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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.36 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2018.036.art04 

ARTIGO ORIGINAL

 

«Não vejo eles como diferentes, só não vejo aqui como o lugar deles»: Análise do poder simbólico presente nas relações sociais entre estabelecidos e outsiders em Orlândia – São Paulo

«I do not see them as different, I just do not see here as their place»: Analysis of the symbolic power present in the social relations between established and outsiders in Orlândia – São Paulo

 

Bruno César PereiraI; Alexandra LourençoII

[I]Universidade do Centro - Oeste do Paraná, Brasil. e-mail: bruno_o8cesar@outlook.com.

[I]Universidade do Centro - Oeste do Paraná - UNICENTRO, Campus Irati, Brasil. e-mail: alels1@hotmail.com.

 

 


RESUMO

Este artigo analisa as relações sociais entre as famílias naturais da cidade de Orlândia – São Paulo e as famílias migrantes, vindas do Nordeste brasileiro, homens e mulheres migrantes que se destinaram ao trabalho no corte da cana-de-açúcar, construção civil e a extração de palha para a confecção de cigarros artesanais. Compreendemos que este movimento migratório reorganizou as estruturas sociais na cidade paulista, que até então eram norteadas pelo estigma centro-periferia, mas, com a entrada das novas famílias migrantes, trouxe à tona a construção de um novo discurso pautado na criação da distinção entre o “nós” (paulistas) e “eles” (nordestinos). Observamos que, desde seu início, estas relações se pautaram em uma série de disputas simbólicas, seja no dia a dia dos bairros periféricos ou nos ambientes de lazer, como é o caso dos clubes. Para realização deste estudo utilizamos o referencial teórico construído pelos sociólogos Norbert Elias, Henri Lefebvre e Pierre Bourdieu.

Palavras-chave:Migração; Orlândia-São Paulo; Estabelecidos & Outsiders; Violência Simbólica.


ABSTRACT

This paper analyzed the social relations between the Orlândia- São Paulo city natural families and the Brazilian northeast migrant families, in which migrant men and women went to work on sugar cane cutting, civil construction and extraction of straw for the manufacture of handmade cigarettes. We understand that this migratory movement reorganized the social structures in Orlândia city, which until then were guided by the stigma center-periphery, but with the entry of the new migrant families brought to the surface the construction of a new discourse based on the creation of the distinction between "us" (paulistas) and "they" (northeastern). We have observed that since their inception these relationships have been based in a series of symbolic disputes, whether in the day-to-day life of peripheral neighborhoods or in leisure places, such as clubs. To carry out this study we use the theoretical framework built by sociologists Norbert Elias, Henri Lefebvre and Pierre Bourdieu.

Keywords: Migration; Orlândia-São Paulo; Established & Outsiders; Symbolic Violence.


 

Introdução

Existe uma razoável produção científica que aborda a questão do preconceito dirigido aos nordestinos, principalmente no sudeste e sul do Brasil. Na História, na Sociologia e na Antropologia, avolumou-se a preocupação com a discussão e compreensão deste fenômeno a partir dos discursos de ódio que cresceram com a polarização política no Brasil. A identificação dos nordestinos como os responsáveis pela eleição dos governos de esquerda, ainda que errônea, contribuiu para o aumento do preconceito contra eles. (FONTES, 2008; ALESSI e NAVARRO, 1997; SILVA, 2006; VETTORASSI, 2007)

Todavia, compreendemos que o preconceito dirigido aos migrantes do Nordeste, está relacionado a necessidade de delimitação de espaços de convivência sociais, símbolos culturais e relações econômicas [3]. Este fenômeno, para ser compreendido necessita ser analisado empiricamente nas situações em que ocorreram os encontros entre os naturais e os nordestinos, que se apresentaram, aos olhos dos primeiros como intrusos.

Neste sentido, os processos vivenciados entre os naturais e os grupos de migrantes vindos do Nordeste ocorreram em diversas localidades do Brasil e produziram diversos estereótipos que se materializaram também na linguagem. No Rio de Janeiro estes migrantes foram homogeneizados na expressão “paraíbas”, no Rio Grande do Sul ficaram conhecidos como “baianos” e em São Paulo o principal termo utilizado foi “nordestinos” (GUIMARÃES, 2000).

Ainda que esse fenômeno tenha ocorrido em outras regiões do Brasil, certamente, em São Paulo ele se tornou mais intenso devido à grande quantidade de migrantes que vieram para trabalhar nas lavouras de cana-de açúcar. Essa produção agrícola aumentava sua capacidade produtiva principalmente devido a incorporação de novas variedades, novas técnicas de cultivo e mecanização da lavoura. Esse crescimento atraiu famílias e indivíduos de outras regiões para o trabalho na safra. Estes chegavam em grupos e eram identificados pela população local por seus lugares de procedência (ALVES, 2006).

Na segunda metade do século XX, ocorreu o aumento significativo das migrações sazonais do Nordeste, uma parcela significativa destas tinham como destino o interior paulista, em especial a região de Ribeirão Preto, na qual, se concentrava grande parte do Complexo Agroindustrial Canavieiro. “Tal região em meados dos anos 2000, era responsável por cerca de 30% de toda produção de álcool e açúcar brasileiro”. (SILVA, 2005: 4) [4]

Muitas famílias nordestinas tiveram como destino a cidade de Orlândia situada na região de Ribeirão Preto. Elas se vincularam, principalmente ao corte da cana, à construção civil e à extração da palha do milho para a produção de cigarros artesanais. [5] Ao longo deste processo migratório (Nordeste-Sudeste), elas estabeleceram residência nas regiões periféricas da cidade. A concentração das famílias nordestinas na periferia se deve a dois fatores principais. Primeiro, estes locais de moradias ofereciam menores preços de alugueis. Segundo, os moradores naturais da cidade se negavam a alugar residências para famílias nordestinas nos bairros centrais. Assim, a concentração de famílias nordestinas nas regiões periféricas aumentou consideravelmente entre o final da década de 1990 e início de 2005. (IBGE, 2005).

