SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número especial 6A importância da resiliência e de um suporte social efetivo na vivência da gravidez e maternidade precoces índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.spe6 Porto nov. 2018

https://doi.org/10.19131/rpesm.0206 

EDITORIAL CONVIDADO

 

A esperança como foco de enfermagem de saúde mental

 

Ana Querido*

*Enfermeira especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica; Mestre em Cuidados Paliativos; Doutora em Enfermagem; Investigadora Colaboradora no CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, grupo de investigação “NursID: Inovação & Desenvolvimento em Enfermagem”; Colaboradora do ciTechCare; Professora Adjunta na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Leiria, Campus 2, Morro do Lena, Alto do Vieira, apartado 4137, 2411-901 Leiria, Portugal. E-mail: ana.querido@ipleiria.pt

 

Enquanto há vida, há esperança!...

As palavras sábias de Cícero que frequentemente utilizamos e que escutamos na nossa vivência diária são ilustradoras da dimensão universal da esperança. Inerente à vida humana, a esperança, ou a falta dela, aparece associada às várias dimensões da nossa existência na esfera pessoal, profissional, familiar e social, assumindo especial relevância na saúde mental.

A esperança é frequentemente considerada um conceito fronteira, não sendo pertença de uma só disciplina, mas que, nas suas variadas facetas, diferentes abordagens teóricas, diversas estratégias de investigação com diferentes resultados, se revela um fenómeno multifacetado, multidimensional e transversal, com múltiplos significados.

Reconhecendo a transversalidade da esperança à Filosofia, Teologia, Psicologia e Medicina, assumimos o conceito como uma área de estudo de Enfermagem e mais especificamente da Enfermagem de Saúde Mental. As suas referências este âmbito específico remontam a Vaillot no início dos anos setenta do séc. XX, defendendo a promoção da esperança como uma prática específica dos enfermeiros e sustentada posteriormente pelo modelo multidimensional de Dufault e Martocchio (1985), que abriu novas perspetivas na sua compreensão e avaliação, dando possibilidade à exploração de diferentes abordagens de intervenção (Cutcliffe, 2009).

Enquanto foco de atenção da prática de Enfermagem, a esperança é definida como o sentimento de ter possibilidades, confiança nos outros e no futuro, entusiasmo pela vida, expressão de razões para viver e de desejo de viver, paz interior, otimismo; estando associada ao traçar de objetivos e mobilização de energia (International Council of Nurses [ICN], 2015).

A esperança é um processo dinâmico, orientada para o futuro, mas atendendo ao passado e vivida no presente, implicando o estabelecimento e alcance de objetivos que, para a pessoa, sejam significativos.

Ajudar os indivíduos e as suas famílias a encontrar significado no sofrimento e a manter um sentido de construção da esperança é um aspeto comum aos cuidados de Enfermagem e promover a esperança adequada enquanto agente terapêutico deve ser uma preocupação de todos os enfermeiros independentemente da sua especialidade (Jones, 2007).

Não obstante, esperança e desesperança constituem determinantes importantes da saúde mental. Enquanto a desesperança é um diagnóstico de Enfermagem e sintoma-chave da depressão e dos comportamentos suicidários (World Health Organization [WHO], 2010), a maioria das pessoas pode recuperar da doença mental através da promoção da esperança (O’ Sullivan, 2010) enquanto intervenção específica de Enfermagem.

A esperança tem uma influência positiva na saúde mental das pessoas, no aumento do conforto e da qualidade de vida e na redução da depressão e suicídio, da redução da predisposição para a dependência e prevenção da exaustão familiar, com efeito preditivo no bem-estar subjetivo e protetor da saúde mental (Querido & Dixe, 2016). A promoção da esperança realista e a definição de objetivos é recomendada como princípio de boa prática clínica na abordagem das pessoas com distúrbios mentais e considerada uma intervenção efetiva no âmbito do apoio psicossocial nas situações de perturbações psicóticas (WHO, 2010). A sua relevância é também reconhecida no processo de recovery, onde aconselhar sobre esperança é uma intervenção específica de enfermagem que envolve o readquirir força, estabelecer saúde, a condição normal ou modo de vida das pessoas com doença mental, sobretudo em situações de ameaça e incerteza, quando os recursos pessoais estão esgotados (Herrman, Shaxena e Moodie, 2005; ICN, 2015). São ainda conhecidos efeitos positivos na esperança das pessoas com esquizofrenia, depressão e comportamentos da esfera suicidária.

