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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

A ONU e as Resoluções da Assembleia Geral de Dezembro de 1960

 

Aurora Almada e Santos

Licenciada e mestre em História pela FCSH – UNL, neste momento frequenta o doutoramento em História Contemporânea, estudando a actividade diplomática dos movimentos de libertação das colónias portuguesas na Organização das Nações Unidas.

 

RESUMO

Iniciadas em 1956, as pressões diplomáticas da ONU sobre Portugal para que reconhecesse o direito à autodeterminação e à independência das suas colónias intensificaram-se na 15.ª sessão da Assembleia Geral em 1960. Proporcionada pela nova abordagem então adoptada pelas Nações Unidas quanto aos territórios não autónomos, essa intensificação foi fruto da admissão de novos estados na organização. A maioria detida pelos países afro-asiáticos proporcionou a adopção de princípios genéricos sobre a questão da autodeterminação dos povos dependentes, a definição do conceito de territórios não autónomos e a aplicação dessa definição às colónias portuguesas. Munidas dessas novas premissas, as Nações Unidas colocaram de parte a abordagem técnica que tinha caracterizado até à data o relacionamento com o Estado português. O colonialismo português passaria a ser encarado à luz das premissas adoptadas nessa sessão da Assembleia Geral, que ultrapassaram as disposições da Carta em matéria de territórios não autónomos.

Palavras-chave: Organização das Nações Unidas, autodeterminação, independência, colonialismo português

 

The UN and the General Assembly resolutions (1960)

ABSTRACT

Started in 1956, the United Nations diplomatic pressure upon Portugal in order to recognize the right to self-determination and independence of its colonies were enhanced in the General Assembly XVth session that took place in 1960. Supported by the new approach adopted by the United Nations in what concerned non-self-governing territories, such enhancement was owed to the admission of new states in the Organization. The majority presented by the Afro-Asian countries promoted the adoption of generic principles regarding the self-determination of dependent peoples, the definition of the concept of non-self-governing territories, and the application of such definition to Portuguese colonies. Provided with those new premises the United Nations rejected the technical approach that was until then the distinct mark of its relationship with Portuguese State. Portuguese colonialism began to be viewed by the light of those premises adopted in the General Assembly, which exceeded the Charter dispositions concerning non-self-governing territories.

Keywords: United Nations Organization, self-determination, independence, Portuguese colonialism

 

Fundada após a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) pretendia ser uma organização mundial cuja principal finalidade era a manutenção da paz e da segurança internacionais. Os planos para a sua criação começaram a ser esboçados no decurso da guerra, guiados pelo desejo de forjar uma nova ordem internacional. As discussões que antecederam a sua criação demonstraram de forma inequívoca a existência de divergências entre as grandes potências quanto a questões fulcrais. Uma dessas questões prendia-se com o progresso dos territórios dependentes em direcção à independência. Na sua versão final, a Carta apresentava três capítulos que lhe são dedicados: o XI sobre os territórios não autónomos, o XII referente ao Sistema Internacional de Tutela e o XIII alusivo ao Conselho de Tutela. Resultantes de um compromisso, esses capítulos estabeleceram que a administração dos territórios sob mandato ficaria sob a vigilância do Conselho de Tutela e que os responsáveis pelos territórios não autónomos transmitiriam ao secretário-geral dados técnicos e estatísticos sobre a evolução dos mesmos. Tais disposições não contemplavam recomendações relativas à preparação dos territórios não autónomos para a independência e na prática contribuíram para organizar juridicamente o colonialismo e legitimar o paternalismo colonial1.

