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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.34 Lisboa jun. 2017

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2017.a034.art01 

ARTIGO ORIGINAL

 

O espaço e o tempo do graffiti e da street art

The space and time of graffiti and street art

Ricardo CamposI

[I ]CICS.NOVA.FCSH/UNL, Portugal. e-mail: rmocampos@yahoo.com.br.

 

 


SUMÁRIO

Neste artigo pretendo explorar as diferentes articulações entre o espaço e o tempo na prática do graffiti e da street art. Para tal partimos da ideia de distintas economias de espaço-tempo, analisando as práticas artísticas enquanto actos performativos que acontecem num quadro espácio-temporal determinado. Entendemos que a performance levada a cabo está intimamente dependente de uma série de condicionamentos e oportunidades de natureza espácio-temporal. Como estas oportunidades e constrangimentos contribuem para a performance levada a cabo e para o tipo de obra realizada é o que será discutido neste texto.

Palavras-chave: Tempo, Espaço, Graffiti, Street art, Arte Urbana.


ABSTRACT

With this article we intend to explore the different articulations between time and space in the practice of graffiti and street art. We look at these practices as performative acts, that bring together several actors and dimensions. The kind of performance carried-out is closely dependent on the spatio-temporal constraints and/or opportunities found. How and to what extent do these opportunities and constraints contribute to the artistic gesture and to the final artwork is something we intend to discuss.

Keywords: Time, Space, Graffiti, Street Art.


 

 

Porquê o espaço e o tempo?

Tenho, desde há largos anos, trabalhado sobre o graffiti e a arte urbana. Esta foi a minha temática de eleição durante um período alargado, em que estive dedicado ao meu doutoramento. Defendida a tese, posteriormente publicada em livro (Campos, 2010), era minha expectativa deixar este tema e dedicar-me a outros projectos e objectos de pesquisa. Só em parte esta pretensão foi realizada. Na verdade, tem sido difícil escapar a esta temática. Por um lado, torna-se natural que o investimento realizado ao longo de vários anos de pesquisa produza reverberações várias que se traduzem em diferentes vínculos a pessoas e projectos. Tive a grata oportunidade de conhecer vários pesquisadores e projectos que me fizeram repensar muitas das questões que me foram assaltando nos últimos anos. E estou imensamente grato às diferentes pessoas que, ao longo deste tempo, têm enriquecido o meu olhar sobre estes fenómenos[2]. Neste contexto tornava-se, de facto, difícil separar-me destas matérias.

Por outro lado, não há como escapar a outra questão. Esta tornou-se, nos últimos anos, uma matéria largamente debatida, um tema que, inesperadamente, ficou “na moda”. O tema do graffiti e da pintura na rua era algo obscuro e excêntrico há dez anos atrás, quando decidi estudar este fenómeno cultural. Raros eram aqueles que sabiam o que era um tag, um writer ou um throw up. Estes eram vocábulos utilizados pelos membros dessa cultura urbana e por aqueles que lhes eram mais próximos. Na academia, em Portugal, esta era uma questão praticamente ignorada, nas ciências sociais, na arquitectura e urbanismo, nas artes, etc[3]. De repente tudo mudou. E as alterações foram profundas. E verificamos que os media hoje dedicam páginas e páginas aos chamados “artistas urbanos” oustreet artists, que instituições de prestígio convidamgraffiti-writers[4] para expor, ou que marchands e colecionadores olham embevecidos para obras provenientes deste meio. Em muitos sentidos assistimos a uma mudança radical, que significa uma profunda reconversão do olhar sobre certas práticas expressivas e obras estéticas. Mas esta é matéria para outros debates.

Apesar de ter vindo a reflectir sobre estes fenómenos ao longo dos anos, nunca escrevi sobre algo que me parece central para descrever a singularidade das expressões visuais de rua: a articulação entre “espaço” e “tempo”. Espaço e tempo são categorias que estão presentes no nosso quotidiano, atravessam todas as actividades que fazemos (Carmo, 2006). No que à pintura de rua diz respeito, a importância da categoria “espaço” é mais evidente e imediata. Aliás, muitos daqueles que têm escrito sobre o graffiti ou a arte urbana, destacam a importância do território e do espaço[5] (Ley e Cybriwsky, 2002; Chmielewska, 2007; Ferrell e Weide, 2010; Brighenti, 2010, 2014). Em certo sentido todas as nossas acções são territorializadas. Estas ocorrem num determinado território, público ou privado que, de alguma forma, está preparado para as actividades que executamos. Cozinhamos numa cozinha com equipamento especializado, dormimos num quarto apetrechado com uma cama, cultivamos num terreno preparado para o efeito, passeamos no jardim, aprendemos na escola, trabalhamos no escritório, etc. Os espaços habitados e construídos pelo homem são altamente funcionais. Porém, não podemos ignorar que ao apropriarmo-nos do espaço interferimos no território e na sua materialidade. Nós construímos o espaço de diferentes formas. Quer pela sua ocupação, no desenvolvimento de certas actividades, quer pela sua transformação, quando acrescentamos ou subtraímos qualquer coisa ao território.

A questão do tempo é muito menos evidente e levanta uma série de outros problemas. No espaço, ao executarmos certos gestos estamos também a jogar com o tempo. O tempo que precisamos para atravessar os lugares, para executarmos certos movimentos, etc. Esta é uma dimensão que incorporamos (literalmente) de forma natural, porque o corpo lida com o tempo e gere-o. O tempo de duração dos processos, como seja dar um passo, levantar um braço, baixarmo-nos ou levantarmo-nos. Mas na cidade também poderíamos evocar o tempo que leva a atravessar a cidade de automóvel ou de metro, o tempo de espera pelo transporte público, etc. Porém, quando falamos de tempo também invocamos diferentes dimensões, relacionando-o com o tempo longo da história, com uma concepção mais abstracta de linha do tempo que articula passado-presente-futuro.

