Apresentação
Nos últimos 30 anos houve um intenso debate sobre os efeitos da escrita em face da pretensão de objetividade na produção do conhecimento nas ciências sociais e das formas de “representação” da realidade descrita nos textos etnográficos (Clifford 2016; Marcus e Cushman 1982; Rabinow 1985; Geertz 2018; Clough 1992). Ganha relevo olhar para as estratégias narrativas de apresentação dos resultados de pesquisa e, nelas, a descrição, a construção das personagens e o lugar ocupado pelo autor/pesquisador no texto. Aproximando-se de uma sorte de crítica literária, o propósito era ir além da poética para encontrar a política presente na escrita e na divulgação dos resultados de pesquisas. Outrossim, não deixa de ser uma questão epistemológica, porque decorre desse entendimento a hipótese de que a elaboração do desenho da pesquisa, os métodos e as formas de apresentação dos resultados expressam uma definição particular de realidade e um entendimento sobre a relação “nós-outros”. Se, como sustenta Foucault (2016), é a partir dos séculos XVII e XVIII que o discurso científico começa a se apartar do discurso literário, esse movimento é feito com a pretensão de propor outra estrutura textual, que se prende aos fatos e afasta o subjetivismo do autor. Somos convocados a não fazer concessões à retórica e à narrativa.
Não seria descabido dizer que costumamos minorar os problemas da relação entre sujeito e objeto pela chave do método, seja para incorporar, no texto, os dilemas e limites da pesquisa, seja para reduzir o efeito do subjetivismo do autor e possíveis vieses assenhorando-se dos protocolos no emprego das técnicas. Aqui radica o objetivo desse texto. Ele nasceu como forma de dar vazão às questões metodológicas, éticas e políticas que surgiram em uma pesquisa sobre o tema das memórias de ex-militantes operárias metalúrgicas no ABC Paulista. O que pretendemos é refletir sobre os limites e possibilidades do registro etnográfico no que tange: (i) as alianças forjadas em campo, com os nossos interlocutores e os seus efeitos na construção das questões mobilizadas pela pesquisa; (ii) a revelação de situações traumáticas colhidas no anonimato, mas sujeitas ao escrutínio público pelo efeito da divulgação do texto científico no meio pesquisado.
Para bem situar os elementos do cenário, eis como surgiram as inquietações. Estávamos em campo para uma pesquisa 1 que se propunha a fazer uma análise comparativa dos ciclos de greves ocorridos em fins da década de 1970 e início de 1980, entre canavieiros de Pernambuco e metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista, através do registro das memórias de antigos(as) militantes (Lopes e Heredia 2019). O projeto teve início em 2017, com o fim previsto para 2019. Com isso em tela, e após a divisão das tarefas entre as equipes de pesquisa,2 chegamos ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) como forma de aproximação do campo em que iríamos trabalhar a partir dali. Não havia muitos elementos balizadores naquele momento e o interesse era colher o máximo de informações para, em seguida, fazermos recortes mais precisos, calibrar métodos e estratégias de coleta de informações.
A porta de entrada ocorreu por meio de alguns contatos que tínhamos com o setor de registro e arquivo do sindicato, o Centro de Memória, Pesquisa e Informação (CEMPI). A sondagem inicial previa um mapeamento dos documentos disponíveis para pesquisa - jornais, atas de reuniões, memorandos, fotografias, revistas, etc. - e o início da localização de eventuais informantes que vivenciaram os acontecimentos das greves. Queríamos pessoas comuns, não apenas lideranças. Eis o momento em que começava a se insinuar o que nos parecia ser disputas sobre quem merecia ser entrevistado. Alguns nomes eram indicados como atores reconhecidos para falar sobre aqueles eventos históricos e outros eram secundarizados. Para ilustrar, quando cogitamos que pretendíamos entrevistar uma senhora que no passado fora copeira no sindicato, “tendo servido café para Lula”, como ela mesma nos fez questão de contar, prontamente notamos algum descontentamento em nossos interlocutores (a maioria homens) que se mostraram inquietos com o nosso interesse. Além disso, éramos constantemente indagados sobre quem estava sendo entrevistado e, não raro, as indicações e sugestões eram anunciadas em público, na frente dos demais colegas, o que criava certo embaraço em razão de uma eventual necessidade de declinar da sugestão.
Se o valor de face desse fenômeno acende uma luz vermelha indicando possíveis vieses na composição dos casos selecionados para entrevistas em profundidade, com efeitos nas narrativas sobre as greves, optamos por incorporá-lo como um dado de campo, portanto, em outro registro. Não se quer com isso recusar-lhe a precaução, mas esmiuçar os significados dessa difícil relação que se anunciava e que ia, pouco a pouco, imprimindo um ritmo diferenciado na negociação dos objetivos da pesquisa. Isto assumiu tonalidades ainda mais evidentes quando decidimos localizar algumas mulheres, ex-metalúrgicas, que haviam participado do I Congresso da Mulher Metalúrgica, ocorrido em 1978. As recusas iniciais em participar da pesquisa, muitas vezes sob a alegação de que as suas histórias “não eram importantes”, operavam no mesmo compasso de um desejo de serem ouvidas, manifesto pelo efeito de surpresa do nosso interesse. Talvez um prenúncio de que “contar” importava.
