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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.9 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGO

Das colinas de Lisboa: as “avenidas aéreas” nunca construídas

About Lisbon hills: the never built “aerial avenues”

Ana Cristina Martins Barata*

* Fundação Calouste Gulbenkian-Biblioteca de Arte e Arquivos, 1067-001 Lisboa, Portugal. abarata@gulbenkian.pt

 

RESUMO

A beleza natural de Lisboa, cidade disposta em anfiteatro com o casario escorregando das colinas para o Tejo, foi, ao longo dos séculos, um dos aspetos mais celebrados pelos viajantes que por ela passaram e deixaram as suas impressões em numerosos relatos escritos. Mas, se a natureza foi magnânima em dotar a capital de copiosos encantos, revelou-se igualmente pródiga em criar obstáculos topográficos, dificultando a circulação de pessoas e bens e despertando em alguns lisboetas, a vontade de vencê-los através de grandiosos viadutos ou “avenidas aéreas”. Entre 1880 e 1910, num período em que a cidade conheceu um importante desenvolvimento urbanístico graças ao plano do engenheiro Frederico Ressano Garcia para as avenidas novas, aprovado em 1888, foram diversas as propostas e projetos apresentados nesse sentido, alguns aprovados pelo coletivo camarário, mas sem que nenhum deles chegasse a ter qualquer concretização.

 

PALAVRAS-CHAVE

Viadutos / Projetos não realizados / Melhoramentos / Avenidas aéreas

 

ABSTRACT

The natural beauty of Lisbon, a city set in an amphitheater, with the houses slipping from the hills to the Tagus River was, over the centuries, one of the most celebrated aspects by travelers who visited the city and left their impression in numerous writings. But if nature was too magnanimous to endow the capital with numerous charms, it proved equally lavish in creating topographical obstacles hampering the flow of people and goods, awakening some citizens to overcome them through some projects of magnificent viaducts or “aerial avenues”. Between 1880 and 1910, in a period in which the city experienced an important urban development due to the plan of the engineer Frederico Ressano Garcia for the “avenidas novas”, several proposals were presented with this purpose, some approved even by the Municipality but none of them had any concretization.

 

KEYWORDS

Viaducts / Unrealized projects / Urban improvements / Aerial avenues

 

PRÓLOGO

Em 1928, uma pequena notícia no jornal O Século testemunhava o espírito inventor dos lisboetas divulgando aos seus leitores que o senhor Pascoal Marcelino Cardoso, preocupado em aliviar as dificuldades do trânsito entre os pontos altos da cidade, tinha inventado uma forma “de atenuar, pelo menos até certo ponto” este problema. A sua engenhosa invenção, denominada “aeroplano cativo”, consistia na construção “de torres na Graça, no Castelo de S. Jorge, no Carmo e em S. Pedro de Alcântara, das quais sairiam as «cabines», em forma de vagão ou de aeroplano, suspensas de grossos cabos de aço e accionadas por potentes motores electricos”. Aspeto curioso eram os aproveitamentos secundários que poderiam ser dados a estas torres: dizia-se no artigo que elas “poderiam ainda ser aproveitadas para instalações de cervejarias” ou servir “para divertimento publico, nas feiras...”1. Esta proposta – cujo caráter fantasioso faz lembrar algumas das que o escritor e ilustrador francês Albert Robida (1848-1926) apresentou na sua obra Le Vingtième Siècle, publicada em 1883 – era o culminar de uma série de outras que foram sendo apresentadas ao escrutínio público desde a década de 80 de Oitocentos.

O arranque dos trabalhos da construção da avenida da Liberdade, em agosto de 1879, marcou definitivamente o eixo de desenvolvimento da cidade2. A nova artéria de inspiração haussmanniana marcou o arranque de uma nova fase no seu crescimento urbanístico e, depois de alguma polémica inicial3, rapidamente os lisboetas passaram a “fazer a Avenida” como anteriormente faziam o velho Passeio Público setecentista pensado pelos arquitetos do marquês4. De resto, a nova cidade que se desenhou, estrangeirada, geométrica, higiénica, burguesa e arejada para lá do vale do Pereiro não conseguiu, pelo menos até ao final da década de 1920, substituir o eixo formado pelo Chiado, Rossio e Terreiro do Paço, continuando o fervilhar da vida económica, política e social de Lisboa a desenrolar-se entre este triângulo e os velhos bairros herdados do urbanismo pré-pombalino.

