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Cadernos do Arquivo Municipal
versão On-line ISSN 2183-3176
Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.12 Lisboa dez. 2019
ARTIGO
Características e exigências sociotécnicas em confronto num bairro de origem pré-industrial: notas sobre o Bairro das Trinas
Characteristics vs. requirements on a preindustrial neighbourhood: notes about the Trinas Neighbourhood
Joana Fazenda Mendes Mourão*
*Joana Fazenda Mendes Mourão, IST-Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, 1049-001 Lisboa, Portugal. joana.mourao@tecnico.ulisboa.pt
RESUMO
Após mais de 250 anos, o aforamento dos terrenos adjacentes ao Convento das Trinas do Mocambo pode ainda ser visto como uma operação de desenvolvimento urbano de sucesso, perpetuada pela adaptabilidade e durabilidade dos edifícios do “Bairro das Trinas”. Estes edifícios de origem setecentista, que se podem integrar no panorama da arquitetura habitacional corrente em Lisboa da época, apresentam um conjunto de características que permaneceram íntegras ao longo do tempo.
O presente artigo procura destacar algumas características deste conjunto edificado que lhe conferem integridade e eficiência construtiva, habitacional e urbanística. Procura também descrever algumas transformações recentes e as respetivas motivações, evidenciando os impactes a que este património se encontra sujeito e analisando a forma como determinados requisitos podem influenciar a reabilitação deste património arquitetónico e urbanístico de origem pré-industrial.
PALAVRAS-CHAVE
História Urbana / Património Edificado / Habitação / Reabilitação / Sustentabilidade
ABSTRACT
After more than 250 years the urbanization of the Trinas do Mocambo Convent land can still be seen as a successful urban development operation, showing adaptability over time, due to the high durability of the buildings that make up the “Trinas Neighbourhood”. These eighteenth-century buildings, which could fit into the landscape of current housing architecture in Lisbon at the time, have a set of features that have remained over time.
This article seeks to identify some features and values of this neighbourhood that justify its integrity and efficiency. It also describes some recent transformations, identifying drivers and highlighting impacts to which this heritage is submitted, while analysing how certain technical and social requirements may influence the rehabilitation of this pre-industrial historical, architectural and urban heritage.
KEYWORDS
Urban History / Housing / Built Heritage / Sustainability / Refurbishment
INTRODUÇÃO
“Reabilitação urbana” é hoje um conceito amplo que compreende diferentes processos de intervenção no tecido urbano, reutilizando edifícios ou lotes existentes e dando prioridade a objetivos variáveis. O regime jurídico aplicável apresenta como definição de reabilitação urbana «a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras»1. Este é um regime de carácter estratégico que preconiza o princípio da proteção do existente. Porém, a sua aplicação é reduzida, uma vez que a reabilitação de edifícios, salvo raras exceções, tem ocorrido nas cidades portuguesas sem esse carácter estratégico.
O nível de preservação a assegurar nos edifícios existentes não classificados, de acordo com as orientações deste regime, é determinado no âmbito de plano ou programa estratégico de reabilitação urbana a estabelecer, sendo em geral por via de planos de pormenor de reabilitação urbana que se estabelecem essas orientações. Contudo, quando estes instrumentos de planeamento não existem, quando são insuficientemente detalhados ou quando não são efetivamente implementados, o nível de preservação do edificado que ocorre nas obras de reabilitação não se encontra relacionado com a significância, autenticidade ou integridade de cada edifício2.
Neste contexto, as alterações programáticas e os requisitos técnicos e sociais aplicáveis à habitação urbana podem originar obras avulso onde a preservação do edificado é reduzida e aleatória, não seguindo critérios reconhecíveis. Assim, em áreas urbanas como o Bairro das Trinas (entendido como o bairro existente dentro dos terrenos do Convento das Trinas do Mocambo, urbanizado a partir de 1757), o património edificado não classificado, de origem pré-industrial, constitui um recurso que importa conhecer, documentar e divulgar, para que possa ser reconhecido como um valor e para melhor se definir em que medida cada um dos seus elementos característicos merecem preservação nos processos de reabilitação urbana e de edifícios.