Ao longo das minhas conversas com diversos graffiti- writers a questão espácio-temporal esteve sempre presente, de forma mais explicita ou latente. O espaço porque o graffiti é uma actividade altamente territorializada e inscrita na matéria. O tempo porque havia modos complexos de o gerir que estavam relacionados com as temporalidades quotidianas e a organização do dia, mas também com a duração dos processos. Relativamente a estas duas categorias, poderemos detectar diversos patamares analíticos. Por um lado, temos um espaço macroscópico, quando falamos da cidade e da metrópole, da forma como os writers se movem nesta e se apropriam de territórios específicos. Por outro lado, temos o espaço microscópico do lugar, do palco da performance individual e colectiva dos writers, seja um beco, um yard ou um viaduto. No que ao tempo diz respeito o mesmo acontece. Podemos falar do tempo associado à execução da pintura, ou um tempo mais alargado, associado ao tempo histórico. Mas nos diálogos estabelecidos, verifiquei que estas categorias também eram evocadas no que às obras [6] diz respeito. Ou seja, existe uma série de representações acerca das diferentes categorias de graffiti que têm por base considerações espácio-temporais. Esta foi uma questão que apesar de latente nunca foi por mim verdadeiramente trabalhada. Considero, então, que esta é uma reflexão em curso, um pequeno contributo para o debate em torno do papel que o espaço e o tempo ocupam na prática do graffiti e da street art.

 

Falemos de conceitos

Para este exercício, julgo necessário distinguir claramente os contextos e, por conseguinte, os conceitos com que lidamos. Esta é uma tarefa absolutamente necessária quando verificamos que frequentemente os termos de grafitti, street art ou arte urbana, são usados de forma indistinta e não raramente enquanto sinónimos. Na verdade, quer do ponto de vista da estética e do conteúdo simbólico das obras, quer do ponto de vista do entorno sociocultural, há diferenças assinaláveis. Esta amalgamação conceptual gera equívocos vários e não permite uma reflexão mais clara e profícua sobre os fenómenos em causa. Esta situação é, em grande medida, alimentada (e desencadeada) pelos media que surgem como o grande motor de divulgação pública destas práticas, trazendo estes termos para a agenda pública, banalizando-os. Este uso indiscriminado dos termos gera confusão na própria academia que tende a incorporar, por vezes de forma algo acrítica, aquilo que os media produzem enquanto “verdade”.

Na realidade, a raiz destas práticas sociais é próxima, o que justifica esta sobreposição. Aparentemente derivam do graffiti enquanto (a) prática individual/social e (b) obra-produto comunicativo/estético. Comecemos, então, pela primeira dimensão. Enquanto prática, podemos certamente afirmar que o graffiti é um fenómeno presente em diferentes contextos históricos e geográficos, sendo que resulta de uma antiga propensão humana para comunicar no espaço público, de modo informal e, tantas vezes, transgressor. Ou seja, enquanto prática comunicacional, o graffiti inscreve-se nos fenómenos de natureza vernacular, não-oficiais, periféricos, inesperados e inapropriados (Figueroa-Saavedra, 2006; Gari, 2995). O acto, por si só, representa uma afronta ou resistência às convenções sociais dominantes, porque é realizado sem autorização, transgredindo uma série de normas. Esta condição é parte inerente da prática social. Passemos à segunda dimensão. Enquanto obra, o graffiti pode assumir múltiplas expressões pois a criatividade humana é inesgotável. De uma forma algo simplificada, podemos distinguir aqueles que são de natureza puramente verbal (frases, palavras, assinaturas, ver figuras 1, 2) dos que são da ordem do pictórico (ver figura 3). Apesar desta variedade, vários autores têm notado que o conteúdo da obra acompanha, geralmente, a condição transgressora e inconformada do acto (Ferrell, 1996; Figueroa-Saavedra, 2006; McDonald, 2001). Ou seja, os conteúdos remetem maioritariamente para expressões contra-hegemónicas e disruptoras. Esta é, de uma forma genérica, a condição do graffiti .

 

 

 

 

Não podemos ignorar que este termo penetrou no discurso público, popularizou-se por referência a uma prática social específica, surgida na segunda metade do século passado e que se tornou a expressão hegemónica. Falamos do graffiti urbano de inspiração norte-americana, também abordado como uma manifestação de natureza subcultural (Campos, 2010; Macdonald, 2001). Esta é uma manifestação que, cumprindo todos os requisitos anteriormente invocados, incorpora uma série de peculiaridades que permitem que falemos de uma cultura urbana, de natureza translocal, com as suas regras, vocábulos, formas de expressão e identidade própria. E o que se encontra no cerne desta cultura? É, ainda, o acto desobediente de marcar o espaço público, de forma não autorizada, mas com uma particularidade. A inscrição resume-se a uma elementar assinatura, o denominado tag, criado com este único intuito. Não nos cabe aqui fazer o histórico deste fenómeno, sendo que este se encontra detalhado numa vasta literatura (Castleman, 1982; Cooper e Chalfant, 1984; Campos, 2010; Macdonald, 2001), mas apenas frisar que a evolução e expansão global desta expressão acarretou uma gradual transposição do verbo para a imagem. Ou seja, se no início estávamos perante uma rudimentar assinatura, muito rapidamente a obra evolui para expressões gráficas mais complexas do ponto de vista técnico e pictórico, com a inclusão de um conjunto de imagens e com uma crescente riqueza cromática. Passámos para a linguagem das formas e para o figurativo, situação ligada à criatividade caligráfica e à elaboração de diferentes estilos de lettering, bem como ao surgimento de figuras (characters) e de cenários variados (Castleman, 1982). Este desenvolvimento tem repercussões evidentes, do ponto de vista prático e simbólico, dando origem a uma disjunção estruturada em torno de uma série de dualidades.

O graffiti de assinatura, permanece largamente associado à ilegalidade, ao vandalismo, ao risco e à disrupção. É uma expressão incompreendida e maldita, sendo perseguida e reprimida. As expressões visualmente mais ricas e complexas deram origem a uma outra vertente de graffiti, internamente definido como “artístico” ou “legal”, facto que evidencia uma natureza distinta, pois visa a criação de um produto estético, não necessariamente de índole ilegal. Esta dualidade é crucial na medida em que estabelece uma distinção simbólica entre dois campos: por um lado uma linguagem maldita e, por outro, uma expressão que tende a ser socialmente valorizada, na medida em que emprega códigos reconhecíveis e aceites. Defendo, então, que se assistiu a um processo de “estetização” do graffiti (Campos, 2013, 2015) que resultou na transformação de uma linguagem rudimentar (e assente em códigos verbais e na caligrafia) e altamente codificada, numa linguagem pictoricamente complexa (e assente em códigos de imagem, figurativos e cromáticos). Esta estetização reflecte-se num certo aligeirar da natureza disruptora do graffiti, na medida em que permite o encontro e o reconhecimento com base na imagem. A estetização significa abdicar de uma linguagem incompreensível e “poluidora”, em benefício de uma linguagem descodificável e socialmente apreciada. “Estetização” significa limar as pontas, aligeirar o discurso, tornar belo o que era feio. Não por acaso o graffiti pictórico, baseado na imagem, é também comummente apelidado de “graffiti artístico” pelos próprios writers (Campos, 2010). O título de “artístico” empregue neste caso significa já uma aproximação à normatividade hegemónica representada pela arte enquanto valor inquestionável.

Disse que estamos perante um campo conceptualmente confuso. Na realidade, este é um universo complexo para onde confluem diferentes práticas e produções que partilham algo em comum, mas que também detêm diferenças assinaláveis. São estas disparidades que teremos de ter em consideração, para não cairmos numa abordagem algo simplista e equívoca que ignora não apenas o património histórico destas expressões, mas também a dimensão simbólica associada a cada uma delas. Apesar da cada vez maior ambivalência e hibridismo que marcam as expressões de rua, estas não surgem no vazio. Para além de terem uma história, elas situam-se num contexto em que dialogam com diversos campos e agentes sociais, construindo-se a partir desta dinâmica. Assim, não apenas as práticas, como as técnicas e linguagens que são usadas nas expressões de rua, ocupam uma posição numa longa linhagem de actos expressivos humanos que remetem para escrita, para a pintura, etc. O graffiti de natureza verbal, baseado em escritos e assinaturas, tem uma história que remonta à antiguidade clássica (Dickinson, 2014; Baird e Taylor, 2016), estando obviamente mais vinculado aos modos de comunicação escritos. O graffiti pictórico estará, por conseguinte, mais associado às artes visuais, nomeadamente à pintura, ilustração e desenho. Na verdade, é impossível pensar nestas formas de comunicação de rua sem as suas correspondências com os outros campos de comunicação e de produção estética que partem de linguagens comuns. Isto por duas razões. Por um lado, porque os próprios actores são socializados num contexto em que incorporam formas de fazer e de comunicar que se tornam instrumentos de actuação no mundo. Por outro lado, porque as diferentes linguagens, formatos estéticos e comunicativos são construções sociais, sendo socialmente representados de determinada forma, condição que também é incorporada pelos actores.

Pegando no caso concreto dos graffiti-writers, estes partilham connosco, enquanto membros de uma mesma comunidade, certas competências expressivas e linguagens. O tag que estes produzem é uma assinatura, composta por um conjunto de letras e tem a uma função de identificação (figura 1). Aquilo que muda, relativamente às formas convencionadas para o seu uso é o suporte, que deixa de ser o papel (folha de papel, cheque bancário, cartão de identificação, etc.) para passar a ser o muro (ou outra superfície urbana). Ou seja, tem por referência uma prática comum e antiga, reinventada. Por seu turno o graffiti imagético (figura 3), busca diversas referências que provêm de uma cultura visual composta por múltiplos circuitos (pintura, desenho, ilustração, banda-desenhada, cinema, televisão, animação, etc.). Aliás, está bem evidente esta presença de uma cultura visual complexa, híbrida e fragmentada, nos tempos iniciais do graffiti nova-iorquino, onde existe uma clara inspiração nos processos da publicidade de massas, nos néons nova-iorquinos, nas figuras da banda desenhada e da animação (Cooper e Chalfant, 1984)[7].

Esta deriva do graffiti para uma crescente estetização e complexificação da linguagem imagética, dá origem, como referi, ao denominado “graffiti artístico”. Isto corresponde a um gradual processo de “artificação” (Shapiro e Heinich, 2012) do graffiti que redunda na criação de outras categorias como sejam as de street art (ou arte urbana). Esta última apresenta-se, cada vez mais, como uma expressão artística legítima, sendo alvo de valorização por parte dos media, do campo artístico, de entidades públicas e privadas. Para Dickens (2010), a street art é uma manifestação que se encontra mais confortavelmente situada entre os domínios da arte e do comércio. A introdução da questão comercial é importante, na medida em que revela um maior compromisso com o valor económico do trabalho (artístico) e da obra (enquanto mercadoria). Daí que os processos de profissionalização de muitos destes artistas seja hoje uma evidência (Campos, no prelo; Sequeira, 2015). Por seu turno Waclawek (2011), enfatizando as questões de natureza expressiva, define o “pós-graffiti” [8], como um universo mais abrangente de técnicas plásticas e dispositivos expressivos (figuras 4, 5). Outra questão que merece ser destacada é a do diálogo que se estabelece com o público destas formas de comunicação. Se por um lado, a prática dos graffiti-writers se destina essencialmente ao reconhecimento interno (entre os pares), verificamos que o público a que se destina a street art é bem mais alargado.