Ainda assim, o esquema serviu de base à actuação da ONU em matéria de colonialismo até ao ano de 1960, quando foi ultrapassado. O quase desaparecimento dos territórios sob tutela, a admissão de países africanos recém-independentes e a pressão dos membros do bloco soviético gerou no seio da ONU um clima propício para que nesse ano se procedesse a um alargamento das disposições da Carta sobre os territórios não autónomos. A ruptura com o paternalismo colonial ficou patente na adopção de três resoluções. São elas a 1514 (XV), de 14 de Dezembro, a 1541 (XV), de 15 de Dezembro, e a 1542 (XV), datada do mesmo dia. Estas resoluções estavam estreitamente relacionadas com a recusa portuguesa em aceitar as decisões da ONU sobre o fornecimento de informações quanto às condições de vida nos seus territórios não autónomos. Partindo desta constatação, pretendemos analisar a adopção dessas resoluções e o impacto que tiveram na actividade da ONU sobre a questão colonial portuguesa. Teremos como ponto de partida a hipótese de que, ao adoptar tais resoluções, a ONU procurava resolver questões de princípio relacionadas com a descolonização, o que lhe permitiria a partir de então concentrar-se na dimensão política do colonialismo português.

 

OS TERRITÓRIOS DEPENDENTES

Agindo no quadro do compromisso firmado aquando da elaboração da Carta, ao iniciar as suas actividades, a ONU tinha à disposição dois mecanismos para influir sobre a evolução dos territórios dependentes. Eram eles o sistema de tutela e o regime dos territórios não autónomos. O sistema de tutela previa a independência dos territórios que as potências administrantes aceitassem submeter ao controlo directo da ONU. Impunha obrigações precisas, cuja implementação era controlada através do Conselho de Tutela, que analisava regularmente a situação de cada território. Dependente da cooperação das potências administrantes, que se mostraram pouco propensas a colocar as suas colónias sob o mandato da ONU, esse regime foi aplicado a um número limitado de territórios.

Com vocação mais abrangente, o regime dos territórios não autónomos não impunha especiais obrigações às potências coloniais. A mais significativa era a transmissão ao secretário-geral, ao abrigo do artigo 73.º e) do capítulo XI da Carta, de informações sobre as condições económicas, sociais e escolares existentes nos territórios. Essas informações eram analisadas por um comité que, entre muitas designações, ficaria conhecido como Comité de Informações sobre os Territórios Não Autónomos. Com uma composição favorável às potências coloniais, a actividade do Comité não se destacou propriamente pela apresentação de exigências radicais quanto aos progressos a realizar nos territórios não autónomos. Em certos aspectos teve uma posição acrítica, aceitando sem reservas significativas as listas de territórios não autónomos propostas pelas potências coloniais, das quais ficaram de fora inúmeras colónias2. Em termos genéricos, a sua actuação não representou uma ameaça para as potências coloniais, uma vez que se dedicou sobretudo a questões genéricas como o desenvolvimento da educação universal nas colónias, a elaboração de planos de desenvolvimento a longo prazo e a supressão da discriminação racial. Ainda assim, nem todas as potências coloniais mostraram disponibilidade para cooperar com o Comité, sendo os casos mais notórios os de Espanha e Portugal.

Pressões mais directas no sentido da evolução dos territórios não autónomos foram exercidas pela ONU aquando da análise de conflitos específicos resultantes de disputas geradas pelas aspirações das colónias à independência. Essas pressões não tiveram porém um carácter decisivo, salvo nos casos da Líbia e da Indonésia, uma vez que os territórios alcançaram a independência sem contarem com a actuação da ONU. O carácter limitado da intervenção da ONU não invalidou a circunstância de, desde 1955, a esmagadora maioria das questões analisadas pelos seus órgãos estarem relacionadas com disputas coloniais3. As realidades vividas no mundo colonial e as forças anticoloniais existentes no seio da Organização impuseram tal facto. Embora minoritárias, as forças anticolonias na ONU encaravam a Organização como um instrumento para acelerar as mudanças que queriam que ocorressem no mundo colonial. Nisto foram contrariadas pelos que detinham a maioria na Assembleia Geral. Os ocidentais, aos quais se associavam os latino-americanos, apressaram-se a garantir que as resoluções adoptadas seriam relativamente inócuas e que as mais radicais não obteriam os votos exigidos para serem aprovadas. Para inverter esta situação seria necessário um novo equilíbrio de forças no seio da ONU.