Portanto, para compreender as complexas relações simbólicas, de sociabilidade e de poder construídas entre migrantes do Nordeste e naturais, esta pesquisa realizou um estudo empírico com um grupo de famílias da cidade. Foram entrevistadas oito famílias, sendo que, em cada uma destas abordamos duas gerações. A primeira geração possuía a faixa etária de 45 a 70 anos, e a segunda de 21 a 30 anos. Para as entrevistas, foram escolhidas cinco famílias nordestinas provenientes de diferentes estados – uma da Bahia, duas do Piauí, uma de Alagoas e uma de Pernambuco – as quais residem em duas regiões periféricas da cidade de Orlândia (Conjunto Habitacional José Vieira Brazão e Conjunto Habitacional Vila São João), as demais entrevistas (três) foram realizadas com famílias naturais da cidade paulista – duas famílias da periferia (dos mesmos bairros das famílias nordestinas) e uma de um bairro central da cidade.

Nosso principal objetivo foi analisar as representações que orientaram as relações de sociabilidade entre as famílias naturais da cidade de Orlândia – São Paulo (SP) [6] e as famílias migrantes vindas do Nordeste brasileiro. Estas relações se pautaram desde seu início em uma série de disputas simbólicas, seja no dia a dia dos bairros periféricos, ou nos ambientes de lazer, como era o caso dos clubes. Assim, o que se evidenciou foi a afirmação da diferenciação entre o grupo natural e os recém-chegados, na qual, foi instituído um campo de disputas simbólicas marcado pela construção de uma série de estereótipos.

Se observa que esta relação de oposição entre os grupos se dá inicialmente a partir da noção de antiguidade no local. A busca desta distinção une o grupo estabelecido que se auto reconhece como uma classe superior. Este reconhecimento ocorre, como já foi dito acima, pela ideia da antiguidade, criando assim uma percepção de naturalidade no local. O presente texto terá como principais referenciais teóricos os sociólogos Norbert Elias (2000), na discussão que o autor realiza sobre o sentido atribuído a noção de pertença ao espaço social e geográfico, Pierre Bourdieu (1989) e Henri Lefebvre (2006) para compreendermos as disputas simbólicas pelo espaço.

Nosso ponto de partida para estudar as relações sociais entre nordestinos e paulistas na periferia da cidade de Orlândia, será a obra Os Estabelecidos e os Outsiders, de Norbert Elias (2000). [7] A teoria apresentada pelo autor defende a existência de relações de interdependência e equilíbrio de poder entre dois grupos, sendo essa uma condição fundamental para a estigmatização de um grupo de “outsiders ” por um grupo “estabelecido”. Ele constatou o processo no qual um grupo estigmatiza o outro quando está bem instalado em posições de poder das quais um deles é excluído. Assim, nós utilizaremos de suas análises ao propormos aqui o reconhecimento das famílias naturais da cidade de Orlândia como o grupo de estabelecidos em contraponto com as famílias outsiders, vindas de fora, formadas por nordestinos.

As principais contribuições para o presente texto, em Pierre Bourdieu, são as noções de violência simbólica e regiões debatidos pelo autor em sua obra O Poder Simbólico (1989). Onde, por violência simbólica, compreende-se a dominação de um grupo sobre outro através da construção e legitimação de símbolos, que além de dominar, auxilia na construção de distinções entre os grupos. Neste estudo compreendemos que os estigmas construídos, reforçados e legitimados pelo grupo estabelecido sobre o grupo outsider, se constituem em processos de discriminação.

Já o conceito de regiões, empregado aqui, também utilizado pelo sociólogo francês Bourdieu, nos evidencia um espaço social atrelado as disputas simbólicas dos sujeitos que participam. Evidenciaremos melhor estas disputas e formações destes espaços entre os sujeitos na cidade de Orlândia, principalmente ao tratarmos das distinções centro-favelas e dos espaços de sociabilidade, como o forró. É neste sentido que utilizaremos os debates de Henri Lefebvre na obra A produção do espaço (2006) a respeito da constituição do espaço, em sua busca de compreender e vincular o espaço como social, mental e físico.

O presente texto está dividido em três partes. A primeira terá como ponto de partida a análise do contexto que antecede a chegada das famílias nordestinas, evidenciando a cristalização do estigma centro-periferia. Onde temos a criação de um discurso norteado pela ideia de uma divisão entre bairros ricos e pobres. Ainda nesta etapa do presente artigo, buscaremos romper com a concepção de periferias somente como as localidades mais afastadas do centro urbano, evidenciado que esta conceitualização passou por uma série de transformações. Em especial, “as periferias” da cidade de Orlândia, não se caracterizam necessariamente pelos bairros mais afastados do centro urbano e econômico da cidade, e sim pelos bairros designados como conjuntos habitacionais. Estes espaços levam o estigma de “favelas”, sendo difundido entre os próprios moradores destes locais.

A segunda parte, analisa a construção dos discursos do “nós” em contraponto ao “eles” (outros). Tais discursos são construídos a partir da entrada das famílias nordestinas no meio social das periferias orlandinas. Estes discursos são inicialmente norteados pela ideia de antiguidade nos locais e sua difusão por parte do grupo estabelecido teve consequências. Entre elas, podemos apontar a exclusão e a homogeneização do grupo outsider. Compreende-se aqui a exclusão como resultado das dificuldades de ascensão social vivenciadas pelos indivíduos dos grupos outsiders. A homogeneização resulta da negação de identidades próprias aos variados grupos migrantes. Assim como as generalizações sobre o gosto musical e a “vocação para o trabalho no corte da cana-de-açúcar”.