O facto de este património ter sido construído com base numa cultura construtiva e urbanística normalizada, modular, eficiente e durável, incorporando recursos de elevada qualidade, é razão suficiente para que não deva ser transformado sem escrutínio. A esta razão outras acrescem, em particular face aos objetivos legitimados de maior eficiência no uso de recursos naturais e de manutenção do capital natural a longo prazo (vulgo sustentabilidade ambiental). Assim, no sentido de aumentar o escrutínio sobre os processos de transformação deste património, com valor histórico, urbanístico e arquitetónico, interessa analisar os impactes da intervenção em edifícios que têm ocorrido no Bairro das Trinas. Para esse fim, pretende-se destacar alguns dos valores em presença, evidenciar impactes das intervenções em curso e abordar algumas razões para compreendermos as atuais transformações no Bairro das Trinas. Procura-se, ainda, evidenciar que as intervenções de demolição parcial ou total de edifícios, embora possam ser justificadas por objetivos de requalificação do edificado urbano e por requisitos sociotécnicos legítimos, contradizem objetivos de sustentabilidade cultural e ambiental cujo reconhecimento público é crescente.
OS VALORES EM PRESENÇA NO BAIRRO E SUA GÉNESE
O Bairro das Trinas, decorrente do aforamento dos terrenos do Convento das Trinas do Mocambo iniciado em 17573, situa-se atualmente na freguesia da Estrela, uma freguesia constituída em 2012 agrupando as freguesias da Lapa e Santos-o-Velho. Em 2011 este Bairro compreendia 1185 alojamentos, divididos homogeneamente pela Rua das Praças que divide longitudinalmente o bairro4.
O Bairro comporta hoje 283 edifícios, dos quais 173 podem ser considerados de época de construção anterior a 1919, de acordo com levantamento in loco (em 2017) cruzado com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) de 20115. O Bairro concentra, numa pequena área (11ha), uma comunidade habitacional significativa (1438 habitantes em 2011) que usufrui de equipamentos coletivos partilhados na sua contiguidade e de condições para a mobilidade pedonal.
A densidade do Bairro das Trinas foi variando ao longo do tempo, embora não de forma linear. Ao período de maior degradação e abandono do edificado, correspondente ao pico de deslocação da população lisboeta para os subúrbios de primeira coroa, sucedeu uma reocupação pela classe jovem ou média-alta, ainda antes da crise económica, em busca da centralidade do Bairro6. A vaga mais recente de gentrificação, ocorrida na última década, num momento de escassez de oferta de habitação urbana e de grande crescimento do turismo urbano, apresentou uma extensão e características substancialmente diferentes da primeira vaga de gentrificação, ocorrida de forma menos expressiva há mais de uma década.
ENQUADRAMENTO HISTÓRICO DO CONJUNTO EDIFICADO
O Bairro das Trinas não se encontra delimitado em nenhum instrumento urbanístico, sendo uma interpretação do produto urbanístico resultante do aforamento dos terrenos adjacentes ao Convento das Trinas do Mocambo, decorrido durante a década de 60 do século XVIII. Este aforamento encontra-se descrito de forma única no livro “Uma casa na Lapa”7 descrição que, pela sua qualidade, criou um Bairro das Trinas, pelo menos para os seus leitores ou habitantes.
Este bairro, resultante da urbanização de terrenos conventuais, como o foram muitos em Lisboa durante o século XVIII8, localiza-se nos antigos terrenos do Convento das Trinas do Mocambo que se situam no trapézio entre as ruas da Lapa, do Quelhas, Garcia de Horta e São Domingos à Lapa, sendo atravessados pelas ruas do Meio à Lapa, das Trinas, São João da Mata, Remédios e São Félix e, longitudinalmente, pela Rua das Praças.
Como o olisipógrafo José Sarmento de Matos (1946-2018) nos conta, de forma literariamente inigualável, logo depois do terramoto de 1755, o atraso da reconstrução pombalina da Baixa estimulou a rápida urbanização em zonas periféricas de Lisboa, tais como a encosta da Estrela. Recorria-se então a uma reconstrução espontânea e empírica da cidade, resultante num crescimento urbano significativo. A essa espontaneidade, porém, não correspondia uma ausência de regras, muito pelo contrário.
A urbanização e edificação no Bairro das Trinas seguem uma modularidade notável, atribuindo-se a sua regulação à própria Ordem Trinitária, possivelmente por via do procurador das freiras Trinas, frei Caetano de Santa Inês, que terá gerido o aforamento da encosta e definido as disposições dos contratos de foro9.
O processo de urbanização tem então origem com o loteamento promovido pela Ordem das Trinas, em oposição às intenções urbanísticas do Marquês de Pombal de contenção e de regulação central e plena da reconstrução da cidade. A regulação urbanística, por iniciativa da Ordem, impunha-se por via das condições estipuladas para a urbanização e edificação do Bairro, definindo-se regras físicas e temporais para a implementação do “plano” (tais como iniciar a edificação no próprio ano do contrato, acabar dentro de três anos e edificar com 30 palmos de frente e 238 palmos de largo, ou edificar face à rua e «de forma a que esta fique uniforme»)10. Adicionalmente foram também estabelecidas pelas Trinas regras de carácter social, uma vez que não era permitido que os terrenos fossem vendidos «a pessoas poderosas»11. As freiras da Lapa conseguiram assim lotear quinhentos lotes, em apenas dois anos, e apesar de um Aviso de 30 de dezembro de 1755, reiterado a 16 de setembro de 1756, o ter proibido12, em 1762 estavam já identificadas todas as novas ruas do Bairro e muitos edifícios construídos13.
Este foi o acelerado início da transformação dos terrenos das Trinas, em que as ruas foram traçadas (como se pode observar na planta da freguesia da Lapa, de Monteiro de Carvalho, de 1770) seguindo a perpendicular à Rua da Lapa, onde estava acabada de construir a Igreja da Lapa, em frente à Rua dos Remédios, a meio do Bairro. Surgia assim a Lapa como contraponto à Baixa, complementando e antecipando a oferta de habitação tornada urgente pelo Grande Terramoto.
Assim surge o aqui designado Bairro das Trinas, constituído por doze quarteirões retangulares, dos quais um é ocupado em grande parte pelo próprio Convento das Trinas. Estes quarteirões constituem a designada Lapa popular, muito embora alguns palacetes e edifícios de escala significativa tenham sido construídos dentro desta malha urbana.
Esta zona, ao longo do tempo, tem-se inserido em áreas com diferentes denominações, tais como: Mocambo, Madragoa, Lapa, Santos-o-Velho, Trinas, tendo sido recentemente integrada na freguesia da Estrela e encontrando-se ao abrigo do Plano de Pormenor de Reabilitação Urbana da Madragoa, que contém um diagnóstico e um levantamento do estado de conservação dos edifícios de 201414.
Este Bairro das Trinas, para além do inegável valor histórico como testemunho de um processo relevante e reproduzido de “urbanização sem urbanistas”, comporta um conjunto de valores urbanísticos e arquitetónicos, aos quais estão também associados recursos materiais e energéticos consideráveis, escassamente reconhecidos pelos agentes envolvidos na intervenção nestes edifícios.
Estes valores “externalizados” estão para além da localização e acessibilidade urbanas, decorrendo das continuidades urbanísticas do conjunto edificado e da homogeneidade, adaptabilidade, qualidade e eficiência da arquitetura e construção habitacional que, certamente, contribuíram para a manutenção da coerência do Bairro ao longo da sua consolidação.
VALORES URBANÍSTICOS
No Bairro das Trinas, em 2017, encontravam-se cinco pedras de foro datadas da segunda metade do século XVIII, sendo atribuíveis ao aforamento das Trinas, apresentando a sua cruz ou a designação Trinas. Em dezembro de 2017, uma destas pedras (Figura 2) foi removida no âmbito da demolição integral de um edifício (Figura 3 e figura4), tendo sido reintroduzida num novo edifício em 2019.
Estas pedras de foro, além do seu inegável valor histórico, ajudam-nos a fundamentar a existência do Bairro das Trinas e do seu processo de urbanização e edificação. Este, embora não se encontre reconhecido por nenhum instrumento de planeamento e salvaguarda e se inclua em geral, sem diferenciação, na Madragoa ou na Lapa15, é parte significativa de um património urbanístico olisiponense que apresenta alguma homogeneidade e mereceria ser registado com detalhe nas suas partes e no seu conjunto «o processo urbano aqui desencadeado pouco inova na tradição lisboeta»16.
Um dos aspetos mais característicos deste Bairro é a modularidade e repetição dos lotes, cuja permanência o dota de uma integridade urbanística reconhecível (Figura 1), decorrente de um «urbanismo pombalino sem Pombal»17, desenvolvido à escala doméstica da Lapa popular.
