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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Harold Macmillan, os «ventos de mudança» e a crise colonial portuguesa (1960-1961)

 

Pedro Aires Oliveira

Docente na FCSH – UNL e investigador do Instituto de História Contemporânea. Membro do Conselho Científico do IPRI – UNL. Autor de Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-1975 (2007).

 

RESUMO

Harold Macmillan foi uma figura-chave no processo que levou ao desmantelamento do império britânico após a II Guerra Mundial. O célebre discurso que proferiu no parlamento sul-africano, em Fevereiro de 1960, deu origem a uma expressão «os ventos de mudança» que descrevia perfeitamente o tipo de dinâmicas que percorriam o mundo colonial. Neste artigo, começamos por analisar as circunstâncias que facilitaram a mudança de rumo na política britânica face ao império; seguidamente, descrevemos as percepções das elites governantes portuguesas face às opções de Londres em matéria de descolonização e examinamos até que ponto as diferentes maneiras de encarar os desafios aos respectivos impérios se repercutiram no relacionamento entre os dois aliados. Por fim, olhamos para os esforços envidados pelo governo de Macmillan em 1961 para persuadir Salazar a adoptar uma atitude mais flexível em relação às aspirações do nacionalismo africano, e enunciamos as razões que determinaram o fracasso dessas démarches.

Palavras-chave: Descolonização, África Portuguesa, relações luso-britânicas, Macmillan

 

Harold Macmillan, the “winds of change” and the Portuguese colonial crises (1960-1961)

ABSTRACT

Harold Macmillan was a key figure in the process that culminated with the liquidation of Britain’s formal empire in the early 1960s. His speech delivered to the South African Parliament on February 1960 became famous for an expression – ‘the winds of change’ – that encapsulated the high tide of nationalism in the colonial world. In this article, we start by analyzing the circumstances that facilitated the changes in the UK policy towards its own empire, and then proceed to describe the perceptions of the Portuguese leaders concerning those changes and how this impacted on the Anglo-Portuguese relationship. Finally we will describe the ill-fated efforts undertook by Macmillan’s administration in 1961 in order to persuade Salazar to adopt a more flexible stance towards the demands for self-determination in Portuguese Africa.

Keywords: Decolonization, Portuguese Africa, Portugal-Great Britain relations, Macmillan

 

Parece indiscutível que qualquer crónica da descoloni-zação europeia no século XX terá de reservar um lugar especial para Harold Macmillan que, entre 1957 e 1963, exerceu o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, imediatamente após o brevíssimo e desastrado mandato de Anthony Eden. Um historiador apelidou-o de «o grande descolonizador do império britânico em África»1, ao passo que o seu mais recente biógrafo, D. R. Thorpe, considera que se por acaso Macmillan tivesse sido assassinado pouco depois de proferir o célebre discurso dos «ventos da mudança», em Fevereiro de 1960, teria o seu lugar na história devidamente salvaguardado2.

Numa perspectiva mais ampla, o protagonismo de Macmillan na grande narrativa da descolonização britânica necessita de ser matizado. Afinal de contas, no imediato pós-guerra, o Governo trabalhista de Clement Attlee e Ernest Bevin (1945-1951) foi responsável por um conjunto de decisões que ditaram a inevitabilidade do desmantelamento do império formal da Grã-Bretanha, e nem mesmo a mal-avisada aventura do Suez em 1956 nos deverá distrair dos reajustamentos e reconsiderações, acompanhados de algumas cedências a forças nacionalistas, que foram empreendidos ainda durante as administrações de Churchill e Eden (1951-1956).

 

O GRANDE ACELERADOR

Macmillan deverá ser visto sobretudo como o grande acelerador, alguém que tinha a consciência exacta das limitações do poderio britânico na década de 1950 e uma percepção aguda dos ajustamentos que deveriam ser feitos para que Londres pudesse continuar a desempenhar um papel relevante no plano internacional, no momento em que as duas superpotências olhavam para o chamado Terceiro Mundo como a arena crítica da Guerra Fria.

As suas disposições ideológicas e instintos pragmáticos equiparam-no bem para semelhante tarefa. Em contraste com os conservadores de outra geração, não era alguém que fosse demasiadamente sensível ao «apelo romântico» do império. Também não seria um Little Englander, já que prezava o valor das conexões imperiais e encarava a Commonwealth como um potencial veículo para a projecção da influência britânica à escala mundial. Embora os seus governos tenham reconhecido a importância do projecto europeu impulsionado pelas potências do Tratado de Roma, apresentando dois pedidos de adesão ao Mercado Comum (vetados por De Gaulle em 1961 e 1963), a evidência documental sugere que esse «europeísmo» não deverá ser muito exagerado. Tal como quase todos os estadistas britânicos da segunda metade do século XX, Macmillan não parecia muito interessado em fazer uma escolha entre a «Europa» e os outros dois «círculos» fundamentais das relações externas britânicas, a Commonwealth e os Estados Unidos da América3.

Aliás, se havia questão na qual Macmillan parecia completamente comprometido, essa era a preservação da «relação especial». Afinal de contas, ele havia sido o responsável pelo Tesouro no momento mais dramático da crise do Suez, quando os americanos deixaram claro o que poderia acontecer à libra esterlina se Londres persistisse num caminho tido como inaceitável para Washington. A Grã-Bretanha dependia também vitalmente de Washington no domínio da segurança. A sua força de dissuasão nuclear – a marca distintiva das grandes potências na era contemporânea – precisava de tecnologia americana para ser operacional, o que fez da aquisição do sistema Polaris para a frota de submarinos da Royal Navy uma das prioridades máximas da política externa de Macmillan no início dos anos 1960.

Parece hoje consensual entre a historiografia que o «génio» de Macmillan terá residido na sua capacidade em tornar aceitável para uma parte significativa do Partido Conservador a ideia da retirada imperial, numa época em que, como já alguém notou, essa questão era tão «fracturante» quanto a questão europeia se viria a tornar para o mesmo partido a partir da década de 1980. Uma das razões que tornava a discussão de uma retirada imperial tão explosiva era a situação dos colonos brancos, que constituíam comunidades numerosas e bem organizadas em locais como o Quénia e os territórios da Federação Centro-Africana (os actuais Malawi, Zimbabué e Zâmbia). O sentimento de solidariedade entre muitos lealistas imperiais em Inglaterra para com os interesses destes grupos era forte – e o paralelo com a situação da Argélia francesa esteve sempre presente na mente de Macmillan e de outros ministros. Como ele próprio uma vez disse, «Não são os africanos que são o problema na África, mas sim os europeus».

Nesse sentido, foi só após ter conseguido tornar mais segura a sua posição no plano doméstico, na sequência da expressiva vitória alcançada nas eleições gerais de 1959, que Macmillan se sentiu mais confiante para avançar com o tipo de adaptações que a sua visão do futuro papel do Reino Unido exigia.

