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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.44 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.34619/4cng-8r33 

Estudos

Pequim+25: o combate à Covid-19 e as figuras políticas femininas na televisão.

Beijing +25: the fight against the Covid-19 and the female political figures on television.

Carla Martins1 

Ana Cabrera2 
http://orcid.org/0000-0002-2372-5165

Isabel Ferin Cunha3 
http://orcid.org/0000-0001-8701-527X

1Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 1749-024 Lisboa, Portugal, carlamartins@netcabo.pt

2 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, 1069-061 Lisboa, Portugal, anacabrera@fcsh.unl.pt

3 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, IC Nova - Instituto de Comunicação da Nova, Lisboa, Portugal, barone.ferin@gmail.com


Resumo

Os 25 anos da Declaração e da Plataforma de Ação de Pequim coincidem com um ano absolutamente atípico, consumido pelo combate à pandemia de Covid-19. Assinala-se a data articulando as áreas estratégicas G e J enunciadas na Declaração de Pequim, Poder e Media. No artigo apresentam-se os resultados de um estudo empírico exploratório sobre a forma como o jornalismo televisivo constrói o perfil das líderes políticas femininas neste contexto. A pesquisa comprova a hipervisibilidade conferida à ministra da Saúde e à diretora-geral da Saúde nos plateaux televisivos. Os discursos destas protagonistas femininas revelam um predominante pendor técnico, mas também se podem subsumir à esfera do cuidado.

Palavras-chave: televisão; jornalismo; liderança política; género; covid-19

Abstract

The 25 years of the Beijing Declaration and Platform for Action coincide with an absolutely atypical year, consumed by the fight against the Covid-19 pandemic. One intends to mark the occasion by articulating the strategic areas G and J set out in the Beijing Declaration, namely, Power and Media. The article presents the preliminary results of an empirical study on how the television journalism portrays the female political leaders within this context. The research confirms the hyper-visibility of the ministry of Health and the director-general of Health in the television plateaux and the technical positioning of both leaders. Nevertheless their discourses tend to be associated with the sphere of care.

Keywords: television; journalism; political leadership; gender; covid-19

1. Enquadramento

Em 2020 assinalam-se os 25 anos da Plataforma de Ação e da Declaração de Pequim, adotadas, em setembro de 1995, na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres. Nessa ocasião preconizou-se que “a igualdade entre mulheres e homens é uma questão de direitos humanos e uma condição de justiça social, sendo igualmente um requisito necessário e fundamental para a igualdade, o desenvolvimento e a paz” (Plataforma de Ação, 1995, p. 19). Na Declaração de Pequim são definidos objetivos estratégicos à escala internacional em áreas consideradas críticas para a promoção da igualdade de género e o combate à discriminação. Uma dessas áreas é a do poder e tomada de decisão (área G), pressupondo-se que “a igual participação das mulheres na tomada de decisão é não só uma exigência da justiça e da democracia, mas também uma condição necessária para que os interesses das mulheres sejam tidos em conta” (Declaração de Pequim, 1995, p. 135). Não obstante se enaltecer a capacidade de liderança feminina, o diagnóstico traçado foi o de que a esfera de decisão política permanecia um domínio masculino. Para esta situação contribuía a sub-representação das mulheres nos órgãos de poder, tanto executivos como legislativos, bem como a difusão de estereótipos negativos, inclusive através dos meios de comunicação.

Também os media, indissociáveis da esfera política, foram assinalados como área estratégica (área J), o que constituiu um contributo fundamental para valorizar as dimensões da comunicação e da informação no quadro do questionamento dos desequilíbrios de género nas organizações mediáticas e no plano das representações simbólicas. Essas assimetrias foram evidenciadas nas conclusões da primeira edição do Global Media Monitoring Project (GMMP). O relatório Women’s Participation in the News, apresentado no Women’s NGO Forum em Pequim, por ocasião da Conferência Mundial, destacou que as mulheres constituíam apenas 17% dos sujeitos noticiosos dos meios jornalísticos analisados em 71 países e 7% das notícias sobre “política e governo”, a temática mais significativa do corpus recolhido. Além da sub-representação, neste estudo realçaram-se certos padrões problemáticos de cobertura que configuravam formas de apresentação das mulheres que tendencialmente as remetiam para o “aniquilamento simbólico” (Tuchman, 2004 [1978]). Os dados da mais recente monitorização disponível do GMMP, de 2015, apontaram para uma representatividade de 24%, 16% em matérias sobre “política e governo”. Nesta edição destacou-se que as mulheres continuavam dramaticamente sub-representadas na informação e concluiu-se que, em 20 anos, foi modesta e lenta a mudança nas dimensões genderizadas das notícias (WACC, 2015).