 

A MAGNA CARTA DA DESCOLONIZAÇÃO

Na sessão de 1960, 17 estados africanos foram admitidos como membros da ONU e em consequência os países resultantes da descolonização na Ásia e na África passaram a representar a maioria. A Assembleia Geral começou a ser guiada por uma coligação afro-asiática, que imprimiu nova direcção numa vasta amplitude de questões. Essa coligação trouxe um maior grau de revisionismo à Assembleia Geral e naturalmente tornou mais preementes as pressões anticolonialistas no seio da ONU para a descolonização dos territórios ainda dependentes4. As disposições da Carta eram no entanto insuficientes para corresponderem às expectativas de uma descolonização rápida e completa. Para tal seriam necessárias alterações significativas nos princípios que regeram até então as actividades da ONU quanto às questões coloniais. A iniciativa para que se procedesse a tais alterações partiu da União Soviética, cujo líder, Nikita Khrushchev, a 23 de Setembro de 1960, numa carta enviada ao presidente da Assembleia Geral e num discurso no plenário, solicitou que a questão da independência dos povos coloniais fosse debatida com carácter de urgência. Ao assumir essa iniciativa, a União Soviétiva desejava sair do isolamento a que tinha sido votada pela maioria detida anteriormente pelos ocidentais nas Nações Unidas, captar a simpatia dos países afro-asiáticos e canalizar o seu apoio para as reformas que pretendia introduzir e que comportavam a substituição do secretário-geral5.

Khrushchev já tinha alcançado uma importante vitória ao conseguir atrair a Nova York, com o argumento de que era necessário analisar os sucessivos falhanços da ONU quanto à questão do desarmamento, perto de 100 delegações, encabeçadas por chefes de Estado, representantes de governos e ministros dos negócios estrangeiros. A inscrição da questão da independência dos povos coloniais na ordem do dia da Assembleia Geral iria no entanto demonstrar o quão controverso o tema era para os membros da ONU. A controvérsia desencadeou-se em torno da discussão se a questão deveria ser analisada em sessão plenária da Assembleia Geral, onde teria uma ampla publicidade, ou na Primeira Comissão, que abordava temas políticos e de segurança. Marcada por polémicas e incidentes, a discussão sobre a inscrição da questão na ordem do dia resultou na aprovação por unanimidade da proposta soviética para que fosse debatida no plenário6.

Se a mera inscrição da questão na agenda gerou polémica, a discussão no plenário demonstrou clivagens entre os membros da ONU, acentuadas pelo clima de Guerra Fria. O tempo despendido na discussão foi bastante longo, repartindo-se em 29 sessões bastante concorridas, nas quais o debate foi protagonizado ao mais alto nível, com a presença dos principais líderes mundiais. Em linhas gerais, o debate caracterizou-se por um clima de crispação e de troca de acusações entre as grandes potências, que competiam pelo apoio dos países afro-asiáticos. O ponto de partida para as acusações foi dado pela União Soviética que, afirmando a necessidade de acelerar a independência, apontou o dedo a casos concretos. Países como o Reino Unido ou a França viram-se na obrigação de se defenderem, procurando realçar os seus créditos em matéria de descolonização. Os Estados Unidos, contra-atacando, solicitaram que o colonialismo russo, que afirmaram se tinha expandido por parte da Europa, também fosse englobado na discussão e propuseram um programa no qual se exigia o reconhecimento do direito dos povos africanos à autodeterminação. As acusações de ambas as partes demonstraram cabalmente que o ambiente de Guerra Fria influenciou nesta sessão as posições assumidas quanto à questão da independência dos povos coloniais7.

Procurando capitalizar as expectativas que a sua iniciativa gerou, a União Soviética apresentou um projecto de resolução no qual defendia o carácter vital da descolonização para o mundo, a inevitabilidade do desaparecimento do colonialismo e o papel activo que a ONU deveria desempenhar na sua total e imediata supressão. A proposta soviética era porém considerada como uma campanha de propaganda destinada a promover os seus interesses políticos. Em resposta, 43 países africanos e asiáticos, que pretendiam subtrair a questão da descolonização à iniciativa das grandes potências8, apresentaram um outro projecto de resolução, o qual foi objecto de algumas emendas. As Honduras propuseram que nele fosse prevista a criação de um comité de cinco membros, destinado a fazer recomendações sobre a melhor forma de erradicar o colonialismo. A Guatemala solicitou que fosse estabelecido nos termos mais claros possíveis que o direito à autodeterminação não podia afectar o direito dos estados à integridade e às reivindicações territoriais. A União Soviética defendeu que se deveria aproveitar a ocasião para a fixação de uma data limite, que seria o final do ano de 1961, para a independência de todos os territórios coloniais e que fosse previsto no projecto que a XVI sessão da Assembleia Geral iria analisar a forma como o texto tinha sido aplicado.