Essas adaptações, como é sobejamente sabido, foram precedidas por uma extensa reavaliação dos compromissos britânicos em matéria de política colonial, externa e de defesa, através de estudos elaborados por diversos departamentos ministeriais em Whitehall. Esses estudos haviam sido encomendados por Macmillan em 1957, poucas semanas depois de tomar posse do cargo de primeiro-ministro. O seu propósito era o de garantir uma análise do tipo de «ganhos e perdas» em relação às colónias que poderiam estar «maduras para a independência durante os próximos anos»4.

Previsivelmente, as conclusões não apontavam soluções expeditas, antes apresentavam cenários repletos de prós e contras em relação a independências concedidas «prematuramente» – aliás, um parecer muito em linha com aquilo que era o sentimento geral da opinião pública britânica, mesmo após o fiasco do Suez5. Um dos estudos de maior impacto, intitulado «Future constitucional development in the colonies» (Setembro de 1957) colocava inclusivamente várias reservas morais a uma política de abandono súbito das colónias. Segundo os seus autores, as poupanças financeiras que isso poderia proporcionar teriam de ser cotejadas com os danos morais resultantes de uma retirada precipitada. Dito isto, a verdade é que nenhum dos funcionários envolvidos no exercício levantou objecções sérias, do ponto de vista económico ou estratégico, a um progresso constitucional na direcção da independência. Outro estudo ainda, o «Defense White Paper» (1957), formulava várias recomendações em relação a economias que poderiam ser feitas, e que se traduziriam numa redução do pessoal a um nível tal que futuras campanhas de contraguerrilha seriam muito difíceis de realizar6. O historiador Ronald Hyam vê nesta medida, que reduziu em cerca de dois terços a força do Exército britânico nas colónias, um dos contributos mais significativos para a aceleração da descolonização na década de 19607.

Um terceiro estudo, «Future policy study: 1960-1970», um ambicioso exercício de prospectiva elaborado no rescaldo da eleição de 1959, dava como inevitável o declínio do poder relativo da Grã-Bretanha à escala global, o que deveria levar os seus responsáveis a concederem máxima prioridade à preservação da Aliança Atlântica. Interdependência e partilha de esforços seriam conceitos fundamentais no futuro imediato. Embora a área esterlina e a Commonwealth permanecessem como importantes fontes de poder e influência, a relação com Washington era vista como o factor crítico da posição internacional do Reino Unido. Isto significava que as exigências da agenda anticomunista dos Estados Unidos teriam de ser levadas muito a sério, o que implicava uma predisposição para acomodar as aspirações nacionalistas que se iam fazendo sentir em vários territórios coloniais, a fim de evitar que potências como a China e a URSS as pudessem explorar para seu benefício próprio.

 

A CORRIDA PARA SAIR DA ÁFRICA

Mas tão importantes como estas cogitações burocráticas no antecipar das decisões que haveriam de conduzir ao desmantelamento do império foram os acontecimentos no terreno8. Em finais da década de 1950, para além do quebra-cabeças que era a situação na ilha de Chipre, duas colónias em particular captaram a atenção do público britânico: o Niassalândia e o Quénia (as «nossas Argélias», segundo confidenciou Macmillan a Eisenhower)9. Na primeira, um rumor acerca de uma alegada conspiração de assassinato visando os colonos europeus conduziu à prisão do líder do Nyassaland Congress Party, Hastings Banda, seguida de protestos, distúrbios, dezenas de mortos e a imposição do estado de emergência. Mais tarde, um inquérito oficial aos acontecimentos referiu-se à colónia como estando reduzida a um «Estado policial». No Quénia, uma das colónias mais prósperas da África britânica, a morte de 11 detidos num campo de concentração para indivíduos suspeitos de pertencerem ao movimento dos Mau-Mau, e o ferimento de vinte outros (o «massacre de Hola Camp»), causou uma repulsa geral, o que deu origem à realização de um inquérito e de um relatório bastante comprometedores. Na Câmara dos Comuns, elementos da própria bancada conservadora exprimiram o mal-estar gerado por esta situação («Na África, mais do que em qualquer outro lugar, não podemos, não nos devemos sequer atrever, a baixar os nossos critérios na altura de assumir responsabilidades», afirmou Enoch Powell10), e Macmillan, com uma eleição à vista, não deixou de ponderar as possíveis consequências adversas deste estado de coisas na competição com os trabalhistas.

De notar ainda que estes acontecimentos coincidiram temporalmente com importantes desenvolvimentos na política colonial francesa, como a secessão da Guiné de Sekou Touré ou o plano do general De Gaulle de autodeterminação para a Argélia, a par da promessa do rei Balduíno de conceder a independência ao Congo Belga, o que reforçava a ideia de que o Reino Unido teria de responder a esta aceleração, se não quisesse sofrer uma espécie de efeito de contágio revolucionário ou perder a «ascendência moral» que havia de alguma forma conquistado com a sua tradição imperial reformista e a decisão de proceder ao desmantelamento do Raj em 1947. Em suma, nesta nova «corrida para fora da África», a última coisa que os governantes britânicos desejavam era serem «equiparados aos portugueses como o obstáculo a um futuro progresso» no mundo colonial, desbaratando o prestígio que haviam acumulado com a sua «governação benevolente»11. Gradualmente, o consenso em Whitehall apontava para a inevitabilidade da dissolução do império formal e para a aceleração do processo que deveria conduzir à autodeterminação dos territórios, e pouco depois à independência, devendo esta acontecer em simultâneo com a adesão dos novos países à Commonwealth. Esta transição gradual e controlada não apenas honraria a filosofia paternalista e liberal que, alegadamente, constituía a marca distintiva da experiência imperial britânica, como daria origem a uma Commonwealth alargada, «uma família de nações partilhando os valores do governo responsável, da liberdade, e moralidade, “com um importante papel a desempenhar no mundo”»12. Desse modo, a retirada da África não teria de ser concebida como um sinal de fraqueza; pelo contrário, seria a forma mais eficaz de garantir à Grã-Bretanha a continuidade do seu estatuto de grande potência mundial, um estatuto ancorado, precisamente, na sua ampla rede de conexões pós-coloniais e no capital de influência e prestígio que isso lhe proporcionava.