Paralelamente à cidade real que se transformava à medida da vontade e das possibilidades financeiras dos poderes em presença – central e municipal –, foi surgindo uma Lisboa imaginária, construída com desejos e expectativas de modernização e cosmopolitismo e baseada na exaltação dos seus encantos naturais. Esta idealização, aliada ao desejo expresso de completar, pela ação do homem, a obra iniciada pela natureza, teve como resultado o surgimento, entre 1880 e 1910, de uma série de propostas e projetos de caráter utópico e de ficções especulativas acerca do seu desenvolvimento urbanístico.

Túneis que esventravam as entranhas da cidade, viadutos que cruzavam os seus vales, pontes ou túneis unindo as duas margens do Tejo. Se todos estes projetos tiveram em comum o facto de não terem sido concretizados na época em que foram pensados e propostos ao escrutínio dos seus contemporâneos, também os une o facto de os seus autores terem sido motivados por uma reflexão crítica em relação à Lisboa que existia e aos rumos que tomava o seu crescimento. Os viadutos com que o engenheiro Miguel Pais melhorava os problemas de circulação viária causados pelas colinas e vales, e que tinham na Lisboa Monumental de Fialho de Almeida um caráter fundamentalmente estético, contribuindo mais para valorizar os atributos naturais da cidade do que propriamente melhorar-lhe a circulação, são talvez o exemplo mais perfeito de como os modelos estrangeiros5 não se limitaram a ser simplesmente apropriados em Lisboa.

 

OS VIADUTOS DO ENGENHEIRO MIGUEL CORREIA PAIS

Talvez o engenheiro Miguel Pais (1825-1888) tenha sido o primeiro a desejar resolver as dificuldades das ligações entre as zonas elevadas da cidade6. Na sua obra Melhoramentos de Lisboa e seu porto, publicada em 18827, este engenheiro expunha à consideração dos seus contemporâneos diversas propostas e projetos destinados a contribuir não só para a rápida e fácil circulação de pessoas e veículos, como também para o engrandecimento da capital. Partindo sempre do princípio de que era “absolutamente indispensavel delinear um plano geral de melhoramentos, mas com uma certa grandiosidade, tendo em vista o movimento collossal que Lisboa terá em um futuro não muito remoto”, porque, como escrevia, “um projecto geral acanhado é peior que não apresentar nenhum”8, e consciente das dificuldades de uma cidade que na “sua parte mais central apresenta differenças de nivel até 60 metros entre as linhas de thalwegs e as cumiadas”9, Miguel Pais revelava como entendia poderem ser vencidas as dificuldades de natureza topográfica: “ligando os valles por meios de tunneis e as cumiadas por meio de viaductos”10. Estes viadutos, que seriam construídos muito provavelmente em aço11, eram para Pais as obras mais certas para a resolução do problema de circulação na cidade porque implicavam apenas um “custo relativo” e seriam de fácil construção12.

O primeiro viaduto destinava-se a ligar o largo do Caldas com o Chiado, “para não obrigar, pois, todo o movimento entre a parte alta oriental da cidade a descer ao valle central, para subir pelas avenidas da encosta direita ao Chiado e á principal cumiada de Lisboa, ou inversamente, descer d'esta para a rua da Magdalena...”13. Este viaduto teria um total de 330 metros de cumprimento e 12 de largura – “atendendo ao grande movimento que é destinado a satisfazer” – e passaria por cima dos telhados dos prédios da Baixa, com 30 ou 40 metros de abertura entre os tramos14. Esta “obra de arte”, escrevia Pais, “se fôr convenientemente traçada e o seu projecto estudado com esmero, decoração bem adequada, mas simples, elegante e económica” seria “uma das construcções mais importantes e imponentes que ha a construir em Lisboa”. E, surpreendentemente, nem seria das mais dispendiosas: Miguel Pais estava convencido que o seu custo total, já com as necessárias expropriações, não excederia a quantia de 200:000$00 réis15.

