The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle
(W. B. Yeats “The Second Coming”, 1920)
A Etnográfica inicia neste número a publicação regular da Jorge Dias Memorial Lecture, à semelhança do que acontece com a Aula Ernesto Veiga de Oliveira, que apareceu pela primeira vez na revista em 1998 (número 2, volume 2 - com o texto de Otávio Velho, “A antropologia da religião em tempos de globalização”).
A Jorge Dias Memorial Lecture, conferência organizada pela Unidade de Coordenação de Antropologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa em memória do antropólogo Jorge Dias (1907-1973), que foi professor no ISCSP até à data da sua morte, celebra a sua obra e reconhece a sua influência na antropologia portuguesa. Anualmente, são convidados como oradores investigadores nacionais e internacionais, de reconhecido mérito, nas áreas da antropologia social e cultural e da antropologia biológica. A Lecture inaugural teve lugar em 29 de abril de 2015, tendo sido orador convidado o antropólogo Jorge Freitas Branco.
1921: a crise na Europa
Pode considerar-se uma ironia da história que a Primeira Guerra Mundial, uma época de caos e desordem (pior para os europeus da época do que qualquer coisa até então imaginável) e o fim de uma era, tenha criado as próprias condições para a emergência do nosso método etnográfico (com a sua condição sine qua non de passar pelo menos um ou dois anos de “observação participante” entre as pessoas sobre as quais pretendemos escrever) e as nossas teorias mais acarinhadas de organização social e ordem. Enquanto noções de progresso moral, de desenvolvimento técnico e de superioridade política eram vacilantes e “atiradas ao vento”, como Malinowski (1922: 476) tão expressivamente notou, pensadores sociais por toda a Europa lutavam para compreender até que ponto o estudo de modos de vida não europeus nos poderia dizer algo sobre o que se estava a passar e sobre a essência da sociedade, da paz e do conflito.1 Enquanto tudo na Europa estava a desmoronar-se em pó, com indivíduos a morrer aleatoriamente nas trincheiras e nas cidades, pensadores sociais como Durkheim e os seus seguidores antropológicos procuravam, fora da Europa, as estruturas intemporais e permanentes que ligam, ou deveriam ligar, indivíduos numa Gemeinschaft.
Em particular, de acordo com a história convencional (talvez mais mito do que história),2 se Malinowski não tivesse ficado preso durante a guerra nas ilhas Trobriand no Pacífico, incapaz de regressar ao Reino Unido porque a sua nacionalidade polaca o tornou um “inimigo”, o método não teria surgido, ou não teria surgido daquela forma. Se a Europa não tivesse sucumbido enquanto ele investigava o sistema de troca de objetos chamado Kula, ele não teria encontrado um título tão ideal para o grande final da sua monografia: “O sentido [meaning] do Kula”. Nas últimas páginas do capítulo, Malinowski estabelece uma ligação direta entre o Kula, o nascimento do método e a crise na Europa. O “sentido do Kula” devia ser compreendido do ponto de vista dos nativos, mas para os leitores europeus tinha o seu próprio significado: como um aviso, como um reflexo da Europa sem sentido em que viviam.
“Não nos é possível alcançar a sabedoria socrática final de nos conhecermos a nós próprios se nunca deixarmos o estreito confinamento dos costumes, crenças e preconceitos em que cada homem nasce. Nada nos pode ensinar uma melhor lição sobre esta matéria tão importante do que o hábito da mente que nos permite lidar com as crenças e valores de outro homem do seu ponto de vista. A humanidade civilizada nunca precisou tanto desta tolerância como agora, quando o preconceito, a má vontade e a vingança separam cada nação europeia de todas as outras, quando todos os ideais acarinhados e proclamados como as mais altas realizações da civilização, da ciência e da religião foram atirados ao vento. A Ciência do Homem, na sua versão mais refinada e profunda, deve levar-nos a esse conhecimento e à tolerância e generosidade baseadas na compreensão do ponto de vista de outros homens.” (Malinowski 1922: 476, tradução do autor)
No ano em que Malinowski publicou a sua monografia sobre as ilhas Trobriand, Radcliffe-Brown também publicou a sua monografia sobre outras ilhas, as ilhas Andaman (Radcliffe-Brown 1922), fazendo de 1922 o annnus mirabilis antropológico, como Adam Kuper (1973: 9; Mills 2017) lhe chamou (e as ilhas o paradigma do locus ethnographicus, devemos acrescentar). Também nesse mesmo ano, T. S. Eliot publicou The Waste Land, claramente inspirado por Frazer. Nesse extenso poema, Eliot descreveu uma terra oca e morta que só poderia ser reavivada pelo sacrifício; uma metáfora para a Europa construída, e destruída, durante os séculos anteriores. Malinowski e Radcliffe-Brown não poderiam ter conhecido o poema quando escreveram as suas monografias, mas a advertência final de Malinowski poderia ser interpretada como uma versão secular da mensagem espiritual de The Waste Land. Se as nações europeias seguissem o caminho da guerra e da destruição, acabariam no deserto descrito por T. S. Eliot (embora, provavelmente, nos apressemos a acrescentar, sem a redenção que o poeta acreditava que a Igreja oferecia, na qual o rei sacrificado renovaria, com o seu próprio sangue, o espírito da terra desolada).
Uma interpretação semelhante poderia ser feita do final do Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss (1923-24), publicado ao mesmo tempo que o seu contemporâneo, o escritor André Gide, estava a finalizar o seu romance Os Moedeiros Falsos (Gide 1925), que oferece um contraponto artístico ao pensamento teórico do seu tempo. Para Gide, então comunista, a Europa estava cheia de falsificações porque as pessoas trocavam moedas falsas em vez de moedas reais (uma metáfora para a perda de relações e valores humanos plenamente significativos e “autênticos” na França burguesa). Para Mauss, que sem dúvida simpatizava com muitas das ideias de Gide, poderia haver alguma esperança se os europeus conseguissem recuperar o espírito da “confraternidade artúrica” da dádiva, espírito perdido na política e economia modernas, se não assassinado por elas. Embora Mauss nunca se tenha referido a Frazer ou a Eliot, é notável que tenha usado a metáfora dos cavaleiros da távola redonda de Camelot nas suas conclusões finais. Tanto Mauss como Gide e Malinowski viram a crise na Europa como engendrada pelo colapso de mecanismos de troca plenos de sentido (que ainda se podiam encontrar noutros locais), o que vai ao encontro do diagnóstico de anomia e desalmamento nas transações económicas proposto por filósofos críticos como Lukács, Benjamin, Adorno e Horkheimer após a guerra.
Adorno e Horkheimer reuniram-se em Frankfurt precisamente em 1921 para começar a trabalhar naquilo a que muito mais tarde chamariam “a dialética do Iluminismo” (Horkheimer e Adorno 2016 [1947]). De uma perspetiva diferente, Husserl viu as origens da “crise da Europa” na ascensão gradual de uma tecnologia e ciência desumanizantes (Husserl 1990 [1936]), uma análise também tentada, numa linguagem mais popular (e algo populista), por Oswald Spengler no seu pessimista O Declínio do Ocidente (Spengler 1926 [1918], 1928[1922]).
A “crise da Europa” foi percebida em termos mais espirituais por autores que culparam o abandono progressivo de Deus ou do numinoso como o principal culpado pela emergência de uma mente europeia predadora e autodestrutiva. O ensaio do teólogo luterano Rudolf Otto, O Sagrado (1925 [1917]), e o do pensador católico Max Scheler, Do Eterno no Homem (2007 [1921]), deram origem a uma nova disciplina, a “fenomenologia da religião”. Ambas as obras contêm reflexões sobre a desumanidade da guerra e a necessidade de reintroduzir a religião a fim de humanizar a sociedade. A segunda edição da Carta aos Romanos de Karl Barth, muito diferente da primeira e publicada em 1922 (Barth 1998 [1922]), foi saudada nos círculos cristãos como mostrando o potencial da teologia para curar a alma sofredora europeia.
