O contexto internacional em que as relações entre os Estados Unidos e a Federação Russa se desenvolvem tem sido marcado por dissensão e afastamento, em particular desde a guerra na Ucrânia em 2014. De facto, este tem sido o statu quo de uma relação que sempre foi pautada por momentos difíceis. O desejo russo de reconhecimento internacional como grande potência, e a sua leitura diferenciada de segurança europeia daquilo que comummente se designa na visão ocidental, contribuíram para este afastamento. O papel da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que aos olhos de Moscovo se tornou mais um instrumento da influência ocidental, tem sido limitado na sua capacidade de decisão e atuação. A União Europeia (UE) - e em particular as suas políticas de alargamento e vizinhança, promovendo uma presença mais ativa em Estados parceiros do espaço pós-soviético - tem também gerado descontentamento na Rússia, apesar do reconhecimento que esta faz de vários limites na política oriental. Mais relevante em matéria securitária é o processo de renovação da Aliança Atlântica, com a consolidação de assuntos de cariz político na agenda, a realização de missões fora da área tradicional de atuação da Organização, e a política de alargamento que se estendeu além do quadro securitário ocidental, alterando a fronteira externa da Aliança numa lógica de aproximação às fronteiras russas. Descrita como uma ameaça à segurança russa, a política de alargamento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato) tem permitido continuidade na narrativa russa de exclusão do sistema de segurança europeu, entendido como construído em antinomia aos seus interesses. Os esforços de consolidação de confiança promovidos no seio da nato, como o Conselho NATO-Rússia e outros acordos de cooperação assinados, esvaziaram-se no contexto da escalada de tensão entre a Rússia e o Ocidente, de que a anexação da Crimeia e a guerra no Donbass são exemplos marcantes.
Deste modo, parece evidente que o triângulo Estados Unidos-UE-Rússia não é de todo equilátero2. As relações dos Estados Unidos com a Rússia têm mostrado um lado mais assertivo e vão-se ajustando de acordo com as relações desenvolvidas entre as respetivas administrações: veja-se por exemplo a postura de Trump um pouco menos crítica em alguns momentos, e a postura de Biden, muito crítica das ações de Moscovo já na campanha eleitoral. Já as relações UE-Rússia são resultado de uma multiplicidade de vozes na leitura deste vizinho gigante, ora mais benigna ora mais conflituosa, quer por motivos geoeconómicos quer por motivos políticos. A construção do gasoduto Nordstream 2 que liga diretamente o abastecimento de gás natural da Federação Russa a território alemão, ou os acordos bilaterais de alguns Estados-Membros para a compra da vacina russa Sputnik V contra a covid-19, são ilustração de diferenciais internos na agenda atual, e que têm consequências no desenho das relações UE-Rússia.
O contexto em que a Administração Biden toma posse nos Estados Unidos é marcadamente difícil na relação bilateral entre Washington e Moscovo, apesar da postura do anterior Presidente Donald Trump ter sido algo errática, e mesmo ambivalente face à atuação de Moscovo. Exemplo claro foi o da afirmação de que não houve qualquer interferência russa no processo eleitoral de 2016 nos Estados Unidos3, face a um conjunto de provas que apontavam nessa direção e que vieram a confirmar-se. A postura de Trump na política internacional revelou-se disruptiva na forma como operacionalizou o princípio «América primeiro» («America first»), incluindo nas relações com os parceiros europeus e mesmo no seio da nato. O afastamento entre os parceiros tradicionais ocidentais e o mau ambiente gerado no seio da Aliança Atlântica criaram dissensão e minaram as relações transatlânticas.
Diferentemente, a nova Administração Biden assume uma postura de recalibragem das relações com os parceiros tradicionais e de leitura de que a «América está de volta» («America is back»)4 inserida no normativo multilateral. A aproximação à UE e à NATO, o regresso dos Estados Unidos a acordos internacionais em matéria ambiental, como o retorno ao Acordo de Paris, por exemplo, ou a sua postura mais cooperativa no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), são prova desta alteração no curso político. Já as relações com a Rússia são lidas com desconfiança e nos primeiros documentos oficiais da nova Administração a Rússia aparece muitas vezes referida lado a lado com a China na categoria dos regimes autoritários e que têm assumido uma postura assertiva e revisionista no sistema internacional. A China é mencionada como o grande rival e a Rússia como a maior ameaça5. Apesar de Biden entender que o poder da Rússia é limitado face a uma economia dependente setorialmente e com dificuldade de reação face às implicações da atual pandemia, e de se deparar com problemas demográficos persistentes, entende também a Rússia como uma potência revisionista que procura minar os sistemas democráticos ocidentais, e cujo Estado foi capturado por um regime cleptocrático6.
