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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0870-8967versão On-line ISSN 2183-9174
Diacrítica vol.28 no.3 Braga 2014
DOSSIER 50 ANOS DE LUUANDA
Luuanda: a traição bem-vinda
Luuanda: the pleasant betrayal
Rita Chaves*
*Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, Brasil.
RESUMO
Encarando o diálogo entre literatura e experiência como elemento fulcral de Luuanda e de todo o projeto literário de José Luandino Vieira, neste artigo pretende-se reflectir em torno dos conceitos de fronteira, transculturação e tradição, salientando a articulação entre literatura, contexto político e projecto nacional como aspecto matricial desta obra e, mais em geral, da proposta literária do autor.
Palavras chave: Luuanda, Luandino, transculturação, colonialismo, tradição literária.
ABSTRACT
This article approaches Luandino Vieira’s writing, and specially the emblematic case of the short stories in Luuanda (1964), as an example of a committed dialectic exchange between literary representation and lived socio-political experience. Key concepts to structure this reflexion are ‘border’, ‘cultural exchange’ and ‘tradition’, in articulation with political context, the role of literature and the definition of a national project.
Keywords: Luuanda, Luandino, cultural affiliation, colonialism, literary tradition.
Não há Robinson Crusoé na literatura, e a elite é o primeiro conglomerado social em que um criador se integra.
Angel Rama
A frase de Angel Rama que escolho para epígrafe foi extraída do seu notável ensaio "Dez problemas para o romancista latino-americano" (Rama, 2001). Nele, o arguto estudioso de aspectos culturais da América Latina aborda a emergência da literatura no continente em um quadro marcado pelo código colonial, alertando para o peso da contradição e as manifestações da violência que, sendo estrutural, tem seus reflexos, inclusive, na hierarquização linguística e, por decorrência, na constituição da vida literária. Ao discutir aquela dinâmica social, tendo em conta a força das injunções históricas, Rama traz à luz os condicionalismos e as respostas que a escrita oferece, situando-se em terrenos perigosos, instada em certos momentos a acender velas a diferentes deuses. Nas suas finas observações delineia-se um olhar mediado pela modulação retrospectiva, uma vez que no momento em que ele escreve os países focalizados já somam décadas de independência, e integram um universo de nações nas quais a vida institucional decorre dentro de uma relativa normalidade, a despeito da manutenção daquilo que Alfredo Bosi identifica como complexo colonial de vida e de pensamento (Bosi, 1980: 13). Quando transitamos para o continente africano, respiramos outras atmosferas, sacudidas por um conjunto de fatores que tem em comum a remissão a um ambiente selado pela divisão e pela instabilidade.
Pensada sob o céu de Angola nos anos 60, por exemplo, quando a ficção narrativa ganha densidade, a frase ganha contornos especiais. Estamos ali sob o signo da voragem: naquele contexto já convulsionado pela guerra que desvelou o absurdo do processo colonial – prolongado para além da própria dinâmica do capitalismo que o acionara –, a vida nacional é uma espécie de miragem a que os vento das utopias tentam dar corpo. Os eventos de 4 de fevereiro de 1961 em Luanda e de 13 de março no Uíge não deixariam dúvidas quanto à verticalidade da crise. Em um terreno tocado por contradições abertas, o ato de escrever não poderia sequer sonhar com a inocência a que, em certos cenários, se pode ao menos aludir. Sob uma chuva de estilhaços a cair sobre a vida diária, os contornos da relação entre o escritor e o ‘conglomerado social’ que o cercava ganhava certos complicadores. O quadro da exclusão social e econômica, temperado pela discriminação racial, multiplicava as indagações: como falar com a camada que ditava a ordem das coisas ou dela se beneficiava? Como distinguir entre as elites os segmentos que poderiam alterar o jogo e suas regras? Se o acesso à escrita era, ao mesmo tempo, um privilégio e uma condenação, como conduzir a interlocução?
O peso de tais questões aponta a superação das fronteiras do texto literário para o exame de processos como o que se projeta sobre um livro como Luuanda e toda a obra de José Luandino Vieira. Como o fez Rama, é fundamental examinar as redes constitutivas do contexto e perceber a sua projeção no percurso de quem escreve e na produção literária que surge desse jogo. Em outras palavras, sair do texto para ir à vida das pessoas que os produzem aqui não significa um desvio, mas abre a possibilidade de observar de que modo ela é trazida e transformada nas páginas que ainda hoje nos inquietam a consciência.