 

 

 

 

Economias de espaço-tempo

Para a minha reflexão tenho em consideração aquilo que defini como “economias de espaço-tempo”. Por economias de espaço-tempo entendo os modos singulares de gestão articulada das dimensões temporais e espaciais, no decurso de uma certa prática ou processo social. O processo de produção fabril de um certo utensílio , envolve uma determinada economia de espaço e tempo, sendo desenvolvida num certo local, com um conjunto de apetrechos e materiais, demorando um determinado tempo a ser processada. O mesmo se aplica ao domínio das artes. Um concerto musical envolve uma economia de espaço e tempo que tem em consideração um local de espectáculo e um processo temporal que envolve o trabalho de bastidores (ensaios, luzes, som, etc.) e o evento (a entrada do público, a entrada do artista e a sua performance em palco e, por último, a saída do artista e do público). Esta é uma gestão que vamos incorporando, tomando como “natural” aos diferentes processos sociais. Assim, temos uma noção daquilo que envolve a execução de um conjunto de actividades em termos de espaço e de tempo[9].

Estas economias de espaço-tempo podem ser analisadas a partir dos actores e suas acções, como ficou evidente pelo que dissemos, mas também podem incidir sobre as coisas, os produtos que resultam de certas acções (uma escultura, uma pintura, um desenho). Relativamente a estes últimos concebemos circuitos e fronteiras espaciais (há produtos mais ou menos móveis) e um determinado tempo de vida (há produtos mais ou menos duráveis). Os processos de produção e uso dos bens partem de concepções sociais acerca das funções destinadas aos produtos que têm em consideração as dimensões do espaço e tempo. Ou seja, certos produtos são produzidos para serem móveis, para se deslocarem no espaço, quando outros destinam-se a uma existência mais fixa. Há produtos relativamente efémeros, quando outros têm um ciclo de vida mais prolongado.

Assim, para o exame que faremos das economias de espaço-tempo, recorreremos a esta dualidade: aos actores e às obras, aplicando esta análise às diferentes expressões de rua descritas anteriormente. Comecemos então, por tratar da questão espaço. O ponto de partida é, desde logo, considerar o espaço como uma dimensão não apenas física, mas também social. Deste modo, o espaço é uma construção social (Lefebvre, 1991). Podemos utilizar a distinção efectuada por Setha Low, que procura articular as dimensões culturais e espaciais do ponto de vista antropológico [10]. Esta autora distingue produção e construção social do espaço (Low, 2014: 15): “(…) the social production of space includes all those factors – social, economic, ideological, and technological – that result, or seek to result, in the physical creation of the material setting . Social construction, on the other hand, refers to spatial transformations through peoples' socialinteractions, conversations, memories, feelings, imaginings and use—or absences—into places, scenes and actions that convey particular meanings. Both processes are social in the sense that both the production and the construction of space are mediated by social processes, especially being contested and fought over for economic and ideological reasons.

Uma revisão da literatura ao graffiti revela-nos que muitas das abordagens que têm sido feitas frisam a importância do espaço na fundação desta cultura urbana e prática social. Podemos encontrar diferentes explorações desta questão. A primeira, e talvez mais fortemente repetida, destaca o graffiti como um gesto que visa a marcação e apropriação do espaço. Num texto que data dos anos 70, Ley e Cybrisky (2002), apontavam precisamente para esta pulsão humana que se revela na conquista e marcação dos territórios, facto que pode, por exemplo, ser identificado na colocação das bandeiras no topo do Everest, na fixação dos padrões dos descobrimentos e em muitas outras acções que visam estabelecer fronteiras e marcos, físicos e simbólicos. Para estes autores, o graffiti resultaria desse impulso, de conquista e demarcação de fronteiras. De todo o modo, o acto de inscrever uma mensagem ou símbolo no espaço público pode, sempre, ser considerado um gesto de atribuição de sentido e identidade ao lugar, revelando uma presença e domínio sobre o território. Daí que a cultura do graffiti, para além de competitiva, seja também marcada por conflitos territoriais, em torno do domínio do espaço (ou contestação do mesmo). Brighenti (2014), fala de uma “territoriologia” do graffiti, salientando o facto de que os writers não apenas ocupam o espaço, mas eles produzem o território, com os seus corpos, técnicas e tecnologias.

Do ponto de vista do espaço, podemos tratar de uma abordagem mais macroscópica, envolvendo uma malha urbana alargada e um território configurado enquanto mapa. Neste caso, os graffiti- writers podem ser descritos como “exploradores de cidades” (Campos, 2009, 2010), pois circulam pelo espaço público urbano na busca das melhores oportunidades para pintar e vão lentamente descobrindo os obstáculos e o potencial do território. Circulam entre bairros, envolvendo trocas simbólicas com outros writers e crews, afirmando a sua capacidade de intervenção sobre certos redutos. Assim, há um mapa simbólico que a comunidade partilha, onde os múltiplos actores individuais e colectivos são localizados de acordo com as suas áreas de actuação, pertença e vínculo.

