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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.15 no.1 Porto jul. 2019

https://doi.org/10.4000/laboreal.1661 

PESQUISA EMPÍRICA

 

Trajetórias e subjetividades no trabalho de técnicos de enfermagem no brasil

Trayectorias y subjetividades en el trabajo de técnicos de enfermería en brasil

Trajectoires et subjectivités dans le travail des techniciens infirmiers au Brésil

TTrajectories and subjectivities in the work of nursing technicians in brazil

 

 

Filippina Chinelli [1], Monica Vieira [2], Magda Duarte dos Anjos Scherer [3]

[1] Laboratório do Trabalho e da Educação Profissional em Saúde/Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, endereço: Rua Barata Ribeiro, 330, apto 302, Copacaban, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, pina.chinelli@gmail.com.

[2] Laboratório do Trabalho e da Educação Profissional em Saúde/Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, Brasil, endereço: Rua João Afonso 49, apto 201, 22261-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, monicavi@fiocruz.br.

[3] Departamento de Saúde Coletiva/Universidade de Brasília (UnB), Centre de Recherche sur le Travail et le Devéloppement (CRDT/Cnam/França), endereço: Colina Bloco G apto 101, 70904-107, Brasília, Brasil magscherer@hotmail.com.

 

 

RESUMO

Este artigo analisa o trabalho de técnicos de enfermagem no Brasil, na atenção primária e na emergência hospitalar. São analisadas 48 entrevistas guiadas por roteiros que buscam compreender quem são esses trabalhadores, como constroem relações entre formação e inserção laboral, e como percebem as relações no trabalho. Das análises emergiram três categorias temáticas: as trajetórias (im)previsíveis dos técnicos e a busca de um trabalho socialmente mais reconhecido; tempos de precarização dos modos de ser trabalhador e as penosidades do trabalho dos técnicos; apenas insatisfação ou múltiplas possibilidades de implicação com o trabalho? Configura-se tendência de formação de técnicos superqualificados, que seguem, em grande medida, desempenhando as mesmas atividades, com pouca liberdade de escolha nas suas trajetórias profissionais. Os resultados evidenciam sobrecarga e difíceis condições de trabalho, que convivem com a presença de sentimentos de satisfação associados à afinidade com a produção do cuidado, à resolubilidade da assistência e à aprendizagem.

Palavras-chave: trabalho em saúde, técnicos de enfermagem, subjetividade

 


RESUMEN

Este artículo analiza el trabajo de técnicos de enfermería en Brasil, en la atención primaria y en la emergencia hospitalaria. Se analizan 48 entrevistas orientadas por guiones que buscan comprender quiénes son esos trabajadores, como construyen relaciones entre formación e inserción laboral y cómo perciben las relaciones en el trabajo. De los análisis surgieron tres categorías temáticas: las trayectorias (im)previsibles de los técnicos y la búsqueda de un trabajo socialmente más reconocido; tiempos de precarización de los modos de ser trabajador y las dificultades del trabajo de los técnicos; sólo insatisfacción o múltiples posibilidades de implicación con el trabajo? Se configura la tendencia de formación de técnicos supercualificados, que siguen, en gran medida, desempeñando las mismas actividades, con poca libertad de elección en sus trayectorias profesionales. Los resultados evidencian una sobrecarga y condiciones de trabajo difíciles, que conviven con la presencia de sentimientos de satisfacción asociados a la afinidad con la producción del cuidado, a la resolución de la asistencia y al aprendizaje.

Palabras clave : trabajo en salud, técnicos de enfermería, subjetividad

 


RÉSUMÉ

Cet article analyse le travail des techniciens infirmiers au Brésil, tel que développé dans le cadre des soins primaires et de l'urgence hospitalière. Nous analysons 48 entretiens, guidés par des scripts conçus de manière à comprendre qui sont ces travailleurs, comment ils construisent des relations entre formation et insertion professionnelle et comment ils perçoivent les relations au travail. Les analyses ont fait émerger trois catégories thématiques : les trajectoires (im)prévisibles des techniciens et la recherche d'un travail davantage reconnu socialement ; des temps de précarisation dans les façons d'être travailleur et les sources de pénibilité du travail des techniciens ; l’insatisfaction à elle seule ou de multiples possibilités d’engagement dans le travail ? Une tendance s'affirme dans la formation de techniciens extrêmement qualifiés, exerçant dans une large mesure les mêmes activités, avec peu de liberté de choix dans leur trajectoire professionnelle. Les résultats révèlent une surcharge et des conditions de travail difficiles, qui coexistent avec la présence de sentiments de satisfaction associés au plaisir de la production de soins, à la résolution des problèmes et à l’apprentissage.

Mots clés: travail de santé, techniciens en soins infirmiers, subjectivité

 


ABSTRACT

This paper analyzes the work of nursing technicians in Brazil, in primary health care and hospital emergency. 48 interviews were analyzed; their scripts sought to understand who these workers are, how they build the relationships between training and labor insertion, and how they perceive social relations at work. From the analyzes emerged three thematic categories: the (un)predictable trajectories of nursing technicians and the search for a more socially recognized work; times of precariousness of the ways of being a worker and the sufferings of the work of the nursing technicians; only dissatisfaction or multiple possibilities of implication with the work? A tendency for the training of super-qualified technicians is configured, who keep on, to a great extent, performing the same activities, with little freedom of choice in their professional trajectories. The results show overload and difficult working conditions, which coexist with the presence of feelings of satisfaction associated with the affinity with the production of care, the resolubility of care and learning.