As duas áreas estratégicas mencionadas entrelaçam-se. Da sua conjugação multidisciplinar frutificou uma linha de investigação focada na participação das mulheres na vida pública, aprofundando-se a articulação do funcionamento do campo político com as representações mediáticas das mulheres em posições de liderança. Ross e Sreberny (2000, p. 80) advogam que “uma representação mediática injusta pode ser um fator impeditivo de uma representação política justa”. Na perspetiva de Ross e Comrie (2012), a democracia deliberativa pode ficar comprometida por práticas discursivas jornalísticas que marginalizam as candidaturas e as “vozes” das mulheres. Constatando-se que os meios de comunicação tendem a refletir as contradições geradas pelo acesso das mulheres a um universo tradicionalmente masculino, a partir desta pesquisa procurou-se objetivar modelos de representação das protagonistas políticas moldados por pressuposições e estereótipos de género (e.g., sobre o caso português, Martins, 2015; Cabrera et al., 2016; Cabrera & Martins, 2019a; Cabrera & Martins, 2019b).

A celebração do quarto de século de Pequim coincide com um ano absolutamente atípico, marcado pela disruptiva crise pandémica provocada pela Covid-19, com efeitos sentidos em todo o mundo. Este feixe de acontecimentos causado pela disseminação do novo coronavírus constituiu um gigantesco desafio para os poderes públicos e também para os meios de comunicação informativos, para os quais os cidadãos, confinados no lar, se viraram em busca de informação e de orientação. A televisão generalista, registando audiências históricas, recuperou muito da sua centralidade social e doméstica, “abrindo-se à informação em tempo real e preenchendo slots de prime-time com a temática da pandemia” (Cabrera, Martins & Cunha, 2020, p. 185).

Tendo como substrato teórico e conceptual a triangulação política, media e género, assinalamos os 25 anos da Plataforma de Ação e Declaração de Pequim propondo um olhar sobre a cobertura jornalística televisiva da pandemia e a visibilidade conferida aos atores que se destacaram na gestão desta crise. Em Portugal, a luta contra a Covid-19 tem um forte traço feminino, considerando que as mulheres dominam as profissões ligadas à saúde1. Também não se ignorou, à partida, a circunstância de duas mulheres - Marta Temido, ministra da Saúde, e Graça Freitas, diretora-geral da Saúde - desempenharem cargos-chave neste combate e estarem na linha da frente da comunicação diária ao país sobre a doença.

Recorre-se à técnica de análise de conteúdo para responder às seguintes perguntas: i) quais as figuras com maior relevância nos canais televisivos analisados? ii) são percetíveis associações entre os protagonistas e os subtemas relacionados com a pandemia que possam ser interpretadas a partir de um ângulo de género? iii) são identificáveis diferenças na representação simbólica destes protagonistas numa perspetiva de género? O corpus de análise empírico incide sobre os jornais da noite dos canais generalistas RTP1, SIC, TVI e CMTV, entre 18 de março de 2020, data da declaração do estado de emergência pelo presidente da República, e 31 de maio de 2020, quando se preparava a entrada na terceira fase do plano de desconfinamento.

Com os dados recolhidos e codificados de acordo com um conjunto de categorias previamente definidas, de forma a responder operativamente às questões enunciadas, pretende-se estabelecer inferências, ainda que com carácter exploratório, sobre como é que o jornalismo televisivo constrói o perfil político feminino quando estão em causa questões de saúde, um dos terrenos onde em Portugal, historicamente, como se verá no próximo ponto, as mulheres iniciaram o seu acesso à esfera política. Indagamos se persiste uma natural associação das mulheres ao “cuidado”, enquanto a “política” continua a ser masculina.

2. Mulheres, política e saúde

Sendo secularmente a política um topos masculino e o feminino um elemento estranho nesta esfera, com consequências na construção da subjetividade política feminina, indaga-se sobre se e como esta tensão perpassa as imagens dos media dominantes, legitimando ou questionando estereótipos que naturalizam o afastamento das mulheres em relação aos círculos de poder e de decisão. Este exercício envolve a exploração de dimensões culturais do poder, pressupondo-se que muito do poder social e político se joga na representação (Silveirinha, 2004). Por conseguinte, é relevante identificar tais padrões de cobertura jornalística baseados em assunções de género - os gendered frames, na terminologia de Pippa Norris (1997).