As Honduras e a Guatemala acabariam por retirar as suas emendas. A União Soviética insistiu todavia em submeter à votação o seu projecto de resolução e as suas emendas ao texto afro-asiático. Ambas as propostas foram rejeitadas com a adopção do projecto afro-asiático, que se transformou na Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, que continha a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. A adopção de declarações pelas Nações Unidas incidia sobre assuntos de carácter geral, aos quais se pretendia dar grande peso, sobretudo quando aprovados por esmagadora maioria, como era o caso. A Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais foi adoptada por 89 votos favoráveis, zero contra e nove abstenções. Congregou a maioria dos membros da ONU, embora as principais potências coloniais, como Portugal9, se tivessem abstido.

Com a sua adopção, a ONU demonstrou inequivocamente o seu apoio ao processo de descolonização no seu todo, deixando de fazer a distinção entre territórios sob tutela e territórios não autónomos. Todos os territórios dependentes passaram a ser tratados da mesma forma, reconhecendo-se a obrigatoriedade de as potências coloniais os conduzirem à independência. No essencial, a declaração reconheceu que a subjugação dos povos à dominação e à exploração estrangeira constituía uma negação dos direitos fundamentais do homem, contrariava a Carta das Nações Unidas e comprometia a paz e a cooperação mundiais10. Fruto desse reconhecimento estabeleceu que todos os povos tinham direito à autodeterminação, que consistia na livre escolha do seu estatuto político e na livre promoção do seu desenvolvimento económico, social e cultural. O exercício desse direito não deveria ser condicionado, uma vez que no terceiro parágrafo da declaração foi dito que a falta de preparação política, social e educacional não podia ser apresentada como pretexto para retardar a independência. Com tais premissas, a ONU sancionou o direito à autodeterminação, estabelecendo a descolonização como um dever jurídico que se materializava no direito à independência. Por outras palavras, o direito à autodeterminação presente na declaração era equivalente ao direito à independência11.

 

A AMPLIAÇÃO DA MAGNA CARTA DA DESCOLONIZAÇÃO

Definidas estas premissas restava saber a que territórios se aplicavam e quais as potências coloniais que tinham a obrigatoriedade de preparar as colónias para a independência. Uma vez que a autodeterminação fora considerada como um direito inerente a todos os territórios não autónomos e como um dever político a cumprir pelas potências coloniais havia a necessidade de saber quais os elementos que deveriam ser tidos em consideração para se decidir se um determinado país tinha ou não colónias. Este era um problema que se arrastava há algum tempo e que estava intimamente associado à posição assumida pela Espanha e por Portugal quanto ao envolvimento das Nações Unidas na questão dos territórios dependentes. Admitido na ONU em Dezembro de 1955, em Fevereiro do ano seguinte o secretário-geral enviou uma carta ao Governo português na qual inquiria se Portugal administrava territórios não autónomos. Em resposta, o Governo português indicou que não tinha territórios que pudessem ser qualificados como tal e que não tinha a obrigação de transmitir as informações solicitadas ao abrigo do artigo 73.º da Carta12.

