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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.55 Lisboa set. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.55r01 

RECENSÃO

O dilema de segurança e a modernidade absoluta de Tucídides

 

Luís Lobo-Fernandes

Professor catedrático (aposentado) da Universidade do Minho, titular da Cátedra Jean Monnet de Integração Política Europeia desde 2004, visiting adjunct professor na Universidade de Cincinnati, igualmente desde 2004, e non-resident fellow (anteriormente Calouste Gulbenkian fellow) na School of Advanced International Studies (SAIS), Johns Hopkins University, Washington, DC, desde 2010.

 

GRAHAM ALLISON, Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?, Nova York, Houghton Mifflin Harcourt, 2017, 364 páginas.

 

Estão os Estados Unidos e a China a caminho da guerra? Encontram-se ambos os colossos enredados na chamada «armadilha de Tucídides», definida pela ascensão de uma potência revolucionária no sistema internacional e pelo medo que desperta nas potências estabelecidas? Em tal cenário, a probabilidade de guerra aumenta exponencialmente em função da perceção do rompimento da balança de poder. Na sua lapidar História da Guerra do Peloponeso, Tucídides aponta o crescimento imparável de Atenas como causa primeira de um conflito catastrófico, que acabaria por levar à sua própria derrota em 404 a.C. Como assinalou, Esparta reagiu com grande determinação na defesa do statu quo, por receio de desvantagem perante a insegurança manifesta que a ambição e as ações expansionistas de Atenas provocaram. A reedição de tal cenário histórico marca hoje indelevelmente as relações internacionais. É este o cerne do livro de Graham Allison, recentemente publicado. A obra, intitulada Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?, percorre e atualiza os pressupostos enunciados pelo grande autor grego e explora os efeitos altamente destabilizadores sobre o sistema internacional decorrentes da ascensão e crescente influência da China, e a consequente emergência de um iniludível dilema de segurança com os Estados Unidos – conceito brilhantemente sugerido por Tucídides nos seus escritos. A modernidade absoluta de Tucídides – que nós próprios temos tido ensejo de enfatizar1 – assenta numa teoria da guerra baseada nos efeitos prováveis de um grave desequilíbrio de poder no sistema, ou seja, numa fortíssima correlação entre desequilíbrio e a deflagração de conflitos. Nas mãos de Tucídides, a história é feita à escala de uma ciência dos fenómenos políticos, de tal modo que o seu trabalho constitui um verdadeiro paradigma. O que nos está a sugerir é que não é possível confinar a história ao mero relato dos factos. Esta formulação teórica, que viria a ser mais tarde designada genericamente de realismo, remete igualmente para as noções críticas de «regra do interesse» e de «razão de Estado», para sublinhar os dilemas perenes a que as potências internacionais fazem face num ambiente externo hostil, que continua a ser fundamentalmente definido pela imagem de anarquia.

Segundo Allison, os Estados Unidos e a China poderão evitar a confrontação bélica, mas só se internalizarem duas verdades cruas. Primeiro, na atual trajetória, a guerra entre os dois é não só possível, mas muito mais real do que é reconhecido presentemente; em rigor, ao subestimar o perigo dessa eventualidade, os riscos aumentam. Segundo, a guerra não é inevitável. Vários exemplos históricos atestam como as grandes potências podem gerir, sem recurso à solução bélica, a relação com os principais rivais mesmo perante sinais ameaçadores. O registo dos sucessos e dos fracassos oferece importantes lições para os decisores políticos e os líderes. Como se pode ler nos comentários lúcidos de Allison, igualmente autor de uma das mais influentes obras no domínio da ciência internacional dos últimos 50 anos – Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis –, «só os que falham no aprofundamento das circunstâncias trágicas do passado estão condenados a repeti-las». Ora, é precisamente no estudo circunstanciado de 16 situações históricas de grave stress estrutural – como ele mesmo as designa – que o esforço aturado do professor Allison é especialmente pungente para a conjuntura internacional que atravessamos. Este exercício criterioso de verdadeira história aplicada revela que em 12 desses 16 processos de desafio ao poder ou à estrutura prevalecente nas relações internacionais, o resultado foi a guerra, ou seja, em 75 por cento dos casos em apreço. Não obstante a probabilidade de conflito aberto em episódios similares ser elevadíssima, como se constata, Allison convida a refletir sobre quatro períodos em que as resultantes não se traduziram em guerra: Portugal e Espanha nos finais do século XV, Reino Unido e Estados Unidos nos inícios do século XX, o caso mais extremo e paradigmático do «equilíbrio do terror» na Guerra Fria, e o cenário europeu pós-1990, plasmado no desafio complexo que a reunificação da Alemanha colocava, quer à França, quer ao Reino Unido. Nestes quatro marcos históricos as potências contemporâneas respetivas conseguiram escapar à «armadilha de Tucídides», merecendo, assim, uma atenção especialíssima perante o caso vertente das ambições chinesas. São prova de que a guerra não é inevitável, como assinalado por Allison. Este é, aliás, um ponto essencial alvo do esforço analítico do autor e que as várias analogias aqui aprofundadas revelam. Historicamente, como sabemos, nos sistemas internacionais as grandes potências – em função do seu poder relativo – detêm sempre a responsabilidade primordial de liderança e de resposta a eventuais crises.