Os estudos sobre as representações jornalísticas do poder político no feminino vêm identificando modelos de cobertura geradores de imagens enviesadas, negativas e desequilibradas das protagonistas, a começar pela sua invisibilização. Esta característica persiste, como confirmam pesquisas extensivas como as realizadas a nível internacional pelo GMMP ou em Portugal pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Este gap na representação simbólica prolonga, e mesmo agudiza por via dos critérios editoriais privilegiados pelos media informativos, aquele que perdura no campo político, nomeadamente em posições de liderança.

Não obstante, sobretudo na última década, registou-se uma curva ascendente da participação política feminina, em parte em consequência da aplicação da Lei da Paridade na composição das listas eleitorais para a Assembleia da República, Parlamento Europeu e autarquias locais2, em parte pela centralidade que o tema da paridade de género adquiriu na agenda dos partidos políticos e na opinião pública (Martins & Teixeira, 2005).

No ano da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres de Pequim, a representatividade política feminina era marginal em Portugal: nas eleições legislativas de 1995 foram eleitos 12,2% de mandatos femininos e as mulheres representaram 8,9% dos titulares dos cargos governamentais do XIII Governo (1995-1999), liderado pelo socialista António Guterres (Martins, 2012). Um quarto de século transcorrido, nas legislativas de 2019 foram eleitos 40% de mandatos femininos. À presente data, no XXII Governo (2019-), as mulheres têm um peso de 41%.

Se a invisibilidade é um aspeto relevante a considerar, na arquitetura do presente artigo procura problematizar-se a dimensão simbólica do poder a partir da hipervisibilidade mediática dos protagonistas políticos encarregados da gestão da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Em Portugal, duas mulheres desempenham cargos fulcrais na gestão da crise pandémica, alcançando um elevado perfil mediático. Por esta razão, estas dirigentes predispõem-se também a uma maior exposição pública e mediática, reconhecendo-se, neste contexto, a centralidade da comunicação, em diferentes formatos, desde os institucionais boletins diários transmitidos em direto pela televisão a programas de entretenimento do day time. Em entrevista, estas dirigentes refletem sobre a hiper-exposição pública e mediática resultante das mencionadas necessidades de comunicação, visibilidade que implica disponibilidade, mas também gera inquietude. As críticas podem ser vistas como injustas ou difíceis de encaixar.

A título ilustrativo, em entrevista ao Público de 21.03.2020, escreve-se que a diretora-geral da Saúde sabe “que uma comunicação eficaz é essencial num cenário de pandemia como o que atravessamos e que a exposição mediática faz parte do caderno de encargos das funções que desempenha” (Canelas & Andrade, 2020). Num perfil da mesma responsável, elaborado pelo Diário de Notícias e publicado na mesma data, refere-se:

Também por estes dias não serão muitas as horas que a diretora-geral da Saúde dorme, e não poderá deixar de se sentir só: o facto de ser o rosto da resposta à pandemia, com o que isso implica de responsabilidade e, em termos de julgamento público, de atenção a cada tonalidade do discurso, da expressão, a cada gesto e hesitação, não são partilháveis. (Câncio, 2020)

Com efeito, os estudos comprovam que as mulheres políticas são mais frequentemente alvo de enfoques centrados em descrições físicas ou no estilo sartorial, detalhando-se aspetos como a idade, os sapatos ou o mais recente corte de cabelo (Ross & Sreberny, 2000; Byerly & Ross, 2006; Gallego, 2009; Cabrera et al., 2020; Martins, 2015).

Um outro padrão documentado na investigação sobre as imagens mediáticas das mulheres políticas diz respeito a uma estereotipização assente no realce conferido a determinados traços de personalidade e comportamentais e na conexão a certas áreas de competência. Os homens continuam a ser percebidos como independentes, objetivos, dominadores, ambiciosos ou agressivos, as mulheres como emocionais, compreensivas, gentis, calorosas ou compassivas. Os primeiros são vistos como mais competentes para lidar com assuntos de política e comércio externos, economia, defesa, armamento, agricultura, e as segundas como mais aptas em temas como assistência social, educação, saúde, pobreza, direitos cívicos, combate ao tráfico e consumo de drogas, ambiente (Khan, 1996; Norris, 1997; Devitt, 1999; Bystrom, 2004).