 

 

Miguel Pais descrevia o segundo viaduto como “a obra de arte, destinada á viação publica, mais grandiosa, mais imponente e mais esplendida que póde construir-se em Lisboa”, destinando-o a ligar cumeadas da Graça e da Estrela, passando pelas cumeadas do Campo de Santana e do Príncipe Real. Esta construção não teria paralelo em nenhuma outra existente em cidades da época, nem mesmo, dizia Pais, seria comparável ao grande viaduto que ligava, por caminho de ferro, Londres com Greenwich. Seria, de facto, uma construção grandiosa, “de assegurado effeito scenographico”, com uma extensão total (“desde a rua direita da Graça, á esquina da rua da Bella Vista da Lapa e calçada da Estrella”) de 2.570 metros, com uma largura nunca inferior a 16 metros e com uma altura máxima de 50 metros16. Quanto ao percurso, Pais descrevia-o em detalhe:

Começará na rua Direita da Graça,... proximo do caminho da Charca e quartel da Cruz dos Quatro Caminhos; passará na encosta do Monte, sobre a rua Nova da Palma, proximo da travessa Nova do Desterro, sobre o edificio da escola medico-cirurgica, ao norte do hospital de S. José, em frente da fachada sul do convento de Sant'Anna, sobre a travessa do Convento das Freiras, proximo ao largo da Annunciação... sobre o Passeio Publico, palacio do conde do Lumiar,... sul da praça do Principe Real, ruas dos Jasmins e da Procissão, praça das Flôres, rua de S. Bento... cruzando sobre as ruas dos Ferreiros e a travessa de Santa Gertrudes, a terminar... na esquina da calçada da Estrella e rua da Bella Vista da Lapa17.

No entanto, como este percurso era muito extenso, Pais propunha dividir este viaduto em três partes: “1ª Entre a Graça e o Campo de Sant'Anna; 2ª Entre o Campo de Sant'Anna e praça do Principe Real; 3ª Entre a praça do Principe Real e Estrella”18. Em termos de circulação, contemplaria a “viação ordinaria”, mas igualmente permitiria a viação de “carros americanos com tracção cavallos ou a vapor”, e teria como objetivo poupar “á gente e aos animaes as inumeras fadigas a que obriga o passar de umas cumiadas para as outras... uma serie de horrores em descidas e subidas...”19. Infelizmente, Miguel Pais não incluiu na sua obra nenhum esboço ou peça desenhada que melhor deixasse visualizar os seus projetos.

 

OUTRAS PROPOSTAS PARA A CONSTRUÇÃO DE “AVENIDAS AÉREAS

Coincidência ou não, no ano seguinte ao da publicação do 1º volume da obra de Miguel Pais, a Comissão de Obras Municipais teria recebido para apreciação uma proposta que incluía a construção de diversos viadutos metálicos na cidade20. E ao longo da década de 1880, a municipalidade lisboeta teve mesmo que analisar e pronunciar-se sobre várias propostas que lhe foram chegando com o mesmo propósito. Na ata da sessão camarária de 15 de março de 1883 é referido que o município tinha recebido do Ministério das Obras Públicas um ofício que incluía

um processo composto por documentos, n'um dos quaes se encontra exarado o despacho do respectivo ministro para ser ouvida a camara, ácerca da concessão pedida por João Anastacio Carvalho e Carlos Zeferino Pinto Coelho para ligarem por viaductos os bairros da Estrella e Buenos Ayres com a praça do Principe Real ou com o largo de S. Pedro de Alcantara, qualquer d'estas alturas com a do campo de Sant'Anna... ou as suas proximidades, esta ultima com a do monte da Graça ou Castello, ou qualquer ponto proximo d'estas; devendo os valles respectivos comunicarem-se com os viaductos por via de ascensores mechanicos, comunicando-se entre si os viaductos por linhas de carros americanos21.

Mas o resultado desta apreciação não ficou registado.

O ano de 1888 foi não só prolífero na apresentação de projetos de viadutos, uma vez que foram expostas para apreciação da Câmara Municipal mais propostas, como também nesse ano se registou uma alteração na posição camarária em relação a este tipo de projetos. A primeira proposta a chegar para apreciação – que terá agradado especialmente aos membros da Comissão de Obras Municipais – foi apresentada por um grupo representado por um engenheiro francês de nome Camille Verdier. Logo a seguir ao projeto de Verdier, mais dois foram apresentados à consideração da edilidade da capital. O primeiro, datado de 2 de setembro, denominava-se Anteprojecto da Avenida aerea de Lisboa n'um viaducto metallico desde S. Pedro d'Alcantara por Sant'Anna á Graça e era assinado pelo engenheiro Ângelo Sarrea de Sousa Prado22. Compunha-se de uma Memória descriptiva e de um conjunto de peças desenhadas contendo todas as descrições técnicas necessárias à sua construção. Tal como o segundo viaduto de Miguel Pais, também esta proposta, que aparece designada por “avenida aerea”, ligaria três colinas: Santana, S. Pedro de Alcântara e Graça.

 

 

 

 

O segundo projeto, intitulado Ante-projecto da ponte metallica entre S. Pedro d'Alcantara e o Campo dos Martyres da Patria e d'este ponte á Graça, foi apresentado alguns meses mais tarde, em 28 de novembro, e era assinado por João Anastácio Gonçalves de Carvalho e Carlos Zeferino Pinto Coelho23. Este projeto terá constituído uma segunda tentativa dos seus autores de o verem aprovado, uma vez que se trataria, provavelmente, de uma nova versão daquele que tinha já sido apresentado uma primeira vez, em 188324.

Cada uma destas duas propostas era composta, respetivamente, por uma “memoria descritiva” e peças desenhadas, e ambas coincidiam na construção de dois viadutos: um maior, que atravessaria o vale central da avenida da Liberdade, e um de menor dimensão, ligando a colina do Campo de Santana à colina da Graça. As diferenças que os separavam eram, por um lado, de caráter decorativo e, por outro e mais importante, a solução encontrada no projeto de Sarrea Prado para o troço do viaduto no Campo de Santana, que terminaria numa grande rotunda de onde sairia o segundo troço em direção à Graça. O projeto de Prado apresentava ainda uma outra particularidade: um imponente edifício, de planta circular, numa linguagem decorativa próxima do ecletismo arquitetónico em voga por aqueles anos.

Em 1889, as Actas das Comissão Executiva da sessão de 30 de agosto davam conta que o presidente tinha informado que tinha expirado o prazo para a apresentação de propostas e projetos para a “construção d'uma ponte metallica partindo de S. Pedro d'Alcantara e terminando na Graça” e que apenas tinha sido apresentado um “projecto pelo representante em Lisboa da Socièté John Cockerill de Seraing” e por um “engenheiro em Paris” de nome F. Seyrig. Depois de apreciado, a Comissão Executiva camarária decidiu rejeitá-lo por considerar que não cumpria os requisitos por si estipulados25.

Apesar desta proliferação de projetos, do interesse manifestado pelo executivo camarário pela proposta de Camille Verdier26 e de algum destaque dado por certa imprensa da capital a este último projeto, a ligação dos pontos altos da cidade, que apresentavam uma considerável concentração populacional, por meio de viadutos ou verdadeiras avenidas aéreas era, decerto, uma solução arrojada para a Lisboa dos finais de Oitocentos.

 

A REAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL

Durante alguns anos a Câmara Municipal foi remetendo estes projetos que lhe iam chegando para a Repartição Técnica sem lhes conceder grande atenção. Todavia, esta atitude alterou-se em 1888, sobretudo devido ao agrado que o projeto de Camille Verdier provocou no seio dos responsáveis municipais. Nesse ano, a Repartição Técnica chefiada pelo engenheiro Frederico Ressano Garcia elaborou um caderno de encargos onde se regulamentavam os pontos necessários para a abertura de um concurso para a construção de quaisquer viadutos em Lisboa.

Neste documento, que se dividia em duas partes – a primeira sobre a construção do viaduto e a segunda enunciando as disposições gerais do projeto – a Câmara enumerava 37 condições para a sua construção. Numa espécie de preâmbulo designado por “Objecto da concessão e deposito de garantia” escrevia-se que a Câmara Municipal

concede a Camille Verdier ou á empresa que este organisar, e para a qual, depois de devidamente autorizado, transferia os seus direitos, a licença necessária para construir e explorar, durante quarenta anos, um viaducto metallico de S. Pedro d'Alcantara ao campo dos Martyres da Pátria, e d'este ao Largo da Graça, debaixo das condições que se seguem.