Parece ser consensual que os enfermeiros especialistas em saúde mental e psiquiatria têm um papel fundamental na esperança das pessoas, apoiando o uso de estratégias de manutenção e promoção de esperança e capacitando-as para enfrentarem os desafios complexos inerentes aos problemas de saúde mental (Cutcliffe, 2009; WHO, 2004).

A questão fulcral que muitas vezes se coloca é: como? Daqui surgem três desafios: Como identificar? Como diagnosticar? Como intervir?

A identificação da esperança é o primeiro desafio que se coloca ao enfermeiro. Importa para isso, conhecer os modelos e teorias que a definem em enfermagem em saúde mental. Já abordámos o Modelo de Dufault e Martochio (1985) que concetualizaram a esperança em seis dimensões: afetiva (sentimentos e emoções), cognitiva (objeto desejado e resultado pretendido), comportamental (orientação para a ação e motivação), contextual, afiliativa (interação social e autotranscendência), temporal (tempo passado, presente e futuro) e contextual (circunstâncias e situações de vida). Incluímos ainda a teoria de esperança de Snyder que, em linha com a teoria de Bandura afirmam que a ação do indivíduo é determinante para a concretização dos objetivos em termos da potencialidade da ação e de capacidade para o resultado (por ex: “eu posso e eu irei fazer isto”) com ênfase na criação de caminhos alternativos e estratégias específicas para atingir determinados objetivos (Snyder, 2000). Na posse deste conhecimento, cabe ao enfermeiro escutar o outro identificando focos de desesperança / esperança: “já não vale a pena…” “Deixei de acreditar…”; “tudo está perdido…” “Já não sou mais nada…” ou “vivemos um dia de cada vez…” . “Isto vai lá… só não sei como…”, “a esperança é a última a morrer…” são alguns exemplos de expressões verbais profundamente marcadas pela esperança e que são expressões indicadores de necessidade de esperança. No mesmo sentido, expressões não verbais de suspiros, tristeza, perda de iniciativa, passividade na prestação de cuidados são indicadores da mesma necessidade.

O segundo desafio que se coloca aos enfermeiros é como diagnosticar a esperança. Sendo um foco do foro emocional, subjetivo e altamente individualizado, implica uma avaliação com recurso a instrumentos específicos para tal. Uma das formas de avaliar a esperança é através do recurso à entrevista clínica, semiestruturada, com recurso a questões abertas no sentido de caracterizar a esperança, identificar objetos de esperança, identificar recursos, ameaças.

Questões como “Quando ouve a palavra “esperança”, que imagem ou ideia lhe ocorre?”, “Como descreve a esperança na sua vida?”, “De que forma a situação de doença que vive neste momento, afeta a sua esperança?”, “Se pudesse identificar uma fonte de esperança para si, o que seria?”, “O que o ajuda a manter a esperança, ou o que o faz sentir desesperado?”, “O que espera no futuro?” (Querido, 2013) constituem exemplos de narrativas para avaliar a esperança reconhecidas na literatura como “Hope Communication Tool” (Olsman, Leget & Willems, 2015). A Escala de Esperança de Herth - PT é um instrumento de avaliação validado para a população portuguesa de pessoas com doença crónica adequado para avaliar e quantificar a esperança da pessoa (Querido, 2013) e também o genograma de esperança e ecomapa de esperança constituem importantes instrumentos para avaliação e compreensão dos vínculos de esperança e padrões de interação da família (Charepe, Figueiredo, Vieira & Neto, 2011).

O terceiro e último desafio para o enfermeiro de saúde mental é a intervenção na promoção da esperança. Manter a esperança em situações de adversidade e na presença de sofrimento mental, requer uma gestão das condições facilitadoras e inibidoras da esperança, num equilíbrio que pode ser muito difícil conseguir sem a ajuda de profissionais competentes.

Na ótica de Cutcliffe (2006), os enfermeiros inspiram e promovem esperança cuidando a pessoa de modo holístico, tendo em conta o seu bem-estar, num contexto de aliança terapêutica de parceria, sustentada no reconhecimento da pessoa cuidada e afirmação do seu valor. Assim, os enfermeiros de saúde mental podem desempenhar um papel de charneira na promoção da esperança junto dos seus clientes no âmbito da relação terapêutica que se pretende promotora de esperança.

Uma relação terapêutica promotora de esperança pressupõe que o enfermeiro faça uso terapêutico de si próprio no sentido de se utilizar como instrumento de intervenção no desocultar da esperança do outro e poder intervir na sua promoção. Neste sentido a autoanálise e permite a autoconsciencialização dos próprios valores, sentimentos e perceções sobre a esperança do enfermeiro de modo a que estes não interfiram na relação.