Em La crise de la conscience européenne, o historiador de ideias Paul Hazard (1935) encontrou as origens do pensamento secular e o abandono gradual de Deus no século XVII, indo assim muito mais longe do que qualquer autor anterior na busca das raízes da tão discutida “crise”. Paul Valéry, que imediatamente após a guerra publicou um influente artigo em inglês sobre “a crise do espírito” (Valéry 1919), publicou em 1921 o seu ambicioso diálogo platónico Eupalinos ou o Arquiteto, uma reflexão estética sobre a necessidade de casar o sentido com a arquitetura e, metaforicamente, sobre a necessidade de reconstruir uma Europa significativa e valiosa a partir das ruínas deixadas pela crise e pela guerra (Valéry 1921). De facto, a guerra tinha aniquilado a possibilidade de criar as grandes narrativas de história e progresso, quer espiritual quer secular, que tinham sido possíveis no século XIX. Tudo poderia ser passível de fazer parte da “velha mentira” tão lúcida e tragicamente denunciada pelo poeta de guerra Wilfred Owen no seu triste poema “Dulce et decorum est” (Owen 1920), publicado após a sua morte nas trincheiras em 1918.3
Para a antropologia, a guerra foi uma rutura epistemológica que permitiu a “revolução” em termos paradigmáticos da antropologia de 1922, tão bem analisada pelo filósofo da ciência Ian Charles Jarvie (1964). Não é que as narrativas tenham mudado, mas as próprias “condições de plausibilidade” (pedindo um conceito emprestado a Goldstein [1983]) para que as narrativas fizessem sentido eram radicalmente diferentes. Poder-se-ia falar aqui de um “problema de gerações”, independentemente da idade biológica dos antropólogos em questão (Malinowski e Radcliffe-Brown tinham entre 30 e 50 anos quando a guerra terminou, Frazer tinha quase 70). A guerra criou um conflito geracional palpável em produtos culturais, tais como arte e literatura. Os autores que escrevem sobre a juventude nos anos 20 (Isherwood, Waugh e Huxley no Reino Unido, Joyce na Irlanda, Martin du Gard e Gide em França, Fitzgerald nos EUA, entre muitos outros) colocam frequentemente no centro das suas tramas o conflito de gerações e a emergência de uma consciência jovem e estética, radicalmente diferente da da geração anterior à guerra.4
Uma dimensão genealógica também foi encontrada na emergência da filosofia do pós-guerra, como Wolfram Eilenberger demonstrou recentemente no seu estudo detalhado da dinâmica da criatividade filosófica durante o “tempo dos mágicos”, como chama à década europeia do pós-guerra (Eilenberger 2019). Considerando o clima geral, também se poderia interpretar o nascimento da etnografia à luz do “problema das gerações” diagnosticado nos anos do pós-guerra por sociólogos e pensadores como Mannheim (1952 [1928]) e Ortega y Gasset (1933). Este último viu no conflito geracional o “esquema” das crises históricas e filosóficas. Fenomenologicamente falando, Mannheim e Ortega y Gasset argumentariam que cada geração vive no seu próprio mundo. Seguindo essa premissa, podemos assistir a uma geração mais jovem de antropólogos a reagir contra os “mais velhos” que vivem num cosmos diferente. As dimensões espaciais e temporais implícitas no discurso de Frazer, que o tornaram plausível para o seu público, e as subjacentes a Malinowski são tão diferentes que o seu confronto é visível mesmo no prefácio que o primeiro, já velho, escreveu para a monografia do jovem etnógrafo polaco (Frazer 1922).5
Para a geração mais jovem, a que queria prestar atenção a factos e detalhes, um erro comum dos antropólogos anteriores era o de utilizar categorias contemporâneas tais como religião, ritual, crença, parentesco, mercado e estados, “descontextualizando-os” e projetando-os conjeturalmente sobre os primórdios da humanidade. O papel do antropólogo tinha de ser o de olhar para a integração do presente, bem como denunciar criticamente os esforços descontextualizadores dos colegas anteriores. A descontextualização de factos isolados para construir contas plausíveis, mas não controláveis, à maneira de Frazer já não era aceitável. A projeção anacrónica das categorias atuais (“religião”, “parentesco”, “crença”, “lei”, etc.) só poderia ser feita com muito cuidado, se é que poderia ser feita.
O silêncio da profecia
Esta nova perceção, por muito salutar que fosse, não estava isenta de perigos. Assim como os antropólogos começaram a concentrar-se nas dimensões sincrónicas da estrutura e função, e nos mecanismos de estabilidade e cooperação, os sujeitos da transformação histórica e diacrónica estavam a elaborar respostas para a terra crítica em que viviam - e de facto morreram - sob coação colonial. Na Melanésia, os chamados “cultos cargo” estavam a devastar as “velhas disposições” (para citar o poema “Journey of the Magi” de T. S. Eliot), enquanto na África subsariana os movimentos proféticos começavam a questionar a condição da existência humana. “Os negros serão brancos e os brancos serão negros”, anunciou o líder religioso kongo (“profeta” na atual linguagem sociológica) Simon Kimbangu em setembro de 1921, quando foi encarcerado pelos belgas.6
Esta profecia kimbanguista, anunciando uma inversão racial-apocalíptica (Sarró e Mélice 2015), ressoa com a visão onírica vislumbrada no capítulo quatro de O Grande Gatsby, ele próprio um produto cultural americano arquetípico do pós-guerra. Nessa visão, enquanto conduzem sobre a ponte Blackwell em Nova Iorque, os jovens protagonistas do romance testemunham um grupo de três afro-americanos sentados no fundo de uma limusina conduzida por um motorista branco.7 É fácil imaginar um jovem leitor em 1925 a perguntar-se: “Será possível uma tal inversão de papéis no mundo real?” Scott Fitzgerald (1925) não foi para a prisão por sugerir simbolicamente esta possibilidade através de uma imagem surreal e provocadora, mas o seu contemporâneo africano Simon Kimbangu foi, porque com as suas provocações verbais questionava as próprias condições de possibilidade de hegemonia colonial, algo que não podia ficar impune. Foi encarcerado por não menos de 30 anos e assim morreu em outubro de 1951.