Entre elas especificava-se que, por exemplo, o viaduto deveria ter um único tabuleiro e que nenhum dos pilares de sustentação poderia assentar quer na avenida da Liberdade, quer na rua Nova da Palma. O tabuleiro deveria ter pelo menos 25 metros de largura e nele caberiam galerias laterais de ferro e cristal destinadas ao comércio, com uma faixa de rodagem de 10 metros no centro e dois passeios no lado exterior das galerias, de 2 metros no mínimo, só para trânsito de peões. De 50 em 50 metros deveria ter uma espécie de passagem com 3 metros para permitir a comunicação entre cada um dos lados. Por sua vez, a ligação entre os pontos mais baixos e o topo realizar-se-ia através de dois ascensores verticais, que deveriam estar preparadas para transportar igualmente “cavalgaduras e vehiculos”27.

Desta atitude da Câmara Municipal resultaria a concessão dada ao projeto de Camille Verdier, embora sujeito a algumas alterações de acordo com o caderno de encargos estabelecido. Foi nas páginas da revista O Occidente que surgiu o único comentário e descrição desta arrojada proposta, referida como “uma pequena cidade aerea, que só encontra companheiras nos Estados Unidos, ainda que menos bellas e espectaculares”, não deixando de se prestar homenagem ao primeiro autor da ideia, o engenheiro Miguel Pais28. No ano seguinte a mesma revista foi também a única a noticiar a decisão camarária da concessão ao projeto de Verdier, num pequeno artigo intitulado A grande ponte de S. Pedro de Alcantara para a Graça29. Todavia, apesar de, num primeiro momento, ter concedido a sua aprovação, a Câmara Municipal acabou posteriormente por recuar e a construção do viaduto não chegaria sequer a iniciar-se.

 

O MONUMENTAL VIADUTO DE FIALHO DE ALMEIDA

No início do século XX surgiu novamente na opinião pública a ideia de ligar as colinas de Lisboa por meio de grandiosos viadutos. O responsável foi o escritor Fialho de Almeida, que ressuscitou este projeto no seu texto intitulado Lisboa Monumental, publicado pela revista Illustração Portuguesa, em 1906. Neste texto, a capital é simultaneamente feia à vista, pelintra e pobre, gloriosa e republicana, num olhar que mistura o desejo com a realidade, numa ficção carregada do significado social e político que atravessou a sociedade portuguesa nos primeiros anos de Novecentos, materializada nos sugestivos desenhos de Alonso30 que funcionavam como numa espécie de realidade virtual.

 

 

Sobre o viaduto que Miguel Pais primeiro idealizou, Fialho chamou-lhe “a ponte sobre os vales da Avenida e rua da Palma”, considerando que ela seria “uma obra de seguro effeito scenographico, gigantesca e pernalta, barrando o ar n'um salto audacioso”31. Para além de permitir estabelecer de forma rápida a comunicação entre os vários bairros, esta construção teria ainda, segundo o escritor, uma outra vantagem de caráter estético “que era cortar as casarias monotonas d'esta cidade sem cupulas nem torrelas, com um magnifico jogo de obras d'arte”. A veia literária de Fialho empolgava-se ao imaginar o que seria percorrer

em manhãs e tardes essa avenida a 80 metros do solo, bordada de passeios e refugios suspensos sobre misulas, vendo por baixo vertiginosamente ferver a bicharia dos bairros pobres... Que vagabundagem por ali nas noites quentes, perorando no ar pulchro... Essa ponte, sobre os seus pégões de pedra, cyclopicos, cingidos de elevadores para o formigueiro maluco das subidas e descidas, marcaria nos fastos da cidade o advento d'uma epoca novissima, agitada, em que se confundiriam as linguas, como em Babel, sem receio da colera do Senhor!