Keywords: health work, nursing technicians, subjectivity

 

 


1. INTRODUÇÃO

A centralidade da enfermagem é sinalizada em todos os âmbitos da prestação de cuidados de saúde, ainda que a dinâmica de seu processo de profissionalização diferencie-se nos países ocidentais, repercutindo na estrutura ocupacional da área. No caso brasileiro, a formação e o trabalho da enfermagem seguem uma divisão hierárquica e a área é, desde as últimas décadas do século passado, composta por três segmentos: auxiliar de enfermagem, técnico de enfermagem e enfermeiro, sendo este último o profissional de nível superior que supervisiona o trabalho dos demais integrantes da equipe de enfermagem. Os dois primeiros segmentos representam 77% da categoria, totalizando 1.389.823 trabalhadores. Uma breve caracterização da enfermagem brasileira aponta que 84,7% desses trabalhadores são do sexo feminino; 35% estão na faixa etária de 30 a 45 anos. Quase metade reside na Região Sudeste, seguindo a distribuição populacional brasileira e também a da força de trabalho em saúde, que, de forma geral, obedece à concentração de serviços de saúde, notadamente, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Cerca de 34% desses trabalhadores brasileiros encontram-se na graduação ou já possuem o ensino superior, ou seja, possuem escolaridade que ultrapassa o ensino médio, a exigida para ocupar tais cargos, além da obrigatoriedade da formação profissional específica na área (Machado et al., 2016).

Essa atual configuração da enfermagem brasileira é influenciada pelo contexto de transformações no mundo do trabalho e traduz um novo sistema de valores, que impõe compreender a maneira pela qual os trabalhadores se relacionam, realizam e significam o trabalho. Isto porque, embora se admita a possibilidade de a construção subjetiva do trabalhador passar, contemporaneamente, por outros espaços de pertencimento, o trabalho, seu fazer, seu lugar na sociedade e o sentido que lhe é atribuído continuam sendo a dimensão central da constituição do sujeito. O ônus destas transformações recai de forma mais contundente sobre o trabalhador, cuja inserção de classe reduz suas chances de acesso à qualificação e ao mercado de trabalho, onde se incluem os técnicos (Vieira & Chinelli, 2013).

O espaço de trabalho é, ao mesmo tempo, de coerção, sujeição, consentimento e renormalização. Nele, se produzem penosidades e satisfações derivadas da interação entre relações de produção e relações na produção (Burawoy, 1979). O atual mundo do trabalho aposta em um “homem genérico”, por mais que apele à subjetividade, ao saber ser de cada trabalhador, em uma lógica continuamente geradora “de formas exploratórias do trabalho humano” (Forattini & Lucena, 2015, p. 44).

A flexibilização de rotinas, de turnos, as equipes multidisciplinares, as competências humanizadas e a supervalorização das ações socialmente responsáveis, tanto organizacionais como individuais, induzem a um entendimento de modernidade saudável. Os recorrentes discursos pelo bem da saúde física e mental do trabalhador, os incentivos para atividades físicas, os benefícios sociais sofisticados, concedidos pelas grandes indústrias, contribuem para a construção de uma falsa consciência de sociedade participativa (Forattini & Lucena, 2015, p. 44).

Nesse contexto, a gestão contemporânea do trabalho tem como ideias-força a flexibilidade na mobilização da força de trabalho e o estímulo ao empreendedorismo, ou seja, ao auto-emprego, em um momento de acelerada perda de direitos e de limitação do potencial transformador e emancipatório da vida social e produtiva. Este processo permite a “captura da intersubjetividade”, que, segundo Alves (2011), se constitui nas relações sociais.

Ao desconstruir/reconstituir “coletivos de trabalho”, o capital opera um movimento de “captura” da subjetividade. Neste movimento, reencontramos o homem social, o trabalhador coletivo como criação do capital. Ao dizermos “subjetividade”, ocultamos, no plano discursivo, uma verdade essencial: a subjetividade é intrinsecamente intersubjetiva. O homem é, acima de tudo, uma individualidade social. Portanto, o discurso da “subjetividade”, em si, tende a ocultar uma dimensão profunda desta “captura”. Isto é, ela não é apenas controle/manipulação das instâncias psíquicas do sujeito burguês, do homem que trabalha, apreendido como uma mônada social, mas a corrosão/inversão/perversão do ser genérico do homem como ser social. Não podemos conceber o sujeito humano sem as teias de relações sociais nas quais ele está inserido (Alves, 2011, p. 114).

Trata-se de um “novo e intenso nexo psicofísico” instaurado pelo capitalismo contemporâneo, que “tende a dilacerar (e estressar) não apenas a dimensão física da corporalidade viva da força de trabalho, mas sua dimensão psíquica e espiritual, que se manifesta por sintomas psicossomáticos” (Alves, 2011, p. 114). Mas a captura não é total. Na perspectiva de Schwartz (2000), o trabalho é sempre renormalizado pelo ser que trabalha, na busca de certa singularização. Isto significa que, a partir do trabalho, entendido como forma de intervir e como debate de normas e valores, algo pode se transformar. Trabalho é mais que execução, é lugar de tensão, de um espaço de possíveis sempre negociáveis. Todo homem quer ser sujeito de suas normas, é a liberação do potencial do indivíduo que dá ao homem o sentido de sua vida. No interior das coerções cotidianas de trabalho, se abrem espaços para uma gestão diferenciada de si. O debate do indivíduo com ele mesmo é tecido nos atos cotidianos do trabalho.

O trabalho, então, é espaço de possibilidades de configuração de formas identitárias, de trajetórias, de experiências e representações, de formação política e ideológica, e, portanto, de subjetividades. Neste contexto, considerando a centralidade dos trabalhadores de enfermagem e a relevância de conhecer os modos de prestação do cuidado, este artigo analisa as trajetórias e a subjetividade tecida no trabalho de técnicos de enfermagem no Brasil.

 

2. METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo qualitativo sobre o trabalho de técnicos de enfermagem, recorte de duas pesquisas no Brasil, uma na atenção primária de saúde e outra em hospital universitário. Da primeira, realizada entre 2013 e 2014, participaram 25 técnicos de 5 estados, e da segunda, realizada no período de 2013 a 2018, 23 técnicos de enfermagem do serviço de emergência de um hospital universitário da Região Centro-Oeste do País.