Por outro lado, temos o espaço mais microscópico, que envolve fronteiras mais reduzidas e a apropriação do território e da sua materialidade. Falamos, neste caso, dos lugares. São becos, viadutos, estações e linhas de comboio, edifícios, etc. Os graffiti-writers conhecem bem a materialidade urbana e para a execução da sua pintura precisam, claramente, de incorporá-la. Necessitam de saltar muros, subir ou pendurar-se em andaimes, descer ao subsolo. Precisam de conhecer as diferentes superfícies e a reacção às tintas no cimento, no tijolo ou no metal. Há um domínio do território e da sua materialidade que é factor crucial de sucesso. Podemos, então, afirmar que o território é parte integrante do acto criativo. O território é incorporado no acto criativo em dois sentidos, que remetem para a dualidade actores/obra invocada anteriormente. Em primeiro lugar, não é apenas lugar de exercício criativo, mas componente da obra, do produto final. A escrita e a imagem alojam-se nos muros, nas paredes, etc., dialogando com a matéria e com as formas. A mensagem inscrita adquire sentido em conjunto com o seu suporte (muro, parede, carruagem, etc.), estando dependente deste (ver figuras 6, 7 e 8). Em segundo lugar, a performance acontece em função do território, que simultaneamente motiva e condiciona o tipo de obra. Motiva no sentido da promessa de visibilidade que certo lugar (spot) desvenda. Há uma leitura do espaço que tem em consideração o impacto que a obra terá, em termos de público, situação que está dependente da sua visibilidade [11].

 

 

 

 

 

 

Passemos então a considerar a dimensão temporal. Como afirmei anteriormente, o tempo é uma categoria que nos envolve. Todas as práticas que desenvolvemos lidam com a questão do tempo. Podemos, desde logo fazer uma distinção entre dois tipos de tempo: o “histórico” e o “experiencial”. O primeiro envolve um certo distanciamento da experiência, uma análise dos processos temporais de longo curso, uma capacidade de avaliar cronologicamente a relação entre distintos momentos históricos. Deste modo, envolve também uma certa capacidade reflexiva e projectiva. Pelo contrário, o segundo diz respeito ao tempo subjectivo, à experiência pessoal da passagem e gestão do tempo no nosso quotidiano e nas nossas actividades.

Sendo este um objecto de complexa captura, iremos seguir a leitura proposta anteriormente, abordando os actores e a obra. Começando pelos primeiros, diria que estamos a falar basicamente do acto criativo. Tomo o acto criativo como uma performance. Por performance entendo todo o gesto individual desenvolvido por um actor social, no cumprimento de um certo papel, com o intuito de realizar uma determinada tarefa e alcançar um certo fim[12]. Peguemos no caso concreto do graffiti. A performance implica a gestão do corpo num determinado contexto espácio-temporal, tendo por objectivo a realização de uma acção ou a produção de um determinado bem. Falamos do corpo situado, mobilizado para o desenvolvimento de uma certa técnica expressiva, usando um conjunto de ferramentas (spray, marcador, etc.), para alcançar um determinado registo (tag, throw up, wall of fame, etc.). Em última análise, a ferramenta converte-se numa extensão do corpo.

É através do acto performativo da criação, que as dimensões do espaço e do tempo são articuladas. O corpo é elemento desencadeador e gerador das dinâmicas de criação, através dos movimentos exercidos no sentido de deixar uma qualquer marca no espaço. O corpo é usado para subir muros, escadas, etc. para alcançar um qualquer lugar para pintar. Mas o corpo é empregue também nos movimentos coordenados das pernas, do tronco, do braço e da mão, no exercício da inscrição de uma assinatura ou pintura. A lata de spray ou o marcador são tecnologias que funcionam enquanto extensões do próprio corpo. E o corpo é extremamente importante no graffiti/ street art, este participa efectivamente do processo de apropriação do espaço e interage directamente com este, na medida em que precisa de tactear os suportes (metal, tijolo, tabique, etc.) e o edificado [13]. O tempo é gerido em função das exigências várias da performance. Alguns contextos apelam à rapidez, quando a situação é de ilegalidade. Pintar de forma rápida e eficaz é uma competência desenvolvida pelos writers que se movem no graffiti ilegal, tendo que gerir o risco e a adrenalina presentes no momento. Este é, por isso, um tempo acelerado. Se, pelo contrário, tratamos do graffiti “artístico” de natureza legal ou semi-legal, o tempo é geralmente lento, respondendo às exigências de um trabalho pictórico mais complexo e geralmente de maior dimensão (Campos, 2010). A legalidade do acto não coloca pressão sobre os intervenientes que desenvolvem uma performance criativa diferente.

Mas ainda mais importante para a definição do graffiti enquanto forma peculiar de expressão visual, é a categoria de tempo quando aplicada à obra produzida. A grande questão relativamente ao tempo na obra de graffiti é que esta é, por natureza, transitória. A efemeridade é assumida como elemento estrutural nesta cultura urbana. Esta é uma prática ilegal ou informal, produzindo obras que são depositadas em superfícies não previstas para o efeito, facto que acarreta uma série de consequências. Estas consequências estão, por um lado, dependentes da própria matéria que serve de suporte à obra. Esta tanto pode desaparecer repentinamente, (porque se aloja num prédio devoluto ou num muro degradado que são destruídos) como pode ser alvo da gradual degradação proporcionada pelo decurso do tempo. As obras de graffiti não são alvo de medidas de protecção. Antes pelo contrário, existem diversas medidas tomadas pelos poderes públicos ou pelos proprietários no sentido de erradicar as obras de graffiti, situação que acentua o tempo de vida relativamente curto das mesmas. As carruagens de metro e comboio são regularmente limpas degraffiti, tal como muitas paredes de edifícios ou bairros. Os writers têm perfeita consciência desta condição, tendo desenvolvido um conjunto de práticas que visam contrariar esta situação. A implicação da fotografia é, talvez a mais óbvia. Com o uso da fotografia aquilo que se pretende é obviar a parca esperança de vida da obra de graffiti, através da criação de acervos documentais visuais. É, por isso, perfeitamente naturalizado o uso da máquina fotográfica (ou telemóvel) pelos writers que, assim, registam e partilham o seu trabalho[14]. A “digitalização” desta expressão (Campos, 2012; Diógenes, 2015) comporta uma “eternização” da obra.