No início de 1960, já com um novo governo empossado (no seio do qual se viria a destacar o seu enérgico secretário de Estado das Colónias, Ian McLeod), Macmillan partiu para um périplo de seis semanas por vários territórios africanos. A viagem levou-o até à Nigéria, Gana, Federação Centro-Africana e, por fim, à África do Sul. O seu objectivo fundamental era, precisamente, o de tomar o pulso à maré alta do nacionalismo africano e preparar o terreno para algumas das mudanças constitucionais que o Reino Unido tencionava introduzir nalgumas das suas colónias. No Gana, o primeiro território da África Ocidental Britânica a alcançar a independência, o Presidente Nkrumah sugeriu a Macmillan que aproveitasse a sua estada na África para proferir uma declaração em que a nova orientação para o império fosse exposta com clareza, e de preferência com algum impacto dramático. Em Salisbúria, Macmillan teve palavras pouco encorajadoras para os representantes dos colonos brancos que estavam determinados a resistir às aspirações da maioria negra, e deixou-os cheios de dúvidas quanto a um futuro apoio de Londres em relação à continuidade da Federação Centro-Africana13. Mas seria na África do Sul que a visita de Macmillan conheceria o seu ponto alto, nomeadamente numa sessão realizada no Parlamento sul-africano, na Cidade do Cabo, a 3 de Fevereiro de 196014. Usando da palavra durante perto de uma hora, Macmillan fez uma excursão histórica pela evolução do nacionalismo, cujas origens fazia recuar ao período de dissolução do Império Romano. Depois de um longo trajecto, o sentimento que estivera por detrás da constituição das nações independentes na Europa triunfara na Ásia após 1945 e agora chegara à África:

«O vento da mudança está a soprar pelo continente fora e, quer isso nos agrade ou não, o amadurecimento da consciência nacional é um facto político. Devemos aceitá-lo como tal e as nossas políticas devem dar conta disso mesmo.»

E não perdendo de vista o contexto mais amplo em que as aspirações dos povos colonizados eram articuladas, nem o perfil anticomunista dos destinatários mais imediatos da sua mensagem, acrescentaria mais à frente:

«Tal como eu vejo as coisas, a grande questão desta segunda metade do século XX consiste em saber se os povos não comprometidos da Ásia e da África se inclinarão para o Leste ou para o Ocidente. Será que se deixarão arrastar para o campo comunista? Ou será que as experiências de autogoverno em curso na Ásia e na África, especialmente no seio da Commonwealth, se revelarão tão bem-sucedidas que os pratos da balança penderão a favor da liberdade, da ordem e da justiça? A disputa começou, e é uma disputa pela mente dos homens.»15

As reacções ao discurso foram, naturalmente, díspares: de consternação, por parte dos nacionalistas sul-africanos brancos; de regozijo por parte dos opositores do apartheid e dos partidários da emancipação africana um pouco por todo o continente16. A expressão «ventos de mudança» ganhou enorme notoriedade e atormentou os poderes que continuavam a resistir às aspirações da maioria negra na África. Menos de dois meses depois, a violenta repressão que se abateu sobre os manifestantes das townships sul-africanas (massacre de Sharpeville) deu azo à aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU em que o Governo da África do Sul foi alvo de uma veemente condenação – acontecimento que assinalaria o progressivo isolamento internacional do regime de Pretória17. Dirigindo-se à ONU em Abril de 1960, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Conacri afirmaria que

«“o vento da mudança” a que o primeiro-ministro Macmillan se referiu recentemente ameaça tornar-se um furacão. […] Nem as armas nem as baionetas poderão prevalecer em face da forte consciência das populações africanas que estão determinadas a pôr fim ao colonialismo.»18

No próprio Reino Unido, elementos da ala mais direitista do Partido Conservador chegariam mesmo a fundar um grupo de pressão, o Monday Club (assim designado porque o discurso do Cabo fora proferido numa segunda-feira), com o propósito de combater a política de descolonização do Governo de Macmillan. Mas ao adoptar uma postura que era em tudo semelhante à que o próprio Partido Trabalhista perfilhava, este conseguiu assentar num consenso bipartidário a política de «avanço constitucional», que muito rapidamente se converteu num eufemismo para a concessão da independência a vários territórios coloniais britânicos, na África mas também nas Antilhas e na Ásia (depois da sua morte, a campa de Macmillan no Cemitério de St. Giles, em Horstead Keynes, tornar-se-ia inclusivamente destino de romagem de visitantes oriundos dos antigos territórios coloniais do Reino Unido19).

 

DOIS IMPÉRIOS, DOIS DESTINOS

Como foram recebidos em Portugal todos estes desenvolvimentos? Que impacto tiveram nas percepções das elites governantes relativamente ao futuro do colonialismo na África? E como evoluíram os contactos entre Portugal e esse seu aliado histórico?

Como é sabido, o Portugal de Salazar abordou os desafios do nacionalismo anticolonial de forma muito diferente de uma potência como a Grã-Bretanha, cuja política imperial (ou, se preferirmos, de descolonização), desde a independência da Índia à crise do Suez, era encarada pelos «falcões» do regime como uma política de apaziguamento, abdicação moral e debandada.

Embora o apego ao império não fosse um exclusivo do Estado Novo, sendo uma herança do nacionalismo imperial da República, as suas características intrínsecas tornavam impossível qualquer discussão aberta sobre o futuro da presença portuguesa na África. Enfrentar as reivindicações de africanos e asiáticos através de concessões e reformas de natureza liberal seria sempre algo de complexo para uma ditadura. A isto acresce a completa ausência de qualquer filosofia familiar à doutrina do trusteeship que informava a política britânica, o que tornava os portugueses menos propensos a qualquer espécie de diálogo acerca das medidas que pudessem capacitar politicamente os seus súbditos coloniais. Em finais dos anos 1950, por exemplo, a correspondência de Jorge Jardim, uma figura de grande influência na comunidade branca de Moçambique, estava repleta de afirmações de autocomprazimento pela atitude «dura» e «firme» dos portugueses em África, em contraste com a pusilanimidade e vacilação de outros poderes coloniais apostados em enfrentar a contestação através de reformas20. A sua mensagem, que Salazar parecia aceitar, era a de que as concessões aos nacionalistas africanos não só eram inúteis, como tendiam a minar a autoridade da potência colonizadora.

Isto não quer dizer, porém, que certos sectores das elites portuguesas fossem insensíveis às transformações ocorridas no mundo colonial desde o final da II Guerra Mundial, e à necessidade de desenvolver uma política mais proactiva relativamente ao império. Ainda em finais dos anos 1940, são de assinalar os esforços envidados por figuras como Marcelo Caetano, ministro das Colónias entre 1944 e 1947, no sentido de «promover a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico-social das colónias»21, em linha com o que outras potências imperiais europeias estavam a fazer nos seus domínios africanos. Data dessa época, por exemplo, a tentativa de converter a Guiné numa espécie de «colónia-modelo» do novo paradigma imperial que figuras como Caetano pretendiam edificar, para melhor acautelar a posição de Portugal e do Ultramar nas condições do pós-guerra22.