Na cartografia atual (Figura 1) encontramos mais de uma centena de lotes com a dimensão mínima original (aproximadamente 7x14m), muitos dos quais ainda albergam pequenos edifícios setecentistas de três vãos, ainda que a maior parte tenha sido ampliada e transformada ao longo do tempo. Contudo, identificam-se também algumas variantes com lotes mais largos onde os edifícios apresentam já 4, 5, 6 ou 7 vãos, alguns dos quais albergando equipamentos. Assim, os edifícios que foram povoando o Bairro sobre esta matriz podiam ser unifamiliares ou multifamiliares, tipologias que conviviam neste bairro interclassista, e podiam albergar equipamentos, como escolas (Figura 8) ou hospitais.
VALORES ARQUITETÓNICOS
O edifício base do aforamento Trino, correspondendo ao lote mais pequeno, apresenta três vãos e geralmente é constituído por rés do chão, dois pisos e uma mansarda (Figura 7). Este lote mínimo mede entre 6,8 a 7,8 metros de largura (33 pés de largura) e a sua profundidade é variável, dada a geometria trapezoidal do cadastro então definido pelo traçado das vias, nem sempre paralelas, tendo a implantação dos edifícios, em média, 14 metros de profundidade (Figura 1). A compartimentação é, em geral, modular, executada com cruzes de Santo André completas nas paredes interiores paralelas à fachada, geralmente três, e com tabique e fasquio nas paredes interiores, perpendiculares à fachada, geralmente para a criação do corredor (Figura 11).
No piso térreo dos edifícios mais antigos é ainda comum existirem duas portas, uma para acesso direto ao piso térreo e outra para acesso aos pisos superiores (Figura 7), em geral por escada de tiro (Figura 13). Devido à acentuada inclinação das vias, estas portas nem sempre apresentam a mesma cota de soleira. No decorrer da ampliação por agregação de frações habitacionais, algumas destas portas foram alteradas e por vezes convertidas em janelas (Figura 9).
Não obstante as variações, as tipologias arquitetónicas que encontramos no Bairro seguem as tipologias dos prédios de rendimento «entre o período joanino e o tardo-pombalino» que se caracterizam pela existência de alcovas, herdeiras da tradição setecentista, mas também em alguns casos por entradas e circulações duplas, provenientes já da tipologia pombalina18.
Dada a exiguidade do lote, em vez de escadas centrais de acesso a esquerdo direito como é comum noutros bairros lisboetas contemporâneos e noutros edifícios deste mesmo Bairro, nos edifícios mais estreitos das Trinas as escadas existem junto à empena do prédio, distribuindo um fogo por piso. Nestes casos, quando as escadas são de lances opostos, os edifícios apresentam geralmente apenas uma porta (Figura 10 a figura 12). Nos lotes mais largos, ou destinados a equipamentos, as escadas podem encontrar-se a meio do lote e não junto à empena (Figura 8 e figura 16).
VALORES CONSTRUTIVOS, MATERIAIS E ENERGÉTICOS
O Bairro das Trinas mantém parte da sua integridade e dos seus materiais construtivos originais: madeira equivalente à utilizada na construção naval setecentista, alvenarias de pedra estruturais, aparelhadas com argamassas de cal e areia e reforços de tijolo de burro algumas, erguidas nos anos logo depois do terramoto, ainda permanecem intactas.
Estes edifícios pré-industriais, caracterizados por um ciclo de vida longo, foram concebidos para tirar proveito das fontes de energia e dos materiais disponíveis e incorporaram mão de obra intensiva. Aqui, o uso de recursos no processo de edificação e no período posterior da sua consolidação e utilização constituem testemunhos específicos de uma cultura construtiva, cuja durabilidade decorre também da elevada energia que incorpora19.
Os edifícios tradicionais que constituem o Bairro das Trinas, em pedra, argamassas de cal e elementos estruturais secundários em madeira, funcionam também de forma específica ao nível do conforto ambiental interior dado pelo balanço da temperatura (possibilitados pela inércia térmica dos materiais) e balanço de humidade (possibilitados pela higroscopicidade dos materiais) do ambiente interior. Estes edifícios têm, em geral, um desempenho térmico muito melhor do que o indicado em simulações energéticas20 e, em particular, do que o indicado na aplicação do nosso sistema de certificação energética corrente21.
A elevada inércia térmica, a permeabilidade e higroscopicidade da construção tradicional dotam-na de bons níveis de conforto (na maior parte dos dias do ano), se conjugadas com uma correta utilização, ventilação e proteção dos ganhos solares diretos, dados pela adequada dimensão das superfícies envidraçadas e respetivas portadas. O desconforto que ocorre em alguns dias de inverno nestes edifícios é passível de ser minimizado por sistemas de climatização pontuais (alguns edifícios denotam o acrescento de pequenas chaminés para a colocação de salamandras vd. Figura 12), de acordo com os regimes de climatização intermitentes e sazonalmente curtos, comuns nos edifícios do sul da Europa. O desconforto no verão, também pontual, pode por sua vez ser ultrapassado pela ventilação natural cruzada que estes edifícios permitem e cujas circulações duplas favorecem.
Assim, na preservação e reabilitação destes edifícios deveria considerar-se não só a conservação da elevada energia incorporada nos processos e nos materiais dos sistemas construtivos pré-industriais, mas também o recurso da reduzida energia operacional, ou seja, a possibilidade de minimizar o desconforto nos períodos que o justificam com poucos (ou nenhuns) recursos energéticos (para além do sol).
Porém, há uma escassa valorização deste desempenho ambiental positivo e as opiniões menos fundamentadas sobre o desempenho desta construção em geral não acompanham a produção científica e académica sobre o assunto22. A própria regulamentação térmica e energética de edifícios tem seguido pressupostos que não são totalmente adequados a este tipo de edificado, nem ao contexto socioeconómico dos que os habitam em permanência23.
Assim, a sobrevalorização das necessidades de conforto térmico que são intermitentes tem legitimado a introdução de climatização ativa em edifícios habitacionais reabilitados, por vezes usada com um regime mais permanente, sendo desadequada a uma política energética sustentável e às necessidades de habitação de preço acessível. Deste modo, podem ser os edifícios reconstruídos com maiores demolições os que alcançam classes energéticas superiores: edifícios em que as compartimentações internas, horizontais e verticais, foram eliminadas para facilitar a introdução das tubagens de ar condicionado centralizado (Figura 17), ou em que as fachadas a tardoz foram substituídas por envidraçados viabilizados por uma climatização ativa permanente de elevada eficiência, mas ainda assim com consumos muito superiores aos do uso anterior (Figura 15).
AS VONTADES EM PRESENÇA NUM BAIRRO EM TRANSFORMAÇÃO
Os valores e os recursos em presença no Bairro das Trinas, embora duráveis, encontram-se vulneráveis face às dinâmicas socioeconómicas que motivam as transformações no património edificado e ditam as modas de “reabilitação” da construção em cada época.
Existe um conjunto de requisitos técnicos e sociais que os agentes (reguladores, investidores, proprietários, donos de obra e projetistas) impõem às intervenções em edifícios urbanos existentes, com vista a assegurar a sua rentabilidade e sucesso no mercado, em particular nas áreas da segurança, conforto e acessibilidade. Embora na sua maior parte legítimos, estes requisitos não se encontram compatibilizados com as características e valores do edificado pré-industrial.
Mesmo durante a vigência do já revogado24 Regime Excecional e Transitório para a Reabilitação de Edifícios25, que isentava as obras de reabilitação do cumprimento de grande parte dos requisitos técnicos, as intervenções nos centros urbanos valorizados ambicionaram os mais elevados níveis de acessibilidade e conforto na habitação, mesmo que desadequados ao edificado preexistente e ao seu uso sustentável.
Não é difícil identificar algumas dinâmicas que justificam estas tendências: por um lado, os estilos de vida e mobilidade impuseram uma progressiva despedonalização dos bairros e uma forte presença do automóvel, aumentando a disputa pela acessibilidade viária, valorizada ao nível global pelos mercados financeiros, e requerendo estacionamento dentro dos edifícios. Alterou-se assim a utilização do espaço público, vocacionando muitos pisos térreos para garagens, por vezes também subterrâneas.
No processo de grande valorização financeira dos lotes urbanos alterou-se a composição social do Bairro, com a substituição de prédios populares, com muitas frações, por edifícios com apartamentos de grande dimensão ou mesmo unifamiliares. Mais recentemente, as obras mais pequenas destinaram-se ao arrendamento de curta duração, optando por criar apartamentos pequenos ou mais compartimentados, comprometendo irreversivelmente o desempenho e qualidade dos edifícios e frações originais.
Assim, na última década podemos identificar vários tipos de intervenções nos lotes do Bairro, incluindo: as de substituição total de edifícios (Figura 5), as de conservação autónoma da fachada ou de fachadismo (Figura 14), as de ampliação e/ou reabilitação por edifício (Figura 18 e Figura 20) ou por fração. Estes tipos de intervenção podem destinar-se a criar ou recriar habitação uni ou plurifamiliar de elevado standard, que multiplica as mais-valias da localização privilegiada do Bairro ou, mais pontualmente (geralmente na opção de “reabilitação à fração”), destinar-se à oferta de arrendamento de curta duração.
Algumas intervenções de fachadismo substituem edifícios multifamiliares por moradias unifamiliares, mantendo apenas a fachada principal, privada da sua função estrutural (Figura 14). Nestes casos, lotes onde poderiam viver mais de quatro famílias, destinam-se apenas a um habitante e o piso térreo é o acesso a garagem própria. Outras intervenções de fachadismo, por vezes ainda expectantes (Figura 16), mantêm a tipologia plurifamiliar, mas optam por introduzir vários pisos de cave para albergar as necessidades de estacionamento correspondentes a várias famílias, mantendo também a fachada desprovida da sua função estrutural, suspensa em estrutura de betão sobre as novas caves.
Porém, algumas intervenções exemplares conjugam preservação com ampliação e validam a solução unifamiliar em lote pequeno, mantendo o piso térreo e prescindindo do estacionamento integrado (Figura 18). A dispensa de estacionamento em garagem também acontece nas obras mais recentes devido a uma maior adaptação da gestão urbanística ao contexto26, ainda que procedendo neste caso a uma anexação cadastral com inegáveis interferências na morfologia urbana original (Figura 20).
NOTAS CONCLUSIVAS
O Bairro das Trinas, como outros que lhe são contemporâneos, ilustra de forma muito expressiva a sobreposição das dimensões naturo-ambiental e técnico-cultural do património material27. Porém, a eficiência urbanística, habitacional, construtiva e ambiental dos edifícios pré-industriais do Bairro das Trinas parece não ter um papel decisivo no tipo de intervenções de reabilitação ocorridas neste conjunto edificado.
Deste modo, as intervenções recentes resultam não raras vezes na perda de sistemas construtivos insubstituíveis, material e tecnicamente valiosos, de tipologias habitacionais com bom desempenho e qualidade arquitetónica assinalável, bem como de morfologias urbanas consolidadas e homogéneas, testemunhos de processos de urbanização relevantes.
As intervenções recentes nos edifícios do Bairro das Trinas, embora possam responder a requisitos técnicos e sociais de conforto ativo, funcionalidade e acessibilidade, nem sempre beneficiam este património habitacional urbano. Este tipo de “reabilitação de edifícios”, substituindo a maior parte das componentes originais, e prescindindo de elementos importantes do edifício, se tivermos em conta a energia e os materiais perdidos como recursos ambientais, resultará sempre num balanço penalizador, em que se consomem mais recursos sem por isso se obter melhor desempenho ou conforto real. Paralelamente, parece não entrar neste balanço o valor cultural inegável deste conjunto edificado como testemunho da História da habitação urbana, com níveis de integridade assinaláveis.
Parafraseando José Sarmento de Matos, «Lisboa não é apenas uma coisa que se estuda, é uma coisa que nos diz respeito»28. É por isso mesmo que é necessário questionarmos e escrutinarmos publicamente estas intervenções, em particular face aos objetivos de sustentabilidade cultural e ambiental, e notar que, na ausência de uma política efetiva de conservação urbana integrada, a aceitação e sobrevalorização de determinados requisitos da construção legitima a perda patrimonial e material.
Esta perda continuará a ocorrer, enquanto as exigências sociotécnicas para os edifícios de habitação e áreas residenciais urbanas forem estabelecidas pelos diferentes intervenientes na reabilitação urbana e de edifícios, sem considerar as limitações dos recursos disponíveis no futuro nem os recursos incorporados no passado.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
FONTES
Arquivo Municipal de Lisboa
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Machado & Souza, [Rua dos Remédios, à Lapa], PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/000306.
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Machado & Souza, [Rua de São João da Mata], PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/000178.
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Instituto Nacional de Estatística
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Legislação
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ESTUDOS
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Submissão/submission: 26/07/2019
Aceitação/approval: 06/12/2019
NOTAS
1 Decreto-Lei nº 307/2009. Diário da República (D.R.) I Série. 206/2009 (2009-10-23) 7956-7975.
2 Critérios geralmente utilizados pela UNESCO e ICOMOS com vista à salvaguarda do património em sítios classificados e definidos em várias cartas publicadas por estas instituições (ICOMOS, 1998).