O próprio acesso das mulheres à vida política pode ser historiografado em áreas específicas ligadas ao “cuidado”, como educação, assistencialismo, família ou saúde. Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar em Portugal, em 1911, era médica. Uma das três primeiras deputadas à primeira Assembleia Nacional, Cândida Parreira, numa intervenção em plenário em 1935, enfatizou:

tenho a impressão que não são bem os decretos sobre vinhos, sobre caminhos-de-ferro ou sobre eletricidade aqueles que nos devem conduzir a esta tribuna, mas sim todos aqueles que respeitem à família, à educação e à assistência. Estes, sim, estão bem para serem tratados por nós. (Citado em Vargas, 2000, p. 54)

Após a Revolução do 25 de Abril, Leonor Beleza foi a primeira mulher a desempenhar funções ministeriais num Governo Constitucional, em 1985, com a tutela da Saúde. Os estudos mostram que, de facto, as mulheres no Governo tendem a concentrar-se em áreas rotuladas como tradicionalmente femininas, como saúde, família, segurança social, educação e cultura, estando menos presentes noutras pastas, como defesa, finanças ou administração interna (Martins, 2015).

Um ângulo de género estruturado sobre esta idealização de um modelo de liderança política feminina poderá ter sido ativado, durante as primeiras semanas da pandemia, na apreciação, marcadamente positiva, do desempenho de mulheres, chefes de Estado e de governo, na gestão desta crise de saúde pública, ao ponto de os media dedicarem atenção a esta matéria3. Nesta avaliação das lideranças femininas em diferentes partes do mundo - como a de Angela Merkel na Alemanha ou de Jacinda Ardern na Nova Zelândia - poderá ter pesado a feliz combinação de elementos difíceis de equilibrar - firmeza e segurança com afeto e sensibilidade.

Aldrich e Lotito (2020) procuraram compreender a importância das lideranças femininas e o eventual maior sucesso em comparação com as masculinas no combate à Covid-19. Organizaram a sua análise no momento da adoção de políticas em três áreas - ordem de permanência em casa, encerramento de escolas e coordenação de campanhas de informação pública -, mas não encontraram evidências substanciais que permitissem sustentar esta hipótese.

Pelo contrário, Coscieme et al. (2020) analisaram os dados disponíveis em 35 países e advogam que aqueles governados por líderes femininas tiveram menos mortes per capita e foram mais eficazes e rápidos no achatamento da curva epidémica, com picos mais baixos nas mortes diárias. Os autores sublinham que estas conclusões estão relacionadas com a introdução de medidas restritivas na fase inicial da pandemia, dando-se prioridade à saúde pública em detrimento das questões económicas.

Dada et al. (2020) partem do princípio de que as mensagens públicas das lideranças políticas durante o combate à pandemia influenciaram a confiança das populações e a eficácia da resposta. A este propósito, analisaram as declarações públicas de 20 chefes de governo, com o objetivo de destacar as diferenças entre homens e mulheres no debate e na resposta à pandemia provocada pela Covid-19. Nas conclusões referem que todos os líderes descrevem o impacto económico desta crise, mas as mulheres reportam-se também a outros temas, como o bem-estar social, a saúde mental, o abuso de substâncias e a violência doméstica. Os autores sublinham ainda que 17 dos 20 líderes usaram metáforas de guerra para descrever o combate à Covid-19, embora tenham sido os homens a usarem-nas mais amplamente.

Por seu turno, Priola e Pecis (2020), referindo-se à situação vivida em Itália durante a primeira fase da pandemia, assinalam a ausência de mulheres em papéis decisórios, quando estas estão mais representadas entre os profissionais de saúde e os cuidadores domiciliários. Acrescentam que a crise sanitária intensificou as desigualdades em geral e, em particular, as de género, e consideram que, no seu combate, o primeiro-ministro Giuseppe Conte falhou no dever de cuidado consistente e empático.

3. Análise empírica

3.1. Abordagem metodológica

Ponderadas as linhas que se evidenciam nas investigações que articulam política e media de uma perspetiva de género, procedeu-se ao desenho da análise empírica com o objetivo de identificar as figuras do combate à pandemia que mais se destacaram na informação dos principais canais televisivos, bem como de rastrear a associação destes a determinados subtemas relacionados com a Covid-19. Serão percetíveis diferenças de género na representação simbólica destes protagonistas?

O estudo empírico, de carácter exploratório, incide sobre os jornais da noite dos canais generalistas free-to-air RTP1 (Telejornal), SIC (Jornal da Noite) e TVI (Jornal da 8) e da estação generalista líder de audiências no cabo, a CMTV (CM Jornal 20H), entre o dia 18 de março e 31 de maio de 2020. Este recorte temporal permite abarcar todo o período em que o país esteve em estado de emergência (de 18 de março a 2 de maio) e o subsequente plano de desconfinamento faseado traçado pelo Governo.