A partir de 1955, em particular, a participação regular nas Assembleias Gerais da ONU, ou nas reuniões promovidas por organismos como a Comissão de Cooperação Técnica na África, de uma série de elementos oriundos de meios universitários ou da administração, abriria também espaço para a afirmação de uma corrente modernizadora no seio do regime. Alguns deles, como Adriano Moreira, ou jovens diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, como Franco Nogueira, perceberam que o Estado estava mal apetrechado para reunir e processar informações acerca de um contexto internacional em mudança, e conseguiram convencer Salazar a empreender algumas reformas institucionais visando rectificar essa deficiência. Novas políticas teriam também de ser formuladas e implementadas, especialmente no domínio sensível das relações laborais, mas também na educação, cuidados de saúde, planeamento urbano, economia rural e serviços sociais. Uma parte destes «modernizadores» esteve por detrás do rejuvenescimento de organismos como a Junta de Investigações do Ultramar (à qual estaria ligado o Centro de Estudos Políticos e Sociais, uma espécie de think tank desta corrente) ou o Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU, a antiga Escola Colonial), organizou o envio de dezenas de «missões de estudo» a diversos territórios coloniais23, e desempenharia um papel crítico na criação de um importante departamento de coordenação política interministerial, o Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar24.

Esta corrente, se assim lhe podemos chamar, preconizava também a adopção de uma postura mais flexível em alguns fóruns internacionais, de modo a deixar Portugal menos exposto a críticas recorrentes (o que se viria a traduzir, por exemplo, na adesão portuguesa à Convenção Suplementar para a Abolição da Escravatura, aprovada no âmbito da OIT em 1956), e alguns dos seus membros mostraram-se mesmo dispostos a encetar contactos com líderes nacionalistas africanos, como o moçambicano Eduardo Mondlane, a quem chegaria a ser oferecido um posto de docência universitária no ISEU no início da década de 196025.

Em termos discursivos, foram também estes elementos que melhor terão entendido o potencial propagandístico das teses do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, cujas ideias acerca da vocação excepcional dos portugueses para a mestiçagem e o diálogo intercultural começaram a impregnar os pronunciamentos de responsáveis do regime, incluindo o próprio Salazar26.

Até inícios dos anos 1960, esta linha mais reformadora, que de resto nunca parece ter-se decidido entre uma orientação simplesmente descentralizadora e gradualista e uma opção de cunho federalista, ainda logrou conservar alguma influência nos centros decisores do regime. Mas, a partir de 1961, tanto o endurecimento e crispação induzidos pela guerra, como as rivalidades pessoais e de facção que constituíam um dos aspectos característicos do Estado Novo, levaram a que os seus principais intérpretes começassem a perder terreno face aos adeptos de uma postura mais imobilista.

A dissonância entre as abordagens britânica e portuguesa em matéria de política colonial não deixaria também de se repercutir no relacionamento entre ambos. Sintomático disso mesmo é a maneira como o discurso de Macmillan na Cidade do Cabo foi recebido em Lisboa – a imprensa praticamente ignorou-o, ou reproduziu alguns trechos de forma deturpada27, ao passo que os responsáveis políticos rangeram os dentes perante mais uma demonstração do «espírito capitulacionista» que parecia ter tomado conta das elites britânicas. Reportando para o Foreign Office as reacções de Marcello Mathias, o embaixador Charles Stirling escreveria que

«O Dr. Mathias, e os funcionários portugueses em geral, estão evidentemente perturbados pelos possíveis efeitos do périplo africano do primeiro-ministro. Eles encararam sempre com algum alarme o avanço da nossa política de promoção da independência nos nossos territórios africanos, a qual torna obviamente mais difícil de sustentar o argumento português de que a sua governação autoritária com uma muito gradual assimilação dos africanos poderá depois dar origem a uma civilização portuguesa inter-racial.»28

Aliás, os sinais de que Londres dificilmente seria um ponto de apoio seguro para qualquer embate na frente colonial vinham-se multiplicando desde há vários anos. Em 1954, a crise dos «enclaves» de Dadrá e Nagar Aveli demonstrara que a aliança tinha praticamente cessado no tocante aos compromissos da Grã-Bretanha para com a integridade das possessões ultramarinas portuguesas. Na segunda metade dessa década, a concertação de posições na ONU tornar-se-ia cada vez mais difícil de operacionalizar. A partir de 1959, por exemplo, os britânicos decidiram pôr termo a uma série de conversações quadripartidas que haviam mantido com franceses, belgas e portugueses nas vésperas de todas as assembleias gerais pelo facto de a agenda desses encontros se encontrar progressivamente esvaziada de sentido face à evolução da situação na África. De visita a Londres em Março de 1960, Mathias teria a ocasião de debater os últimos desenvolvimentos no continente africano com Macmillan, Selwyn Lloyd e outros responsáveis. Um argumento que em breve se tornaria recorrente em todas as trocas de impressões com Portugal (as vantagens que as potências coloniais poderiam garantir se patrocinassem transições controladas para a independência) foi então usado por várias figuras presentes nas audiências com o ministro português. Mas a resposta de Mathias seria igualmente premonitória:

«O Sr. Mathias disse que não estava preocupado com o progresso em direcção à independência, a não ser no caso dos territórios portugueses; o perigo era o comunismo. Se os emergentes estados independentes fossem suficientemente fortes, tivessem uma elite capaz, recebessem assistência económica do Ocidente e sentissem a necessidade de continuar a trabalhar com o Ocidente, então tudo estaria bem. A dificuldade estava no facto de os gestos feitos pelos ocidentais tenderem a ser vistos como sinónimos de colonialismo, ao passo que as iniciativas russas eram tidas como aceitáveis.»29

Os portugueses ficariam ainda profundamente agastados quando, em Dezembro de 1960, depois de terem falhado a sua candidatura ao Conselho de Segurança (apoiada sem grande entusiasmo pelos seus aliados), o Reino Unido se contou entre os países que se abstiveram na votação das resoluções (1541 e 1542 [XV]) que visavam directamente a política colonial portuguesa na ONU, uma atitude que demonstrava bem a importância que Londres atribuía à necessidade de conservar algum crédito junto do cada vez mais influente bloco afro-asiático. No dia das fatídicas votações, o secretário de Estado do Foreing Office, Douglas-Home, explicou ao representante português que embora a Grã-Bretanha respeitasse «inteiramente a posição adoptada por Portugal quanto à sua política ultramarina», não podia alterar a sua decisão de se abster pois «estava convencida ser [a] sua atitude a mais convincente para contrabater [sic] propaganda russa na África e isto tanto no seu interesse como no interesse mútuo dos nossos dois países»30.

Comentando o desfecho destas votações, o embaixador português em Londres, general Abranches Pinto, não escondeu o seu desânimo:

«Perdemos a batalha da ONU e afinal muito mais cedo do que se esperava. Mais uma vez se verificou que os britânicos não vão atrás do direito nem da lógica, mas obedecem mais à força das realidades práticas. Não julgam nem raciocinam, mas submetem-se à pressão dos factos e circunstâncias. São mais calculistas que justos ou generosos. […] A rendição na África é a linha de conduta. O receio da Rússia e o respeito pela Índia e outros países asiáticos da Comunidade condicionam a atitude.»31

 

AS MISSÕES DE ECCLES E HOME A LISBOA

A política governamental britânica acabaria, contudo, por ter um impacto mais incisivo nos destinos imperiais portugueses em 1961, ano que testou com enorme dureza os instintos de sobrevivência de Oliveira Salazar, e a própria relação luso-britânica.