Filho de colonos pobres, morador das franjas dos musseques, mas, ainda assim, aluno do Liceu Salvador Correia de Sá (o colégio da elite colonial), de acordo com o próprio escritor em sessão realizada na Balada Literária de 2007 na cidade de São Paulo, o jovem estudante, ao chegar ao fim da adolescência, angustiou-se diante da percepção da diferença de alguns itinerários. Onde buscar explicação para a imposição de percursos tão diferentes àqueles com quem ele tinha partilhado a infância? Aos leitores da Literatura Angolana a declaração de Luandino traz à memória os versos de António Jacinto:
Naquele tempo
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
Ali mesmo ao lado naquele largo – areal batido de caminhos passados
Os mesmos trilhos de escravidões
Onde hoje passa a avenida luminosamente grande
E com uma bola de meia
Bem forrada de rede
Bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves
Em alegre folguedo, entremeando cassambulas
... a gente fazia um desafio ...
O Antoninho
filho desse senhor Moreira da taberna
era o capitão
e nos chamava de ó pá,
Agora virou doutor
(cajinjeiro como nos tempos antigos)
passa, passa que nem cumprimenta
– doutor não conhece preto da escola.
.....................................................................................
E o Venâncio? O meio-homem pequenino
Que roubava mangas e os lápis nas carteiras
Fraquito de fome constante
Quando apanhava um pinhão chorava logo!
Agora parece que anda lixado
Lixado com doença no peito.
Nunca mais! Nunca Mais!
Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais! (Jacinto, 1985: 52)
A citação, um tanto longa, do belo poema "O grande desafio", traz-nos um pouco do clima da Luanda dos anos 50, época em que a cidade conhece alterações significativas em sua fisionomia. A preocupação física espelhará o processo de marginalização dos colonizados, incluindo os assimilados, na composição de um retrato da nova fase da empresa colonial em Angola, conforme assinala Tania Macêdo:
(...) nos fins dos anos 1940, quando ocorre o "boom" do café e com isso Luanda, cujo porto é a via de escoamento de uma das maiores riquezas de Angola naquela quadra, recebe o impacto da modernização e a sua população negra é deslocada cada vez mais para longe da "Baixa", o centro urbanizado, branco e próximo do mar. A "elite crioula" é definitivamente apeada do poder já que um número crescente de metropolitanos chega à cidade e toma os melhores postos de trabalho e as melhores terras. (Macêdo, 2008:116)
Em tais mudanças figura-se a inviabilidade de uma coexistência amena, agudizando-se a certeza da violência que engendra a sociedade colonial. É tempo de perder qualquer réstia de inocência, ensinam os poemas de Jacinto e de Aires de Almeida Santos, por exemplo, nos quais o adeus às ilusões associa-se ao fim de uma época, o da infância. Sem dúvida, o sentido desses versos Luandino lia também nas ruas de areia e de alcatrão que desenhavam a cidade, caminhos em que se compõe um roteiro delineado pelas referências culturais e humanas que participaram de sua formação.
A força da experiência mistura-se ao que lhe chega das leituras, formando uma mescla cujos ecos reverberam no primeiro conto do primeiro livro: "Encontro de acaso", de A cidade e a infância, trata precisamente de um improvável reencontro entre adultos que, tendo convivido na infância, foram apartados pelo código das desigualdades sociais. O uso da expressão "meninice descuidada" na primeira fala do narrador propõe uma ligação direta com o poema de Jacinto e é senha que nos pode levar a tantas narrativas nas quais encontramos, e muito bem trabalhado, esse universo. Aquele mundo de "fisgas" e "fugas", de "peixe frito" e "quicuerra", de "pássaros" e "sardões" em contraste com o território povoado de "fazenda e nylon" e "sapatos bem engraxados" repercutiria na memória de quem fez da angústia um móvel de criação. A partir do diálogo entre literatura e experiência, elemento fulcral em seu projeto literário, Luandino sintetizaria as questões com que se defrontou em duas perguntas: "O que a vida fez de mim?" "E o que eu posso fazer do que a vida fez de mim?"[1]
O alto preço pago, inclusive como habitante do sinistro e famoso Tarrafal de Chão Bom, na Ilha de Santiago, durante oito anos, confirmaria as escolhas feitas e os rumos tomados. Mobilizando o empenho político e social, essas perguntas produziram respostas correspondentes no itinerário do escritor, que, ao investir na transformação da narrativa angolana, impõe alterações profundas na prosa em português e se reconstrói também como personagem na história do país. Pela militância e pelo exercício da escrita, como sabemos, ele se converteria em José Luandino Vieira.