Os dados foram coletados por entrevistas semiestruturadas, orientadas por roteiros construídos em oficinas de trabalho entre pesquisadores, tendo sido utilizadas, para análise, as informações comuns que tratavam da trajetória e da subjetividade no trabalho, obtidas em ambas as pesquisas. Os roteiros procuraram contemplar a situação socioeconômica; a composição familiar; a trajetória educacional; a trajetória ocupacional, com ênfase na inserção no mercado de trabalho em saúde; a relação entre formação profissional e inserção ocupacional; a motivação de ingresso e permanência na ocupação atual; e as expectativas profissionais. Buscou-se privilegiar o ponto de vista dos trabalhadores sobre o processo e as relações no trabalho, com ênfase na dimensão intersubjetiva.

Os participantes foram incluídos por critério de conveniência, a partir dos locais de estudos previamente definidos pelos pesquisadores. Procurou-se diversificá-los quanto à idade, ao gênero, ao tipo de vínculo, ao nível de qualificação e ao tempo de permanência no trabalho em saúde. As entrevistas foram realizadas nos lugares e momentos de conveniência dos entrevistados, respeitando os intervalos de sua rotina laboral. Para preservar o anonimato dos entrevistados, optou-se por designá-los com nomes de flores.

Adotou-se uma perspectiva compreensiva para a análise do empírico na busca pelos sentidos e significados da fala dos trabalhadores, que resultam de condições históricas e sociais (Weber, 1993). A junção dos resultados de pesquisas em espaços diferentes fortaleceu as análises, visto que os trabalhadores de enfermagem muito comumente vivenciam mais de uma inserção profissional, transitando por jornadas em diferentes segmentos do mercado de trabalho em saúde. Os resultados foram sistematizados, gerando, para este artigo, três categorias de análise: as trajetórias (im)previsíveis dos técnicos de enfermagem e a busca de um trabalho socialmente reconhecido; tempos de precarização dos modos de ser trabalhador e as penosidades do trabalho dos técnicos de enfermagem; apenas insatisfação ou múltiplas possibilidades de implicação com o trabalho?

O estudo na atenção primária foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (CAAE: 0062.0.408.000-11). O estudo no hospital foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília, CEP/FS/UnB (CAAE 26202614.0.0000.0030).

 

3. AS TRAJETÓRIAS (IM)PREVISÍVEIS DOS TÉCNICOS DE ENFERMAGEM E A BUSCA DE UM TRABALHO SOCIALMENTE MAIS RECONHECIDO

Refletir sobre as trajetórias de trabalho e a formação dos técnicos de enfermagem implica compreender seus percursos de vida anteriores à inserção na área da saúde, quase sempre caracterizados pela imprevisibilidade, configurando o que Guimarães (2006) denomina de trajetórias erráticas relacionadas à origem social subalterna e a graus mais ou menos intensos de precariedade social.

Esses percursos constituem processos que exprimem a articulação concreta de múltiplas dimensões, com suas rupturas e continuidades. Trata-se, portanto, de considerar a posição da família na estrutura social; as diferentes redes de sociabilidade; a combinação entre escola e outras instâncias de qualificação, e a inserção laboral, muitas vezes prematura; as idas e vindas de ocupações formais e informais; as redes de relações pessoais e familiares; o capital social acumulado pelo trabalhador e sua família; os ciclos de vida etc. (Vieira, Chinelli, D'Ávila, David, & Fortes, 2017). Concordando com Castel (1998), o que se verifica é a alternância entre várias situações de emprego e desemprego, formalidade e informalidade, postos de trabalho mais ou menos qualificados, trajetórias marcadas por constantes idas e vindas, em diferentes instâncias de formação/qualificação/requalificação da força de trabalho. Com isto, se quer assinalar que tais percursos não são construídos apenas no âmbito individual, visto que as experiências vividas pelos sujeitos são múltiplas, contraditórias e se produzem na interação com outros sujeitos, não se limitando aos espaços de trabalho.

No que se refere aos técnicos de enfermagem, é possível afirmar que, antes da inserção na área da saúde, as trajetórias de vida parecem descontínuas e evidenciam pouca coerência entre formação e ocupação. Nesse sentido, trabalhar significou, em boa parte das vezes, a oportunidade de dar prosseguimento aos estudos, sem configurar necessariamente parte de um projeto profissional claramente definido que se desdobrou de forma linear ao longo do tempo.

As narrativas seguintes exemplificam essas trajetórias. Rosa, 55 anos, começou a trabalhar aos 14 anos de idade como atendente de consultório dentário, onde permaneceu por dois anos. Naquela época, segundo ela, era difícil ingressar no nível médio. Ao mesmo tempo em que estudava, trabalhou em uma indústria de calcinação durante 19 anos, exercendo a função de secretária dos médicos e dentistas. Concluiu um curso de audiometria, começou a fazer exames nos colegas de trabalho, e o médico assinava os laudos. Sempre esteve envolvida na área da saúde, atendendo em pequenas cirurgias mesmo sem ter nenhuma formação. Há 22 anos, fez o curso de técnico de enfermagem, pago pela empresa.