Noutro local tivemos já a oportunidade de descrever o posicionamento do Reino Unido nessa conjuntura particular, pelo que não desenvolveremos aqui esse ponto de forma detalhada32. Bastará dizer que desde o sequestro do Santa Maria, em Janeiro, à queda de Goa, em Dezembro, o Governo de Macmillan procurou trilhar um caminho que lhe custasse a amizade de Portugal e, ao mesmo tempo, lhe permitisse manter uma sintonia de posições com a nova Administração Kennedy, ela própria apostada em promover uma mudança de curso nas políticas coloniais de Salazar, assim como não ofender alguns dos seus parceiros da Commonwealth, com natural destaque para a União Indiana.

Nos meses seguintes, à medida que a crise em Angola ia ganhando contornos mais dramáticos, foi-se tornando difícil discernir um sentido claro na actuação do Reino Unido33. A reacção inicial de Londres foi a de oferecer algum conforto moral a Portugal, mostrar-se compreensivo em relação à sua retórica colonial e evitar qualquer crítica pública (uma orientação patente, por exemplo, na abstenção do delegado britânico na votação do projecto de resolução da Libéria ao Conselho de Segurança a 15 de Março, fortemente crítico da política portuguesa em Angola). Depois, quando se tornou evidente que os americanos não se deixariam convencer pela bondade e eficácia da política de assimilação prosseguida por Portugal, Londres pareceu inclinar-se para uma atitude mais exigente (a isto não foram com certeza alheias as negociações com Washington tendo em vista a modernização da capacidade nuclear britânica, por via da aquisição do sistema de mísseis balísticos Polaris). Finalmente, quando a pressão americana começou a dar sinais de algum abrandamento (o que se torna perceptível em finais de 1961), os responsáveis britânicos regressaram, também eles, a uma posição mais contemporizadora para com o seu aliado. Em síntese, o aspecto ambíguo que caracterizou a política britânica em relação a Portugal resultou da dificuldade sentida pelos decisores políticos em Londres para conciliar objectivos nem sempre compatíveis: a manutenção da «relação especial» com Washington e o desejo de evitar um «contágio revolucionário» nos seus territórios coloniais na África; a amizade com Portugal e a preservação de uma imagem positiva junto dos países afro-asiáticos.

Em meados de Abril, sensivelmente na mesma altura em que o general Botelho Moniz queimava as suas últimas hipóteses de derrubar Salazar através de um golpe palaciano, os responsáveis britânicos tentaram perscrutar um pouco melhor as intenções portuguesas em relação a Angola. Para esse efeito, enviaram a Lisboa um velho conhecido de Salazar: Sir David Eccles, antigo responsável pela condução da guerra económica na Península Ibérica entre 1940-1943, e um dos mais sinceros admiradores do ditador português nos círculos governamentais britânicos. À época ministro da Educação, Eccles voou até Lisboa acompanhado de uma outra figura de proa da ala «imperialista» do Partido Conservador, o marquês de Salisbúria, que em 1957 se demitira do Gabinete em ruptura com a política de Macmillan face ao problema de Chipre. O pretexto da visita era perfeitamente anódino: a participação nas celebrações do 25.º aniversário do Colégio Queen Elizabeth, em Lisboa, e uma visita à St. Julian’s English School, em Carcavelos, seguida de conversações com o ministro da Educação português34. Na verdade, a parte importante da estada de cinco dias de Eccles em Lisboa consistiu num conjunto de conversas com Salazar e outras figuras dos meios empresariais, universitários e políticos sobre os acontecimentos em Angola.

Em Lisboa, uma das facetas dos portugueses que mais impressionou Eccles foi a tendência para encararem os seus problemas na África sob um ponto de vista estritamente moral, ou até mesmo teológico. Ao terem-se convencido de que a sua política de assimilação, isenta de quaisquer preconceitos raciais, era aceite pela maioria das populações africanas, os portugueses não viam qualquer razão para reconhecerem a estas a possibilidade de exercitarem o seu direito à autodeterminação. No entender dos responsáveis portugueses, este seria o caminho mais curto para a transformação das colónias em estados independentes governados pela maioria negra (com consequências imprevisíveis para a minoria branca). Segundo Eccles, uma coisa não decorria logicamente da outra e um dos favores que o Reino Unido poderia prestar a Portugal era ajudá-lo a ultrapassar esse equívoco. A segunda era convencê-lo de que a sua insistência no valor da assimilação só poderia vingar caso o nível de vida dos africanos negros se aproximasse significativamente do dos brancos. Caso contrário, nada de substancial distinguiria a «assimilação» do apartheid sul-africano. O ministro britânico não subestimava as dificuldades que o seu Governo depararia num diálogo mais franco com Lisboa; mas o cenário de um colapso abrupto da autoridade portuguesa na África era algo que só poderia beneficiar os comunistas. Nesse sentido, Eccles entendia que a política britânica em relação a Portugal deveria assentar em duas premissas essenciais:

«a) apoiar o princípio da assimilação como uma alternativa respeitável à independência; b) ajudar o governo português na elaboração de planos que, devidamente financiados, acelerarão o ritmo da assimilação e torná-la-ão condizente com todos os requisitos modernos».35

Uma segunda conversa com Salazar, realizada a 11 de Abril, confirmou as dificuldades antevistas por Eccles. Depois de ouvir o apelo do ministro britânico em relação à necessidade de proceder a uma «clarificação» da finalidade da política portuguesa na África, Salazar foi peremptório ao afirmar que jamais «poria o seu nome em qualquer declaração que fizesse referência à autodeterminação». Do reconhecimento do direito à autodeterminação à independência sob um governo de maioria negra ia, segundo Salazar, um pequeno passo e isso seria o fim das relações de Portugal com as suas colónias. A única concessão que o chefe do Governo português se mostrava disposto a fazer era a de estudar formas de assegurar a colaboração de capitais estrangeiros com vista à intensificação do esforço de desenvolvimento económico e social nas províncias ultramarinas – embora na condição de essa colaboração ser «canalizada através de Lisboa»36.

Mas as sugestões de Eccles estavam longe de recolher o consenso em Whitehall. O secretário de Estado das Colónias, Ian Macleod, por exemplo, entendia que os acontecimentos na África estavam a evoluir a um ritmo demasiado rápido para que a política de assimilação pudesse produzir resultados palpáveis. O cepticismo em relação à retórica e à substância da política colonial de Lisboa era partilhado por vários funcionários influentes no Foreing Office. Segundo alguns deles, os fundamentos da posição portuguesa eram demasiado frágeis para que o Reino Unido se pudesse associar a eles. A asserção de que os habitantes de Angola e Moçambique não desejavam a independência, por exemplo, era impossível de demonstrar nas presentes condições políticas daqueles territórios. Em segundo lugar, a esperança de que uma aceleração da política de assimilação pudesse ajudar Portugal a ultrapassar a contestação à sua autoridade era uma ilusão – os franceses já tinham tentado esse método em muito maior escala e com recursos muito mais vastos, e isso não fora suficiente para extinguir as aspirações independentistas das suas populações africanas. Aliás, na presente conjuntura, o mais provável seria que uma expansão substancial dos serviços sociais e educativos na África portuguesa, eventualmente financiada pelos Estados Unidos, aumentasse os factores de tensão no relacionamento das províncias ultramarinas com a metrópole, e não o contrário37. Por conseguinte, o Reino Unido estaria a prestar um mau serviço a Portugal, e ao próprio Salazar, se lhes desse a entender que os seus problemas na África poderiam ser resolvidos através de uma canalização de fundos estrangeiros para o seu esforço «assimilador»38.