A recolha das peças refere-se às primeiras três notícias sobre o tema de Covid-19, independentemente da sua posição no alinhamento e do género jornalístico. No total, foram codificadas, entre os quatro canais televisivos, 900 peças jornalísticas sobre a pandemia.

A metodologia utilizada é quantitativa e fundamenta-se no levantamento de dados, privilegiando o tratamento numérico das informações e dos fenómenos. A finalidade destes procedimentos é extrair elementos que permitam fazer inferências válidas, replicáveis e objetivas da substância da(s) mensagem(s), com vista à compreensão dos fenómenos analisados. Com este objetivo procede-se à análise de conteúdo, técnica de investigação aplicável a todos os meios de comunicação e que visa a descrição sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto (Cunha & Peixinho, 2020). Por conseguinte, esta análise procura a “objetividade” e a “sistematização” no processo de levantamento de conteúdos “manifestos” e tem como finalidade apontar indicadores para a “generalização” dos dados recolhidos em contextos semelhantes (Bauer & Gaskell, 2002).

Foram formuladas categorias unívocas de análise, isto é, categorias fundamentadas teoricamente e justificadas, de forma a atenuarem as ambiguidades de interpretação, utilizando-se para tal um instrumento de registo de definições. Este percurso, que envolveu uma fase de pré-análise e posterior consolidação de categorias, foi parametrizado no programa Excel. As categorias adotadas posteriormente obedeceram não só aos resultados dos testes de pré-análise, como à leitura de textos teóricos referidos nos pontos precedentes. São elas: Canal, Bloco Noticioso, Data, Alinhamento, Pivô, Sexo do Pivô, Temas, Protagonistas, País Principal, Cenários. Deverá notar-se que foi apenas codificado o protagonista das peças, não a totalidade dos intervenientes.

3.2. Estudo empírico

Apresentam-se nos parágrafos seguintes os principais resultados obtidos para as categorias de codificação definidas, os quais, interligados, permitem sinalizar padrões de cobertura da Covid-19 na informação televisiva e suportar inferências sobre os protagonistas das notícias e algumas formas de visibilidade mediática alcançadas neste contexto. Deverá reiterar-se que a análise incide sobre as três primeiras peças transmitidas sobre a pandemia, o que permite avaliar a hierarquização editorial operada, mas não tecer considerações sobre a totalidade dos alinhamentos dos jornais.

Não se ignora também que as modalidades de cobertura foram influenciadas por fortes constrangimentos que afetaram o exercício do jornalismo neste período. As organizações mediáticas lidaram com a complexa tarefa de continuar a informar e a corresponder à grande procura de informação sobre um tema altamente especializado e envolvo em muitas incertezas, quando os próprios profissionais se encontravam em teletrabalho ou em rotatividade, com limites de circulação e de acesso e com concentração dos fluxos informativos em algumas fontes oficiais e momentos de comunicação, como os boletins diários da responsabilidade das autoridades de saúde.

No lapso temporal analisado, a crise sanitária foi tendencialmente selecionada como tema de abertura dos jornais televisivos - em particular, do Telejornal (RTP1) e do Jornal das 8 (TVI) - e as peças inseridas nas primeiras posições dos alinhamentos (Figura 1).

Figura 1. Proeminência das notícias sobre Covid-19 no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H (CMTV) - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em %) N = 900 peças (Telejornal: 225 peças; Jornal da Noite: 225 peças; Jornal das 8: 225 peças; CM Jornal 20H: 225 peças). 

Os quatro canais revelaram um padrão idêntico na seleção temática, destacando os tópicos “Balanço” (infetados, recuperados, óbitos, outros), “Planos de desconfinamento”, “Estado sanitário” (emergência, calamidade, cerca sanitária, outro), “Crise económica e social” e “Testes Covid-19” (Figura 2). A maioria das notícias transmitidas nas primeiras posições do alinhamento, acima de 90%, tem como referente geográfico Portugal (Figura 3).

Figura 2. Gráfico comparativo dos principais temas das primeiras três peças noticiosas sobre Covid-19 no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H (CMTV) - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em %) N = Balanço: 245 peças; Planos de desconfinamento: 125 peças; Estado sanitário: 100 peças; Crise económica e social: 75 peças; Testes Covid-19: 72 peças. 