Lírio ingressou na escola com 5 anos de idade, cursou os níveis fundamental e médio em um centro integrado de educação pública (CIEP), em tempo integral, tendo participado de algumas oficinas promovidas pela instituição, como datilografia, origami e artes cênicas. Concluiu o ensino médio sem atrasos e pretendia continuar estudando. Fez vestibular para engenharia, foi aprovado, mas precisou deixar o curso porque foi morar com a mãe em Salvador (BA). Informou que a família, de origem muito humilde, não tinha condições de planejar a formação escolar dos filhos. Explicou que a escolha pela engenharia se deu pelo hábito que tinha de construir coisas. O primeiro emprego, de entregador de jornal, foi conseguido com a ajuda do tio, entre seus 17 e 18 anos de idade. Logo depois, foi convidado por vizinhos para trabalhar como ajudante de marcenaria, tendo estudado à noite durante esse período, devido ao trabalho. Mais tarde, exerceu a ocupação de supervisor de montagem de móveis em uma grande empresa. Em nenhuma dessas atividades, teve carteira de trabalho assinada. Ingressou na área da saúde devido ao status elevado atribuído aos seus profissionais. Escolheu um curso técnico de enfermagem, frequentado em instituição privada, justificando ser aquele o único financeiramente viável. À época da entrevista, a enfermagem era sua ocupação principal, exercida como técnico em dois vínculos empregatícios: um no estado e outro na prefeitura. Possui graduação em enfermagem cursada em universidade privada. Chegou a trabalhar como enfermeiro, mas abdicou da ocupação, pois as condições de trabalho eram muito ruins, o que o expunha, inclusive, a situações de risco, no que se refere à probabilidade de cometer erros.

Essas narrativas deixam claro que a inserção laboral na enfermagem é, muitas vezes, contingencial diante da necessidade de se obter um posto de trabalho. Mas cabe assinalar que para muitos entrevistados significou, também, a possibilidade de uma inserção mais estável e bem remunerada em relação à que a maior parte desses trabalhadores já havia experimentado. Trata-se, ao menos, de obter, mesmo que por tempo limitado, algum direito trabalhista, conforme legislação específica que vem sendo flexibilizada.

Assim, embora estejam submetidos a contratos terceirizados, baixos salários e ritmos intensos de trabalho impostos pela necessidade de atingir metas estabelecidas, as informações obtidas sugerem que os técnicos se tornam menos vulneráveis ao ingressarem na área da saúde. Jasmim, técnica na Santa Casa e psicóloga, aos 39 anos, reconhece as possibilidades que a enfermagem apresenta de ampliar os horizontes profissionais, como, no seu caso, a intenção de cursar a especialização em sexologia na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) quando seus filhos se tornarem maiores e independentes. Cravo, de 30 anos, vai fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para tentar ingressar em uma faculdade de enfermagem e, se possível, futuramente, em um curso de medicina. Violeta, de 38 anos, planeja cursar a faculdade de enfermagem e uma pós-graduação em saúde materno-infantil. Lírio, já mencionado, está feliz com o vínculo como estatutário que lhe possibilitou maior estabilidade no emprego e a aquisição de bens, como casa e carro, o que antes teria sido impossível. Tem a intenção de cursar análise de sistemas e, posteriormente, uma pós-graduação em segurança da informação para trabalhar com softwares na área da enfermagem.

Nota-se, portanto, que os técnicos de enfermagem vislumbram na graduação a possibilidade de obter o diploma desejado, frequentando, para tanto, na maioria das vezes, cursos noturnos em instituições privadas de ensino. Este é um movimento recente e acelerado de luta por qualificação, na busca de alguma mobilidade ascendente no mercado de trabalho.

Dados do Perfil da Enfermagem no Brasil informam que 78,8% dos técnicos são formados em escolas privadas, sendo que, desses, mais de 40% estudaram em horário noturno. Isto significa que há aqueles que estudam para trabalhar, os que trabalham para estudar e os que trabalham e estudam concomitantemente. Uma parte importante (66,7%) destes pretende seguir na própria área de enfermagem. Entre os que ainda não possuem curso superior, 78% querem cursar a graduação; quase 60% destes, na própria enfermagem ( Machado et al., 2016).

Contudo, as possibilidades de concretizar a formação de nível superior no mercado de trabalho em saúde são reduzidas, optando, muitos deles, por permanecerem como técnicos, quando a remuneração é mais compensadora, o que ocorre com o vínculo de servidor estatutário. Isto significa que seus esforços são, na maioria das vezes, frustrados pelas condições objetivas de suas vidas, sujeitas à divisão social e técnica do trabalho contemporâneo. Estes técnicos, conhecedores do campo de atuação profissional da enfermagem, do mercado de trabalho e das dificuldades específicas da profissão, insistem em continuar e buscam a ascensão profissional via educação formal, conforme depoimento abaixo:

A busca pela graduação era por conta de maiores oportunidades, além de mais conhecimentos. Achava que mudaria o SUS. Apesar de gostar de trabalhar na emergência, somos negligenciados e abandonados como profissionais. Não há realização aqui. Busco outras atividades para me realizar e, no momento. me preparo para o vestibular de medicina. (Dália, enfermeira e técnica)

A compreensão desse fenômeno mais específico da formação profissional em enfermagem deve considerar o precário investimento de políticas públicas na formação técnica em saúde, a origem social desses alunos e a inserção tardia na formação profissional de nível técnico em saúde.

 

4. TEMPOS DE PRECARIZAÇÃO DOS MODOS DE SER TRABALHADOR E AS PENOSIDADES DO TRABALHO DOS TÉCNICOS DE ENFERMAGEM

O material empírico analisado permite afirmar que a experiência vivida pelos técnicos de enfermagem é marcada pela escassez: falta remuneração adequada, faltam espaços coletivos de encontro e discussão, faltam relações de trabalho qualificadas e estáveis, falta segurança. Ao mesmo tempo, sobram riscos, insegurança e precarização, o que caracteriza o trabalho e a vida desses profissionais, bem como o de técnicos que atuam em outros segmentos da área da saúde no Brasil (Morosini, 2018).