A promoção da esperança ocorre por isso no âmbito da relação nas diferentes etapas da relação definidas por Peplau. Na etapa de orientação no desempenho do papel de pessoa estranha a esperança deve ser utilizada de modo implícito ainda que intencional, em que a primazia deverá ser dada à identificação da esperança na narrativa do cliente; A etapa de identificação e exploração da relação é propícia à identificação de atributos de esperança e objetivos realistas, incorporada na negociação do plano terapêutico. A esperança como fator de resiliência pode ser explorada pelo enfermeiro utilizando técnicas de comunicação terapêutica centradas na narrativa de esperança, com expressões verbais que estimulam a potencialidade do cliente, no desempenho o papel de conselheiro e de pessoa de recurso. A promoção da esperança faz-se com as intervenções de identificar e apoiar as potencialidades e as forças; Ensino de estratégias de reenquadramento cognitivo, reforçar a autoeficácia e as capacidades do próprio cliente. A utilização de atividades terapêuticas promotoras de esperança pode incluir a identificação de símbolos de esperança, elaboração de diários e kits de esperança, planificação de objetivos e vias de os atingir. Na etapa de resolução a promoção da esperança passa pela utilização de cartas terapêuticas de alta.

A promoção da esperança enquanto foco de enfermagem é imperativa na prática do enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental, no sentido de assistir e apoiar os clientes no uso de estratégias de esperança na capacitação para a gestão da complexidade dos problemas mentais. Não obstante este reconhecimento do papel do enfermeiro especialista em saúde mental na capacitação para a esperança, a forma como ela se desenvolve nos contextos da prática especializada carece de evidência e visibilidade.

Acreditamos que um adequado treino e desenvolvimento de competências na área da promoção da esperança poderá impulsionar a transferência do conhecimento para os contextos de intervenção dos enfermeiros no sentido de contribuírem para a otimização da saúde mental das pessoas. 

 

Referências Bibliográficas

Charepe, Z. B., Figueiredo, M., Vieira, M., & Neto, L. (2011). (Re)discovering hope in families of children with chronic disease through genogram and ecomap [Portuguese]. Texto & Contexto Enfermagem, 20(2), 349-358. doi: 10.1590/S0104-07072011000200018.

Cutcliffe, J. R. (2006). The principles and processes of inspiring hope in bereavement counselling: A modified grounded theory study - Part one. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 13(5), 598.603. doi: 10.1111/j.1365-2850.2006.01019.x.         [ Links ]

Cutcliffe, J. (2009). Hope: The eternal paradigm for psychiatric/mental health nursing. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 2009(16), 843-847. doi: 10.1111/j.1365-2850.2009.01490.x.         [ Links ]

Dufault, K., & Martocchio, B. (1985). Hope: Its spheres and dimensions. Nursing Clinics of North America, 20(2), 379-391.         [ Links ]

Herrman, H., Shaxena, S., & Moodie, R. (2005). Promoting mental health: Concepts, emerging evidence, practice. A report of the World Health Organization, Department of Mental Health and Substance Abuse in collaboration with the Victorian Health Promotion Foundation and The University of Melbourne. Genebra: WHO.         [ Links ]

International Council of Nurses. (2015). CIPE® Versão 2015 – Classificação Internacional Para a Prática de Enfermagem. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros.         [ Links ]

Jones, A. (2007). Relevant hope to promote therapeutic change. Mental Health Nursing, 27(3), 14-15.         [ Links ]

Olsman, E., Leget, C., & Willems, D. (2015). Palliative care professionals’ evaluations of the feasibility of a hope communication tool: A pilot study. Progress in Palliative Care, 23(6), 321-326. doi: 10.1179/1743291X15Y.0000000003.

Querido, A. (2013). A promoção da esperança em fim de vida: avaliação da efetividade de um programa de intervenção em pessoas com doença crónica avançada e progressiva (Tese de Doutoramento). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa.

Querido, A., & Dixe, M. A. (2016). A esperança na saúde mental: Uma revisão integrativa da literatura. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental (3), 95-101. doi: 10.19131/rpesm.0124.         [ Links ]

Snyder, C. R. (ed.) (2000). Handbook of hope: Theory, measures, and applications. San Diego, CA, US: Academic Press.

World Health Organization. (2004). Factsheet ‘nursing matters: Developing nursing resources for mental health’. Genebra: WHO.

World Health Organization. (2010). mhGAP intervention guide for mental, neurological and substance use disorders in non-specialized health settings, version 1.0. Genebra: WHO.         [ Links ]

 

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons