SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número24A poética da matéria natural que se transmuta em organicidade: o olhar ecológico da artista Semea KemilO Uncanny na obra de Michaël Borremans índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.24 Lisboa dez. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

'Entre Solaris e Nostalgias': fotografia e pintura nas obras de Jociele Lampert

'Between Solaris and Nostalgias': photography and painting in the works of Jociele Lampert

 

Andréa Brächer*

*Brasil, artista visual e professora.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248 , Porto Alegre — CEP 90020-180, Rio Grande do Sul, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo apresenta a análise de algumas obras da exposição individual "Solaris", da artista visual e pesquisadora brasileira Jociele Lampert, através de autores que dialogam com o filme, fotografia e outras técnicas artísticas. Utilizaram-se entrevista com a artista (2018) e o site pessoal da mesma (2017), onde encontramos seus trabalhos recentes. Sua obra mostra-se potente, estabelecendo reflexões sobre a materialidade e temporalidade no processo artístico.

Palavras chave: Jociele Lampert / Andrei Tarkovski / Solaris.

 

ABSTRACT:

The present article analyses some works of the exhibition "Solaris" by the brazilian researcher and visual artist Jociele Lampert. Authors who dialogue with the film, photography and other techniques as well as an interview with the artist (2018) and her personal website (2017) where her recent work can be seen were used. Her work is potent establishing reflections over materiality and temporality in the artistic process.

Keywords: Jociele Lampert / Andrei Tarkovski / Solaris.

 

Introdução

Este artigo tem como foco a artista visual brasileira Jociele Lampert (Santa Maria/RS, 1977). Atualmente docente na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/Brasil) — e no ensino desde 2003 -, onde leciona e pesquisa o cruzamento da prática, pesquisa e ensino artísticos. E é a pintura que abre portas e janelas para sua poética.

Jociele Lampert possui graduação em Desenho e Plástica — Bacharelado em Pintura, pela Universidade Federal de Santa Maria (2002), graduação em Desenho e Plástica — Licenciatura pela mesma universidade (2003). Fez seu mestrado em Educação também na Universidade Federal de Santa Maria (2005). Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (2009). Sua pesquisa como professora visitante no Teachers College na Columbia University na cidade de Nova Iorque (como Bolsista Fulbright, 2013), permitiu o estudo intitulado: Artist´s Diary and Professor´s Diary: roamings about Painting Education. Destaca-se em sua carreira acadêmica a criação e coordenação do Grupo de Estudos Estúdio de Pintura Apotheke (UDESC).

Escolhemos trabalhos recentes da artista para analisar, que fazem parte da exposição individual "Solaris" acontecida em 2017 na Galeria Municipal de Arte Pedro Paulo Vecchietti, na cidade Florianópolis (Santa Catarina/Brasil) e de seu portefólio de fotografias (Lampert, 2017) — dentre as quais a cianotipia Rublev. Os trabalhos incluem pinturas, desenhos, monotipias, serigrafias e cianotipias, baseadas em imagens dos filmes do cineasta Andrei Tarkovski.

Será utilizado Pastoreau (2016) para aprofundarmos a história e significado da cor azul, Campany (2008) para a discussão da aproximação da fotografia e cinema. Fazse necessário citar os filmes de Andrei Tarkovski para compreender as relações entre esta cinematografia e o trabalho da artista.

 

1. Arte entre meios

A exposição individual "Solaris" (Lampert, 2017), como já foi escrito, inclui pinturas, desenhos, monotipias, serigrafias, baseadas em imagens dos filmes do cineasta Andrei Tarkovski. Identificados com clareza frames ou fotogramas de diversos filmes do cineasta: Andrey Rublev (1966), Stalker (1979), Solaris (1972) e Nostalghia (1983).

A artista justifica arelação entre os filmes esuas obras na sua última exposição:

Todos temos Solaris e Nostalgias, é para onde retornamos ou de onde nunca saímos. Quando assistimos a um filme, e algo nos apreende, exercitamos nosso modo de olhar, e quando criamos algo que é produzido fruto dessa experiência, adensamos nossa percepção de si e do Outro, é por isto que se chama Arte e Arte Educação, por que nos educamos com as imagens, que nos atravessam e cruzam nossa experiência (Lampert, 2017).

A artista escolhe as imagens enquanto assiste aos filmes em DVD, ou os "instantes", como os chama. Estes são determinados levando em consideração a "carga pictórica" do " instante" e também, preferencialmente, se este inclui ou não a paisagem — tema caro à ela (Lampert, comunicação pessoal, janeiro 2018). Portanto, primeiro, há a identificação do frame do filme, de uma sequência longa que conta uma história. O fragmento da narrativa filme é ressignificado através de uma outra linguagem: seja a pintura, o desenho, a gravura ou fotografia, e sua obra se constituiu entre diferentes meios.

