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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.42 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.34619/19g3-rt72 

ENTREVISTAS

Isabel do Carmo

Maria do Céu Borrêcho*, Maria do Rosário Barardo**

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM - Centro de Humanidades, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva-Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, mcborrecho@gmail.com

** Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva-Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, rosario.barardo@gmail.com


 

 

 

Maria Isabel Augusta Cortes do Carmo, doutorada em Medicina e especialista em Endocrinologia, Diabetes e Nutrição, dirigiu estes serviços no Hospital de Santa Maria, cumulativamente com a carreira de docente na Faculdade de Medicina de Lisboa. Investigadora e coordenadora de variadíssimos estudos, foi fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade.

Ativista e militante do Partido Comunista Português (PCP) durante a juventude e antes do 25 de Abril de 1974, fundou e dirigiu o Partido Revolucionário do Proletariado e as Brigadas Revolucionárias (PRP-BR), envolvendo-se posteriormente no Processo Revolucionário em Curso (PREC). Essa intervenção política obrigou-a à clandestinidade e resultou na sua prisão por diversas vezes.

Em 2004, foi agraciada com o grau de Comendadora da Ordem da Liberdade.

A Mulher ativista, médica, professora, investigadora, intelectual e mãe, de carácter guerreiro, mas muito humano e sensível, prontamente acedeu ao convite de Faces de Eva, privilegiando-nos com uma agradável e informal conversa de memórias.

Que memórias guarda da infância e da família?

Nasci no Barreiro, em 1940, para onde os meus avós paternos foram morar, no século XIX. Eles foram uma das famílias fundadoras da zona mais industrial. A nossa casa situava-se numa rua larga, que bordejava o rio Coina e terminava no caminho de ferro. À época, o rio tinha uma grande presença e atividade, porque era a via de escoamento das mercadorias que vinham do Alentejo para Lisboa, o que desapareceu com a construção da ponte. Nessa altura, a pobreza e o atraso eram enormes. No Barreiro, os muito pobres sobreviviam, com enormes dificuldades, do trabalho no rio, quer como carregadores, quer como pescadores. Além destes, existiam outros grupos socioprofissionais: os corticeiros e os ferroviários, e, de entre estes, os maquinistas e revisores eram efetivos e usufruíam de maiores salários. A classe profissional mais favorecida trabalhava na CUF (Companhia União Fabril): os operários e os prestadores de serviços. A cidade tinha um longo historial de perseguição aos trabalhadores e às suas organizações. Às greves, respondia-se com despedimentos coletivos ou com o recurso à repressão. O meu pai, um político ligado à ala mais à esquerda dos partidos republicanos, era um homem culturalmente avançado. A minha mãe era do Algarve e, como a irmã estava casada, no Barreiro, com um industrial da cortiça, aqui conheceu o meu pai e casaram-se. Éramos uma família que vivia um pouco acima da média, com acesso a meios culturais, como cinema, teatro e alguns concertos. O grande projeto do meu pai era a criação de um museu com a coleção de obras de Abel Salazar, a doar ao Barreiro. Porém, esta doação não se concretizou porque, em correspondência trocada com o meu pai, o médico e artista não aceitou que a ditadura já instalada censurasse todas as obras. O meu pai, que era muito novo (vinte e poucos anos), sentiu que tudo se desfez!

A partir daí, foi na resistência à ditadura que mais se empenhou. Anteriormente, com o José Domingos dos Santos, do Partido Republicano da Esquerda Democrática, tivera uma breve representação na Câmara Municipal do Barreiro. Depois desenvolveu muitas atividades culturais. A I República tinha promovido uma cultura de associações e, embora algumas estivessem ligadas à maçonaria, a sua base cultural era sobretudo anarquista. A maioria delas já desapareceu, mas as maiores sobreviveram, e algumas construíram os seus próprios edifícios.

Outro dos grandes projetos do meu pai foi a escola de esperanto, onde lecionou, juntamente com o Manuel Boto e o Manuel Firmo, que, mais tarde, integraram as Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil de Espanha. A escola de esperanto foi encarada com muita expectativa, na medida em que agora todos poderiam entender-se na mesma língua! Mas foi outro sonho desfeito! Eu ainda comecei a aprender, mas desisti, porque no Liceu estudava outras línguas, o que se tornava muito confuso. No entanto, ainda preservo alguns livros de esperanto.