Contudo, os antropólogos não estavam epistemologicamente equipados para estudar caracteres tão esporádicos como os profetas africanos ou melanésios. A sua episteme os levava, de forma acrítica, a estudar a estrutura de parentesco dos bacongo e não os indivíduos criativos que tornariam o bakongo de hoje diferente do bakongo de ontem. A transformação posta em marcha por atores sociais como Kimbangu não podia ser estudada. No entanto, é preciso lembrar que, no que diz respeito aos cultos-cargo, houve alguns estudos significativos. Em particular, o antropólogo colonial Francis Williams publicou um estudo sobre o movimento religioso (um culto-cargo) conhecido como “a loucura de Vailala” (Williams 1923). Apesar de todas as suas limitações enquanto exercício de observação etnográfica, o trabalho de Williams continua a ser valioso como testemunho da inovação religiosa que estava a ter lugar na colónia. Contudo, não contribuiu muito porque, entre outros aspetos, como Jarvie (1964) e Lienhardt (1997) demonstraram, seguiu uma direção diferente da inaugurada pela revolução epistemológica que estava a ter lugar na antropologia naqueles anos, que silenciou trabalhos como o de Williams.8
O surgimento em grande parte despercebido de profetas como Kimbangu 9 e profetas de cultos-cargo na Melanésia (e de muitos desses fenómenos noutras situações de opressão colonial) indica não só que as ciências sociais da época estavam mal equipadas para lidar com estas rápidas transformações, mas também, e talvez mais importante, que a Waste Land não significava as terras ocidentais, e que “a crise” não era apenas uma crise da mente ou do espírito europeu, como Valéry, Husserl ou Hazard teriam diagnosticado. É preciso ir além do eurocentrismo destes intelectuais. O mundo inteiro estava a desmoronar-se, e tudo estava mais intimamente ligado do que provavelmente se intuía. Por exemplo, a emergência da pandemia chamada “gripe espanhola” (ou “gripe do 18”) foi muito provavelmente uma das razões pelas quais tantas pessoas no Congo belga precisaram de visitar curandeiros locais como Kimbangu em 1921; da mesma forma, as noções de Marcus Garvey do “back to Africa” (“regresso a África”) geradas nas Caraíbas foram provavelmente importantes nas colónias africanas onde Kimbangu profetizou. Estes chamados profetas ofereceram o seu diagnóstico dos tempos, como fazem os profetas em tempos excecionais em que as condições preditivas “normais” se desmoronam, impossibilitando as expectativas de senso comum sobre o futuro (Ardener 1989). Deveríamos prestar ouvidos a estes profetas, pois a sua imaginação ecoou as críticas expressas pelos poetas e intelectuais da Europa, e muitas das suas vidas terminaram tão tragicamente como as de William Owen e de tantos outros jovens europeus sacrificados nas trincheiras. Ao ouvir o que Ardener chamou “a voz da profecia”, demasiadas vezes silenciada pelas nossas próprias estratégias epistemológicas, ganhamos uma melhor compreensão dos tempos em que os súbditos colonizados viveram. E embora a projeção de categorias como o “profeta” nas paisagens culturais africanas dos anos 20 possa ser considerada um anacronismo categórico, é no entanto verdade que é através do “anacronismo controlado” que podemos estudar como o diferente emerge nos oceanos de uniformidade cultural e temporal.10
A ascensão do anacronismo
Poder-se-ia argumentar, utilizando o diálogo crítico de Rancière com Lucien Febvre (1942), que o problema para uma filosofia da antropologia, e não apenas para uma filosofia da história, é o do anacronismo (Rancière 1996). No seu influente artigo, Rancière criticou o argumento de Febvre de que a atribuição de Abel Lefranc do “ateísmo” (ou “descrença”) a Rabelais era anacrónica. Para Febvre, escrevendo sob a episteme historiográfica de les Annales (não diferente do paradigma durkheimiano que anima a antropologia social), o anacronismo equivalia a um “pecado” capital, pelo menos metaforicamente falando. Segundo ele, simplesmente não era possível ser ateu no século XVI: a incredulidade não satisfaria as condições de possibilidade de pensamento crítico. Febvre, diz-nos Rancière, pode estar certo. Talvez Rabelais fosse de facto mais religioso do que Lefranc supunha, mas isto é trivial. O que é importante é que Rancière questiona os pressupostos filosóficos implícitos na crítica de Febvre. Como poderia Febvre conhecer as condições de possibilidade do pensamento do século XVI? Se todos no século XVI tivessem de subscrever a mesma episteme (uma em que a incredulidade era impossível), se todos vivessem na mesma “época”, não teria havido qualquer mudança social, outro “tempo” não poderia emergir, ou cair sobre a época dominante e opressiva. Em vez de ver o anacronismo como um problema metodológico (ou, aliás, como uma solução), Rancière sugere que nos concentremos nos “anacronismos” plurais que povoam a história e a tornam possível:
“Não há anacronismo. Mas existem modos de ligação que num sentido positivo podemos chamar anacronismos: acontecimentos, ideias, significados que são contrários ao tempo, que fazem circular o sentido de uma forma que escapa a toda a contemporaneidade, toda a identidade do tempo com ‘si mesmo’. Uma anacronia é uma palavra, um acontecimento ou uma sequência significante que deixou ‘o seu’ tempo, e é assim dada a capacidade de definir pontos de orientação completamente originais (les aiguillages), de dar saltos de uma linha temporal para outra. E é graças a estes pontos de orientação, estes saltos e estas ligações que existe um poder para ‘fazer’ história. A multiplicidade de linhas de tempo, mesmo de sentidos do tempo, incluídas no ‘mesmo’ tempo, é a condição da atividade histórica.” (Rancière 1996: 67-68, tradução do autor)
Embora Rancière se dirija e se refira a historiadores, as suas ideias são aplicáveis à antropologia social tal como entendida no mundo académico europeu. As epistemes clássicas, tanto a de 1922 como a de muitas das monografias agora clássicas dos anos 50 - provavelmente também uma episteme gerada no período pós-guerra (embora uma guerra diferente) - baseavam-se na procura de mecanismos de homeostase social ou, na melhor das hipóteses, de paradigmas destinados a explicar como as sociedades se adaptam às mudanças abruptas. Nestes paradigmas, o “tempo” nativo era visto como um único “tempo”, tal como Febvre viu o tempo na mentalité do século XVI. Profetas e agentes similares, mesmo que fossem “nativos” do local onde operavam, eram considerados “extra-processuais”, como o título de um famoso artigo sobre movimentos de culto anti-feitiçaria na África Ocidental por um discípulo oxoniano de Evans-Pritchard (Bohannan 1958). “Extra-epocal” seria provavelmente uma forma mais rancieriana de o dizer.
Ainda hoje, muitos antropólogos não prestam atenção aos profetas e afins: não vemos a sua relevância para o nosso objeto de estudo mais amplo. Como disse Martin Holbraad (2018), ao comentar uma ideia inicial de Starn (1991), não reconheceríamos uma revolução (quanto mais o seu potencial cosmogónico), mesmo que ela ocorresse debaixo dos nossos próprios narizes. Na introdução a Os Nuer, Evans-Pritchard (1940) recorda como teve de abandonar o local que tinha selecionado para o seu trabalho de campo, do qual pôde observar a estrutura social nuer, devido à presença de dois profetas rebeldes procurados pelo exército. A ideia de que os profetas e a sua rebelião, em vez dos nuer e as suas estruturas, poderiam também ser um objeto de estudo fantástico, teria provavelmente soado muito estranha aos seus ouvidos epistemológicos na altura.11
Assumir que “tempo nativo” é um tempo único, uma “época”, tão importante como era nos paradigmas etnográficos anteriores (quer os de após a Primeira Guerra Mundial, quer os de após a Segunda Guerra Mundial), já não é possível. Estudos sobre a coexistência de temporalidades (Bloch 1977), cronótopos (Wirtz 2016), choques de cronologias (Trautmann 2009) e similares mostram que todos existem dentro da multiplicidade de linhas de tempo a que Rancière alude. Os kimbanguistas (seguidores do movimento religioso iniciado pelo referido Simon Kimbangu, hoje constituído como uma enorme igreja internacional) são um bom exemplo disso. Podem invocar noções cíclicas e repetitivas de tempo, temporalidades lineares, temporalidades analógicas e outras formas de estar na história, dependendo do contexto ritual ou teológico da enunciação e da linha em que querem estar: kongo, cristão, tradicional, moderno, rebelde, conservador, bíblico, africano, progressivo, recursivo, etc. Os kimbanguistas não estão sozinhos a habitar uma multiplicidade de vezes. A capacidade de invocar e habitar diferentes modelos temporais ao mesmo tempo pode fazer parte da experiência humana.