Em 2011, Joe Biden comentou que olhou Putin nos olhos e que percebeu que este não tinha alma, ao que Putin respondeu «compreendemo-nos mutuamente». Dez anos mais tarde, já com Biden na Presidência, numa entrevista este responde afirmativamente a uma pergunta do entrevistador sobre se Putin é um assassino, a que Putin reage referindo-se a este comentário como refletindo o que se vê num espelho, e adicionando que «quando éramos crianças costumávamos dizer quem diz é que é!», acrescentando ainda «desejo-lhe muita saúde»7. Estas trocas de impressões fortes marcam o ambiente de tensão em que as relações Estados Unidos-Rússia com Biden e Putin se desenrolam, não prometendo desanuviamento construtivo para além de uma política de pragmatismo seletivo.
A agenda de Biden para a Rússia
Ainda antes de assumir a Presidência, num artigo que escreveu para a Foreign Affairs8, Biden referia que as relações com a Rússia são difíceis e que a sua postura crítica face ao Kremlin não permitiria a repetição de um gesto similar ao do reset button da Administração Obama.
No primeiro discurso oficial de política externa, a 4 de fevereiro de 2021, Biden sublinhou a relevância da renovação do acordo New START com a Rússia, face ao contexto de dissensão e necessidade de estabilidade nuclear, salientou a leitura da Rússia como revisionista e disruptiva da ordem democrática, e destacou, neste contexto, a violação de direitos e liberdades fundamentais, com o caso Navalny a suscitar as maiores críticas9. Biden deixou então claro que, de forma diferente do seu antecessor, os dias em que os Estados Unidos não reagiam face a ações agressivas da Rússia terminaram. Referiu-se concretamente à interferência em processos eleitorais, a ciberataques e aos envenenamentos na Rússia, com o caso Navalny ainda a marcar os títulos noticiosos, exigindo a libertação deste último e condenando as ações de limitação da liberdade de expressão10. De algum modo, a acentuação desta dimensão normativa faz parte da estratégia de Biden que procura posicionar os diferenciais menos na relação político-diplomática Estados Unidos-Rússia e mais nas incoerências internas decorrentes da corrupção da oligarquia e do sistema cleptocrático russo. Entende que este sistema corrupto afeta toda a sociedade civil na Rússia, e que é necessário desmontar e desacreditar as ações e políticas dos governantes russos11. Mas a política faz-se também além-fronteiras, e os países do espaço pós-soviético - com o apoio declarado dos Estados Unidos à Ucrânia12, num contexto em que a tensão com a Rússia tem vindo de novo a escalar, ou as críticas fortes a Moscovo face aos acontecimentos na Bielorrússia13 - são exemplo. As críticas de ingerência da parte de Moscovo encontram na nova Administração dos Estados Unidos acusações de desrespeito pelas populações e pelas suas liberdades, na tentativa de avançar a agenda normativa antissistema na Rússia.
No relatório intitulado «Renewing America’s Advantages», de março de 2021, Biden antecipa as linhas mestras do novo conceito de segurança, sublinhando um contexto adverso às democracias, o aumento de nacionalismos e a crescente rivalidade com a China, a Rússia e outros Estados autoritários, além da revolução tecnológica que impacta a vivência diária14. Caracteriza a Rússia como um ator disruptivo que pretende aumentar a sua influência global, e que, perante uma Rússia desestabilizadora e uma China cada vez mais assertiva, pedirá ao Congresso para averiguar da estrutura de resposta e capacidades adequadas à mesma, com acentuação do reforço da dimensão de inovação técnico-militar, que em seu entender possa determinar vantagens militares e de segurança nacional aos Estados Unidos. No entanto, Biden refere que é necessário diálogo a nível militar de modo a assegurar estabilidade estratégica face a um quadro de desenvolvimento de novas tecnologias militares, no qual quer a China quer a Rússia têm estado a investir. A preocupação com o armamento nuclear insere-se neste ponto, donde a extensão do acordo New START com a Rússia é central, como referido. O contexto global em que a Rússia e a China são descritas como potências revisionistas e disruptivas da ordem internacional marca o discurso e a prática de Biden nestes seus primeiros três meses na Presidência dos Estados Unidos.