Essas dificuldades do cotidiano de trabalho são também expressas nos resultados da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil (Machado et al., 2016): 64,2% sentem desgaste profissional associado ao uso de força física ao longo do dia; sobrecarga, plantões noturnos, escassez de recursos humanos; falta de condições de trabalho; baixos salários e elevadas exigências de cumprimento de metas; 40,5% não percebem clima de confiança nas relações com os pares no trabalho; 26,9% revelam a inexistência de respeito profissional em relação às condutas adotadas; 39,4% não se sentem à vontade para expressar opiniões e queixas, ou até mesmo discutir a melhor forma de organizar o trabalho com os superiores hierárquicos; 37% apontam indisponibilidade da chefia para ajudar nas situações de dificuldades; 30% acham que seus chefes não confiam em seu trabalho; 60% não se sentem protegidos no ambiente de trabalho; 27,3% experimentam violência no trabalho, com destaque para a violência psicológica; e 18,6% sofrem discriminação (de gênero, etnia, peso ou orientação sexual). Em relação à saúde do trabalhador, no ano anterior ao início da coleta de dados, 11,9% sofreram acidentes de trabalho; 22% afastaram-se por licença médica (excluindo licença maternidade); 56% necessitaram de atendimento médico e, destes, 60% não se sentiram protegidos pela instituição.

Essas informações podem ser analisadas com base no conceito de precariedade subjetiva de Linhart (2014, p. 46), que ela traduz como sentimentos

(…) de não ‘estar em casa' no trabalho, de não poder se fiar em suas rotinas profissionais, em suas redes, nos saberes e habilidades acumulados graças à experiência ou transmitidos pelos mais antigos; é o sentimento de não dominar seu trabalho e precisar esforçar-se permanentemente para adaptar-se, cumprir os objetivos fixados, não arriscar-se física ou moralmente (no caso de interações com usuários e clientes). É o sentimento de não ter a quem recorrer em caso de problemas graves no trabalho, nem aos superiores hierárquicos (cada vez mais raros e menos disponíveis), nem aos coletivos de trabalho, que se esgarçaram com a individualização sistemática da gestão dos assalariados e da concorrência entre eles. É o sentimento de abandono. É também a perda da autoestima, que está ligada ao sentimento de não dominar totalmente o trabalho, de não estar à altura, de fazer um trabalho ruim, de não estar seguro de assumir seu posto.

As transformações no mundo do trabalho e a crescente diferenciação interna do trabalho estariam, assim, associadas a uma profunda revisão de valores. Em tempos marcados pela cultura da flexibilidade (Sennett, 1999; Bauman, 2011), ampliam-se as dificuldades para cuidar de si e nas demais relações com o outro.

Os técnicos dizem que faltam medicamentos, ar condicionado, geladeira, salário, escuta. Verbena menciona a falta de material:

Às vezes, falta material, e aí você não tem muito o que fazer. Tipo: às vezes, falta fralda. O paciente não tem fralda e nem todos têm condições de comprar. Então, essa questão de falta de material é muito ruim.

Os trabalhadores apontam que, via de regra, não lhes são dadas as condições materiais para alcançar o que lhes é exigido, e que estão submetidos a ritmos cada vez mais intensos de trabalho, com repercussões físicas e psicológicas.

Equipamentos estão faltando, equipamentos de baixa qualidade, uns monitores muito ruins, que não têm todos os parâmetros que você precisaria. Tem hora que tem um PA [pressão arterial] e não tem o oxímetro; ou não tem o ECG [ecocardiograma], ou está quebrado. De um modo geral, está muito sucateado. (Anis)

Muitas vezes, nós temos a estrutura, mas não temos, assim, um ambiente com conforto, é no sentido de temperatura. Então, a gente vê que quando está em 30 graus, 32 graus, 34 graus, então, a gente sofre muito. Então, a gente sua bastante. Muitos até passam mal. Então, é, onde tem esse ar condicionado, fica bem mais confortável. (Hibisco)

A insatisfação profissional relaciona-se, ainda, a uma percepção de negligência por parte das políticas públicas em saúde, com a vida não só do usuário como também do trabalhador. Os formatos de gestão em vigor requisitam dos trabalhadores autonomia e a responsabilidade de darem respostas imediatas e criativas aos imprevistos e falhas; a dificuldades de toda ordem. Quando os rearranjos da organização do trabalho não são possíveis, esta negociação é interrompida e a relação do trabalhador com seu trabalho fica bloqueada, trazendo sofrimento (Dejours, 1994), dificultando que os trabalhadores sejam resolutivos.

É minha insatisfação. Eu fico assim, um pouco chateado, revoltado, é quando eu vejo, percebo que tinha todas as condições pra salvar uma vida e não foi salva. Aí, eu vejo uma palavra que passa na minha mente: negligência. (Hibisco)

A fala acima remete ao conceito de atividade impedida, através do qual Clot (2001) integrou a ideia de conflito associado ao sofrimento do trabalhador, ao incorporar o impossível na atividade. Na opinião de Gaulejac (2007, p. 117), o sofrimento no trabalho deriva também do que se solicita ao trabalhador: “autonomia em um mundo hipercoercitivo” e criatividade “em um mundo hiper-racional”.

A minha dificuldade é quando não depende de mim, depende dos outros. O que depende de mim, eu faço. O que eu não dou conta, corro atrás. Se eu tenho dúvida, pergunto, não tem dificuldade. Mas o que não depende de mim, isso me consome, porque problema é pra ser resolvido, problema todo setor tem (…), mas o que não depende de mim, depende do médico, depende de um remédio, depende de um motorista de uma ambulância. Mesmo assim, fico cutucando a pessoa para ver se resolve. Porque quem está doente tem pressa. (…) às vezes, falta cursímetro; às vezes, falta um bom estetoscópio, mas isso também a gente pode ter. Eu comprei esses aparelhos de glicemia e, quando não tem, eu uso o meu. Os meus colegas também usam. (Alfazema)

Essa fala dá voz a vários dos técnicos entrevistados, que, recorrentemente, se encontram imersos em um emaranhado de tensões que caracterizam suas relações com os pares, os gestores e entre esses e os usuários. Como sinaliza Bendassoli (2011, p. 63),

(…) mais do que uma categoria psicológica, o sofrimento parece ter se transformado em uma nova chave para se discutir o trabalho, seu significado, seu valor e sua função na compreensão da subjetividade, como também do modo como se estruturam os laços sociais e se vive em sociedade.