Figura 3. Referentes geográficos das primeiras três peças noticiosas sobre Covid-19 no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H (CMTV) - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em %). N = 900 peças (Telejornal: 225 peças; Jornal da Noite: 225 peças; Jornal das 8: 225 peças; CM Jornal 20H: 225 peças).Nota: “Outros” inclui: Brasil, China, Espanha, EUA, França e Itália. 

No conjunto das peças analisadas, destacaram-se cinco figuras, quatro das quais da esfera ou sob tutela política, a saber: o primeiro-ministro (112 peças ou 12,4% do corpus); a diretora-geral da Saúde4 (82 peças ou 9,1%); a ministra da Saúde e o presidente da República (61 peças ou 6,8% cada) (Figura 4). A concentração nestas figuras não destoa da análise efetuada anteriormente para o período entre 2 e 18 de março de 2020 (Cabrera, Martins & Cunha, 2020)

Figura 4. Principais categorias de protagonistas das primeiras três peças noticiosas sobre Covid-19 no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H (CMTV) - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em n.º de peças). N = 435 peças. 

A análise revela ainda a saliência, transversal aos quatro canais, dos próprios pivôs das estações, que protagonizam 119 peças (13,2% do total). Na verdade, surgem como a principal categoria de protagonistas no corpus selecionado, denotando não apenas a centralidade readquirida pelas televisões no país em confinamento, como também um estilo interventivo e até orientador por parte destes profissionais. Neste período nota-se a proeminência dos jornalistas que apresentam os blocos noticiosos de prime-time, por vezes adotando um tom pedagógico, emocional e mesmo paternalista.

Considerando o sexo dos pivôs em causa, percebe-se que, com exceção do Jornal da Noite da SIC, conduzido, intercaladamente, por Rodrigo Guedes de Carvalho e Clara de Sousa, esse protagonismo é mais pronunciado entre os apresentadores do que entre as apresentadoras5 (Figura 5).

Figura 5. Gráfico comparativo dos pivôs protagonistas das primeiras três peças noticiosas sobre Covid-19 no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H (CMTV) - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em %) N = Telejornal: 20 peças; Jornal da Noite: 54 peças; Jornal das 8: 26 peças; CM Jornal 20H: 19 peças. 

Estabelecendo uma correlação entre os protagonistas da esfera política e os temas sobre a Covid-19, percebe-se uma clara divisão de áreas de responsabilidade e de nível de decisão entre, por um lado, os chefes de Estado e do Governo e, por outro, a ministra da Saúde e a diretora-geral da Saúde. A cobertura jornalística reflete esta repartição de domínios de atuação, ao acompanhar e destacar as comunicações oficiais destes dirigentes. As notícias estão povoadas de imagens destes protagonistas em conferências de imprensa ou reuniões, que consubstanciam momentos institucionais de comunicação. Deverá referir-se que, em 54% das peças protagonizadas pelo primeiro-ministro, sobressaem as imagens de conferências de imprensa, o mesmo sucedendo em 72% das peças protagonizadas pela diretora-geral da Saúde, 67% pela ministra da Saúde e 36% pelo presidente da República.

Relacionando as principais categorias de protagonistas políticos e os temas relacionados com a Covid-19, é notório que o primeiro-ministro e o presidente da República controlam os circuitos formais da tomada de decisão sobre o estado sanitário, os programas de recuperação económica e os planos de desconfinamento, que os próprios anunciam em eventos oficiais de comunicação ao mais alto nível do Estado.

A diretora-geral da Saúde e a ministra da Saúde estão diariamente presentes nas notícias, no boletim da hora de almoço, atualizando o balanço de infetados, recuperados e óbitos, recordando as orientações sanitárias e esclarecendo dúvidas sobre os testes à Covid-19. Nesta associação temática, a ministra apenas se singulariza da diretora-geral de Saúde quando aborda a capacidade dos hospitais para assegurar a assistência à população e a disponibilidade de equipamentos médicos (Figura 6).

Figura 6 Relação entre as principais categorias de protagonistas políticos e temas relacionados com a Covid-19 nas primeiras três peças noticiosas sobre a pandemia no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20H - 18 de março a 31 de maio de 2020 (em n.º de peças) 

Neste “novo normal”, elas são o rosto quotidiano do combate à pandemia e da transmissão à sociedade das medidas de prevenção, adquirindo hipervisibilidade mediática neste contexto. Frequentemente, nas peças a diretora-geral de Saúde e a ministra da tutela são exibidas em conjunto, gerindo as conferências de imprensa, como se ilustra nas frames reproduzidas nas Figuras 7 e 8.