No caso da pintura, inserem-se, inclusive, as legendas da tradução, exemplificada pela Figura 1.

 

 

Seus trabalhos também contemplam a repetição de um mesmo frame, em diversas técnicas, como podemos verificar através das Figura 2 e Figura 3.

 

 

 

 

Na Figura 1 e Figura 2 identificamos uma paleta de cores menos saturada, e que, segundo a artista, está trabalhando na aplicação dos exercícios de cor de Joseph Albers. Em particular na Figura 1, a cor do filme é preto-e-branco, e sua paleta de cores é diversa. O óleo que usa na pintura, dá vida a várias camadas (cinco) (Lampert, comunicação pessoal, janeiro 2018). Já em suas monotipias — Figura 3 -, evidencia-se a cor mais vibrante e saturada, e há indícios de interferências na imagem.

 

2. Entre cinema e fotografia: Rublev

A fotografia Rublev, da série Entre Solaris e NostalgiasFigura 4, exemplifica sua destreza em um dos processos fotográficos históricos: a cianotipia.

 

 

Este trabalho de Jociele Lampert (Figura 4) é desenvolvido numa técnica fotográfica histórica, do século XIX, que tem como características ser monocromática e azul.

No trabalho novamente vislumbra-se a relação entre o filme e a fotografia. Meios distintos, sabemos que ambos "[…] as machines involving speed, light, exposure, projection, duration and motion" (Campany, 2008:12). As longas tomadas fílmicas, típicas do cineasta, evoca as longas sessões de pintura, ou, mesmo, o longo processamento necessário para a cianotipia. É possível pensarmos nas temporalidades internas dos personagens e também nas temporalidades de cada meio artístico: filme, fotografia e pintura.

Slowness enables film to approach the traditional sense of 'presence' typical of art's materially fixed mediasuch as painting, sculpture and photography, all ofwhich have valued the depiction rather re-creation movement (Campany, 2008:38-9).

Na obra, um frame do filme, em positivo, opera entre as duas linguagens: cinema e fotografia. Sabemos que o "[…] Film is a virtual, immaterial projection, while the photograph is a fixed image and a fixed object" (Campany, 2008:11). Assim, nos deparamos com a questão da materialidade e da imaterialidade das imagens e seu processo criativo.

Rublev, nome do trabalho em cianotipia, é o personagem do filme (1966) de mesmo nome de Andrei Tarkovski, e é a evocação do pintor russo Andrey Rublev (entre 1360 e 1370-1430), reconhecido por muitos como o maior pintor de ícones russo.

O ícone simbolicamente deveria representar uma realidade espiritual, o que quer dizer que o ícone de um santo deveria ser entendido como o retrato espiritual do santo, não um retrato físico (Russian Art Gallery, 2017).

Novamente a questão da imaterialidade e materialidade retorna, agora através do viés das práticas e tradições artísticas que Rublev inspira, ligadas às crenças religiosa e espiritual. À simplicidade do personagem, acrecenta-se questionamentos existenciais e religiosos.

Na cena escolhida, o personagem representado pela cianotipia, está tateando no meio de uma floresta, supreendido pela violência e escuridão que se seguem ao ataque brutal que o tornou cego. Seu rosto apresenta sangue, assim como suas mãos.

Como já visto em outas obras de Lampert, o frame é rebatido lateralmente, Figura 5.

 

 

Segundo a artista a cena do filme foi escolhida pela "carga pictórica", e declara: "escolho não só pela esteticidade das imagens, mas pela possibilidade de fazer estudos de cor com ela (tenho planos de pintar à tinta a mesma cena)" (Lampert, comunicação pessoal, janeiro 2018).

Na cianotipia é possível usar os pincéis de pintura para emulsionar o papel. E o resultado é obtido com a retirada da emulsão sem sensibilização, através da água. O processo inverso da pintura.

Durante o período denominado pelos historiados de "Pictorialismo", o cianótipo aparece nos trabalhos de Paul Burty Haviland e F. Holland Day (Prodger, 2006; Rexer, 2002:106) e é, ao longo do século XX, que irá seduzir e tornar-se um processo usado entre artistas, especialmente a partir da década de 60, como em Robert Heinecken, Robert Fichter e Robert Rauschenberg (Rexer, 2002:107). O cianótipo surge de modo tímido, porém, de forma ininterrupta na contemporaneamente no Brasil. Dentre os precursores de uso da técnica temos Luiz Guimarães Monforte, Kenji Ota e Rosângela Rennó.