Vivendo física e culturalmente na zona de fronteira, Luandino faz a opção pela travessia na direção da cidade dos excluídos, cortando, assim, o cordão com as identificações na base da raça, e dos laços que ela automaticamente criava. É preciso não esquecer que mesmo em Angola, onde a segregação racial não atingia o grau registrado em outras colônias, a cor da pele constituía um poderoso capital. Malgrado o esforço do discurso lusotropicalista e seus sucedâneos, há uma sucessão de evidências que não nos deixam duvidar de Fanon: "o mundo colonial é um mundo compartimentado":
A zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada pelos colonos. Essas duas zonas se opõem, mas não a serviço de uma unidade superior. Regida por uma lógica puramente aristotélica, elas obedecem ao princípio de exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos, nunca vistos, nem mesmo sonhados. (Fanon, 2010: 55)
As latas de lixo transbordantes de "restos nem mesmo sonhados" compõem uma poderosa imagem da incomunicabilidade entre esses polos que formam a cidade. A Luandino esse fenômeno não passaria despercebido, e teria sua figuração na espacialidade que elege como fonte de significados. É na contraposição entre a cidade de asfalto e os fecundos musseques que fixa um dos eixos de sua obra. Essa forma de ver as arestas que separam os homens coloca em causa a hipótese de uma terceira margem em momentos de crise aberta. Contra a possibilidade de qualquer condescendência com o colonialismo, o escritor privilegiaria a contradição, antecipando a problematização do conceito de entrelugar, que viria ocupar tanto espaço nos estudos pós-coloniais e na imaginação crítica de alguns estudiosos. Da vivência em áreas intersticiais ele incorporou a situação de fronteira, mas compreendendo-a como zonas de contato, isto é:
[E]spaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações assimétricas de dominação e subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo (Pratt, 1999: 27)
O conceito de fronteira na perspectiva de Luandino escapa, pois, àquela noção de espaço em que as clivagens se dissolvem e se recriam livremente referências constitutivas de identidades móveis. Estamos mais perto do sentido de encruzilhada em que se reforça a lei da exclusão e se enrijecem os interditos. A impossibilidade da conciliação era lição de todos os dias.
O foco nas assimetrias em que se baseavam as relações de poder na sociedade colonial faz com que do conceito de ‘entrelugar’ Luandino retenha sobretudo a dimensão conflitual a que Homi Bhabha também alude, recusando a possibilidade consensual que as leituras de inspiração lusotropicalista preferem salientar (Bhabha, 2001: 21). De frente para as asperezas do contato entre o universo do colonizador e o mundo do colonizado, ele foge às hesitações e coloca-se com nitidez no centro do embate, trazendo para a sua narrativa o olhar insubmisso de quem se associa ao excluído, impondo movimentos que elegem a marca da contradição – espelho e contraface da ruptura – como selo de sua obra até ao presente.
Já em A cidade e a infância, acima referido, a configuração de um espaço – a cidade – conjugado a um tempo – o da infância – anuncia a sua migração para um dos lados da Luanda dividida. No título insinuam-se as pistas de um projeto cuidadosamente desenhado: Luanda seria o locus primordial, construída sob o signo de uma infância, que transforma a comunhão sugerida pelos versos de Jacinto em alimento para uma necessária mudança. A referência ao passado, entretanto, recusa a tentação da nostalgia, acenando talvez ao propósito de desnaturalizar o presente que massacra. Nesse espaço-tempo, insere-se uma imagem dupla a se oferecer como metonímia de um território em ebulição, que seria uma das recorrências da obra em tela.