Relações com a Rússia: pragmatismo seletivo
Apesar das críticas ao regime russo de Vladimir Putin, descrito como autoritário e corrupto, a Administração Biden pretende manter linhas de diálogo em temas estratégicos - de que o nuclear é já exemplo - e continuar a cooperar com a sociedade civil russa, para descontentamento das autoridades russas. Na leitura de Biden, ser anti-Putin não significa ser anti-Rússia, aliás significa que os esforços contra o regime de Putin serão potencialmente benéficos para a população russa15. Nesta procura de equilíbrio algo difícil, alguns criticam as autoridades norte-americanas de responderem de forma similar a desafios distintos, o que permite ao Kremlin manter a sua postura desafiadora. Por outras palavras, independentemente de se tratar de ingerência em assuntos internos como processos eleitorais, de um caso de envenenamento, de ataques à oposição ao regime, ou do envio de ajuda ao Presidente Assad na Síria, a resposta é idêntica: sanções16. E esta postura é reveladora de reatividade17. O resultado é que este nivelamento político e a incapacidade de uma política mais proativa têm revelado limites na contenção da Rússia.
Pragmatismo seletivo significa uma política que será simultaneamente crítica e cooperativa, mantendo uma postura de condenação de violações de direitos humanos e de princípios democráticos, como o caso Navalny demonstra, enquanto continua a colaborar em temas sensíveis e fundamentais como o controlo de armamento, de que o acordo New START é ilustrativo, ou na área da cooperação espacial, como a extensão do acordo de cooperação envolvendo a NASA e a ROSKOSMOS, que data de 1992, demonstra18. Aliás, o despedaçar do regime de controlo de armamento que vem marcando os anos pós-Guerra Fria é uma preocupação, após a retirada dos Estados Unidos do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (Tratado ABM) em 2002, do Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio (Tratado INF) em 2019, e do Tratado Open Skies em 2020. A Rússia seguiu-se a estas decisões, tendo dado o primeiro passo relativamente à suspensão do Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (Tratado CFE), em 2007.
A renovação do New START neste contexto era visivelmente necessária para garantir continuidade nas limitações de armamento nuclear e permitir regularidade nos mecanismos de inspeção e monitorização, que funcionam como medidas de consolidação de confiança. O regime de limitação de armamentos, que durante anos foi basilar na segurança transatlântica, está a desmoronar-se, contribuindo para que as lógicas de contestação ao sistema internacional atual se desenvolvam num contexto menos regulado, e em que a rivalidade na inovação tecnológica e ao nível do desenvolvimento e da compra e venda de armamento se assumam de forma mais evidente.
Há neste contexto vozes que procuram perceber como encontrar equilíbrios no pragmatismo seletivo, donde nalguns temas as críticas sobressaem, enquanto noutros a cooperação se vai fazendo. O argumento é o de que na realidade as fissuras ideológicas já existiam e não têm constituído obstáculo à colaboração da Rússia e da China com os Estados Unidos em assuntos de interesse mútuo, tal como não os têm dissuadido de manterem ataques à democracia nos Estados Unidos19. Ou seja, parece que o pragmatismo seletivo se assume cada vez mais como a prática política norteadora quer em Washington, quer em Moscovo. A gestão delicada que implica não promete uma consolidação de linhas de cooperação, ao invés parece apontar para uma lógica de negociação caso a caso, de acordo com a identificação de temas de interesse mútuo.
Os desafios à administração Biden nas relações com a Rússia: a águia, o dragão e o urso
As relações Estados Unidos-Rússia no quadro atual não podem ser dissociadas da rivalidade que persiste entre os Estados Unidos e a China. Aliás, este é um dos temas prementes na agenda de Biden. O pragmatismo seletivo resulta também deste reconhecimento. A política asiática de Moscovo e as implicações que tem nas leituras políticas nos Estados Unidos têm criado tensão na leitura ambivalente do papel da Rússia enquanto adjuvante face a uma China em ascensão, ou enquanto potenciando dificuldades nos alinhamentos que Moscovo possa tecer com Pequim.
A águia enfrenta o urso e o dragão, descrevendo o primeiro como uma grande ameaça e o segundo como um grande rival. Ao referir-se a estes dois gigantes no discurso político desta forma, e muitas vezes em simultâneo, Biden está a marcar a agenda com linhas de competição e rivalidade. Estas são evidentes atualmente na narrativa e prática política, com as sanções impostas e as quebras de confiança diplomática a ilustrarem a história. A águia mostra as suas garras, mas o urso e o dragão mantêm-se atentos, numa postura de desconfiança e prontos para uma atuação mais assertiva. Nada de novo nesta matéria. Deve, no entanto, ser notado que uma agenda seletiva assente em princípios pragmáticos de cooperação não tem necessariamente de significar uma agenda de concessões ou sinalizar incapacidade para alcançar avanços nas relações. Quanto a isto, a qualidade do diálogo Estados Unidos-Rússia será essencial para aferir a extensão dos eventuais compromissos que venham a ser assumidos20. E para garantir também que estes possam ser lidos como, eventualmente, algo mais do que a simples operacionalização de um determinado interesse.