Na terceira parte, realizamos um apanhado geral das relações de sociabilidade estabelecidas estes os dois grupos. Evidenciando que os estigmas construídos desde a chegada destas famílias nordestinas migrantes são aos poucos transformados e redefinidos na busca de manter o poder (social, econômico, político e simbólico) de um grupo sobre o outro.

São inúmeros os trabalhos acadêmicos que tratam das migrações nordestinas rumo ao Sudeste brasileiro, estes têm evidenciado os diversos problemas enfrentados pelas famílias migrantes. Todavia, estes estudos possuem a tendência de abordar o tema de forma unilateral, concentrando sua atenção somente no grupo migrante. Nesse sentido, a inovação do nosso trabalho está em considerar o que foi vivenciado pelos nordestinos a partir das relações com os estabelecidos.

Em suma, na cidade de Orlândia a migração nordestina também foi intensa, como nas demais cidades na região agro canavieira, mas estes migrantes não se voltaram apenas para esta atividade, realizando também outros trabalhos que merecem destaque, como por exemplo, a extração da palha e a construção civil. Como observamos em nossa pesquisa, considerar o migrante nordestino como um trabalhador voltado apenas ao corte da cana-de-açúcar, foi um dos discursos difundidos pelo grupo estabelecido na localidade paulista, resumindo estes homens e mulheres migrantes a apenas esta atividade, causando, como foi evidenciado no discurso de alguns migrantes, a negação destes possuírem habilidades para outras atividades.

Assim, o que se observou no presente trabalho, em linhas gerais, não se pautará somente em um debate frente as relações de trabalho empregadas por migrantes nordestinos no interior paulista. Pretendemos ir mais além ao analisarmos as relações de sociabilidade, nas regiões periféricas da cidade de Orlândia, entre as famílias paulistas e nordestinas, seja no cotidiano nos bairros, assim como nos locais de lazer, como é o caso dos Clubes.

Os olhares desatentos observam esta região apenas como local de moradia das famílias migrantes, ignoram que nestes locais existe uma intensa disputa simbólica, que se configura em violência simbólica entre estes grupos. Desde a chegada destas novas famílias, o grupo já estabelecido nestas regiões periféricas, buscou a afirmação da sua imagem de naturais por meio da elaboração e legitimação de estereótipos e estigmas, que reforçaram a ideia de identidades hierarquizadas entre estes grupos. Desta forma, como observaremos neste estudo exploratório, essa construção identitária se pautou na exclusão e dominação do grupo estabelecido sobre os outsiders.

 

Entre a favela e o centro: a construção e legitimação do estigma entre bairros na localidade paulista

A cidade de Orlândia possui pouco mais de um século de fundação. Inicialmente, como boa parte das cidades desta região construídas no início do século XX, teve sua produção econômica voltada para a cultura cafeeira (TOSI; FALEIROS, 2011). Mas, nas décadas finais do século XX, a economia do interior paulista foi marcada pelo avanço da produção de cana-de-açúcar, destinada a produção de açúcar e álcool. (SILVA, 2005).

A cidade de Orlândia, como muitas outras desta região de produção canavieira, recebeu centenas de famílias vindas dos processos migratórios do Nordeste para o Sudeste. A introdução destas famílias se deu na periferia da localidade que é reconhecida até então pelos moradores de Orlândia como “favela” e, por consequência, os moradores desta periferia – estabelecidos – se autodenominam moradores de “favelas”.[8]

Compreender esta região a partir da visão de seus moradores é um processo importante para nossa pesquisa, pois se observa nesta visão de auto-reconhecimento como moradores de favelas, um estigma que antecede a vinda das famílias nordestinas para esta localidade paulista. O processo de ocupação da cidade de Orlândia entre sua fundação na década de 1910, até as décadas finais do século XX, é marcado por uma segregação dos bairros, propondo assim uma ideia de zonas ricas e pobres classificando e marcando seus moradores. Neste sentido, são inúmeros os estudos que analisam a segregação urbana (SILVA; BAESSO; TEÓFILO 2010).

Todavia, a ideia de centro-periferia aqui proposta e discutida, não se resume a definição de centro da localidade analisada, não corresponde somente as áreas que concentram o comércio, indústrias, e moradia das famílias de maior poder aquisitivo, em contraponto a noção de uma periferia com bairros afastados espacialmente do centro, onde se localizam a população com menor renda e índices de desenvolvimento. Esta visão como nos aponta Carlos Roberto Loboda (2016), ao discutir sobre esta questão centro-periferia na cidade de Guarapuava-PR, é um discurso atrelado a uma visão analítica dos espaços urbanos da segunda metade do século XX. Atualmente, sejam em grandes cidades, como médias e pequenas, a concentração de bairros de classe média alta localizada no quadro urbano da cidade afastados dos centros urbanos, em zonas periféricas, muitas vezes, como é o caso de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Ribeirão Preto, está muito próxima de bairros que possuem uma concentração de renda muito baixa, chegando ao ponto de nos mostrar um contraste impressionante.

A localidade paulista, Orlândia, com pouco mais de 40 mil habitantes, é um espaço marcado pelas construções sociais de centro-favela. De um lado as regiões “centrais” se diferenciam pelo alto preço dos imóveis, a forma de construção e sua localização, em contraponto as regiões ditas como “favelas”, que tem sua principal característica, ou melhor, sua marca, nas casas de Conjuntos Habitacionais. Assim, a noção de regiões periféricas se tornou dual para uma classe abastada desta cidade, temos a noção de periferia atrelada aos condomínios, inúmeras casas cercadas por muros, com segurança própria, locais de lazer específicos, além de um autovalor no mercado imobiliário. Em contraponto a noção de periferia como favelas, onde se localizam as moradias formadas pelos Conjuntos Habitacionais, que são identificados com a da pobreza, violência, tráfico de drogas, etc.