Tal posição, prenunciada no livro de estreia, será radicalizada em Luuanda, livro fundamental na produção de Luandino e na história da Literatura Angolana. Escritas, como sabemos, no pavilhão prisional da Cadeia de São Paulo em Luanda, as três estórias, como lhes chamou o autor, representaram interna e externamente uma virada fundamental na tradição literária africana em língua portuguesa, com reflexos na cena contemporânea.
Vale a pena retomarmos a produtiva reflexão de Rama, e observarmos a validade do seu conceito de transculturação em três níveis (o linguístico, da estruturação que opera na economia de suas narrativas e o da cosmovisão que move o seu projeto estético) para a análise da ficção de Luandino. Emprestado de Fernando Ortiz, que, por sua vez, foi buscá-lo a Malinovski, o conceito de transculturação para o crítico uruguaio expressa melhor o processo transitivo de uma cultura a outra, potencialidade acionada por alguns escritores africanos como base da proposta de fazer da literatura um lugar de contestação do código colonial e um espaço de formação do novo país, ainda a caminho (Rama, 2001: 215-7).
Em Luandino, a eleição dos musseques como cenário preferencial das narrativas é um dado que altera o eixo em que se sustenta a literatura produzida na então colônia. É preciso não esquecer que se no campo da poesia já se consolidava um movimento de viragem, com a opção por temas vinculados a um projeto de rompimento com a literatura metropolitana e a literatura colonial, e também por uma concepção poética centrada na valorização de aspectos da cultura local, incluindo as matrizes da oralidade, na narrativa, sobretudo na narrativa longa, predominavam o viés colonial, com algumas incursões na área da "autoetnografia", para usar a expressão denominada por Mary-Louise Pratt (1999). A título de ilustração podemos citar o romance Uanga, de Óscar Ribas. Voltando as costas ao exercício etnográfico, Luandino dispensa-se das descrições informativas, e coloca em cena personagens que, habitando fora do reino dos privilégios, desvelam a Luanda que não se mostra nos álbuns fotográficos que ainda hoje (talvez principalmente hoje) se editam na metrópole.
Na visibilidade que confere à cidade ocultada, o escritor afasta as sombras da idealização e procura ver tais personagens em confronto com suas misérias e grandezas. Se por um lado, é patente a referência a pares dilemáticos que podemos identificar como metrópole / colônia, colonizado / colonizador, oprimido / opressor, português / quimbundo, musseque / asfalto, tradição / modernidade, por outro lado, pode-se perceber que no desenvolvimento dos enredos, o confronto entre os lados não revela alianças indestrutíveis entre aqueles que a priori poderíamos ver como parceiros. Na primeira estória, "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", a esperada aliança entre os dois personagens que lhe dão nome, ambos situados no plano da exclusão, não é plena. Nem mesmo a força do laço de parentesco predetermina a diluição das tensões no jogo das provas que a dura vida impõe.
Na "Estória do ladrão e do papagaio", as trapaças são protagonizadas por habitantes do mesmo ‘lado’. O peso da opressão ora converte os homens em parceiros, ora lhes desperta sentimentos menos nobres, tornando-os aliados do outro lado. As cumplicidades que pretenderíamos tácitas são desfeitas e refeitas na dureza dos dias. O efeito surpresa que atinge as personagens desencantadas com a atitude daquele que de algum modo sente como um igual é trabalhado como um fator que desencadeia a crença na possibilidade e na necessidade de construção de uma rede capaz de fazer emergir outros jogos de poder. Ao olharmos as três estórias como partes de uma longa narrativa, podemos perceber na sua sequência a alusão a uma cadeia de expectativas que o aprendizado favorece. Nesse aspecto, aprende a personagem e aprende o leitor, ambos confrontados com um mundo móvel, tal como resume Maria Aparecida Santilli:
Como próprio de um universo instável, deslocavam-se, também de funções, as personagens aliadas e/ou oponentes dos heróis-heroínas, durante o percurso destes-destas, em demanda dos seus objetivos. Tal mobilidade parece tipificar o tipo de tensões criado na obra. A ambiguidade de posições assumidas por certos colaboradores-adversários é para os personagens mais marcantes o grande obstáculo atravessado na consecução de seus desejos, já que é para elas (no plano da narração) o fator imponderável, como será para o leitor (no plano da leitura) o imprevisível. (Santilli, 1980: 260)
O enquadramento do espaço periurbano sob o signo da mobilidade, em contraste com a sua apreensão mediada por uma perspectiva exotizante seria um índice de contestação suficiente para colocar sob suspeita a escrita de Luandino Vieira. Entretanto, sua radicalidade mostrar-se-ia mais intensa e, naturalmente, mais perigosa. Ele mistura os processos de transculturação, pois a base da economia narrativa se alimenta nitidamente das operações no plano linguístico e na constituição da cosmovisão, instâncias que verticalmente se associam. Ao mesclar as estações, o salto é ainda mais fundo. De tal maneira que dessa coletânea pode-se dizer que nas estórias que ele reúne também constrói-se uma história dentro da História: a revolução interna desenvolvida no plano da escrita detonou uma crise que atingiria o coração do Império. Refiro-me, evidentemente, ao tristemente célebre episódio da premiação do livro e do fechamento da Sociedade Portuguesa dos Escritores pelo Estado Novo em 1965.