3 MATOS, José Sarmento de Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento; Quetzal Editores, 1994.
4 PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística (INE) - Censos; Alojamento e Edificado por subsecção, 2011 [Em linha]. Lisboa: INE, 2011. Disponível em: https://censos.ine.pt/.
5 Idem.
6 Idem, 2001 e 2011.
7 MATOS, José Sarmento de Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento; Quetzal Editores, 1994.
8 MATELA, Raquel Sofia de Pinto Lobo e O papel dos conventos no crescimento urbano: reflexões sobre monumentos e salvaguarda do património. Lisboa: [s.n.], 2009. Dissertação de mestrado em Arquitectura, apresentada ao Instituto Superior Técnico.
9 MATOS, José Sarmento de Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento; Quetzal Editores, 1994. p. 36, p. 62.
10 Idem, p. 37.
11 Idem, p. 54.
12 Idem p. 38-39.
13 Idem, p. 4.
14 Aviso nº 8302/2016. D.R. II Série. 125/2016 (2016-07-01) 20446-20461.
15 Aviso nº 8302/2016. D.R. II Série. 125/2016 (2016-07-01) 20446-20461.
16 MATOS, José Sarmento de Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento; Quetzal Editores, 1994. p. 30.
17 Idem. p. 48.
18 BARREIROS, Maria Helena Prédios de rendimento entre o joanino e o tardo pombalino. In MANTAS, Helena Alexandra [et al.] - Património arquitectónico Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia, Museu de São Roque, 2010. vol. II, tomo 1, p. 16-39. CALDAS, João Vieira; PINTO, Maria Rocha; ROSADO, Ana O prédio de rendimento Joanino. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 1 (janeiro junho 2014), p. 130-156.
19 JACKSON, Mike Embodied energy and historic preservation: a needed reassessment. APT Bulletin. Nº 36 (2005), p. 47-52.
20 WEBB, Amanda L. Energy retro?ts in historic and traditional buildings: a review of problems and methods. Renewable and Sustainable Energy Reviews. Nº 77 (2017), p. 748-759.
21 MOURÃO, Joana Fazenda [et al.] Combining embodied and operational energy in buildings refurbishment life cycle energy assessment. Energy & Buildings. Nº 197 (15 Aug 2019), p. 34-46.
22 FLORES, Joaquim An investigation of the energy efficiency of traditional buildings in the Oporto World Heritage Site. In Internacional Conference on Energy Efficiency and Comfort of Historic Buildings, 2, Brussels, 2016 - EECHB-2016: proceedings. Bruxelas: Belgian Building Research Institute, 2016. p. 83-92. PRACCHI, Valeria Historic buildings and energy efficiency. Historic Environment: Policy & Pratice. V. 5 Nº 2 (2014) p. 210-225; CURTIS, R. Energy efficiency in traditional and historic buildings: keeping it simple. In Internacional Conference on Energy Efficiency and Comfort of Historic Buildings, 2, Brussels, 2016 - EECHB-2016: proceedings. Bruxelas: Belgian Building Research Institute, 2016. p. 174-180. MOURÃO, Joana Fazenda [et al.] Combining embodied and operational energy in buildings refurbishment life cycle energy assessment. Energy & Buildings. Nº 197 (15 Aug 2019), p. 34-46.
23 O sistema de certificação energética atual não tem em conta a disponibilidade dos utilizadores dos edifícios para suportar uma fatura energética elevada para garantir o conforto que preconiza.
24 Decreto-Lei nº 95/2019. D.R. I Série. 136/2019 (2019-07-18) 35-45.
25 Decreto-Lei nº 53/2014. D.R. I Série. 169/2014 (2014-04-08) 2337-2340.
26 Aviso nº 8302/2016. D.R. II Série. 125/2016 (2016-07-01) 20446-20461.
27 HARRISON, Rodney Beyond “natural” and “cultural” heritage: toward an ontological politics of heritage in the age of anthropocene. Heritage & Society. Nº 8:1 (2015), p. 24-42.
28 CENTRO NACIONAL DE CULTURA - José Sarmento de Matos (1946-2018) [Em linha]. Lisboa: CNC, 2018. Disponível na Internet: https://www.cnc.pt/jose-sarmento-de-matos-1946-2018/.