Assim como observado por Norbert Elias (2000), aqui também encontramos uma parcela dos estabelecidos (paulistas) e outsiders (nordestinos) vivendo na mesma periferia da pobreza e compartilhando dos estigmas que esta possui em Orlândia. De um modo geral, pensando o recorte temporal da pesquisa, todos os indivíduos oriundos do Nordeste, estiveram vinculados com: o corte da cana-de-açúcar; construção civil, serviços domésticos e a extração da palha para cigarros artesanais. Mas boa parte da população das periferias (Conjuntos Habitacionais) também estiveram diretamente ligadas a estes serviços, além de trabalharem em empresas como Seara, Morlan (empresa de fabricação de arames), Intelli (empresa de fabricação de peças para postes de luz); Brejeiro (empresa de fabricação de óleo de soja), Guabi (empresa de fabricação de ração). Mas devemos chamar a atenção que, entre 1980-2008, eram poucos os homens e mulheres (estabelecidos) residentes da periferia que trabalhavam nestas empresas, a maioria deles estava ligada aos mesmos trabalhos que os migrantes. Nota-se que a principal distinção entre os dois grupos se encontra justamente no tempo que residem no local, todavia, no desenvolvimento desta diferenciação ocorrerá o processo de estigmatização de um grupo sobre o outro.

Podemos observar na fala dos moradores estabelecidos, como no caso do Sr. J.C., funcionário público, com 57 anos, morador do Conjunto Habitacional – CH, Jardim José Vieira Brazão – um dos bairros periféricos da cidade de Orlândia, o estigma que este possui frente aos olhares dos seus moradores.

“(...) eu trabalho na prefeitura, sou funcionário público, mas não é o que parece, eu ganho muito pouco, quase dois salários por mês, não sou nenhum rico, e se fosse não moraria aqui não é? Minha família sempre viveu aqui no Brazão, e isso já é algo não é? Porque, você sabe, o povo tem a ideia que todos que moram aqui são pobres.” (Sr. J.C., 2017)

Observa-se neste fragmento acima a representação que um morador possui do bairro onde mora, este tipo de discurso é encontrado também na imagem de algumas famílias nordestinas, como é o caso da Sra. A. C., migrante nordestina, com 45 anos de idade, empregada doméstica, vinda do interior do estado do Piauí, chegou a cidade paulista em 2008, junto com as suas 3 filhas. Na entrevista realizada com esta senhora, foi possível identificar um dos estigmas muito comuns das “favelas” orlandinas, a marca do tráfico de drogas.

“Eu morei na vilinha quando cheguei aqui em São Paulo, era um bairro bem tranquilo na época, distante do centro. Mas, antigamente era considerado a “Cidade de Deus”[9], sabe se lá porque (risos). Ouvi falar que tinha muito tráfico de drogas, e o pessoal do centro não gostava muito daqui, quando a gente ia nas lojas (lojas de roupas e eletrodomésticos, mercados) e dava o endereço, a atendente já olhava com uma cara.” (Sra. A.C., 2017)

Outra moradora que aborda os estereótipos das drogas na periferia pobre – lembrando que nesta cidade existe uma associação desta com os Conjuntos Habitacionais e com as “favelas”, ou seja, periferia pobre significa Conjuntos Habitacionais que, por sua vez, significam “favelas” lugar de drogas e tráfico – é a senhora outsider M. F., que resume uma das marcas impostas aos jovens estabelecidos da região periférica associada a “favela”.

“(...) o que eu acho feio são aquelas bermudas, sabe aquelas grandes que têm um monte de estampa, aquelas são roupas de maconheiro, e não é eu que tô dizendo não, o pessoal do centro que diz que os meninos que usam isso que são, e meus filhos não são não, nem deixo eles usarem para não ficarem falando isso, por que você sabe né (...), o pessoal que tem mais dinheiro sempre quer julgar, mas meus filhos não são não, a gente é pobre sim, mas não é por isso que vamos usar essas coisas.” (M.F., 2017)

Para além do tráfico de drogas associado a pobreza, existe um outro estigma relacionado com esta região chamada de “favelas”: a violência. Isso pode ser evidenciado na entrevista realizada com um jovem nordestino de 22 anos, operário na empresa Intelli, morador do Conjunto Habitacional Vila São João. O jovem salienta que um dos locais de convívio social entre os moradores das classes mais pobres é marcado por confrontos de grupos rivais. Ao ser indagado sobre os locais de convívio social, os quais o jovem frequenta, afirmou:

“Eu nunca fui de ir em bailes de forró como a maioria dos nordestinos, eu preferia ir mais pra rua 1 (rua central da cidade de Orlândia) (...), lá é meio que um ponto de jovens, (...) íamos lá para conversar, beber conhecer outras pessoas, mas geralmente sempre dava umas brigas, brigas de bairros né, são brigas entre grupos, meio que rivais, dá pra ver que têm uma rivalidade entre a Vilinha (C. H. São João), o Brazão (C.H. Jardim J. Vieira Brazão) e o Multirão (C. H. Edgar Beninni).” (W.R., 2017) [10]

Assim, o par centro-periferia, para a presente pesquisa, não está ligado somente as questões geográficas e econômicas. Mas também a noção de como os moradores se identificam e se observam inseridos nos espaços da cidade. A concepção de região, ou espaço aqui adotada, vai além de uma mera análise de uma região física, ou seja, a construção das marcas do centro e da favela estão ligadas a partir de uma representação acerca dos sujeitos desta cidade; onde tal representação é difundida e legitimada, tendo uma concepção de real. As análises do filósofo francês Henri Lefebvre acerca da compreensão de como se dá a constituição dos espaços, propõem que pensemos estes como um produto ligado à uma concepção de espaço mental, físico e social, que se constitui através das relações dos sujeitos que habitam nos espaços. (LEFEBVRE, 2006: 70-154). Portanto, podemos inferir que são os habitantes de Orlândia que moldam o espaço do centro e da periferia a partir das relações que estabelecem.

Além da caracterização deste espaço como produção mental, física e social, podemos indagar sobre as relações de poder que permeiam as relações sociais na constituição das regiões. Segundo Pierre Bourdieu (1989) a região nada mais é do que uma construção simbólica de um determinado grupo dominante. O autor argumenta que estas regiões se formam a partir do embate no campo simbólico, seja para dominar como para manter a dominação e consequentemente o poder de um grupo sobre o outro (BOURDIEU, 1989). A formação da região, ou espaço, aqui abordada se deu através de uma disputa, através da violência simbólica, que caracterizou determinado grupo como moradores de favelas. Outrossim, o espaço aqui proposto como “favelas orlandinas”, são regiões periféricas da localidade que através da violência simbólica, ou seja, os estigmas, de locais violentos, redutos de pobreza, foram representados como “favelas”.

Mas sem sombra de dúvidas as relações sociais desta cidade a partir do século XX passaram a mudar drasticamente. Com a chegada das famílias nordestinas surgiram aos poucos novos discursos, novas relações de poder e consequentemente novos estigmas. Mesmo em um local segregado entre periferia e centro, o que se observa com a inserção dos nordestinos é a criação do discurso do “nós”. Discurso este que buscará diferenciar novos moradores (eles), dos antigos moradores (nós).

O discurso, centro-periferia nos dias atuais não desapareceu. O que mudou, ou melhor, o que nasceu foi a diferenciação, a criação de uma hierarquia dentro desta periferia pobre. Surgem, na elaboração simbólica, duas periferias pobres: uma dos estabelecidos paulistas e outra dos outsiders nordestinos. A fala de um morador (estabelecido) de longa data de uma das periferias retrata bem o nascimento de um novo estigma entre os moradores, ao discutir sobre os indivíduos que moram no C. H. Jardim José Vieira Brazão, afirma que:

“(...) todos nós somos pobres, mas eles são um tipo de pobre diferente, é como se eles fossem um grupo à parte aqui no Brazão, (...) antes de eles virem para cá, quem sofria com ser chamado de pobre, miserável era a gente, mas agora parece que a gente faz isso com eles, não que eles sejam isso, muitos deles são melhor de vida que eu e minha família, mas por terem vindo de fora e não pertencer a cidade, a gente ainda coloca eles como abaixo da gente.” (Sr. J.C., 2017)

Norbert Elias (2000) nos esclarece sobre a importância de se analisar a questão da estigmatização como um aspecto fundamental, a fim de compreender a figuração “estabelecidos e outsiders”, sobretudo a que se dá em uma construção social, como é o caso da relação entre paulistas e nordestinos em Orlândia, ou mais precisamente nas “favelas orlandinas”. A fala de um jovem outsider, reflete além do estigma das favelas, o novo estigma criado com a entrada das famílias migrantes, onde observamos o forte sentimento de exclusão, ao testemunhar a sua e a visão dos moradores da cidade sobre seu bairro um jovem outsider de 22 anos, operário na empresa Intelli observa:

“A gente aqui morou sempre na periferia, e aqui na Vilinha (C. H. São João) já têm um preconceito maior sobre isso, por que aqui é lugar de pobre né?! E a galera que mora no centro da cidade adora deixar isso claro, mas têm umas questões que vão um pouco além disso, parece que ser pobre já é ruim, mas ser pobre e nordestino é um degrau mais abaixo ainda.” (W.R., 2017)

A fala de W. R. ilustra auto depreciação pela incorporação do estigma do “outro”. Observem que a estigmatização, para Elias (2000) é vista como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associada a um tipo específico de idealização coletiva criada pelo grupo estabelecido, refletindo e justificando o preconceito que seus membros sentem perante os que compõem o grupo de outsiders. Assim, nessa concepção, “o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na autoimagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desanimá-lo” (ELIAS, 2000, p. 24).

 

O novo discurso do estigma: entre Estabelecidos e Outsiders

Nas favelas orlandinas, a busca de diferenciação entre os antigos e os novos moradores se deu baseada na construção da ideia de “nós” e os “outros”, ideia essa bem observada por Norbert Elias (2000). Seu estudo apontou para uma dimensão vivida das relações “estabelecidos e outsiders”, na qual, a figura colocada pelo grupo dominante ao grupo dominado é a do “outro”, do estrangeiro, definida por suas dessemelhanças. Nesse sentido, o outro é concebido como aquele que vem e se instala em um território pertencente ao grupo dos já estabelecidos.

Um dos pontos marcantes que é pensado como forma de semelhança entre os indivíduos do grupo outsider é o sotaque. Este é utilizado para a diferenciação dos moradores, a forma de falar, as gírias utilizadas pelos novos moradores os distinguem visivelmente dos antigos moradores. É a partir, também, deste sotaque, que se constrói a noção do “eu” ou “nós” que caracteriza os estabelecidos. Segundo um jovem estabelecido, de 22 anos, universitário, o sotaque deixa evidente “que eles não são daqui, eles falam puxado, e a gente não fala assim, aí qualquer lugar que eles vão que não é lá onde eles moram, a gente já percebe de longe que é um piauí” (G.I. 2017).

A expressão usada por este jovem “piauí”, é uma forma de generalização, usada pelos estabelecidos ao se referirem a todos os migrantes nordestino. O grupo de migrantes é generalizado pelo grupo estabelecido, na fala da jovem estabelecida, A. B., de 27 anos, radialista: “eles falam bem parecido, se vestem e têm os mesmos hábitos, aí parece que todos vieram da mesma região”. (A. B., 2017)

Na entrevista realizada com a Sra. M. F., outsider de 57 anos, trabalhadora autônoma (vinculada ao trabalho com cigarros artesanais), a mesma evidencia a generalização por parte dos estabelecidos a todos os migrantes nordestinos.