Lord Home não se afastava muito desta avaliação. Para o responsável máximo do Foreing Office, a dinâmica de mudança em África era demasiado forte para que os portugueses lhe pudessem resistir pela força das armas e um maior investimento na política de assimilação dificilmente anularia as reivindicações independentistas. Nesse sentido, o Reino Unido subscrevia por inteiro a posição americana segundo a qual a solução da crise angolana teria de residir no reconhecimento formal da autodeterminação como o objectivo final da política portuguesa. Esse era, no fundo, o desígnio que animava desde há bastante tempo «a missão imperial» da Grã-Bretanha, pelo que o Governo português não poderia

«esperar que defendamos uma política que em muitos aspectos consideramos desajustada. Nem podemos nós apoiar conscientemente Portugal nos esforços que se propõe desenvolver para convencer o mundo de proposições em que não acreditamos (por exemplo: assimilação = sociedade multirracial; a maioria dos habitantes dos territórios africanos não aspira à independência; o desenvolvimento económico será suficiente para conservar os laços de lealdade, etc.). São estas discordâncias básicas, e não qualquer contabilidade sórdida de votos nas Nações Unidas, que nos impendem de apoiar Portugal nestes assuntos, por muito que a nossa velha amizade e actual associação na NATO e EFTA nos empurrasse nesse sentido.»39

Em Maio, após uma cimeira da NATO em Oslo em que a crise colonial portuguesa foi objecto de discussões privadas entre americanos, franceses e britânicos, Home tomou a iniciativa de se deslocar pessoalmente a Lisboa. Fê-lo com a intenção de explicar ao primeiro-ministro português aquilo que o embaixador Archibald Ross não fora, aparentemente, capaz de fazer: a necessidade urgente de oferecer sinais de progresso político nas colónias africanas de Portugal, desejavelmente no sentido da autodeterminação. Se isto fosse feito, os seus aliados encontrar-se-iam numa posição muito mais vantajosa para exercer uma influência moderadora junto dos afro-asiáticos ou, se isso não fosse possível, para bloquear «as manobras antiportuguesas» que estes pudessem desenvolver40.

Home desembarcou na Portela em finais de Maio. Ao prolongar a estada até à simbólica data de 28, permitiu que a sua visita ficasse de alguma forma associada às celebração do movimento militar que derrubara o regime parlamentar em 1926 (uma coincidência que a oposição trabalhista não deixou passar em claro). Por outro lado, o facto de nas suas declarações públicas ter evitado mencionar a autodeterminação como o único objectivo político capaz de apaziguar o descontentamento na África, foi com certeza valorizado pelo Governo de Lisboa. Todavia, se tivermos em mente aquelas que eram as intenções de Home quando partiu de Londres, então o mínimo que se poderá dizer é que as conversações com os portugueses não o levaram a parte nenhuma. Na verdade, foram um autêntico diálogo de surdos.

No recato dos gabinetes diplomáticos, Home, um político fleumático e de extracção aristocrática, deparou-se com o discurso endurecido e pouco maleável de Salazar e Franco Nogueira, o seu novo ministro dos Negócios Estrangeiros.

A primeira conversa teve lugar no Palácio das Necessidades, juntando à volta de uma mesa Home, Nogueira e respectivas equipas. Num tom «pedagógico», o secretário de Estado britânico tentou alertar os seus interlocutores para o facto de o nacionalismo africano ser um fenómeno demasiado poderoso para ser ignorado e, sobretudo, esforçou-se por desdramatizar as consequências da independência das colónias do ponto de vista dos interesses das metrópoles europeias e do Ocidente – na sua opinião, os portugueses tinham uma imagem demasiado negativa dos jovens nacionalistas africanos e subestimavam o apelo universal dos ideais e valores ocidentais. Segundo Home, era explorando as expectativas frustradas das massas africanas que o comunismo poderia fazer a sua penetração no continente, muitas vezes fomentando insurreições armadas contra as potências administrantes. Havia duas maneiras de responder a esses desafios:

«A solução militar era uma delas, mas muito difícil. Podia-se dominar uma revolta, mas controlar um território indefinidamente pela força das armas seria praticamente impossível. A alternativa era encorajar o patriotismo local, por forma a que o comunismo não progredisse. Isto pressupunha que se fizessem concessões capazes de exercer algum apelo a nível local.»41

Sempre cuidadoso, Home acentuou que o seu Governo não esperava a realização de qualquer plebiscito nos territórios ultramarinos portugueses, mas tão-somente que de Lisboa surgisse um sinal claro de que reformas políticas substanciais estavam na iminência de ser introduzidas.

Da parte de Franco Nogueira, pouca ou nenhuma abertura houve a estas sugestões. Como tratou de explicar ao seu interlocutor, Portugal não podia pensar em descolonizar uma vez que, ao contrário do Reino Unido ou da França, não dispunha de meios e recursos para prolongar a sua influência económica, política e cultural na África para lá das independências (ou seja, para «neocolonizar»). Por outro lado, mesmo que Portugal manifestasse a intenção de patrocinar uma evolução gradual das suas províncias no sentido da independência, o simples anúncio dessa intenção iria quase de certeza desencadear uma dinâmica política idêntica à que mergulhara o antigo Congo Belga no caos42.

A audiência com Salazar foi mais curta e, lendo o seu registo, é difícil escapar à impressão de que a reputação do ditador português deverá ter exercido um efeito inibidor no secretário de Estado britânico. Home voltou a insistir nos riscos inerentes ao menosprezo do nacionalismo africano e, timidamente, tentou identificar os pontos onde Portugal estaria aberto a fazer algumas cedências. Aceitando o pressuposto de que Lisboa manteria os seus laços constitucionais com as províncias ultramarinas, isso daria azo a uma participação mais activa dos africanos na governação de Angola? Mais uma vez, a resposta portuguesa foi pouco encorajadora. Salazar reconhecia que o número de angolanos habilitados a participar nos órgãos políticos da província era diminuto, mas considerava que o investimento na formação de novas elites africanas teria de ser prudente e proporcional aos recursos limitados do País. Por fim, a uma observação de Home sobre a necessidade de demonstrar a existência de algum progresso político nas províncias ultramarinas, e de convencer os americanos de que isso compensaria de alguma forma o não reconhecimento do princípio da autodeterminação, Salazar não prometeu nada de concreto e aludiu à «ignorância da maior parte dos americanos a este género de assuntos»43.