Para mim, foram muito marcantes as memórias daquelas pessoas, que eram visitas da minha casa e que estiveram presas no Tarrafal. Lembro-me do Manuel Firme, que tem memórias publicadas, e da sua mulher, natural de Barcelona, que foi clandestinamente ao Barreiro despedir-se do marido. Aliás, a sua história consta do livro que escrevi - Histórias que as mulheres contam: Testemunhos reais -, histórias reais em que nada foi inventado, nem mesmo as expressões ou os comentários.

Na ausência de um liceu no Barreiro, onde prosseguiu os estudos? Que professores mais a marcaram?

Tinha acabado de fazer dez anos, quando fui para o liceu em Setúbal. Éramos um grupo famoso de rapazes e raparigas, que todos os dias íamos de comboio para as aulas. Foram os melhores anos da minha vida, com muita liberdade e divertimento! De um modo geral, os professores eram muito bons, como a professora Auzenda[1], que era maravilhosa. Com ela fazíamos teatro e muitas atividades interessantes. Mas havia exceções, como o Padre Mário de Carvalho, que era mesmo um nazi! Estávamos em 1950 e a guerra já tinha acabado, mas ele continuava a fazer campanha contra os judeus. Com ele tive um conflito permanente, talvez também por ser a única aluna que não era batizada. Chamava-me comunista e dirigia-se-me, dizendo: “Levante-se a herege!” O que era curioso, porque muitas das crianças no liceu tinham ascendências revolucionárias; no entanto, eram todas batizadas e não ousavam afrontar o professor de Religião e Moral! O confronto durou cinco anos e era um espetáculo para todos! (Risos.) De resto, em Setúbal foi tudo maravilhoso!

Ao invés, no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, onde ingressei para continuar os estudos, vivi os piores anos da minha vida. Era o liceu das “feras”. Foi um horror em todos os aspetos, uma total repressão, nem sei como sobrevivi!

A atração pela política aconteceria antes ou depois da chegada à universidade?

Para isso muito contribuiu o ambiente que se vivia no Barreiro, mas foi no Liceu Maria Amália que iniciei a minha intervenção política. Uma amiga do Barreiro, mais velha do que eu, e que pertencia ao Movimento de Unidade Democrática, pediu-me para distribuir panfletos no liceu, creio que relativos a um julgamento do MUD no Porto. Eu já estava assinalada e, com a distribuição desses panfletos, a minha situação piorou!

Quando, aos 17 anos, entrei para a Faculdade de Medicina de Lisboa, tive muita sorte. O ambiente na faculdade era avant la lettre! Em 1953, após a dissolução da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, por decreto do Governo, formou-se uma comissão pró-associação muito alargada, constituída por pessoas intelectualmente muito avançadas para a época, como o Fernando Lopes da Silva, investigador, que morreu há pouco tempo na Holanda, onde vivia, ou o João Monjardino, que faleceu em outubro de 2019, entre muitos outros, muito mais velhos do que eu. Essa comissão funcionava em moldes muito atuais. As reuniões interassociações de estudantes universitários ocorriam no Instituto Superior Técnico, a única associação que não fora encerrada. Como não tínhamos direção, ia “tudo ao molho” para o Técnico. A certa altura, ouvia-se dizer: “Lá vem a malta de Medicina”! (Risos.) Este convívio com as outras faculdades foi muito importante, porque permitiu a conjugação de esforços para fazer valer os nossos pontos de vista.

Ser médica foi um desejo desde muito jovem? Qual a razão da preferência pela especialidade de Endocrinologia?

A razão da escolha do curso de Medicina deveu-se à muita curiosidade, que sempre manifestei, em relação à pessoa humana e ao corpo humano. Por outro lado, a Medicina, por ser uma porta aberta para lidar com os outros, tem também uma dimensão social. A Endocrinologia é a especialidade que nos dá uma visão global do corpo humano, porque as hormonas são os grandes mensageiros, e cada vez se descobrem mais; nenhum de nós as conhece todas. Como ainda não havia esta especialidade nos hospitais, fiz Medicina Interna, e ainda bem, porque me deu a possibilidade de entender o ser humano de uma forma global. Eu sempre fui professora de Medicina, só a certa altura comecei a lecionar Endocrinologia.