A Waste Land e a imaginação etnográfica
No início deste ensaio testemunhámos uma tensão entre os destroços e a permanência, uma ligação estreita e algo paradoxal entre viver numa era de crise volátil e imaginar o permanente, o eterno na humanidade, seja à la Durkheim ou à la Max Scheler. Contudo, se olharmos mais de perto para os nossos antepassados etnográficos, obtemos uma visão mais matizada de como surgiu este tipo de palimpsesto. Para usar novamente as palavras dos poetas como contraponto às das ciências sociais, permitam-me aludir à noção de Doppelbereich, introduzida por Rainer-Maria Rilke nos seus sonetos. Nos “Sonetos a Orfeu”, “duplo domínio” seria, penso eu, uma tradução aceitável. Na tradição ocidental, a arte e a religião são as vias régias que conduzem a nossa imaginação para esse eterno Doppelbereich, mas a noção de duplo domínio pode ser relevante para explicar o humano que deve ir para além da perceção de uma realidade paralela que pode ser projetada no passado ou no futuro, não apenas através da arte e da religião, mas através de muitas outras práticas sociais, incluindo a etnografia. A antropologia tem sido muito hábil, talvez mais do que qualquer outra ciência social, em documentar como os seres humanos têm tendência a viver em paisagens duplas em que o que é percebido pelos sentidos não é “o mundo”, mas sim um gatilho da nossa imaginação acerca dele (Sarró 2020). Os seres humanos vivem, talvez cada vez mais, em paisagens partidas e arruinadas, mas através de cujas fendas os indícios de passados gloriosos se infiltram e os imaginários culturais se tornam possíveis. Esta capacidade humana de viver uma vida dupla não é algo “novo”, uma característica da modernidade, pós-modernidade, alterações climáticas ou neoliberalismo, embora todos estes fatores tenham provavelmente reforçado a sua relevância na vida contemporânea. Além disso, é provavelmente parte da capacidade cognitiva humana e sempre esteve connosco, como a linguagem, embora muito mais ignorada pela nossa disciplina. A julgar pelo número de vezes que utilizou a expressão nostálgica “in the olden days…” (“nos velhos tempos…”), ao dizer-nos como funcionava o Kula quando lá estava, é evidente que Malinowski pensava que estava a fazer investigação sobre uma instituição que tinha sido mais gloriosa no passado do que na sua observação atual. Se escrevesse hoje, pode imaginar-se livremente, poderia ter intitulado o seu último capítulo não “O sentido do Kula”, mas “O sentido das ruínas do Kula”. As ruínas eram o que ele via em comparação com o glorioso Kula que os seus interlocutores lhe transmitiam verbalmente, não só fazendo uso da imaginação histórica que lhes era própria, mas também alimentando a imaginação etnográfica do jovem investigador.
Se há uma coisa comum aos paradigmas emergentes de hoje, é que todos estamos conscientes de que as ruínas são tudo o que temos, e que o waste (desperdício) agora se aplica a todos. Imaginários de permanência, do passado e do futuro são tecidos em colaboração. A extraordinária coincidência do motorista branco a conduzir sobre Blackwell’s Bridge e o profeta africano no Congo belga não é realmente uma coincidência, mas uma coexistência. Ambos são Doppelgängers entrelaçados, igualmente “fora do seu tempo”, mas igualmente marcadores do mundo em que vivemos hoje. São testemunhos do poder do anacrónico para definir novos “pontos de orientação”, e desencadeadores para a imaginação antropológica de como o princípio da copresença e o princípio da sucessão são mediados pelo anacrónico, uma mediação que, como o meu colega Michael Rowlands ilustrou (Rowlands 2022), permeia muitos dos paradigmas teóricos emergentes de hoje.