Acerca do concurso, Michel Laban, em volume chamado Luandino, inclui um esclarecedor artigo de Manuel Ferreira e depoimentos de Jorge de Sena e Ferreira de Castro que integraram o recurso judicial interposto por Edições 70 quando da apreensão do livro (Laban, 1980). Interessa-nos aqui recordar um de seus sinistros complementos: o programa da Rádio Televisão Portuguesa, produzido para legitimar a indignação do regime diante da escolha de Luuanda pelo júri. Moderado por José Mensurado, um funcionário da RTP, do programa participaram Amândio César (autor, entre outros do volume Contos da Literatura Ultramarina), José Redinha (etnólogo radicado em Angola) e dois escritores angolanos residentes em Portugal: Geraldo Bessa Victor e Mário António (que havia, inclusive, integrado a famosa Geração da Mensagem). A intenção dos promotores do programa era inequívoca: desqualificar literariamente o livro e, com isso, comprovar o caráter provocatório da premiação apenas que teria merecido as respostas que o poder lhe impusera.
Com a legitimidade de homens ligados à cultura e a Angola, os intelectuais cumpriram o papel que os representantes da ditadura salazarista e colonialista lhes tinham confiado. Foram enfáticos na desqualificação da obra, contrariando a opinião de vários críticos portugueses como Luisa Dacosta, Alexandre Pinheiro Torres e Urbano Tavares Rodrigues, que pela imprensa haviam saudado o aparecimento do livro. Asseguravam dessa maneira apoio à tese defendida pelo governo de que a atribuição do prêmio a um ‘terrorista’ era a expressão de um ato político que urgia combater.
Deixando de lado as questões éticas que a posição implicava, podemos nos ater ao pronunciamento de alguns membros para confirmarmos a força da proposta artística das narrativas. Curiosa e ironicamente, em sua diatribe contra o volume, Bessa Victor, oferece-nos elementos que apontam a energia renovadora da obra. Em sua avaliação, tratava-se de um atentado à língua portuguesa. O escritor, que por razões imperiais, também tem seu nome na história das letras angolanas, alertava para a mudança no comportamento do autor:
Mas a partir de 61, em 61 e em 62, ele passa a escrever de outra forma, no livro que depois se publica em 63, 64. Como é possível que um escritor, embora jovem, mas que andou a vida a escrever numa linguagem tradicional da literatura portuguesa, passe de repente a escrever de outra forma, como se vê, por exemplo, por esse apontamento? Ele passou a escrever assim: "Vou pôr a estória com bicho e pessoa. Não posso jurar só verdade mesmo, não assisti os casos como se passaram." (Laban, 1991: 920)
Estava, naturalmente, certa a avaliação de Bessa Victor. Recorrendo à sabedoria popular, poderíamos dizer que ao atirar no que viu, ele acerta no que não viu. No que talvez não tenha querido ver. Tão surpreendido e irritado, julgou deficiência o que se afirmou como marca de qualidade. Mostrou-se incapaz de perceber o alcance da mudança na profundidade das razões que teriam conduzido o escritor. Ou, quem sabe, desconfiou do significado da proposta e temeu convalidar. O que é certo é que efetivamente não pôde pressentir que essa verdadeira torção à Língua Portuguesa seria objeto de muitos estudos. Reconhecendo a dimensão da proposta, Irwin Stern indica, em artigo publicado em 1980, a abrangência dos procedimentos adotados pelo autor. O movimento quebrava a espinha dorsal da língua imperial e a refazia literariamente em jogos de aproximação com idiomas africanos. A aproximação com o quimbundo é um dos instrumentos e se dá não apenas na utilização de vocábulos, como monandengue, cassumbula, mataco, etc.. Ela é mais profunda no domínio léxico-semântico, com "o uso do processo de reduplicação, comum às línguas africanas para exprimir o conceito superlativo de ‘muito’ (por exemplo, ‘muito velho’)" (Stern, 1980: 195). No campo morfológico, pode-se notar a utilização de morfemas do português para registrar a ideia do infinitivo e outros tempos na conjugação em verbos que vêm do quimbundo, como xacatar.