E para que os leitores da Illustração Portuguesa pudessem melhor imaginar o aspeto que teria esta grandiosa construção, numa espécie de antevisão da realidade virtual, publicava-se a imagem do que seria o viaduto sobre a avenida da Liberdade. À semelhança dos projetos anteriores, esta proposta de Fialho de Almeida para unir as colinas de Lisboa por grandiosos viadutos facilitando a circulação na cidade não chegou a passar do desejo do seu autor.

No texto de Fialho de Almeida é ainda mencionado o projeto de um outro viaduto apresentado pelo arquiteto Álvaro Machado (1874-1944) para a avenida Ressano Garcia, mais tarde rebatizada com o nome do novo regime político implantado após 5 de outubro de 1910. A revista O Occidente deu-lhe também destaque32, publicando o seu desenho: um viaduto de ferro e alvenaria, com quatro pilares de sustentação, coroados de figuras femininas aladas que, como Fialho escreveu, lembrava de forma muito direta a parisiense ponte Alexandre III. Para o autor de um artigo de O Occidente sobre este projeto, o custo estimado para a construção “desta bella obra” era talvez um pouco elevado em relação a uma simples obra de utilidade mas, atendendo “á sua bellesa artistica”, considerava- -se que seria uma soma bem empregue, “pois a cidade bem carenciada estava de obras de arte capazes de atrahir o viajante estrangeiro”. No seio da Câmara Municipal também se reconheceu o caráter elegante e grandioso deste projeto de Álvaro Machado, mas realisticamente também se reconheceu que a sua execução seria demasiado custosa para os cofres do município33. Na realidade, a solução que veio a permitir a passagem do caminho de ferro sobre a avenida da República acabou por ser bem mais modesta.

 

EPÍLOGO

Logo no ano a seguir à publicação do texto de Fialho, a hipótese da construção de uma avenida aérea de Lisboa surgiu novamente expressa num pequeno livro intitulado Melhoramentos urgentes de Lisboa: plano geral34. Segundo o seu autor, um oficial do Exército de nome Francisco de Paula Botelho (1851-1940), entre os “melhoramentos urgentes” que Lisboa carecia para melhorar a circulação viária e embelezar a capital estava a construção de dois viadutos, a saber: um para prolongar a rua Alexandre Herculano até ao jardim da Estrela, passando sobre a rua de S. Bento; e outro para ligar a rua Castilho com S. Pedro de Alcântara, substituindo “o infame e ingreme Salitre”, passando “sobre o Jardim Botanico... mas em viaducto e sem o inutilisar, e antes dando-lhe um aspecto sui generis”35. Este viaduto da rua Castilho não deveria ter mais do que 15 metros de largura e teria uma derivação para a Patriarcal.

O projeto das “avenidas aéreas” de Lisboa acabaria por ficar no imaginário urbanístico da cidade. Ficaria como mais uma das utopias que um dia o engenheiro Miguel Pais teve a ousadia de propor para o engrandecimento da capital que, ao contrário de outras como a ponte sobre o Tejo, nunca viria a ser realizada. Os lisboetas tiveram que contentar-se com os diversos ascensores que foram sendo construídos ao longo das últimas décadas de Oitocentos, dos quais o mais singular é, sem dúvida, o elevador de Santa Justa, inaugurado em 1900, com projeto do engenheiro Raoul Mesnier du Ponsard (1849-1914).

Na última década do século XX, em 1991, o projeto antigo do engenheiro Miguel Pais surgiu como uma nova reinterpretação, apresentada pelos arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira36. Mas também desta vez não chegou a sair das intenções dos seus autores.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

Manuscritas

Arquivo Municipal de Lisboa

Anteprojecto da Avenida aerea de Lisboa n'um viaducto metallico desde S. Pedro d'Alcantara por Sant'Anna á Graça. p. 1. AML.

Anteprojecto da ponte metallica entre S. Pedro d'Alcantara e o Campo dos Martyres da Patria e d'este ponte á Graça. p. 5. AML.

Projecto de caderno de encargos para a concessão a Camille Verdier da construção e exploração de um Viaducto de S. Pedro de Alcantara ao largo da Graça. p. 19-31. AML.