Num balanço da visita enviado por telegrama ao seu colega de gabinete, Edward Heath, Home reconhecia que as suas observações pareciam ter produzido pouco efeito.

«Ouviram as minhas sugestões educadamente e até me dizem que elas serão objecto de uma reflexão séria; mas a atitude básica é ainda a de que nenhum destes remédios “democráticos” é relevante no contexto da filosofia africana de Portugal, e de que na realidade nós e eles falamos línguas diferentes.»44

 

UM NICHO NA GUERRA FRIA

Nos meses seguintes, a política de linha dura de Salazar pareceu ser validada pelos sucessos militares portugueses em Angola, mesmo se, em Dezembro, a queda de Goa voltasse a lançar uma sombra sobre a capacidade do regime para resistir às pressões a que o império se encontrava submetido. Em finais de 1962, os defensores de uma política mais flexível em relação ao Ultramar estavam nitidamente em perda. O afastamento de Adriano Moreira em Dezembro desse ano, e a aprovação de uma nova Lei Orgânica do Ultramar de sentido integracionista em 1963, assinalariam a derrota desta corrente.

Uma vez abrandada a pressão internacional, o ditador parece ter acreditado na viabilidade da resistência aos «ventos da mudança» anunciados por Macmillan. Através de entendimentos vários, complexas manobras diplomáticas, e da exploração da fraqueza dos seus adversários, o Portugal salazarista, a Rodésia de Ian Smith e a África do Sul do apartheid baralharam algumas certezas que no início dos anos 1960 existiam a respeito da inevitabilidade da derrocada do poder branco no continente45.

Portugal encontrou o seu «nicho» em 196246, em boa medida por causa das energias que o regime foi capaz de mobilizar em termos domésticos, mas também porque desenvolvimentos na Guerra Fria acabaram por favorecer o entrincheiramento de regimes anticomunistas que não colocassem em perigo os desígnios estratégicos dos Estados Unidos e de outros parceiros ocidentais. Em Washington, Salazar pôde contar com o apoio de muitos elementos do establishment da política externa e de segurança norte-americanos que nunca se haviam mostrado convencidos das vantagens de uma abordagem às questões da descolonização e da igualdade racial que pudesse retirar o tapete a aliados cuja utilidade se media de forma bem tangível, tanto no campo estratégico (a base dos Açores no caso português), como no económico (o importante papel dos minérios sul-africanos)47. Mais a mais, o desencanto da nomenklatura soviética em relação aos parcos resultados produzidos pela ofensiva de Khruchtchev no Terceiro Mundo acabaria por retirar a África do topo das prioridades de política externa de Moscovo, desde logo para evitar atritos desnecessários na ainda incipiente détente com os Estados Unidos48. Finalmente, a deslocação do foco das principais preocupações da Administração Johnson para o Sudeste Asiático, veio reduzir ainda mais a margem de actuação dos «africanistas» nos centros de decisão em Washington.

Novas tentativas americanas para convencer Salazar a mudar o sentido das suas políticas coloniais, como o «mini-Plano Marshall» com que a Administração Kennedy lhe acenou em 1963, através da missão de George Ball, não surtiram qualquer efeito. Pela sua parte, os britânicos abandonariam qualquer veleidade de reeditar o seu diálogo crítico com Lisboa acerca do futuro das suas possessões ultramarinas. Sob a liderança dos trabalhistas de Harold Wilson, Londres prosseguiria o seu espinhoso trabalho de ajustamento ao papel pós-imperial que as políticas de Macmillan ajudaram a preparar. Absorvidos pela questão rodesiana, e crescentemente debilitados na sua posição económica, a sua margem para exercer qualquer espécie de pressão significativa sobre Salazar era, bem vistas as coisas, virtualmente nula.

 

NOTAS

1 BIRMINGHAM, David – The Decolonization of Africa. Londres: UCL Press, 1995, p. 13, cit. in HYAM, Ronald – Britain’s Declining Empire. The Road to Decolonisation 1918-1968. Cambridge: Cambridge UP, 2006, p. 242.        [ Links ]         [ Links ]

2 THORPE, D. R. – Supermac. The Life of Harold Macmillan. Londres: Chatto&Windus, 2010, p. 458.        [ Links ]

3 Sobre esta noção churchilliana dos «três círculos» da política internacional do Reino Unido, cf. SANDERS, David – Losing na Empire, Finding a Role. British Foreign Policy since 1945. Londres: Palgrave Macmillan, 1990.        [ Links ]

4 HARGREAVES, John D. – Decolonization in Africa. 2.ª ed. Londres: Longman, 1996, p. 172.        [ Links ]

5 DARWIN, John – The Empire Project. The Rise and Fall of the British World System 1830-1970. Cambridge: Cambridge UP, 2009, pp. 612-613.        [ Links ]

6 Cf. HOLLAND, R. F. – European Decolonisation: An Introductory Survey. Londres: Macmillan, 1985, p. 204.        [ Links ]

7 HYAM, Ronald – Britain’s Declining Empire. The Road to Decolonisation 1918-1968. Cambridge: Cambridge UP, 2006.        [ Links ]

8 Ibidem, p. 262.

9 OVENDALE, Ritchie – «Macmillan and the Wind of Change in Africa, 1957-1960». In Historical Journal. Vol. 38, N.º 2, Junho de 1995, p. 471.        [ Links ]

10 Citado em WHITE, Nicholas J. – Decolonisation. The British Experience since 1945. Londres: Longman, 1999, p. 32.        [ Links ]

11 OVENDALE, Ritchie – «Macmillan and the Wind of Change in Africa, 1957-1960», p. 469.        [ Links ]

12 HEMMING, Philip E. – «Macmillan and the end of the British Empire in Africa», in ALDOUS, Richard, e LEE, Sabine (eds.) – Harold Macmillan and Britain’s WorLd Role. Basingstoke: Macmillan, 1996, p. 101.        [ Links ]

13 Sobre a digressão africana de Macmillan, cf. THORPE, D. R. – Supermac. The Life of Harold Macmillan.        [ Links ]

14 Para uma análise do discurso do ponto de vista das técnicas da retórica política, cf. MYERS, Frank – «Harold Macmillan’s “Winds of Change” speech: a case study in the rhetoric of policy change». In Rhetoric & Public Affairs. Vol. 3, N.º 4, Inverno de 2000, pp. 555-575.        [ Links ]

15 Excertos do discurso em HANHIMÄKI, Jussi M., e WESTAD, Odd Arne – The Cold War. A History in Documents and Eyewitness Accounts. Oxford: Oxford UP, 2004, pp. 356-58.        [ Links ]

16 Sobre as relações entre a Grã-Bretanha e a África do Sul, e as percepções do apartheid no exterior, cf. HYAM, Ronald – The Lion and the Springbok: Britain and South Africa since the Boer War. Cambdrige: Cambridge University Press, 2003.        [ Links ]

17 Em 1961, um referendo participado apenas por brancos transformaria a União Sul-Africana numa república, a qual viria a abandonar a Commonwealth pouco tempo depois.