Esta resposta pôs em evidência uma das fragilidades da ONU, que foi confrontada com diversas interpretações quanto ao conceito de territórios não autónomos. Para ultrapassar esta limitação foram ensaiadas algumas tentativas para enunciar com imparcialidade e objectividade os princípios que deveriam ser seguidos pelos estados-membros. Essas tentativas conduziaram em Dezembro de 1959 à criação de um comité, composto por seis membros, que teria como missão estudar os princípios que deveriam guiar os estados para apurarem se tinham ou não obrigatoriedade de transmitir informações às Nações Unidas sobre um determinado território. Do trabalho realizado pelo Comité dos Seis resultou um relatório, o qual foi analisado na IV Comissão da Assembleia Geral, responsável pelas questões coloniais. O debate daí resultante foi direccionado principalmente contra a Espanha e Portugal, considerando-se que não podiam fugir à obrigatoriedade de apresentar informações sobre os seus territórios13. Na prática, o estudo do relatório do Comité dos Seis traduziu-se numa análise da situação dos territórios espanhóis e portugueses. Em resposta às acusações formuladas, a Espanha, temendo o isolamento internacional do país, deu a entender à Comissão que estaria disposta, sob determinadas condições, a fornecer as informações requeridas pelo secretário-geral. Portugal, pelo contrário, analisando a questão do ponto de vista jurídico, considerou que o artigo 73.º não impunha nenhuma obrigatoriedade de transmissão de informações, deixando a decisão à iniciativa e ao julgamento dos estados-membros.

Finalizado o debate, o relatório do Comité dos Seis foi transformado num projecto de resolução apresentado à IV Comissão. A esse projecto foi acrescentada uma emenda destinada a dar satisfação às preocupações de algumas delegações quanto à questão da integração de territórios não autónomos num determinado Estado. Em virtude dessa emenda propunha-se que o projecto contemplasse a participação da ONU nos processos de integração, supervisionando a actuação das potências coloniais. Esta emenda seria prontamente aceite pelos membros da IV Comissão, acabando por ser adoptada em conjunto com o projecto de resolução. O projecto recolheu 66 votos favoráveis, três contra, que foram os de Portugal, Espanha e União Sul-Africana, e 19 abstenções. Decorrente deste texto, a IV Comissão elaborou um segundo projecto de resolução referente à aplicação concreta dos princípios adoptados. O projecto foi objecto de quatro emendas apresentadas pela Ucrânia, que considerava que o texto original tinha sido suavizado. A pedido do Paquistão, o projecto de resolução foi dividido em várias secções que foram sujeitas a votações distintas14. O conjunto do projecto foi aprovado com 45 votos favoráveis, seis contra e 24 abstenções. Os votos contra foram os da França, Portugal, Espanha, União Sul-Africana, Bélgica e Brasil.

Os dois projectos de resolução foram submetidos à Assembleia Geral imediatamente após a adopção da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. O primeiro originou a Resolução 1541 (XV), de 15 de Dezembro de 1960, aprovada por 69 votos a favor, dois contra e 21 abstenções. Nela constavam os princípios que deveriam guiar os estados-membros para determinarem se tinham ou não a obrigação de transmitir as informações solicitadas no artigo 73.º da Carta sobre os territórios não autónomos. Embora não apresente menções específicas a Portugal, o objectivo era a reprovação da argumentação portuguesa, segundo a qual as suas colónias eram províncias ultramarinas. Constituída por 12 princípios, a resolução encarou a questão mais do ponto de vista político do que jurídico, considerando que enquanto os territórios não autónomos não atingissem o completo autogoverno a potência colonial era obrigada a transmitir as informações solicitadas no artigo 73.º do capítulo XI da Carta15.

Essa obrigatoriedade recaía sobre territórios geograficamente separados e que tinham diferenças a nível étnico ou cultural em relação ao país administrante e sobre os que se encontravam numa situação de subordinação administrativa, política, jurídica, económica ou histórica em relação à metrópole. Estabelecidos estes parâmetros, a resolução procurou determinar quando cessava a obrigatoriedade de comunicar as informações, afirmando que um território não autónomo atingia o autogoverno quando emergia como soberano e independente ou quando optava por se associar ou se integrar livremente num outro Estado16. Nestes termos, as Nações Unidas passaram a admitir outras formas de autodeterminação para além da independência, o que correspondeu ao alargamento das disposições da Resolução 1514 (XV), que previam uma única fórmula para se alcançar o autogoverno.