“(...) uma coisa que me deixava muito brava, era que eles chamavam a gente tudo de piauí isso me deixava muito brava mesmo, eu não sou do Piauí, não tenho nada contra quem venha de lá. Mas eu não nasci lá. Eu sou do Pernambuco, e odiava que me chamasses de piauí, parece que eles não enxergavam que a gente é tudo diferente, eles falavam que a gente fala igual, mas não é bem assim não.” (M.F., 2017)

Esta generalização também é evidenciada pelo jovem outsider M.F.S de 23 anos, trabalhador autônomo (vinculada ao trabalho com cigarros artesanais):

“Uma das coisas que mais enchia o saco era que muitos julgavam a gente por nossa forma de falar, o sotaque, isso era uma das coisas que mais falavam (...). O problema é que eles nos colocavam como todo mundo igual, como se todos tivéssemos vindos de um único lugar, eles até colocaram um apelido nos nordestinos, eles nos chamavam de piauí, todos eram chamados.” (M.F.S., 2017)

A proposta de homogeneização deste grupo, ao incorporar todos os nordestinos como piauís, é uma das inúmeras generalizações difundidas entre os estabelecidos. Outros discursos difundidos relacionavam-se com a ideia de que estes migrantes estavam apenas voltados aos trabalhos com a cana-de-açúcar, palha e construção civil; que eles roubariam os empregos dos homens e mulheres naturais da cidade. Estes discursos generalizadores, fazem parte do processo de violência simbólica do grupo estabelecido sobre outsiders.

Os discursos construídos geram, além da exclusão, o fortalecimento de uma hierarquia social na sociedade desta cidade. Outro exemplo muito abordado nas entrevistas tanto com famílias estabelecidas como de outsiders é a generalização sobre o gosto musical dos migrantes nordestinos. O forró, típico da região Nordeste, ganhou espaço na cidade de Orlândia com a chegada dos migrantes. Ao longo do início dos anos 2000, algumas casas de show e clubes periféricos da cidade passaram a realizar suas atividades nos finais de semana, levando nordestinos a frequentar estes locais.

Para alguns nordestinos, como o jovem M. F. S. de 23 anos trabalhador autônomo (vinculada ao trabalho com cigarros artesanais), os bailes de forró eram “uma forma de reviver as raízes de minha terra” (2017). Nestes locais o jovem observa que inicialmente eram frequentados apenas por nordestinos. Muitos estabelecidos se negavam a frequentar estes bailes devido a crença de não pertencerem a estes espaços. Segundo o entrevistado J. C, senhor estabelecido de 57 anos, funcionário público:

“(...) nunca fui de ir muito nos bailes de forró lá no centro de lazer, primeiro por que não é algo pra gente daqui, é um lugar deles e segundo por que o local é violento, tem muita gente que vai lá só pra causar encrenca, e não adianta de nada ter segurança lá, por que quem faz a segurança é eles mesmos então do que adianta.” (J.C., 2017)

Dois pontos neste fragmento são de suma relevância para compreender este espaço de lazer, o primeiro se encontra na fala do entrevistado, ao apontar que “não é algo para gente daqui”, este discurso é difundido tanto por estabelecido, quanto para outsiders. O segundo aspecto diz respeito a percepção deste espaço como um local violento. De facto, para os nordestinos o forró é compreendido como parte da sua cultura, e não da cultura paulista. Assim, mesmo que estes ambientes sejam abertos a todos os públicos, e com o passar do tempo ambos passem a frequentá-lo, um jovem nordestino, ao falar sobre os forrós, argumenta que estes locais são destinados aos nordestinos.

“Minha família frequentava bastante um clube que era perto do nosso bairro, o nome era Centro de Lazer (Centro de Lazer Edgar Beninni), lá tinha bastante baile de forró, não cobravam a entrada você só pagava o que consumia, era bem legal, era viver um pouco da nossa raiz, e também quem frequentava era só o pessoal vindo do Nordeste, tinha muito pouca gente de fora, mas com o tempo parece que foi aumentando o número de paulistas lá, mas muitos dos nordestinos não gostavam dos paulistas lá, não sei parece que ali não é o lugar deles né, eles mal sabem o que é forró ou como se dança.” (M.F.S., 2017)

O segundo ponto importante apresentado no fragmento anterior, na entrevista de J. C, senhor estabelecido de 57 anos, funcionário público, é a ideia dos bailes de forró como locais violentos, ao propor que não era de frequentar estes locais. Essa afirmação nos conduz ao seguinte questionamento: como este estabelecido tem a informação destes locais serem violentos? A resposta a esta pergunta é proposta na análise de Elias quando se refere ao “poder da fofoca” (ELIAS, 2000).

A fofoca para esta comunidade paulista possui o poder de não somente difamar os bailes de forró, mas também de manter o estigma e a exclusão deste grupo, além de evitar que moradores estabelecidos participem devido ao “medo da violência” presente nestes locais.

Uma moradora estabelecida, a Sra. M.A., ao falar sobre os bailes de forró, demonstra inicialmente interesse em frequentar estes locais de lazer e convívio social, mas este interesse é logo deixado de lado.

“(...) eles (nordestinos) começaram a fazer até uns locais só pra eles frequentarem aqui na cidade, tipo estes bailes de forró sabe, eu nunca fui, tinha até vontade de ir para conhecer mas só que lá é um lugar perigoso, a gente sempre escuta no rádio na hora do almoço que deu briga lá, um arrancou a peixeira pro outro. Ah! Já viu né?!” (Sra. M.A. 2017)

Outros moradores reforçam a visão das fofocas sobre os bailes de forró como podemos observar na fala de um estabelecido na região central da cidade de Orlândia. Como por exemplo, se observa no fragmento abaixo:

“A gente sempre fica sabendo das festas que eles organizam no Centro de Lazer Edgar Beninni, (...) sempre têm festas de forró, mas pelo que falam se tornou um lugar até pior de como era antes. É que antes esse lugar era voltado para o pessoal das favelas, (...) mas com a chegada dos nordestinos eles perderam esse lugar, ou frequentam com eles, isso eu não sei te dizer bem por que nunca fiz questão de ir em um lugar assim, nem eu nem minha família. Mas a gente sempre sabe que esse tipo de lugar só junta gente que não presta.” (Sr. L.A., 2017)

Um jovem outsider também observa que as brigas e a violência não estavam presentes somente nos bailes de forró.