Como conciliou a militância política com o exercício da medicina?

Foi complicado, mas, como era muito organizada, reservava umas horas para estudar e assim consegui concluir o curso com notas razoáveis e sem perder nenhum ano.

Ainda durante a faculdade, aos 18 anos, convidaram-me para integrar o Partido Comunista, sendo responsável pela Faculdade de Medicina no sector universitário. Esse fora o ano [1958] das eleições presidenciais, e houve um grande entusiasmo em torno da candidatura de Humberto Delgado, um autêntico movimento de massas, confirmado pelas fotografias. Seguiu-selhe a perceção de que a mudança não se faria com eleições.

Eu defendia a necessidade da luta armada, o Partido continuava a prometê-la, mas não agia (mais tarde, o PCP acabou por fundar a ARA - Ação Revolucionária Armada -, na mesma altura em que nós criámos as Brigadas Revolucionárias). Entretanto, descobri o que tinha sido o Estalinismo. Nós não tínhamos informação sobre o que se passara na época de Estaline, e só muito tardiamente o fomos descobrindo. Portanto, estas duas questões - a necessidade da luta armada e o Estalinismo - provocaram a minha saída do Partido Comunista em 1970-71.

Esteve presa diversas vezes, antes e depois do 25 de Abril de 1974. Como conviveu, na prisão, com as outras mulheres também presas?

Antes do 25 de Abril, estive presa em Caxias, em regime de isolamento, o que para mim foi terrível. Depois do 25 de Novembro de 1975, estive presa quatro anos: primeiro, em Caxias, oito meses, também em isolamento, mas neste caso foi diferente, porque estava com o meu filho ainda bebé e tinha acesso a livros; depois fui para Custóias, com mais quatro pessoas do meu grupo. As outras mulheres aí presas eram sobretudo prostitutas, o que me fez escrever um livro - Puta de prisão -, já com oito edições, com o qual espero ter dado um contributo para a alteração à lei sobre a prostituição, em janeiro de 1983. A nova legislação é abolicionista, diferente da anterior, que era proibicionista. Para mim, foi todo um mundo que eu descobri!

Como é que a família encarou a sua prisão? Sobretudo em relação à filha e ao filho, como geriu as emoções em relação a poder levá-los ou não para a prisão?

A minha família teve um grande desgosto, e o afastamento da minha filha foi horrível, porque ela tinha cinco anos e já não podia ficar comigo. Se bem que, em Custóias, o diretor, uma pessoa compreensível, e a chefe das guardas, uma mulher inteligente, tivessem permitido que ela ficasse comigo um mês seguido durante as férias. O meu filho, que era mais novo cinco anos, esteve sempre comigo. Claro, tinha sempre presente aquele fantasma de não saber quando seria libertada, e haveria um momento em que o meu filho também teria de sair. E isso inquietava-me muito.

São experiências que ainda hoje convivem consigo?

Os meus fantasmas são mais, mas muito mais, de quando saí da cadeia, em 1983. Não tinha casa, não tinha um tostão, não tinha condições para ter os meus filhos comigo. Enfim, tinha de reiniciar tudo. Isso foi pesado, justamente num período que coincidiu com a crise económica dos anos 1980.

Depois conseguiu voltar ao Hospital de Santa Maria?

Requeri e consegui a reintegração no Hospital, o que devo à diligência da Dr.ª Maria de Belém [Roseira], à época chefe de gabinete do Dr. [Maldonado] Gonelha, Ministro da Saúde. Eles foram fundamentais para o meu reingresso no Hospital. A partir daí, a minha vida começou a equilibrar-se, mas com muita dureza e muita luta! Em seguida, fiz o doutoramento e, finalmente, reintegrei-me na Faculdade, donde fora banida pela PIDE.

É conhecido o seu carácter humano, sensível, e a incondicional abertura ao acompanhamento dos que a si recorrem. Pode falar-nos desse apoio dado às mulheres, principalmente às mais jovens?

Na cadeia, promovemos cursos de planeamento familiar e conferências, realizadas pela Comissão da Condição Feminina, se bem que estas tenham sido objeto de grande resistência por parte dos responsáveis. E já estávamos nos anos de 1980!