O segundo projecto adoptado pela IV Comissão traduziu-se na Resolução 1542 (XV), datada de 15 de Dezembro de 1960, a qual procurou dar um conteúdo concreto e uma dimensão prática aos princípios elaborados pelo Comité dos Seis. Uma vez que a Espanha tinha decidido comunicar as informações requeridas pela ONU, a resolução foi aplicada unicamente ao caso português, enumerando-se os territórios não autónomos detidos pelo País. Aquando da votação, o Paquistão solicitou novamente o escrutínio separado de alguns parágrafos, principalmente o referente a Goa. A iniciativa paquistanesa foi concertada com o Governo português, cuja Embaixada em Carachi explorou activamente as rivalidades entre a Índia e o Paquistão17. Os parágrafos alvo de votação separada foram no entanto aprovados, tal como o conjunto da resolução que recebeu 68 votos a favor, seis contra e 17 abstenções.

Essencialmente, a resolução apresentava uma lista de territórios que se enquadravam na categoria de não autónomos e sobre os quais existia a obrigatoriedade de transmissão de informações ao secretário-geral. Esses territórios eram Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e suas dependências, São João Baptista de Ajudá, Angola, incluindo o enclave de Cabinda, Moçambique, Goa e o restante Estado Português da Índia, Macau e suas dependências, bem como Timor e suas dependências18. Esta enumeração dos territórios portugueses representou a assunção de um papel mais activo das Nações Unidas relativamente à questão colonial portuguesa. Foi uma afirmação inequívoca de que a fase em que as Nações Unidas deixavam às potências coloniais a iniciativa de indicar quais eram os seus territórios não autónomos tinha passado. Agora, era a própria ONU que tomava iniciativas neste campo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ano de 1960 é considerado como um marco na actuação das Nações Unidas relativamente às questões coloniais. As decisões então adoptadas introduziram alterações significativas na forma como a Organização encarava o colonialismo. Desde Dezembro de 1960 que as referências para a actuação das Nações Unidas no campo da descolonização passaram a ser a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais e as resoluções 1541 e 1542, relegando-se a Carta para uma posição secundária. Fruto desta alteração, a abordagem técnica e jurídica que tinha prevalecido até então foi substituída por um maior compromisso com a vertente política da descolonização. As três resoluções implicaram uma ruptura decisiva no olhar da ONU quanto ao colonialismo, resultante da consciência de que as pressões políticas seriam mais eficazes do que a abordagem técnica e jurídica.

Esta asserção recorda-nos o nosso objectivo inicial que consistia em aferir o impacto das decisões adoptadas em finais de 1960 pelas Nações Unidas sobre a forma como a questão colonial portuguesa passou a ser analisada. Como enunciámos na nossa hipótese, as resoluções 1514, 1541 e 1542 permitiram que se arrumassem a um canto os aspectos de princípio relacionados com a descolonização, possibilitando o início de uma nova fase no envolvimento das Nações Unidas na questão colonial portuguesa. Inauguraram nos anos seguintes uma intensa campanha contra o colonialismo português, dotando a Organização de uma nova linguagem que exprimia a vontade da esmagadora maioria dos seus membros para que se procedesse a uma rápida descolonização. No fundo, prepararam o caminho para que a questão colonial portuguesa passasse a ser considerada como prioritária e abriram a porta à participação activa dos movimentos de libertação das colónias portuguesas nas actividades das Nações Unidas. A transformação das normas internacionais promovida pela maioria afro-asiática tornaria a ONU um importante factor no processo que culminou na independência das colónias portuguesas após 1974. Esse processo só poderá ser compreendido à luz das pressões internacionais exercidas pelas Nações Unidas sobre o Estado português, pressões essas que tiveram um dos seus momentos decisivos nas resoluções adoptadas em 1960.

 

NOTAS

1 Cf. LOPES, José Alberto de Azeredo – Entre Solidão e Intervencionismo: Direito de Autodeterminação dos Povos e Reacções de Estados Terceiros. Porto: Gabinete de Estudos Internacionais, 2003, p. 45.         [ Links ]

2 Cf. LUARD, Evan – A History of the United Nations. The Years of Western Domination. Vol. I. S. l.: Macmillan, 1989, p. 177.         [ Links ]

3 Ibidem, p. 175.

4 Cf. The Oxford Handbook of the United Nations. WEISS, Thomas G., e Daws, Sam (eds.). Nova York: Oxford University Press, 2007, pp. 106-108.        [ Links ]

5 Cf. BARBIER, Maurice – Le Comité de Décolonisation des Nations Unies. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1974, pp. 27-28.        [ Links ]

6 «[…] a maioria das delegações desejava uma discussão em sessão plenária por motivos diferentes. Uns insistiam sobre a importância da questão, que receberia assim publicidade. Para outros, tratava-se de uma declaração de princípio ou de uma profissão de fé, que não tinha necessidade de passar por uma Comissão. Outros, enfim, queriam principalmente ter em conta o desejo dos novos estados africanos». Cf. Ibidem, p. 39.