“(...) as pessoas falam que nos bailes de forró dá muita briga com faca e sempre saiam alguém ferido de lá que tem pouca segurança e os seguranças não se envolviam por que era tudo gente conhecida, mas isso eu já não concordo acho que briga tem em todo lugar, tinha briga na rua 1 e também têm briga nos forrós e nem por isso o pessoal deixava de frequentar esses lugar.” (W.R., 2017)

Se observa que ao longo da entrada das famílias nordestinas nas periferias da cidade de Orlândia, houve uma constante busca de diferenciar, classificar, legitimar e hierarquizar os indivíduos que pertencem a essas regiões.

Os outsiders na cidade de Orlândia, possuem uma série de estigmas criados pelos estabelecidos, na busca da diferenciação do “nós” e dos “outros”, evidente entre os fragmentos aqui apresentados, esta diferenciação se tornou visível a partir da disseminação de discursos que em poucos anos se tornaram estigmas para as famílias migrantes nesta cidade.

Tais discursos, difundidos entre o grupo estabelecido de distinguir os moradores “naturais” dos recém-chegados, cristaliza discursos estigmatizantes, em especial destacamos, em uma entrevista realizada como uma jovem outsider, que chega a cidade paulista em 2008, a jovem ao tratar sobre o preconceito na cidade, observa que entre os discursos difundidos, está a negação da ascensão social do grupo outsider.

“Por minha mãe ser mãe solteira acho que foi até um pouco pior do que em outros casos, nós morávamos só eu, ela e minha outra irmã, e ela batalhou muito pra conseguir manter a gente, tivemos muito a ajuda de alguns parentes nosso que já estavam morando aqui, principalmente de um dos meus tios, que conseguiu ganhar um bom dinheiro no auge da cana, e conseguiu comprar casa, ele até tinha algumas casas alugadas aqui no bairro da vilinha. Mas ele não é rico, pra nós rico é quem mora no centro e nos condomínios, aqui não importa o tamanho da sua casa, o quanto ganha por mês o importante é o local onde você mora, isso é o importante, ele pode ser dono de todo nosso bairro, mas vai continuar sendo um nordestino, e isso parece ruim, par mim e pra minha família não é mas pro pessoal da Vilinha sim, e não só pra eles né pra todo mundo daqui, a casa dele é uma das maiores no bairro, mas só que por ser nordestino nunca vai ser igual a casa do Centro. Minha mãe acha que isso é bobagem, que eu to vendo coisa aonde não existe, eu já acho que ela que não quer ver.” (T. C. da S., 2017).

Os reflexos destes estigmas construídos a partir da violência simbólica, apresentados até aqui, em especial o da naturalidade no local, aos poucos passam a perder força. Em especial isto se dá pelo fato de que muitos migrantes se estabeleceram na cidade e constituíram núcleos familiares, tendo gerado novas gerações já nascidas em São Paulo, tornando-se paulistas. É a partir disto que um novo discurso começa a ganhar força a partir do século XXI, um discurso de “pureza de sangue”, de facto, a ancestralidade entra em foco, onde se cria a concepção de “eu sou mais paulista que você”.

Esta concepção que aqui propomos, é bem observada pelo sociólogo brasileiro Sérgio Costa ao analisar o contexto da Alemanha, acerca da alta migração de novas famílias. Ainda que o foco não seja esta discussão de ancestralidade, o autor nos evidencia um discurso presente entre as famílias alemãs “legítimas”, ou seja, de famílias que seus ancestrais vivem nesta região “desde sempre”, em contraponto com as famílias turcas, cuja imigração para esta região remonta há séculos atrás (COSTA, 2012: 249-250). Assim, o que se observa neste caso evidenciado pelo sociólogo brasileiro, é que se criou nesta sociedade uma concepção de “pureza de sangue”.

Aqui se situa, precisamente, o impasse no discurso nacional alemão hoje. Descendentes de imigrantes, mesmo possuindo a cidadania formal alemã, ocupam o lugar de alvos e de destinatários do discurso nacional, mas não podem ser sujeitos desse discurso. Isto é, não podem “performar” sua condição de alemães. Há algumas poucas exceções a essa regra (...) Ou seja, quando se destacam em concursos artísticos, se tornam rappers conhecidos ou marcam os gols que levem a seleção de futebol adiante, os descendentes de imigrantes vivem seus dias de alemã ou alemão. Em todos os outros dias e em todas as outras situações, são, contudo, pessoas com histórico de imigração. (COSTA, 2012: 250).

A discussão proposta por Costa (2012) não parece diferente da situação encontrada por nós em Orlândia entre os anos 1980 e 2000. Os discursos das famílias estabelecidas, que inicialmente se pautava na concepção de naturalidade do local, distinguia e homogeneizava o grupo recém-chegado, seja inicialmente através do sotaque, assim como pelo gosto musical. Tais discursos ao perderem a força, são aliados a novos discursos, como é o caso do discurso atual, que perpassa a migração que se iniciou há pouco mais de 30 anos.

Assim, o atual discurso de ancestralidade, ainda contribui para a dominação de um determinado grupo sobre o outro, em especial o estigma de uma “pureza de sangue”, pode ser bem sintetizado na indignação de uma senhora, migrante nordestina, que chegou na cidade no início dos anos 1980.