A verticalidade da proposta se evidencia no domínio da sintaxe. Porque reflete uma outra maneira de ordenar a linguagem, portanto, atualiza uma outra maneira de ordenar o mundo. É aí, como se vê no exemplo destacado por Bessa Victor que o problema ganha força. "Não posso jurar só verdade" é construção que escapa completamente à norma e sugere um outro sistema. No conjunto desses gestos, Stern vê o fenômeno da "aculturação linguística" (Idem, 193). Contudo, tendo em conta a consciência do gesto, o conceito de transculturação na linha de Rama e Ortiz, também utilizado por Mary-Louise Pratt, parece mais adequado.
O choque provocado pelo trabalho de Luandino irritou a oficialidade. Toda a fúria do poder e a cumplicidade de quem não pôde ou não quis saudar o novo manifestaram-se refletindo o cinzento panorama daqueles anos. A atitude literária do escritor angolano maculava a língua, manchando portanto uma das bases do sagrado imperial. Nas palavras de Salvato Trigo:
Carnavalizando a norma social da língua portuguesa transposta para Angola, o escritor procura minar, em surdina, a sociedade que a institucionaliza e, consequentemente, a ideologia que a sustenta. O seu discurso torna-se, portanto, separatista e as suas obras assumem-se como subsidiárias de um combate político-institucional travado noutras frentes. (Trigo, 1980: 241)
Sob o foco de muitos olhares desde o lançamento de suas primeiras narrativas, a linguagem do escritor angolano permanece inquietando os leitores e fazendo emergir instigantes reflexões a respeito. Em A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira, Conceição Lima explora o que chama de maleabilidade na língua em que o autor cria suas estórias (Lima, 2009: 50), constatando que:
Da alternância entre o normativo e o criativo, surgem materiais linguísticos e estilísticos inovadores; sintaxe popular, calão de Luanda, arcaísmos, quimbundismos, e, sobretudo, neologismos. Ao criar uma língua dentro da língua, o escritor exprime a sensibilidade de um povo não europeu. (Idem, 51)
No gesto de Luandino patenteavam-se indícios de um projeto, à época revolucionário, de construir uma ideia de nação. Se hoje, como alertam tantos, do nacionalismo podemos apreender faces perigosas e até insuficientes ou improdutivas para a constituição das utopias, não podemos esquecer que entre o fardo do homem negro, na curiosa formulação de Basil Davidson, precisamos computar a necessidade de investir em processos que outras partes do mundo já podiam colocar em discussão. O conceito de nação é um deles. Empenhado na consolidação dessa ‘comunidade imaginada’, na conhecida formulação de Anderson, Luandino ancora na tradição literária de Angola sua busca e investe numa relação produtiva com a elite que o precedeu:
E percebi que o gesto quase involuntário de alterar a língua portuguesa que me acontecia quando as punha a falar, era o caminho para as tornar credíveis. A linguagem dos bairros populares onde cresci, era parte integrante e definidora da identidade das minhas personagens e portanto, o caminhar por aí. Essas personagens já estavam na literatura angolana: desde os finais do século XIX em romances e depois em contos, por exemplo, de Corchat Osório, de A. Jacinto e já havia neles também a introdução de outras línguas e arranjos no português. Só que estas personagens nunca tinham sido personagens centrais, isto é, aquelas em função das quais tudo se articula. (Vieira in Ribeiro, 2006)
Na intenção e nos gestos, desenha-se a coerência do projeto. A aproximação entre narrador e personagens, que já podíamos detectar em A vida verdadeira de Domingos Xavier, em Luuanda evidencia-se, traduzindo uma cumplicidade que se manifesta para além das páginas publicadas. Compreendendo que a proposição de um novo ponto de vista para a leitura da história exigia procedimentos consentâneos, Luandino percebe que povoar a linguagem dos personagens dos romances com palavras típicas não só seria insuficiente como os reduziria ao terreno do pitoresco. Convertêlos em passageiros de ilhas idiomáticas lhes encolheria a carga de humanidade que neles era fundamental reconhecer, inclusive como resposta ao universo de valores disseminados pela literatura colonial. Tratava-se efetivamente de romper o inaceitável, do seu ponto de vista, isto é, a hierarquia entre os personagens e o autor situado acima de suas criaturas.