 

A rua e a galeria… distintas economias de espaço-tempo

Rua e Galeria são dois espaços, de natureza territorial, mas também simbólica. Aqui representam dois universos sociais distintos, considerados, em muitos sentidos, como sendo antagónicos. O uso que farei deles é, portanto, simultaneamente concreto e literal, mas também metafórico. Em termos metafóricos, a rua simboliza o espaço da produção popular, informal, espontânea, vernacular e menorizada, quando a galeria representa o formal, o canónico, o erudito, o legitimado, o valorizado. A primeira representa a não-arte ou quase-arte, quando a segunda representa a arte.

A rua está para o graffiti, mas também para o rap e muitas outras produções culturais urbanas, como a galeria está, por exemplo, para a pintura, a escultura ou a performance. Podemos defender que o graffiti é socialmente construído como uma expressão antagónica das artes visuais oficiais. É esta a narrativa que foi desde início sendo fabricada por diversas instâncias, como os media e os poderes públicos, quando afirmam que é vandalismo e não é arte, facto que justifica a sua perseguição e erradicação. Mas esta é, também, fonte para a fabricação de uma narrativa simbólica que serve à construção identitária dos graffiti-writers que prezam uma série de valores que se distanciam claramente do universo das artes visuais oficiais. No processo de construção identitária é comum recorrer-se aos antagonismos para fortalecer a coesão e singularidade de um determinado perfil identitário. E, na verdade, estas construções assentam, muitas vezes, em imagens simplificadas, estereotipadas e cristalizadas da realidade que são tomadas como referentes envolvendo, por exemplo, a demarcação de fronteiras entre o “nós” e os “outros”. É por isso comum, nos discursos identitários, invocarmos visões polarizadas que apontam para o que “somos” por contraste com o que “não somos”.

Os discursos em torno da autenticidade e legitimidade de certas práticas e expressões recorrem frequentemente a conceitos relativamente abstractos, que condensam uma série de características que, no fundo, definiriam uma certa identidade “pura”. Neste caso, falamos de representações sobre universos razoavelmente abstractos, como sejam as artes de rua ou as artes da galeria. Daí que frequentemente se discuta a autenticidade de um certo universo cultural, tendo por base o seu vínculo a uma série de critérios (de valores, normas, símbolos, práticas, etc.). Todavia em contextos sociais em rápida metamorfose, onde as fronteiras simbólicas são questionadas e negociadas constantemente, como acontece neste momento com as expressões de rua, a noção de autenticidade é matéria de acérrima disputa simbólica. As expressões de rua que actualmente encontramos fundem (e confundem) práticas, técnicas e linguagens, detonando anteriores tensões e dicotomias. O hibridismo destas expressões torna difícil enquadrá-las de acordo com categorias existentes que, em certo sentido, se revelam obsoletas. O facto de serem obsoletas não impede que ainda se mantenham como recursos conceptuais e retóricos importantes em torno dos quais são elaborados os discursos identitários, forçando tensões.

Apesar de reconhecer esta natureza complexa e híbrida das expressões de rua, irei desenvolver um percurso reflexivo que parte, precisamente, das tensões e singularidades destes universos tradicionalmente entendidos como opostos. Comecemos pela arte da galeria, que pode ser percebida como o domínio das artes pictóricas convencionais e oficiais. Podemos considerar aqui uma sequência cronológica de momentos que, no fundo, enquadram todo o processo criativo ao qual corresponde uma fragmentação espacial. Em primeiro lugar, o acto criativo acontece num certo lugar, por tradição o ateliê do artista, onde este deposita as suas ferramentas e produz as suas obras. Num segundo momento, temos o processo de exibição da obra produzida que, por tradição, acontece numa galeria ou num espaço expositivo determinado. Estes dois momentos e espaços podem facilmente ser entendidos de acordo com a tipologia de Goffman (1999) que falava de backstage (bastidores) e frontstage (palco), a propósito da apresentação do Eu. Neste quadro o primeiro corresponderia ao ateliê e o segundo à galeria. O processo de exibição é inaugurado com uma celebração, um ritual de consagração do artista e da obra, destinado basicamente aos seus pares e ao mundo restrito das artes e do seu comércio. Este é o momento de revelação, o palco onde o artista expõe o resultado da sua prática artística desenvolvida num lugar privado e protegido dos olhares, os bastidores reservados ao trabalho “sujo” e árduo. Estas cerimónias servem para reforçar a natureza exclusiva e superior do artista e das suas obras.

Pelo contrário no caso das artes de rua a situação é bem diferente, existindo uma situação de condensação espácio-temporal, um continuum que quebra com o tradicional registo fragmentado do circuito das artes tradicionais. Vejamos em que sentido. O espaço onde tudo ocorre é o da rua. Tudo se inicia pela escolha do espaço onde vai ter lugar o acto criativo, de modo a dar origem a uma qualquer obra. Assim, a rua converte-se em ateliê. É aqui que as tintas e outras ferramentas são depositadas (baldes, escadotes, trinchas, etc.) e a performance acontece (subir e descer escadotes e muros, pintar, etc.). A passagem do momento criador, para o momento de exibição realiza-se sem rupturas de maior e de forma progressiva. Assim a distinção anterior entre backstage e frontstage deixa de fazer sentido. O trabalho vai sendo exposto ao longo do processo da sua elaboração, não existindo uma cerimónia pública de apresentação do mesmo após a conclusão.