Por isso, talvez mereça determo-nos um pouco mais detalhadamente no cenário n.º ٧ explorado por Allison, a saber, o período de finais do século XVIII e princípios do século XIX em que a França revolucionária desafia abertamente a potência então dominante em terra e no mar – o Reino Unido. Sendo certo que a «afronta» napoleónica à liderança britânica no plano internacional vai implicar um período de guerras generalizadas no continente europeu e nos oceanos envolventes, o ciclo longo que se segue, maioritariamente de paz, requer mais de perto a nossa atenção. A este propósito, a dissertação de doutoramento de Henry Kissinger apresentada na Universidade de Harvard há mais de 60 anos – publicada ulteriormente sob o título A World Restored – evidencia como a França revolucionária é inserida numa nova arquitetura de segurança pelas potências europeias mais «conservadoras». Com efeito, o protagonista principal do Congresso de Viena de 1814-1815 seria o chanceler austríaco Metternich, que, juntamente com o britânico Castlereagh, definiram um virtuoso sistema de balança de poder que permitiu manter a paz geral no continente durante quase um século. No conhecido enunciado de Hedley Bull, este regime tem preenchido três funções essenciais no sistema moderno de estados: preveniu a sua captura e transformação num império universal; as balanças de poder regionais protegeram a independência e autonomia dos estados; e, por último, propiciou as condições para o desenvolvimento de outras instituições essenciais para a manutenção do próprio sistema, tais como a diplomacia, a gestão de crises, o direito internacional, e a guerra enquanto meio legítimo para impedir políticas expansionistas ou ações hostis de conquista.

Mas, como acomodar a nova ambição e proeminência da China? É que o primeiro requisito para uma solução de «tipo Metternich» assentou na derrota prévia da potência revolucionária. Com efeito, foi o desastre de Napoleão na Rússia em 1812 que propiciou os desenvolvimentos diplomáticos ulteriores que levariam ao chamado «concerto de Viena». A questão que emerge hoje, mais complexa, é a de saber se é possível alcançar, sem «derrota chinesa», um arranjo diplomático que contemple os interesses de segurança das potências em causa. Como Kissinger sugere, na barganha diplomática que leva ao Congresso de Viena, o elemento essencial do novo equilíbrio era que a França renunciasse a pretensões hegemónicas ou mesmo a exercer influência indevida para lá das suas fronteiras. No caso presente da China, o desafio de uma abertura diplomática mais ambiciosa requereria sempre a identificação dos interesses críticos das potências-chave e a localização dos pontos de convergência e de divergência, assumindo, a fortiori, que a razão prevalece em todos os lados. Ao invés, pode muito bem acontecer que o diálogo em curso revele a impossibilidade de atingir uma versão atualizada do entendimento conseguido em Viena. Tal seria mau para todas as partes, e, diga-se, para o mundo. A história mostra – tal como os casos de insucesso escalpelizados neste estudo de Allison comprovam – que se a China continuar a atuar como uma potência «revolucionária» e pretender expandir e projetar o seu poder militar de forma imoderada e intimidatória, aparente já na tentativa de criação de esferas de influência, então a possibilidade de uma guerra de containment pode estar no horizonte. Mas, esse curso de ação seria, como também sugere Allison, profundamente errado da parte da China – tal como foi a decisão insensata de Napoleão ao exacerbar as aspirações francesas e marchar sobre Moscovo.

Numa Ásia crescentemente vestefaliana, os Estados Unidos detêm o papel-chave de balanceador, mas simultaneamente são o mais importante aliado do Japão e um parceiro da China, uma situação algo comparável àquela em que Bismarck, que detinha um sentido apuradíssimo do regime da balança de poder, fez uma aliança com a Áustria balanceada ao mesmo tempo com um tratado com a Rússia. Paradoxalmente, foi essa «ambiguidade construtiva» – na conhecida expressão de Kissinger – que preservou a flexibilidade do equilíbrio europeu. Em contrapartida, seria o seu abandono que desencadearia uma sequência de confrontações que culminariam na Primeira Guerra Mundial. Ora, uma deterioração das relações sino-americanas, na qual os dois estados caíssem na «armadilha de Tucídides», constituiria o mais provável catalisador de um conflito de larga escala.

O livro de Graham Allison é, pois, de leitura imprescindível nas circunstâncias históricas presentes, na exata medida em que o plano global é cada vez mais marcado pela crescente volatilidade nos vários subsistemas internacionais e por novas vulnerabilidades e temores estratégicos.  A sua fragmentação é um dado iniludível, revelador dos paradoxos de um modelo difuso, parcialmente globalizado, já apodado de «era da não-polaridade» ou «apolaridade», que continua a incluir assinaláveis componentes letais de cariz interestatal clássico e de perduração das relações de poder – que os dilemas revisitados neste trabalho projetam e amplificam de forma particularmente eficaz –, e a que se somam hodiernamente outras expressões mais híbridas, patentes nos chamados conflitos de baixa intensidade e no ciberterrorismo. Afastando-se de qualquer conceção do «fim da história» – a sua abordagem é cíclica, não linear, e não necessariamente progressiva –, Allison reconhece por isso a propensão dos líderes e dos estados em repetir os erros do passado, pelo que se torna ainda mais necessário aprofundar as circunstâncias que conduziram às maiores catástrofes. Este poderia ser considerado o epítome deste excelente estudo, agora à disposição dos especialistas e do público mais atento. 

 

NOTA

1 Cf. LOBO-FERNANDES, Luís – «Estudo Introdutório». In História da Guerra do Peloponeso. 1.ª edição, 2.ª impressão. Lisboa: Edições Sílabo (Clássicos do Pensamento Estratégico), 2015.

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