Portanto, o cotidiano do trabalho torna-se tão dependente de uma complexa rede de atividades obediente a organizações específicas, com seus tempos e normas, que não apenas tolhem o fazer do trabalhador como dificultam esse fazer. Hibisco ilustra como as condições de trabalho parecem afetar de forma desigual as variadas profissões da saúde:

Uma categoria tem ar condicionado, tem geladeira, tem frigobar, tem isso, tem aquilo, tem a coisa. Mas se for em outra categoria, ali não tem nada, só tem o colchão no chão, entendeu?

As divisões sociais e técnicas do trabalho na assistência aparecem como motivos de insatisfação profissional, sugerindo que o que não é atribuição explícita de determinada profissão, acaba por sobrecarregar o trabalhador:

Se a minha bomba de medicação estiver apitando, a enfermeira está lá, sentada (…) porque ela acha que é função do técnico. Mas, às vezes, não vê que a gente está ocupada. Às vezes, a gente tem muito questionamento em relação a isso. (…) um enfermeiro achar que eles não podem fazer uma função. Eu acho que uma bomba de medicação ou desmonitorizar o paciente, para mandar ele para o banheiro, é a função de qualquer um, tanto de um técnico, de um médico, qualquer pessoa da parte da assistência, entendeu? (Begônia)

Para quem trabalha na rede hospitalar mesmo, é exaustivo (…). Muito diferente do papel do enfermeiro. (…), mas é uma atividade muito diferenciada. Dificilmente, você vai encontrar os enfermeiros botando, tirando, limpando o paciente, dando banho. (…) auxilia aqui, segura aqui, mas a mão na massa mesmo… É uma ralação, trabalhar como técnico de enfermagem. (…) depois de 12 horas de plantão, você está um caco. (Margarida)

A escala de trabalho também é motivo de insatisfação, ora pelo setor de atuação não estar condizente com o perfil do profissional escalado, ora pelo desequilíbrio entre quantidade de pacientes e quantidade de profissionais.

Às vezes, há setores com poucos pacientes e muita quantidade de profissionais, e outros setores que necessitam de mais profissionais, por ter o maior número de pacientes de demanda de trabalho, e tem poucos funcionários. Então, assim, a gestão de pessoas, da escala de trabalho é insatisfatória. (Jacinto)

Cabe observar que parte das percepções dos trabalhadores se refere à própria natureza do trabalho em saúde, onde convivem dois polos distintos do trabalho: um que Schwartz (2001) denomina de trabalho intenso, que constituiria o polo positivo, do trabalho interessante, formador, desenvolvedor da capacidade de gerir a situação de trabalho; e o polo da intensificação do trabalho, que seria o negativo, associado ao aumento do ritmo, aos espaços e materiais inadequados, à dificuldade crescente de gerir a relação vida no trabalho/vida familiar e as temporalidades distintas das normas heterodeterminadas e da vida. O polo da intensificação do trabalho vem se tornando a configuração típica da organização e gestão contemporânea do trabalho, que exige do trabalhador polivalência e ênfase na demanda incessante de novas e múltiplas competências. Na área da saúde, essa configuração acaba por se ajustar bem à ideia de um trabalhador que deve responder à imprevisibilidade.

A polivalência, segundo Tartuce (2002, p. 30), é “entendida como um conjunto de capacidades que possam enfrentar a complexidade e a imprevisibilidade do novo modo de produzir”. Chinelli (2008) chama a atenção para o fato de que a ênfase dada à noção de polivalência, pelo discurso empresarial, tem um conteúdo político-ideológico claro, uma vez que tenta convencer os trabalhadores de que, em tempos de flexibilidade, o adequado desempenho das tarefas ligadas à produção requer um conjunto mais amplo e complexo de conhecimentos e habilidades. Neste contexto, Íris explicita um sentimento de injustiça pelo fato de a “escala rodar”, o que a obriga a passar por diferentes setores, mesmo não tendo perfil para atuar em todos eles, ainda que tenha optado por outro setor de atuação no momento da inserção institucional, após o concurso.

Eu não tenho perfil para pediatria, eu não consigo ver criança chorar, eu fico sem saber o que fazer. Fico em pânico. (…) não tenho perfil. Às vezes, me colocam na escala. Eu faço de tudo para trocar com alguém, para conseguir alguém… porque eu não tenho perfil, não me sinto bem em pediatria.

Não se sentir “bem” também traduz o que Linhart (2014, p. 46) denomina de penosidades derivadas da sensação de injustiça, desordem, impotência no trabalho.

Os indivíduos que conhecemos durante a pesquisa designam como penosidades as dificuldades com as quais não conseguem lidar ou que não conseguem dominar, que surgem como estranhas à sua profissão, que encontram origem em lógicas profissionais diferentes das que os motivam, que se inscrevem em outro registro de valores, que não lhes parecem equitativamente divididas e às quais esses indivíduos não conseguem mais atribuir um sentido. São penosidades porque lhes parecem injustificadas, quer elas firam sua identidade profissional ou sua autoimagem, quer sejam vividas como um não reconhecimento das suas necessidades de fazer um trabalho de qualidade, verdadeiramente profissional.

As penosidades se referem às dificuldades que acarretam mal estar, além de sofrimento físico e psicológico; que colocam os trabalhadores em constante tensão, gerando neles a insegurança de não estarem desempenhando de forma adequada as atividades que lhes foram atribuídas.

Técnico, coitados… é uma ralação incrível, uma exploração absurda. Você trabalha sentando, virando o paciente, segurando. Acho que não existe nenhum técnico de enfermagem que comece sua carreira jovem e termine na maturidade, que não tenha milhões de problemas de coluna ou coisas muito sérias. É sempre muito peso. Normalmente, são mulheres, não se consegue um colega homem. É um trabalho braçal, sim. Segura paciente obeso, coloca o paciente no leito, tira o paciente do leito, troca a fralda. (Margarida)

As penosidades podem ser associadas ao polo negativo do trabalho intensificado, como se pode verificar em algumas falas que associam a sobrecarga à ausência de profissionais por motivo de falta ao trabalho. Em outras, às dificuldades de dar conta das tarefas que não se pode realizar sozinho (Linhart, 2014).