 

REFERÊNCIASImpressas

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ALMEIDA, Fialho de – Lisboa monumental. Ilustração Portuguesa. Lisboa. (29 de outubro e 29 de novembro de 1906).         [ Links ]

Archivo Municipal de Lisboa. (1874-1890).         [ Links ]

BOTELHO, Francisco de Paula – Melhoramentos urgentes de Lisboa: plano geral. Lisboa: J. A. Rodrigues e C.ª, 1907. Propaganda de Portugal. The most charming country in Europe.         [ Links ]

Jornal do Commercio. Lisboa. (1877).         [ Links ]

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O Occidente. Lisboa. 11º Ano Nº 345 (21 julho 1888).         [ Links ]

O Século. Lisboa. (16 maio 1928).         [ Links ]

PAIS, Miguel Correia – Melhoramentos de Lisboa e seu porto. Lisboa: Typographia Universal, 1883. vol. 1.         [ Links ]

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ESTUDOS

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GUSMÃO, Artur nobre de – Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. In O imaginário da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p. 147-177.         [ Links ]

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VIEGAS, Inês; MARTINS, Miguel Gomes, coord. – Do Passeio Público à Avenida: os originais do Arquivo Municipal de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1998.         [ Links ]

 

 

Submissão/submission: 01/02/2018

Aceitação/approval: 25/05/2018

 

 

 

NOTAS

BARATA, Ana Cristina Martins – Das colinas de Lisboa: as “avenidas aéreas” nunca construídas. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 9 (janeiro-junho 2018), p. 125–136.

1 “O invento de um português: aeroplano cativo, com «cabines» áreas para ligação dos pontos altos da cidade”. O Século. (16-05-1928), p. 2.

2 O outro eixo possível de desenvolvimento era o eixo ribeirinho, com as obras do aterro da Boavista e rua 24 de julho, iniciadas ainda na década de 1850.

3 Nas páginas do Jornal do Commercio vem noticiada a representação que “muitos centenares de habitantes da capital... resolveram fazer... à camara hereditaria,... na qual singelamente expõem as “principaes necessidades que aconselham a prompta realisação de melhoramento tão importante”. Da comissão organizadora desta iniciativa fazia parte, por exemplo, Adolfo de Lima Mayer, e no texto publicado na íntegra encontram-se enunciadas as razões que a motivaram. Claramente, elas evidenciam, por um lado, uma consciência para a necessidade de desenvolver o sistema viário entre o centro e a periferia e, por outro, o reconhecimento de que o crescimento urbano necessitava de terrenos onde se pudessem construir novos bairros, visto que o tecido antigo de Lisboa caminhava para a saturação. Reconhecia-se igualmente que a falta de disposição legal da natureza do projeto em discussão restringia a ação do município, impedindo-o de “empreender os grandes melhoramentos que tem beneficiado notavelmente muitas cidades da Europa...”. A grande avenida do passeio público. Jornal do Commercio. Lisboa. (17-03-1877), p. 1.

4 O autor deste jardim-gaiola - espaço murado e fechado - foi Reinaldo Manuel (1731-1791). Ficou terminado em 1764, mas apenas começou a ser frequentado pelos lisboetas a partir do final da década de 1830.

5 O modelo mais direto era o da capital de França que, desde a década de 1850, vinha sendo profundamente alterada urbanisticamente graças à ação do barão Haussmann, nomeado em 1853 perfeito do Sena por Napoleão III, cargo que ocupou até 1870. Sobre estes trabalhos ver Paris-Haussmann: le pari d'Haussmann. Paris: Éd. du Pavillon de l'Arsenal: Picard Éditions, 2005 e Paris Haussmann modéle de ville. Paris: Éditions du Pavillon de l'Arsenal, 2017.

6Maria Helena Lisboa refere que, em 1882, o vereador Andrade terá proposto um parecer à Repartição Técnica sobre a construção de viadutos metálicos (CF. LISBOA, Maria Helena - Os engenheiros em Lisboa: urbanismo e arquitectura, 1850-1930. Lisboa: Livros Horizonte, cop. 2002. p. 244).

7 PAIS, Miguel Correia - Melhoramentos de Lisboa e seu porto. Lisboa: Tipografia Universal, 1882. vol. 1. A edição desta obra apresenta uma particularidade, uma vez que dela existem, aparentemente, duas edições: uma com a data de 1882 e uma outra, em tudo idêntica, mas datada de 1883. As citações que se apresentam são da edição de 1883. Dividida em dois volumes, esta obra reúne uma série de artigos que este engenheiro foi publicando no Diário de Notícias, entre 1880 e 1881.