Mas, como vimos, o tempo e o espaço também podem ser abordados do ponto de vista da “obra” e, também neste campo, as diferenças entre as artes de rua e as de galeria são grandes. Em primeiro lugar, o espaço é, como já afirmei, parte integrante da obra. É parte integrante da obra, desde logo, porque a sua execução é antecedida pelo estudo do espaço. Quem intervém no espaço urbano pensa a obra em função da sua execução no território, mas também dos factores relacionados com a sua exposição. Há um diálogo constante entre o território, a sua materialidade e as inscrições que irão ser produzidas. Daí que a leitura da obra não se possa resumir ao conteúdo da mesma, mas tem de ter em consideração todo o contexto que a circunda. Pintar ou assinar no topo de um edifício, num viaduto ou numa carruagem de comboio é diferente e tem implicações distintas. No caso das artes tradicionais, o espaço/território são apenas contextuais, não integram o produto final. São contextuais na medida em que delimitam circunscrições específicas onde decorrem certos actos relativos ao processo artístico. No ateliê desenvolve-se o trabalho de criação, enquanto na galeria, se expõe o resultado deste processo. A obra, sendo móvel, ao contrário daquela que é realizada na rua, atravessa estes espaços e adquire significados distintos em cada um deles.

No que à dimensão temporal diz respeito, verificamos que no campo das expressões de rua, encontramos geralmente situações de efemeridade que contrastam com a perenidade das artes visuais tradicionais. As inscrições na rua são geralmente transitórias, na medida em que a própria matéria urbana o é. Estas estão sujeitas às agruras do tempo, às condições climatéricas e intervenções humanas várias que passam pela completa limpeza ou mera intervenção. Dificilmente se podem proteger as obras na rua, até porque a sua natureza original, associada ao inusitado e transgressor impede a sua protecção. Pelo contrário, as artes pictóricas tradicionais são realizadas geralmente com o intuito de serem preservadas, até porque adquirem em muitos casos o título de mercadoria. Estas expressões são socialmente valorizadas, consideradas do ponto de vista cultural e estético, manifestações que merecem ser protegidas e incentivadas. Pelo contrário, as expressões de rua são, por tradição, alvo de desdém e mesmo de perseguição, são socialmente desvalorizadas, não adquirindo estatuto cultural e artístico relevante de modo a serem alvo de salvaguarda. Assim, encontramo-nos perante dois paradigmas temporais radicalmente diferentes, aplicados a estas distintas formas de expressão: um do tempo curto (da transitoriedade) e outro do tempo longo (da permanência).

Todavia, se esta abordagem algo simplificada parece fazer sentido quando abordamos estas duas manifestações no seu estado “puro”, enquanto tipo-ideal, no sentido weberiano do termo, a realidade tende a apresentar-nos um quadro bem mais complexo. Na verdade, as anteriores dualidades que estabeleciam um antagonismo claro entre, por exemplo, arte e vandalismo ou autenticidade e comércio , estão cada vez mais esbatidas, tornando o campo das artes de rua extremamente complexo e difícil de categorizar. Na verdade, aquilo que caracteriza precisamente este campo é o facto de ser extremamente mutável, híbrido e complexo. Assim, aquilo que encontramos é, muitas vezes, uma resistência ou reversão de alguns dos princípios originais da cultura de rua que enformavam as práticas da pintura de rua, transformando as economias de espaço-tempo originais. Assim, se originalmente as expressões deixadas na rua aí permaneciam, imóveis, enfrentando o veredicto dos homens e as agruras do clima, facto é que em tempos recentes vários debates se abriram em torno de episódios que revelam uma mudança de paradigma. Alguns episódios foram relatados de roubo de obras existentes na rua, dada a relevância das mesmas e do seu autor (como ocorreu com obras de Banksy ou Invader). Outros episódios, como aquele que ocorreu em São Paulo a propósito da obra de Os Gémeos [15], abrem a discussão em torno da “patrimonialização” de algumas obras e da necessidade da sua preservação. A patrimonialização, artificação e mercadorização do graffiti artístico e da arte urbana equivalem, então, a uma progressiva passagem do tempo curto (efemeridade) para o tempo longo (permanência) e de um espaço único para um espaço fragmentado.

 

Conclusão

Este artigo é um modesto contributo para pensar as lógicas espácio-temporais no domínio das intervenções de rua. Esta é uma reflexão que está longe de ser definitiva, sendo que foram abertas algumas pistas de pesquisa que merecem desenvolvimentos futuros. Na verdade, aquilo que procurei fazer foi, essencialmente, invocar as dimensões espaciais e temporais que estão profundamente implicadas nos actos e discursos daqueles que fazem graffiti e arte de rua, para pensar de forma mais abrangente e conceptualmente sustentada o papel que estas categorias podem assumir neste contexto. Para tal desenvolvi um exercício de raciocínio em que confrontei o graffiti e a arte urbana com as artes visuais convencionais, aquilo que defini como artes de galeria. Ficou claro que estes dois universos, pelo menos do ponto de vista conceptual, remetem para lógicas espácio-temporais distintas.

O graffiti e arte urbana vivem intensamente o espaço, quer enquanto estratégia, quer enquanto prática, sendo a rua o lugar por excelência da produção e exibição das obras. Neste caso o acto criativo dialoga intensamente com a matéria física e o território, sendo que estes se convertem em parte integrante da obra. Assim sendo, estas expressões de rua contribuem, decisivamente, para a construção social do espaço na cidade, no sentido atribuído por Low (2014). Pelo contrário, a arte de galeria é marcada pela fragmentação espacial, os espaços têm um papel meramente funcional, servindo para alojar certas práticas (ateliê, galeria). Outra distinção marcante, do ponto de vista operacional e simbólico é a natureza destes espaços. Enquanto a arte urbana opera no espaço público, a arte da galeria transita entre espaços privados, de acesso condicionado (o ateliê, a galeria e eventualmente o espaço privado do comprador final). Ou seja, no fundo, estas lógicas espaciais reflectem igualmente relações e lógicas económicas, sendo que umas traduzem processos de criação estética abertos, acessíveis e não-mercantilistas, quando outras traduzem relações mercantilizadas e privatizadas de acesso e relação com os bens estéticos.