Figura 7 Telejornal, RTP1, 21.03.2020. Diretora-geral da Saúde e ministra da Saúde no boletim diário 

Figura 8 Jornal da Noite, SIC, 05.04.2020. Diretora-geral da Saúde e ministra da Saúde no boletim diário 

No entanto, não pode deixar de se notar que, nos anúncios mais significativos efetuados pelo primeiro-ministro e pelo presidente da República, as mulheres que são o rosto no combate diário à pandemia desaparecem ou são remetidas, nas notícias, para posições secundárias ou decorativas. Na composição de algumas destas peças são selecionadas imagens meramente ilustrativas destas responsáveis, onde surgem a acompanhar os representantes dos órgãos de soberania, a ocupar o respetivo lugar ou a realizar uma apresentação numa reunião, ainda que na locução não se faça uma referência explícita a esta presença ou não sejam difundidas declarações das próprias. Como se exemplifica na Figura 9, que corresponde a uma frame extraída de uma notícia em que surgem destacados o chefe de Estado, o presidente do Parlamento e o chefe do Governo, tanto a ministra da Saúde como a diretora-geral da Saúde aparecem em segundo plano e sem “voz”.

Figura 9 Jornal da Noite, SIC, 28.04.2020: o presidente da República anuncia que o estado de emergência terminará a 2 de maio. Na imagem, ladeado pelo presidente do Parlamento e o primeiro-ministro 

4. Notas conclusivas

A pandemia foi o tema mais destacado dos alinhamentos noticiosos analisados entre 18 de março e 31 de maio de 2020, sendo privilegiada a situação nacional nas primeiras peças difundidas a cada dia. A análise dos blocos informativos de prime-time dos principais canais televisivos nacionais confirma que, na gestão da crise sanitária, sobressaíram Graça Freitas e Marta Temido, a par de duas figuras masculinas, o primeiro-ministro e o presidente da República. Em virtude dos cargos que impuseram profusas aparições públicas, sobretudo de índole oficial, a diretora-geral da Saúde e a ministra da Saúde adquiriram hipervisibilidade mediática neste período.

Graça Freitas e Marta Temido são o rosto diário do combate à Covid-19, intervindo em conferências de imprensa nas quais atualizam dados e dão instruções sobre precauções a serem seguidas. Esta intervenção é claramente pautada por uma agenda própria, demarcada da atuação e raio de decisão do primeiro-ministro e do presidente da República, centrados na determinação dos estados sanitários, nos planos de desconfinamento e na crise económica e social que se adensa como consequência do confinamento.

A diretora-geral da Saúde e a ministra da Saúde surgem sobretudo em contexto formal e institucional, amiúde lado a lado partilhando a mesma mesa no boletim diário, tendo como pano de fundo símbolos que representam a República portuguesa. O dispositivo comunicacional é igualmente aproveitado para transmitir mensagens de encorajamento e de prevenção. Os protagonistas masculinos são também exibidos neste enquadramento cénico e comunicacional, o que revela a predominância das fontes de informação oficiais na determinação da agenda pública e dos media sobre a Covid-19.

Deverá ter-se presente, por um lado, que, com a pandemia e as decorrentes necessidades de informação, a televisão e outros media batem recordes de audiências. E para este fenómeno contribuíram, inegavelmente, as conferências diárias de governantes e das autoridades sanitárias. Estes pronunciamentos oficiais, com as características descritas, constituíram, para os cidadãos isolados nos seus domicílios, como que um cerimonial (Cabrera, Martins & Cunha, 2020, p. 186). É também percetível que o desafio lançado pela crise sanitária agregou responsáveis de saúde e media mainstream em Portugal, com vista a informar, esclarecer e orientar a sociedade. As rotinas jornalísticas de construção noticiosa refletiram as estratégias comunicacionais do Governo e da Direção-Geral da Saúde (Cabrera, Martins & Cunha, 2020, p. 198). Estas circunstâncias contribuíram adicionalmente para conferir protagonismo aos pivôs, que com frequência adotaram um discurso emocional e até paternalista.

A hipervisibilidade política feminina alcançada nos plateaux televisivos neste lapso temporal deve ser valorizada e devidamente ponderada. Os discursos das protagonistas femininas revelam um predominante pendor técnico, mas também se podem subsumir à esfera do cuidado. Tratando-se este de um estudo exploratório, esta asserção deverá ser consubstanciada no aprofundamento da análise. Este exercício permitirá compreender melhor a assunção de um ideal de liderança feminina ou masculina pelos media, mas também pelos próprios responsáveis políticos.