Depois de sair da prisão, comecei a interessar-me pelas questões do comportamento alimentar - a anorexia e a bulimia -, que têm muita prevalência na adolescência, o que me permitiu o contacto com raparigas muito jovens. Deste modo, eu e uma psicóloga de Santa Maria, Maria João Sousa Brito, constituímos um grupo que, fora das horas de serviço, se reunia aos sábados com jovens com esses distúrbios. Mais tarde, em 1999, quando surgiu a livraria Ler Devagar, também constituímos um grupo de jovens que aí se reunia aos domingos. Por influência dos chats onde os jovens se reuniam e comunicavam, chamámos-lhe “Chat ao Vivo” (risos). Não pretendíamos aconselhar ou dar lições de moral, servia para ouvir as jovens e, tanto quanto possível, para as apoiar ou encaminhar.

Ainda nos anos 1990, formou o Fórum Ecologista e Alternativo, onde, na segunda edição, foi apresentada uma mensagem de Natália Correia. Que diferenças encontra entre os objetivos desse seu projeto e os das atuais propostas ecologistas?

Ah! Já nem me lembrava da mensagem da Natália! Esse projeto surgiu antes do tempo e com propostas, creio eu, mais avançadas do que as de hoje. Interessava-nos o debate e a análise, sob uma perspetiva ecológica integrada, da estrutura económica e política que levava as grandes empresas mundiais a serem as grandes poluidoras. Desta forma, procurámos entender o mecanismo económico e político que provocava essas alterações. Nessas sessões, convidámos várias associações ecológicas para apresentarem as suas propostas.

Naquela altura, estivemos em contacto com o partido alemão “Os Verdes”, de que resultou a publicação de um livro do Carlos Antunes, o meu companheiro, e do líder alemão Frieder Wolf, intitulado Eco-socialismo[2]. Nele defendiam que só a sociedade socialista podia ser ecológica.

Por coincidência, foi publicado hoje [24/10/2019], no jornal Público, um artigo onde eu refiro a existência de novas doenças causadas pelas alterações climáticas, demonstrando que “o calor está a chegar ao limite da adaptação fisiológica”[3]!

Em 2006, participou no Inquérito Nacional sobre a Violência exercida sobre Mulheres e Homens, coordenado pelo Professor Doutor Manuel Lisboa. Houve consequências após a publicação desse estudo?

Houve consequências ao nível da justiça, para os casos que são denunciados. Mas, mesmo assim, as mortes sucedem-se e os processos de proteção são pouco ágeis. Na área das ofensas corporais, a que investiguei, há ofensas menores. Há todo um outro campo para além das mortes - as feridas, os hematomas, os empurrões, ou a violência psicológica -, que estavam muito presentes no inquérito e que não são denunciadas, nem assinaladas pelos Serviços de Saúde.

Como tem acompanhado a evolução da luta das mulheres pelos seus direitos?

A história das mulheres portuguesas é uma longa história, porque elas sofreram mais do que aquilo que é dito e escrito. A maior parte das questões ficou omissa, as mulheres não contavam, e muitos assuntos relacionados com a sua condição da mulher, enquanto reprodutora - a menstruação, a amamentação, a gravidez - não eram falados ou não se podiam expor, porque era uma vergonha. Isto simbolizava muito o que era para as mulheres ser mulher: o seu corpo e as características do seu corpo eram vergonhosas, por isso tinham de ser escondidas!

Quanto à mulher como cidadã, ainda hoje vemos que, num grupo de homens e mulheres, os homens interrompem-nas, não as deixam falar. É tudo inconsciente, mas ainda existe!

 

[1] Maria Auzenda de Carvalho Caetano Paulino Pereira, recentemente falecida (15/07/1922-12/11/2019) [Nota de Edição].

[2] Eco-socialismo: Uma alternativa verde para a Europa, de Carlos Antunes, Pierre Juquin, Penny Kemp, Isabelle Stengers, Wilfrid Telkamper e Frieder Otto Wolf, com versão portuguesa de Carlos Antunes, Isabel do Carmo e Francisco Costa Gomes, editado em 1990, pela editora Divergência [Nota de Edição].

[3] https://www.publico.pt/2019/10/24/ciencia/opiniao/alteracoes-climaticas-podem-matar-1891008