Procurando a ruptura como chave de um processo criativo, sem pretender dissociar-se do universo dos excluídos que elege como referencia do mundo a ser criado na forma de um novo país, que deve surgir da superação da cadeia colonial, Luandino não renuncia ao diálogo com o que se fazia e se pensava noutros espaços culturais. Tributária da literatura que desde o século XIX se fazia em Angola, sua obra também encontrará espaço para um diálogo que, de Jorge Amado a James Joyce, incorpora a energia que vai buscar em autores como Shakespeare, Vieira, Camões... O enraizamento africano dialeticamente se compôs com as marcas de outros códigos culturais.
Passados tantos anos e vencidas tantas crises, renovadas outras, o projeto nacional em Angola permanece em processo. E podemos, pela análise da realidade de sua população, reunir razões para pôr em discussão a justeza dos caminhos escolhidos. Os trilhos da política não lograram as metas prometidas pelas sedutoras palavras de ordem, é fato. Entretanto as curvas sinuosas da literatura se redesenham sugerindo uma dose muito mais luminosa de acerto. Em se tratando de Luandino e de sua Luuanda, alguns testemunhos parecem dar conta da profundidade das escolhas do escritor. A renovação que propôs e atualizou, e ganha força nos livros que voltou a escrever, revela que para Luandino Vieira distanciar-se de um certo conglomerado social implicou a instituição de um outro e, assim, criar novas direções para um projeto literário iniciado ainda no século XIX. Inscrevendo-se numa linhagem particular, ele trai a elite a que, por critérios de origem e raça, deveria pertencer, e faz da própria recusa um método para sua formação. Desse modo, ele pode alimentar outra tradição. É o que podemos aferir na declaração de um outro escritor, também ele nascido fora de Angola, também ele passageiro de uma especial viagem na direção de um destino. Falo de Ruy Duarte de Carvalho que declara:
Com a carga emotiva de um sobressalto e de um sublime encontro, a um livrinho que dois ou três anos antes, em 1963, tinha por dois ou três dias aparecido à venda em Luanda. O livrinho em questão chamava-se Luuanda, e era da autoria de José Luandino Vieira. Ora a esse livrinho e a alguns versos de Viriato da Cruz e de Aires de Almeida Santos, bem como a algumas crônicas de Ernesto Lara Filho, eu devo o golpe da consciência, pela via do arrepio, de uma alma angolana que então em mim se veio acrescentar à consciência prévia de uma razão angolana e foi responsável pela minha conversão à condição de Angolano. (Carvalho, 2006: 8)
Se o passado é escrito pelo futuro, a fala de Ruy Duarte de Carvalho define a legitimidade de uma reinvenção que está indiscutivelmente associada a uma história maior que a do próprio autor. Uma história que permanece repercutindo no presente e no passado de um país. E que torna mais significativo o lugar da literatura na ordem e na desordem dos dias.
Referências
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[Recebido em 8 de agosto de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]
Notas
[1]Sessão com o autor no evento intitulado "Balada Literária", em novembro de 2007, na cidade de São Paulo.