Ainda assim, deverá voltar a refletir-se sobre o significado da avaliação positiva das figuras femininas em vários países, incluindo Portugal, na gestão da Covid-19, a qual poderá ser relacionada com o envolvimento histórico e presente das mulheres nos domínios da saúde e da assistência. As mulheres continuam a ser vistas como assegurando a dimensão do cuidado, agora na esfera política. A este propósito recupera-se a tese de Victoria Camps sobre a insuficiência de um conceito de justiça sem solidariedade. Em O Século das Mulheres (2001, pp. 64-65), ainda que se demarcando de uma interpretação essencialista do conceito de “mulheres cuidadoras”, a filósofa constata que os homens não adotaram uma cultura do cuidado e que por isso mesmo nunca fez parte da vida pública; contudo, secularmente o terreno das mulheres, o cuidado esteve muito presente na vida privada, em especial na familiar. Camps (2001, pp. 63-64) afirma que

todo o discurso à volta da ideia do cuidado mais não é que uma tentativa de realçar a necessidade daquilo que, em geral, corresponde à virtude da solidariedade. É evidente que uma ética da justiça se dirige às instituições sociais e políticas […] e procura estabelecer regras e normas gerais que valham para todos os cidadãos. É uma ética distante em relação ao indivíduo concreto: não pode levar em conta laços sentimentais ou emotivos. […] O indivíduo não precisa só de instituições, leis, procedimentos justos. Também precisa de afeto, ajuda, compaixão, companhia, cuidado. Os seres mais indefesos e vulneráveis - as crianças, os idosos, os desempregados, os estrangeiros - não reclamam do outro apenas justiça, também reclamam proximidade, apreço, amizade.

No início deste artigo equacionou-se a contraposição entre “política” e “cuidado” com a finalidade de pensar mais amplamente sobre a conceção de política, que deverá incluir o cuidado e o afeto. Provavelmente está ainda muito enraizada a expectativa de que as mulheres trazem este legado para a ação política, sobretudo em momentos de crise que exigem especial assistência e conforto a grupos socialmente mais fragilizados.

Corpus empírico:

RTP 1 - Telejornal (18.03.2020 a 31.05.2020)

SIC - Jornal da Noite (18.03.2020 a 31.05.2020)

TVI - Jornal das 8 (18.03.2020 a 31.05.2020)

CMTV - CM Jornal 20H (18.03.2020 a 31.05.2020)

Agradecimentos

Para a realização deste artigo, impõe-se um agradecimento à Marktest/Mediamonitor, pelo acesso concedido ao serviço e-telenews, possibilitando a recolha do corpus empírico deste estudo.

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1A título ilustrativo, em 2019, eram do sexo feminino 68,2% dos diplomados em medicina e 83,6% dos diplomados em enfermagem geral e enfermagem obstétrica (Pordata).

2A Lei da Paridade (Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto) foi aplicada pela primeira vez nos três atos eleitorais realizados em 2009, determinando-se que, na composição das listas eleitorais, os partidos políticos teriam de propor um mínimo de 33% de candidatos de ambos os sexos, não podendo listar mais do que dois candidatos seguidos do mesmo sexo. Em 2019, esse limiar da paridade foi revisto para 40% (Lei Orgânica n.º 1/2019, de 29 de março).

3Por exemplo, a 25 de abril de 2020, o jornal britânico The Guardian, com o artigo “Are female leaders more successful at managing the coronavirus crisis?”, e, a 9 de maio, o Público, com o artigo “Lideranças ‘masculinas’ ou ‘femininas’ contra pandemia? Seria melhor ‘libertarmo-nos desses rótulos’”.

4A diretora-geral da Saúde não representa a esfera política strictu senso, mas dirige um serviço central do Ministério da Saúde, integrado na administração direta do Estado, e exerce as funções de autoridade de saúde nacional. Graça Freitas foi nomeada pelo ministro da Saúde em dezembro de 2017, após procedimento concursal da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública.

5No Telejornal, apenas uma peça é protagonizada por uma pivô, Cristina Esteves, sendo o protagonismo depois repartido entre José Rodrigues dos Santos e João Adelino Faria. O Jornal das 8 não conta, neste período, com qualquer pivô feminina. No CM Jornal 20H, em três peças destaca-se a pivô Daniela Polónia, salientando-se nas demais em que o pivô é João Ferreira ou José Carlos Castro.

Recebido: 17 de Outubro de 2020; Aceito: 05 de Dezembro de 2020

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