7 Para mais informações sobre as influências exercidas pela Guerra Fria na actividade da ONU cf. The Oxford Handbook of the United Nations.

8 Cf. MARTINS, Fernando Manuel Santos – Portugal e a Organização das Nações Unidas: Uma História da Política Externa e Ultramarina Portuguesa no Pós-Guerra (Agosto de 1941-Setembro de 1968). Dissertação de mestrado. Lisboa: 1995, p. 187.        [ Links ]

9 Ao abster-se, Portugal, considerando que não tinha territórios não autónomos, mas sim províncias ultramarinas, afirmou que não se opunha à condenação do colonialismo. Cf. NATIONS UNIES – A/PV.947. Assemblée Générale. Quinzième Session, 947e séance pléniére. Mercredi 14 Décembre 1960, à 15 heures. Nova York: s.n., 1960. p. 1360.        [ Links ]

10 Cf. UNITED NATIONS ORGANIZATION – Resolution 1514 (XV), 15 December 1960. [Online]. 66-67. [Consultado em: 28 de Abril de 2008]. Disponível em: www.un.org.com

11 Cf. LOPES, José Alberto de Azeredo – Entre Solidão e Intervencionismo: Direito de Autodeterminação dos Povos e Reacções de Estados Terceiros, p. 54.        [ Links ]

12 Cf. MARTINS, Fernando Manuel Santos – Portugal e a Organização das Nações Unidas: Uma História da Política Externa e Ultramarina Portuguesa no Pós-Guerra (Agosto de 1941-Setembro de 1968), pp. 147- -148.        [ Links ]

13 Cf. NATIONS UNIES – A/C.4/SR 1032. Quatrième Commission, 1032e séance. Mercredi 2 Novembre 1960, à 10h50. Nova Iorque: s.n., 1960, p. 201.         [ Links ]

14 Cf. NATIONS UNIES – A/C.4/SR 1048. Quatrième Commission, 1048e séance. Vendredi 11 Novembre 1960, à 21h55. Nova York: s.n., 1960. p. 302.        [ Links ]

15 Cf. United Nations Organization – Resolution 1541 (XV), 15 December 1960. [Online]. 29. [Consultado em: 28 de Abril de 2008]. Disponível: em www.un.org.com

16 Cf. Ibidem.

17 Num telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a Embaixada de Portugal em Carachi, datado de 9 de Novembro de 1960, foi dito que a Missão de Portugal na ONU considerava que «Talvez se pudesse nas diligências em Karachi conseguir Governo Paquistão tomasse pelo menos decisão voto abstenção, com argumento Angola e Moçambique não vão aparecer isoladamente na resolução pedindo-nos para prestar informações; tal pedido cobrirá todos nossos territórios ultramarinos incluindo Goa, pelo que se acompanharem afro-asiáticos irão implicita e profundamente alterar sua política em relação nosso Estado Índia. Paquistão nos votos anos anteriores sempre considerou Assembleia não tinha competência para indicar territórios sobre os quais deveriam ser prestadas informações. Se precisam acompanhar afro-asiáticos em relação nossas Províncias onde grande massa populações não goza direitos políticos, pelo menos não há qualquer razão para o fazerem em relação Províncias onde isso não sucede – assim justificariam facilmente abstenção». Cf. Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Fundo Política e Organizações Internacionais, mç. 151

18 UNITED NATIONS ORGANIZATION – Resolution 1542 (XV), 15 December 1960. [Online]. 30. [Consultado em: 28 de Abril de 2008]. Disponível: em www.un.org.com