Acho que, quando falta muito funcionário, tem que trabalhar sobrecarregada porque faltou, igual eu estava te falando. Alguns, por problemas de saúde; outros, não sei o que acontece, a gente não sabe… (Lavanda)

Porque, às vezes, dependemos do outro colega. Para cuidar do paciente. Você não pode cuidar dele só. Banho no leito depende de dois. Às vezes, você tem o tempo, mas não tem o colega disponível para te ajudar, que aí, você acaba na mesma. Então, isso me deixa muito insatisfeita porque nós dependemos do colega para ajudar o banho no leito, mudança de decúbito. (Íris)

Trata-se de uma razão gestionária que deixa o trabalhador diante de si mesmo, esfacelando o coletivo. O exercício laboral torna-se cada vez mais individualizado, a memória do trabalho é apagada e as alterações na organização do processo de trabalho desconsideram as trajetórias profissionais e a experiência do e no trabalho (Alves, 2014).

Esses colegas supercompetentes que estão lá há 15, sei lá, 20 anos numa UTI. Foi chefe, conhece aquilo como a palma da mão. Aí, de repente, é retirado disso Pessoas que se dedicavam, davam a vida. Aí, de repente, você tira essa pessoa. Você não acha que essa pessoa adoece? Adoece. (Anis)

Quando os coletivos de trabalho com os quais os profissionais poderiam vir a compartilhar suas dificuldades se esgarçam, as penosidades passam a ser vivenciadas, sobretudo, como algo individual, provocando sentimentos que podem “afogar” os trabalhadores e, inclusive, levá-los ao suicídio (Linhart, 2011, p. 151). Este fenômeno vem se tornando agudo nos últimos anos. Um dos entrevistados tem visto, ultimamente, muitos colegas apresentarem quadros depressivos que requerem afastamento. Lamentou ter sido surpreendido pelo suicídio de uma pessoa com quem já havia trabalhado, e sobre a qual “jamais pensaria” que poderia tirar a própria vida (Girassol). Ainda assim, os trabalhadores entrevistados conseguem perseguir objetivos profissionais, empenhando-se para alcançá-los, como aponta Petúnia:

A gente sabe que está difícil, tem muito desgaste e dor nas costas; tem funcionário com lesão de ombro, lesão de coluna, de joelho, de quadril pela sobrecarga de trabalho, mas eu acho que é assim que funciona uma emergência.

 

5. APENAS INSATISFAÇÃO OU MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES DE IMPLICAÇÃO COM O TRABALHO?

Gostar do trabalho, identificar-se com ele e/ou fazê-lo de outra forma pode proteger o trabalhador e contribuir no sentido de minimizar sua precarização subjetiva. O fazer no trabalho remete a alguma das opções e dos dramas interiores de cada um, pois os debates dos “indivíduos com eles mesmos são tecidos nos atos cotidianos de trabalho” (Schwartz, 2000, p. 39). Isto significa que, quando o trabalhador consegue experimentar um equilíbrio entre os constrangimentos do trabalho e o sentido que dá ao trabalho, à sua história de vida e aos seus valores, encontra o sentimento de satisfação, mesmo que de forma provisória. Como colocam Muniz, Vidal e Vieira (2004, p. 234), “o sujeito se implica na atividade com sua história singular, com seus valores e com uma capacidade instituinte que lhe permite transformar-se à medida que renormaliza as normas antecedentes”.

O trabalho é oportunidade de transformar, de instituir possibilidades, de escolher formas de intervir no mundo, perseguir seu questionamento interior e traçar sua história. Trabalhar é sempre lugar de uma dramática, uma atividade que põe à prova e/ou dilata o espaço das tensas negociações dos usos de si.

Dizer que o trabalho é uso de si significa dizer que é um lugar de um problema, de uma tensão problemática, um espaço de possíveis sempre negociáveis: não há execução, mas uso, e isso supõe um espectro contínuo de modalidades. É o indivíduo em seu ser que é convocado, ainda que não aparentemente; a tarefa cotidiana requer recursos e capacidades infinitamente mais vastas do que aquelas que são explicitadas (Schwartz, 1987, p. 194).

Os resultados de ambas as pesquisas evidenciam que, apesar da sobrecarga e das difíceis condições de trabalho vivenciadas pelos trabalhadores, há a presença de sentimentos de satisfação associados à afinidade, à resolubilidade da assistência e à aprendizagem, corroborando o estudo de Sartoreto e Kurcgant (2017).

O gosto pelo que fazem e a percepção do valor social do seu trabalho, além do reconhecimento dos usuários, foram mencionados com frequência pelos entrevistados como motivos de satisfação. E esses motivos estão associados aos conceitos de identidade e reconhecimento, que podem ser compreendidos de forma mais adequada quando interligados (Dubar, 2005; Dejours, 2006).

Já houve muitas oportunidades, assim, de eu ser abordado na rua, e a pessoa falar assim: “Oi, tudo bem?”. “Tudo bem”. Mas eu não estar conhecendo aquela pessoa. E ela falar assim para mim: “Você não está lembrando?”. “Eu não”. Ela: “Olha, você ajudou o meu pai. Você salvou o meu pai lá no hospital… fez isso, fez aquilo”. Entendeu? Isso é satisfatório, sim. Mostra que a gente… Uma das melhores recompensas é isso: o seu paciente sair daqui bem. Então, nem tudo se ganha, mas muitos a gente consegue ver resultado. Aí, a gente vê que realmente valeu a pena. (Anis)

Eu faço o que gosto. O que não gosto, não faço. Não faço nada por obrigação, não arrumo casa por obrigação, (…) não trabalho por obrigação. Trabalho porque gosto. Tenho prazer em acordar, vir e me arrumar, chegar cedo. Não tenho pressa pra sair, (…) sou abençoada no que faço. Não é pelo salário, porque não preciso. Sou uma empresária, e a gente já está com uma filial em outro estado, na Bahia. Não preciso trabalhar como técnica de enfermagem, mas trabalho porque gosto. Então, não é pelo salário. (Alfazema)

Cabe assinalar que a satisfação no trabalho também aparece relacionada às tentativas elaboradas no sentido de alcançar melhores condições de vida, ampliar a qualificação e o conhecimento, tanto técnico-científico quanto prático-operacional.