18 IRWIN, Ryan M. – «A Wind of Change? White redoubt and the postcolonial moment, 1960-63». In Diplomatic History. Vol. 33, N.º 5, Novembro de 2009, p. 909.        [ Links ]

19 THORPE, D. R. – Supermac. The Life of Harold Macmillan, p. 458.        [ Links ]

20 Cf. alguns excertos dessa correspondência em MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar. Uma Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010, pp. 478-481.        [ Links ]

21 SILVA, António Duarte – Invenção e Construção da Guiné-Bissau. Lisboa: Almedina, 2010, p. 36.        [ Links ]

22 Ibidem.

23 Sobre isto, cf. MOREIRA, Adriano – A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas. Lisboa: Almedina, 2008, e PEREIRA, Rui – «Uma visão colonial do racismo». In Cadernos de Estudos Africanos, 9/10, 2006, pp. 131-133.        [ Links ]         [ Links ]

24 Sobre isto, cf. MOREIRA, Adriano – A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas, e PEREIRA, Rui – «Uma visão colonial do racismo», pp. 131-133.        [ Links ]         [ Links ]

25 Sobre estes contactos, cf. JESUS, José Manuel Duarte de – Eduardo Mondlane. Um Homem a Abater. Coimbra: Almedina, 2010.        [ Links ]

26 Sobre a apropriação das ideias de Freyre pelo regime, cf. CASTELO, Cláudia – «O Modo Português de Estar no Mundo». O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961). Porto: Afrontamento, 1998.        [ Links ]

27 O jornal oficioso do regime, o Diário da Manhã (órgão da União Nacional) observou um completo silêncio em termos editoriais sobre o assunto, e na curta notícia que reservou ao discurso preferiu destacar a passagem da intervenção de Macmillan em que este repudiava a ideia de um boicote mundial aos produtos sul-africanos, em consequência da política racial do Governo de Pretória (DM, 4 de Fevereiro de 1960). Por seu turno, o Diário de Notícias, na também curta notícia publicada, anunciava em título: «Deputados conservadores insurgem-se contra a política africana do Governo britânico, que consideram de “retirada”» (DN, 4 de Fevereiro de 1960).

28 TNA (The National Archives, UK). FO 371/147 255. Despacho de Sir Charles Stirling para o FO, 24 de Fevereiro de 1960.

29 TNA. Fo 371/155 113. Registo da conversa no Foreing Office entre a delegação portuguesa, chefiada por Mathias, e a delegação britânica, liderada por Sir Alec Douglas Home, 9 de Março de 1960.

30 AHD do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Telegrama da embaixada em Londres para Lisboa, de 14 de Dezembro de 1960. A Resolução 1542 (XV) foi aprovada com 68 votos a favor, seis contra (África do Sul, Brasil, Bélgica, Espanha, França, Portugal) e dois abstenções.

31 ANTT. AOS/CD-19. Carta particular de Abranches Pinto a Salazar, de 22 de Dezembro de 1960.

32 Cf. OLIVEIRA, Pedro Aires – Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-75. Lisboa: Tinta-da-China, 2007.        [ Links ]

33 Os parágrafos seguintes reproduzem várias passagens do capítulo V de OLIVEIRA, Pedro Aires – Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-75.        [ Links ]

34 «Sir David Eccles in Lisbon. School celebrations». In The Times, 7 de Abril de 1961.        [ Links ]

35 TNA. FO 371/155 438. Telegrama de Sir A. Ross para o FO (transmitindo impressões pessoais de D. Eccles), de 10 de Abril de 1961.

36 TNA. FO 371/155 438. Telegrama de Sir A. Ross para o FO, de 11 de Abril de 1961.

37 TNA. FO 371/155 438. Telegrama do FO para Sir A. Ross, 14 de Abril de 1961, transmitindo ao embaixador as observações de Sir Roger Stevens e Sir Evelyn Shuckburgh, ambos subsecretários de Estado assistentes no FO.

38 TNA. FO 371/155 438. Minuta «Portuguese Policy in Africa», de Sir Evelyn Shuckburgh, 17 de Abril de 1961.

39 TNA. FO 371/155 438. Telegrama de Sir Alec Douglas-Home a A. Ross, 20 de Abril de 1961.

40 TNA. FO 371/160 732. Carta de Lord Home a Sir David Eccles, 24 de Maio de 1961.

41 TNA. CAB/133 298. Record of a Meeting at the Portuguese Ministry of Foreign Affairs at 3:15 pm on Friday, May 26, 1961.

42 TNA. CAB/133 298. Record of a Meeting at the Portuguese Ministry of Foreign Affairs at 3:15 pm on Friday, May 26, 1961.

43 TNA. CAB/133 298. Record of a Conversation between the Secretary of State and the Portuguese Prime Minister in Lisbon on May 26, 1961.

44 TNA. PREM 11/3924. Telegrama de Sir A. Ross ao FO, transmitindo mensagem de Home a Edward Heath, ministro sem pasta (com responsabilidades na área dos Negócios Estrangeiros), 28 de Maio de 1961.

45 Sobre as conexões entre o Ocidente e os poderes brancos da África meridional desde o pós-II Guerra Mundial, cf. MINTER, William – King Solomon’s Mines Revisted: Western Interests and the Burdened History of Southern Africa. Nova York: Basic Books, 1988. Sobre a forma com os preconceitos e as percepções raciais continuaram a informar a maneira como uma parte significativa das elites políticas brancas dos Estados Unidos encaravam esses poderes, cf. o importante livro de Thomas Borstelmann – The Cold War and the Color Line. Cambridge (Mass.): Harvard UP, 2001.        [ Links ]         [ Links ]

46 Sobre esta ideia de «nicho» na Guerra Fria, cf. DARWIN, John – «Diplomacy and decolonization». In Journal of Imperial and Commonwealth History. Vol. 28, N.º 3, Setembro de 2000, p. 20.        [ Links ]

47 Sobre a «viragem» de Washington num sentido mais favorável a um acomodamento com Portugal, ainda durante a Administração Kennedy, cf. RODRIGUES, Luís Nuno – Salazar-Kennedy. A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.        [ Links ]

48 Sobre este «refluxo» na relação da URSS com a África, que se prolongará, sensivelmente, até inícios dos anos de 1970, cf. ZUBOK, Vladislav M. – A Failed Empire. The Soviet Union in the Cold War from Stalin to Gorbachev. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2007, em especial pp. 247-249. Cf. também ANDREWS, Christopher, e MITROCKHIN, Vasili – The World was Going our Way. The KGB and the Battle for the Third World. Nova York: Basic Books, 2005, pp. 423-449.        [ Links ]         [ Links ]