“A gente sempre sofreu, nem mais nem menos, que os outros nordestinos, (...) e, por incrível que pareça. Nossos filhos também, é estranho né eles nasceram aqui mas eles eram considerados nordestinos, eu não entendi bem o porquê, mas parece que o pessoal queria separar um pouco. Mas dá pra ver que eles separam não só os que nasce aqui dos que veio de fora da cidade deles, por que o meu casal nasceu aqui, mas eles, colocam eles como nordestinos, não entendo como funciona isso.” (Sra. R.L., 2017)

 

Considerações Finais

A inserção das famílias nordestinas nas “favelas” orlandinas foi marcada por uma série de embates no campo simbólico. Uma cidade que, desde sua fundação, teve a divisão e a hierarquização de sua população em uma dicotomia (periferia – centro). A chegada de inúmeras famílias vindas dos diferentes estados nordestinos que se estabeleceram nas regiões periféricas acentuou essa dicotomia.

É neste meio que nasce a construção de uma ideia pautada no “nós” e os “outros”, de um lado uma parcela da sociedade que se considera como superior, pela ideia de pertencimento ao local, construindo assim uma série de discursos pejorativos embebidos em inúmeros estereótipos, na busca de estigmatizar as famílias recém-chegadas. Do outro, as famílias migrantes nordestinas que acabam incorporando os estigmas que acompanham os outsiders.

As marcas colocadas nestas famílias são inúmeras, seja a do nordestino como um ladrão de empregos; trabalhador braçal; amante do forró; o que fala “arrastado”; assim como a própria ideia de “o nordestino”, um grupo homogêneo, seguido pelo termo “piauí”, onde o principal meio de propagação de legitimação destas marcas é a fofoca.

Portanto, um aspecto importante que buscamos salientar é o fato de que não foi somente a construção deste discurso estigmatizante através da fofoca, mas também a busca de controle do próprio grupo através dessa. Por meio dela se construiu uma imagem dos bailes de forró como lugares violentos, não somente para estigmatizar, mas também, como evitar que os estabelecidos desta localidade paulista frequentassem este local.

Assim, se observou que estes grupos, estavam em constante disputa, de um lado tendo os estabelecidos paulistas propondo e legitimando os estigmas aos nordestinos; do outro, algumas famílias migrantes se posicionavam na disputa de seu espaço simbólico e físico (ex: bailes de forró), buscando pôr fim aos discursos construídos desde sua chegada.

 

REFERÊNCIAS

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Entrevistas

A. B. jovem estabelecida de 27 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

A. C. senhora outsider de 45 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

G. I. jovem estabelecido de 22 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

J. C. senhor estabelecido de 57 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

L. A. senhor estabelecido de 51 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

M. A. senhora estabelecida de 65 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

M. F. senhora outsider de 57 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

M. F. S. jovem estabelecido de 23 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

R. L. senhora outsider de 47 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

T. C. da S. jovem outsider de 22 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

W. R. jovem outsider de 22 anos. Entrevista realizada em junho de 2017.

 

Received: 15-11-2017; Accepted: 13-07-2018.

 

NOTAS

[3] Apesar da contínua melhora da condição econômica na região Nordeste (foi a renda que mais cresceu até 2009), em números absolutos, ainda é a região que apresenta a renda média mensal mais baixa (Nordeste: R$ 734,00; Norte: R$ 921,00; Sul: R$ 1.251,00; Sudeste: R$ 1.255,00; Centro-Oeste: R$ 1.309,00; dados referentes a 2009) (IBGE, 2012).

[4] Em 2004, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o então Governador Geraldo Alkimin, se referiu a esta região como um “mar de cana”, que produzia diariamente um “rio de álcool”. Segundo informações deste mesmo jornal, a região Agro Canavieira de Ribeirão Preto, a qual engloba cerca de 25 cidades, possui uma área de 384.758 hectares de cana-de-açúcar.

[5]A extração da palha para a fabricação de cigarros artesanais é típica da cidade de Sales Oliveira – SP. Com pouco mais de 11 mil habitantes, 30% da economia da cidade é derivada das mais de 100 empresas e microempresas que se dedicam a esta atividade. A primeira etapa deste processo está ligada a separação da palha do milho nas plantações, onde boa parte da mão de obra inicial é derivada da cidade de Orlândia, cidade vizinha a Sales Oliveira, também em São Paulo.

[6] No restante do texto utilizaremos a abreviação “SP” para nos referirmos ao estado de São Paulo.

[7] Nessa obra, o autor realizou um estudo sobre uma pequena comunidade que tinha por núcleo um bairro relativamente antigo e, ao redor dele, duas povoações formadas em época mais recente. Na representação sobre o espaço urbano, esse bairro específico era tido como uma zona de delinquência, de baixo nível, embora não possuísse diferenças de nacionalidade, ascendência étnica ou cor da pele. O que basicamente diferenciava os dois grupos era o tempo de residência no local. As relações estabelecidas nesta comunidade acabam por fortalecer as relações de poder, de status e as tensões que lhes estão associadas, fixando, como consequência, os rótulos de inferioridade a um dos grupos.

[8] Na periferia de Orlândia existem sete conjuntos habitacionais. Nossos entrevistados residiam em dois bairros (Brazão e Vila São João). CH Antônio Martins; CH Júlio Bucci; CH José Vieira Brazão; CH José L Simões; CH Vila São João; CH Max Define; CH Nova Orlândia, construídos todos entre 1970-2000 e que estão localizados em três regiões geográficas: Sul, Leste e Oeste da cidade (destaque a região Oeste, é onde fica o centro da cidade, e ao lado do centro existem bairros ditos ricos como o Jardim Teixeira, todavia, ao lado deste existe o CH Nova Orlândia e CH Edgar Beninni)

[9] Referência a obra cinematográfica brasileira Cidade de Deus (2002), dos diretores Fernando Meireles e Kátia Lund. Esta obra traz em seu enredo o cotidiano e história de uma das regiões periféricas mais conhecidas do Rio de Janeiro, o Bairro Cidade de Deus, localizado na zona oeste desta cidade, entre as principais características desta obra destacam-se aspectos como a violência, trafico de drogas e a pobreza.

[10] Os nomes das localidades foram incluídos pelos pesquisadores.

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