8 PAIS – op. cit., p. 115.

9 Idem, p. 114.

10 Idem, Ibidem.

11 Pelas suas qualidades, o aço era o material que oferecia mais potencialidades construtivas permitindo, de facto, atingir uma maior extensão no seu cumprimento. Construction métallique. In L'art de l'ingénieur: constructeur, entrepeneuer, inventeur. Paris: Le Moniteur: Centre Georges Pompidou, 1997. p. 134-139.

12 PAIS – op. cit., p. 125.

13 Idem, Ibidem.

14 Idem, Ibidem.

15 Idem, Ibidem.

16 Idem, Ibidem, p. 143.

17 Idem, Ibidem, p. 144.

18 Idem, Ibidem, p. 145.

19 Idem, Ibidem, p. 145-146.

20 LISBOA, Maria Helena – op. cit., p. 145.

21 Archivo Municipal de Lisboa, 1883, p. 207.

22 Arquivo Municipal de Lisboa (AML). Anteprojecto da Avenida aerea de Lisboa n'um viaducto metallico desde S.Pedro d'Alcantara por Sant'Anna á Graça, p. 1.

23 AML, Ante-projecto da ponte metallica entre S. Pedro d'Alcantara e o Campo dos Martyres da Patria e d'este ponte á Graça, p. 5.

24 Requerimento apresentado na sessão camarária de 25 de janeiro de 1883 “pedindo licença para construir um viaducto entre o passeio de S. Pedro de Alcantara e o largo da Graça”. Archivo Municipal. 1883, p. 60. Segundo Maria Helena Lisboa, Camille Verdier teria delegado neste consórcio a concessão que lhe havia sido concedida pela Câmara Municipal (Cf. LISBOA, Maria Helena – op. cit., p. 147).

25 Actas da Comissão Executiva, sessão de 31 de agosto de 1889, p. 319. Este engenheiro trabalhou no Ministério das Obras Públicas e foi membro da Comissão de Melhoramentos da Cidade de Lisboa; foi ainda o autor do edificio dos Armazéns Grandella.

26 Camille Verdier intentou, em 1889, uma ação contra a Câmara Municipal, pela deliberação tomada em relação à concessão que lhe havia sido feita para a construção e exploração do viaduto de S. Pedro de Alcântara. Archivo Municipal de Lisboa. Sessão de 9 de janeiro, p. 61.

27 AML. p. 19-31

28 Resenha noticiosa: uma grande ponte em Lisboa. O Occidente. 11.º Ano N.º 345 (21 julho 1888), p. 167-68.

29 Resenha noticiosa: a grande ponte de S. Pedro de Alcantara para a Graça. O Occidente. 12.º Ano N.º 348 (21 agosto 1889), p. 191-92.

30 Alonso foi o pseudónimo usado pelo ilustrador, caricaturista e professor na Escola António Arroio, Joaquim Guilherme Santos e Silva (1871-1948).

31 ALMEIDA, Fialho de - Lisboa monumental. Ilustração Portuguesa. (1906), p. 403-404.

32 Embellesamentos de Lisboa: viaducto sobre a avenida Ressano Garcia. O Occidente. Lisboa. Nº 996 (1906), p. 187-188.

33 Lisboa nova: entrevista com os srs. Engenheiro Antonio Maria d'Avellar e o chefe de secção Henrique Sabino dos Santos: transformação da cidade: as grandes avenidas e o parque: as pontes monumentaes: trabalhos e expropriações: Lisboa moderna. O Dia. Lisboa. (26 maio 1906), p. 1.

34 BOTELHO, Francisco de Paula - Melhoramentos urgentes de Lisboa: Plano geral. Lisboa: J. A. Rodrigues e C.ª, 1907.

35 BOTELHO – op. cit., p. 48 e 50.

36 SILVA, Raquel Henriques da – Vencer as colinas. In SILVA, Raquel Henriques da; MIRANDA, António, coord. - A Lisboa que teria sido. Lisboa: EGEAC, 2017; p. 113.

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