[Fizemos] um curso de eletro, [para] fazer o eletrocardiograma do paciente. É também da nossa competência. Está lá no COREN [Conselho Regional de Enfermagem], a gente foi ler. (…), mas, se o enfermeiro está impossibilitado, ocupado, temos autonomia para fazer. (…) em outras situações, por exemplo, aspiração de paciente. (…) ela quer fazer um curso com todo mundo, para todo mundo ficar bem e saber como que é feito o procedimento. (…) avalio que tenho aprendido muito. A cada dia que estou aqui, aprendo bastante. Hoje mesmo, a gente teve uma palestra, na qual aprendi também muita coisa. (Hortênsia)

A valorização da experiência profissional possibilitada especialmente em alguns espaços de atuação é também ressaltada.

Gosto de trabalhar porque é experiência. Você tem diversos casos, diversos tipos, variedades de situações, desde o paciente mais leve até o mais crítico. Eu digo: aqui tem muito mais paciente crítico que uma UTI [unidade de tratamento intensivo]. (…) já na UTI, pelo que eu vejo aqui… eu já fui lá, só de passagem, mas eu já fui lá. Os pacientes de lá, são pacientes que já estão estabilizados. Aqui, não. Aqui, o paciente chega bem crítico e a gente vai tratando até… muitos melhoram e são transferidos, outros vão de alta. (Petúnia)

Alfazema recorre a experiências de trabalho anteriores quando se diz mais satisfeita com o trabalho hoje. “Em relação a outros lugares que eu já trabalhei, bastante satisfeita”. O sentimento de satisfação no trabalho que desempenham é, muitas vezes, afirmado em comparação às trajetórias ocupacionais anteriores, marcadas quase sempre por inserções profissionais erráticas e menos qualificadas. Em boa parte dos casos, tudo sugere que os percursos de trabalho se encontram em um ponto satisfatório de suas vidas, inclusive, em termos salariais.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As percepções dos entrevistados sobre o cotidiano laboral, tanto na atenção primária como nas emergências, apontam para o predomínio de dificuldades, frustrações e sofrimento, o que expressa como os atuais formatos de gestão e de organização do trabalho repercutem no setor público de saúde e, mais especificamente, no trabalho da enfermagem. Estes formatos parecem, de modo geral, afastados dos interesses, necessidades e aspirações dos trabalhadores, o que sugere que também não estariam considerando os interesses, as necessidades, as dificuldades e as aspirações dos usuários.

Quando são consideradas suas trajetórias anteriores, as relações de trabalho em que os técnicos de enfermagem do setor público estão envolvidos são por eles valorizadas de forma positiva, não só porque, mesmo quando terceirizados, as percebem como mais estáveis em relação às anteriores, mas também porque são capazes de permitir a definição e o alcance de objetivos profissionais, não só na saúde como em outras áreas de atuação, sobretudo afins. Por isto mesmo, destacam a importância de obterem uma graduação, o que não necessariamente garante a inserção em postos mais qualificados de trabalho na saúde. Haja vista que é cada vez maior o número de técnicos graduados que não conseguem ocupar postos correspondentes à qualificação obtida, seja porque a oferta de possibilidades de ascensão funcional é reduzida, seja porque pode implicar em menos remuneração, conforme se apontou.

Os trabalhadores entrevistados não se furtaram de apontar a precariedade das condições de trabalho em que atuavam, produtoras de intensificação do trabalho e de desgaste físico e emocional. Não se trata apenas da baixa remuneração, da falta de material, da articulação muitas vezes precária entre os vários setores da unidade de saúde. Trata-se, também, da insegurança gerada pelos constantes deslocamentos das atividades para as quais foram contratados, a fim de atenderem necessidades contingenciais de outros setores, o que exige uma polivalência que implica na aquisição sempre renovada de competências e em lidar com a imprevisibilidade, o que pode gerar mais insegurança e sofrimento.

O que se verifica é que o cotidiano laboral vem sendo cada vez mais produtor da intensificação do trabalho, do estranhamento e do sofrimento que expressam a ideologia e a cultura instável e fragmentária, características do capitalismo hodierno. Mas também é espaço promotor da constituição do homem como sujeito e da construção de novos padrões de sociabilidade. Isto ratifica que o trabalho ocupa lugar central na construção da subjetividade contemporânea, considerando que a ampliação das possibilidades de escolha desse trabalhador nos espaços de trabalho é condição para a busca de uma vida dotada de sentido e autenticidade.

Os resultados deste estudo sugerem, contudo , que essas condições são muito limitadas para os técnicos de enfermagem. Configura-se uma tendência de formação de um conjunto de trabalhadores técnicos superqualificados, que seguem, em grande medida, desempenhando as mesmas atividades, condutas e procedimentos manuais, rotineiros, padronizados, e percebendo os mesmos salários, com pouca liberdade de escolha nas suas trajetórias profissionais. Cabe, entretanto, destacar que, apesar da sobrecarga e das difíceis condições de trabalho, os técnicos convivem com a presença de sentimentos de satisfação associados à afinidade com a produção do cuidado, à resolubilidade da assistência e à aprendizagem.

 

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Manuscrito recebido em: julho/2018

Aceite após peritagem: setembro/2018

 

COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO?

Chinelli, F., Vieira, M., & Scherer, M. D. (2019). Trajetórias e subjetividades no trabalho de técnicos de enfermagem no brasil. Laboreal, 15(1).

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