Do ponto de vista do tempo, também verificamos que, quando aplicado à obra, estes dois universos remetem para distintas concepções, sendo que o graffiti e arte de rua, se fundam sobre a efemeridade, quando as artes pictóricas de galeria apontam ao tempo longo, à perenidade das obras. Mais uma vez a dimensão económica não é desprezível quando avaliamos a relevância do tempo. A arte enquanto mercadoria exige a existência de um bem cuja perenidade está directamente associada a um processo de valorização e especulação (simbólica, artística e económica), facto que está no cerne da existência de um mercado da arte.

No entanto, também ficou claro que estas são divisórias construídas intelectualmente, baseadas em concepções algo rígidas destes universos culturais. A realidade revela-nos que estes são campos em mudança e não necessariamente apartados, sendo que existe uma cada vez maior sobreposição e interligação entre os domínios da rua e da galeria. Estas mutações impõem transformações ao nível das lógicas espácio-temporais, questão que merece ser aprofundada no futuro.

 

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Recebido: 28-12-2016; Aceite: 26-06-2017.

 

NOTAS

[2] Não posso deixar de destacar aqui os nomes da Glória Diógenes e da Sílvia Câmara com que tenho trabalhado e que comigo constituíram a RAIU (Rede de pesquisa luso-brasileira em artes e intervenções urbanas). Gostaria ainda de referir outros nomes fundamentais como a Ligia Ferro, a Cornelia Eckert, o José Alberto Simões, o Andrea Brighenti ou o Andrea Pavoni. A minha gratidão estende-se a todos aqueles que pertencendo à comunidade do graffiti e da street art contribuíram decisivamente para estes debates.

[3] Entretanto foram-se multiplicando as teses de mestrado e doutoramento dedicadas a estes temas (no campo das ciências sociais, temos por exemplo, os trabalhos de Sequeira, 2015; Ferro, 2011; Souza, 2012; Garcia y Ruiz, 2014; Pinto, 2015, entre outros).

[4] Writers são aqueles que se dedicam à prática do graffiti enquanto expressão de rua, utilizando o aerossol ou marcador, pertencendo a uma comunidade que obedece a um conjunto de regras e valores de uma cultura urbana singular, originária dos EUA na década de 70 do século passado.

[5]Não pretendo, neste artigo, desenvolver uma análise muito sistemática do conceito de “espaço” e de outros que lhe são próximos, nomeadamente os de “lugar” ou “território”, que têm sido largamente debatidos e estudados na geografia, mas igualmente na sociologia e na antropologia (Carmo, 2006). De todo o modo, utilizo aqui a noção de espaço num sentido mais lato e abstracto, do ponto de vista geográfico e social (Agnew, 2011). A ideia de “território” remete para um contexto geográfico delimitado e com especificidades físicas e materiais, enquanto a ideia de “lugar” procura evidenciar formas particulares de apropriação do território, atribuindo-lhe um sentido e funcionalidade, estabelecendo uma articulação forte entre as práticas e o ambiente físico e material.

[6]Por “obras” entendo aqui todas as produções expressivas realizadas, por mais elementares que sejam. Incluo, portanto, desde a assinatura mais rudimentar (tag) até produções pictóricas de grande dimensão e complexidade (Wall of fame).

[7]E não é por acaso que a inspiração é recolhida nestes exemplos de uma cultura de massas e do consumo. Esta é uma expressão de rua, originalmente proveniente de jovens oriundos maioritariamente das camadas mais empobrecidas da população, mais familiarizados com uma cultura visual de massas do que com uma cultura visual elitista promovida pelas instituições oficiais (escola, museus, etc.). Daí que, seja também natural que o graffiti de rua surja simbolicamente como uma resistência e negação dos princípios que estão associados à cultura visual das “belas-artes” e do mercado da arte, entendidos como distantes e elitistas.

[8]Um termo que aparece frequentemente como sinónimo de street-art.

[9]As economias de espaço-tempo não são estanques, nem imutáveis. São permeáveis a uma série de mudanças de natureza diversa, que produzem efeitos concretos na acção dos indivíduos e nos recursos de que estes dispõem. A introdução das tecnologias é talvez o elemento que maior turbulência cria a este respeito.

[10]Esta autora distingue inicialmente duas dimensões, a da produção e construção social do espaço, sendo que posteriormente integra mais duas dimensões à sua análise antropológica do espaço, nomeadamente a dimensão de “embodiment” e de práticas discursivas (Low, 2014).

[11]Ver para este efeito a spot theory apresentada por Ferrell e Weide (2010).

[12]A autoconsciência do acto performativo acentua-se numa realidade onde somos cada vez mais “observados”, tendo portanto consciência de que somos actores a representar para distintas câmaras. Esta dimensão é especialmente evidente a partir do momento em que a fotografia e mais tarde o vídeo e os circuitos digitais entram em cena na produção e difusão do graffiti.

[13]Esta capacidade performativa é, aliás, valorizada pela comunidade que tem em consideração todo o processo desenvolvido para alcançar um determinado objectivo.

[14]A introdução da fotografia digital e a generalização do uso de computadores e da internet tem consequências relevantes na forma como se pensa a questão do espaço e do tempo no contexto do graffiti (Campos, 2010, 2012).

[15]A prefeitura de São Paulo em 2013 apagou obras dos consagrados Os Gémeos, abrindo uma acesa discussão sobre a importância de preservar obras que são consideradas um património da cidade. Mais recentemente a prefeitura desta cidade envolveu-se numa nova polémica, quando o prefeito João Dória removeu um conjunto de graffiti plenamente integrado e aceite pelos habitantes da cidade, no âmbito do programa intitulado “Cidade Linda”, situação que gerou muita polémica.

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