O azul, uma cor presente na natureza, aparece no tingimento de tecidos, nas pinturas corporais, em ornamentos e na arte. "Para os egípcios, como para outros povos do Próximo e Médio Oriente, o azul é uma cor benéfica, que afasta as forças do mal. Está associado aos rituais funerários e à morte, para proteger o defunto no Além" e […] "Mais ainda que os Gregos, os Romanos vêem no azul uma cor sombria, oriental ou bárbara e utilizam-no com parcimônia" (Pastoreau, 2016:26). "Apenas o mosaico constitui excepção: vindo do Oriente, traz consigo uma paleta mais clara, mais verde, mais azulada, que encontraremos nas artes bizantina e paleocristã. O azul é aí a cor não só da água, mas às vezes também do fundo e da luz" (Pastoreau, 2016:27). Nesta cianotipia da artista, a cor azul é forte e uniforme, destaca-se, e pensamos que remete mais a barbárie do que à proteção.

Desse encontro entre filme e fotografia, entre Jociele e Tarkovski resulta em uma proliferação de imagens, conforme Rita Bredariolli (2017), escreve:

Apreendendo, aprendendo e tornando presente. Tornando real, pela experiência da materialidade, pelo entendimento da imagem como corpo, a potência delicada, frágil, rarefeita, efêmera, volátil, imprecisa, intangível, da matéria da qual são feitos o tempo, a memória, o sonho, as imagens, a vida.

De tais "materiais" são feitos as obras de Jociele Lampert — "instantes" evocados de uma linguagem-movimento, que rende-se a imagem-estática.

 

Conclusão

Procurou-se no artigo analisar os trabalhos da exposição individual "Solaris", da artista visual e pesquisadora brasileira Jociele Lampert, através de autores que dialogam com filme, fotografia e outras técnicas artísticas. Utilizou-se uma pequena entrevista com a artista (janeiro de 2018) e o site pessoal da mesma (2017), onde encontramos seus trabalhos recentes.

Verificou-se que o trabalho ainda está em execução, não sendo uma série fechada.

As pinturas, desenhos, monotipias, serigrafias e cianotipias são baseadas em imagens dos filmes do cineasta Andrei Tarkovski, e, nesta série os frames dos filmes utilizados em seus trabalhos são provenientes de Andrey Rublev (1966), Stalker (1979), Solaris (1972) e Nostalghia (1983).

Jociele Lampert interessa-se pelo o aspecto pictórico dos frames ou "instantes" capturados, para depois desenvolver os diversos trabalhos e em técnicas diversificadas. Tal diversidade atesta acapacidade produtiva, elaborativa da artista.

No seu universo, ao contrário dos filmes, aplicam-se cores suaves ou cores saturadas. Busca através de Albers, fazer deste projeto, exercícios de cor e de estudo. Persegue a materialidade, em oposição a cor luz ou projeção dos filmes; tal materialidade está presente tanto nas pinturas, desenhos, monotipias, serigrafias e cianotipias.

Seu trabalho abre portas para pensar também a temporalidade, uma vez que destancam-se nos filmes uma duração incomum nas cenas, e exteriorizações de estados interiores através de tomadas que lembram quadros. Estados psicológicos, espiritualidade e imaterialidade, também são possíveis vieses para pensar este trabalho que se revela múltiplo e ao mesmo tempo consistente. Consistente tanto em sua prática acadêmica, como artística.

 

Referências

Bredariolli, Rita Luciana Berti (2017). Exposição Solaris. [Consult. 20171112] Disponível em URL: https://www.jocielelampert.com.br/exposicao-solaris.         [ Links ]

Campany, David (2008) Photography and Cinema. London: Reaktion Books Ltd. ISBN: 978 1 86189 351 2        [ Links ]

Lampert, Jociele (2017). Exposição Solaris. [Consult. 20171130] Disponível em URL: https://www.jocielelampert.com.br/        [ Links ]

Pastoreau, Michel (2016). Azul: história de uma cor. Lisboa: Orfeu Negro. ISBN: 978-989-8327-86-4        [ Links ]

Prodger, Philip (2006). Impressionist Camera: Pictorial Photography in Europe, 1888-1918. London: Merrell. ISBN: 978-1858943312        [ Links ]

Rexer, Lyle (2002). Photography's Antiquarian Avant-Garde: the new wave in old processes. Nova Iorque: Harry N. Abrams. ISBN: 0-8109-0402-0        [ Links ]

Rublev, Andrey (2017) Russian Art Gallery. [Consult. 20171130] Disponível em URL: http://www.russianartgallery.org/oldicons/inside2.htm/        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: andrea.bracher@ufrgs.br (Andréa Brächer)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons