlé Crenshaw, Leslie McCall e Vivian May e, no contexto de português, o de Conceição Nogueira.
[2] Esta citação pode ser consultada no Manual para o uso não sexista da linguagem, organizado por Paki Franco e Julia Cervera, e disponível em: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes/outros-artigos-e-publicacoes/manual-para-o-uso-nao-sexista-da-linguagem.
[3] Esta citação da autora pode ser encontrada na obra O Falso Neutro: Um estudo sobre a discriminação sexual no ensino, editada em 1985, p. 23.
[4] Em Portugal destaca-se o contributo de Graça Abranches para a sua implementação na Administração Pública.
[5] Esta definição foi sistematizada anteriormente no âmbito de uma publicação resultante do projeto Género em Foco, intitulada De outro género: propostas para a promoção de um jornalismo mais inclusivo (p. 40).
[6] Maria Isabel Barreno apresentou esta ideia na obra já anteriormente referida, O Falso Neutro: Um estudo sobre a discriminação sexual no ensino (p. 92).
[7] Referimo-nos aqui ao artigo de Douglas Kellner e Jeff Share, Critical media literacy is not an option. Learning Inequalities, na sua página 68.