Com o passar do tempo, as visitas ao sindicato foram se tornando mais recorrentes, incorporando outros membros do grupo de pesquisa em razão da distribuição de tarefas a que nos propúnhamos. É nesse processo de conhecimento e familiarização com as rotinas de trabalho, com os sujeitos e os ambientes de convívio que a recepção, inicialmente amistosa, foi cedendo lugar aos conflitos de interesses que ali existiam. Se, até então, tínhamos uma relação que se apresentava como, na forma clássica, entre, de um lado, demandantes de informação e, de outro, ofertantes, o registro etnográfico nos fornecia indícios de que havia outras demandas por parte dos nossos interlocutores e elas começavam a se insinuar, o que reposicionava o nosso “lugar” no campo e, na mesma toada, a própria noção de “campo”. O corolário desse trade-off parecia desafiar os nossos objetivos e ameaçava comprometer a relação de confiança que estávamos estabelecendo com eles(as). O enredo dessa história é o que apresentaremos a seguir, alinhavando a narrativa em torno de dois aspectos: primeiro, a constituição das memórias de antigas militantes como um processo de resistência para poder “contar a sua história”. Segundo, a relação de confiança e o sigilo das informações colhidas em um contexto de disputas por legitimidade de narrativas sobre “quem” e o “que” se pode falar. Para concluir, e municiados pelas provocações que lançaremos com exemplos retirados da pesquisa, retomamos as discussões sobre as modalidades normativas de construção e exposição do texto científico.
Memórias em disputa
Na chegada ao sindicato não sabíamos o que encontraríamos no tocante à preservação memorialística das greves históricas ocorridas no ABC Paulista em fins da década de 70. O aspecto mais tangível dessas memórias não nos fornecia bons indícios. Alterações na arquitetura do prédio, sobretudo na fachada, catracas para controlar o acesso, o ambiente asséptico que, exceto pela peça de máquina exposta na grama na parte de fora e por algumas fotografias exibidas na entrada, diríamos estar em uma espécie de prédio para escritórios. Já sabíamos, contudo, da existência de um centro de memória recém-criado e cuja missão principal era zelar pelo acervo e documentação existentes.
A catalogação do acervo - que inclui uma pequena biblioteca, jornais, revistas, atas de reuniões, fotografias e outros tipos de documentos -, ainda muito incipiente, não nos permitia tomá-lo como fonte de pesquisa no tempo de que dispúnhamos. Esta constatação sugeria um dado importante: a memória como um bem tangível, o espaço enquanto “lugar de memória” não era tão fortemente ativado, digamos, pela instituição, embora o espaço do sindicato surgisse nas memórias dos que viveram as grandes greves em sua dimensão simbólica como espaço de convivência e militância. Disso não decorria mero descaso; sucede que a afirmação das memórias, e as disputas a ela inerentes, estavam operando em outro eixo, o das narrativas - eis a nossa hipótese. Terreno bem mais pantanoso, porque fluido e vivo, sujeito às variações nas formas de se narrar, quando comparado ao material mais distante e frio dos documentos, estávamos diante de um modo de afirmação identitária de sujeitos que se viam como partícipes da “História maior”, escrita com H maiúsculo, e que disputavam por legitimidade, no mercado das imagens e representações, um lugar na história das lutas.
Mas o ato de narrar também opera silenciamentos, omissões, revela omitindo. Este oxímoro obrigou-nos a reposicionar os nossos interesses, não apenas para o conteúdo do que estava sendo contado pelos nossos informantes, no afã de registrarmos as memórias das greves, mas, agora, para o processo do que chamamos de, na ausência de melhor termo, o script da história. Dito de outro modo, o diálogo com esse passado e o seu efeito nas trajetórias de vida seguiam sendo importantes no tempo presente, manifestava um claro interesse em durar. Acrescentamos a isso o dado das indicações cênicas dos sujeitos em tela. Próprio à linguagem teatral, tomamos de empréstimo essa referência porque ela designa algo além do texto, ou seja, são instruções sobre o comportamento dos atores e o cenário. Claro está que, para o nosso caso, o script não é dito, é antes performado. Mas como chegamos a esta chave?
Registramos em nossos cadernos de campo, e discutimos em reuniões, a maneira como os interlocutores da pesquisa pareciam estar diligentes com os nossos objetivos. Fomos envolvidos num emaranhado jogo de interesses que estavam em disputa como uma sorte de recurso que poderia ser mobilizado por eles(as), seja para mostrar a sua importância para os demais colegas, ou reivindicar maior atenção por parte de um setor carente de investimentos, chegando mesmo a pequenas intrigas sobre as relações que estávamos mantendo com determinados membros. Prenúncio de uma estratégia política legítima, o que exerceu efeito epistêmico nos diálogos - na relação “nós-eles” - e no texto. É nesse terreno que se aproximar de uma pessoa era quase perder o contato com outra, privilegiar um enfoque significava a oportunidade para que determinado sujeito mostrasse a sua importância, sentar-se à mesa com alguém para almoçar poderia colocar em risco a oportunidade de conversar com outros; os espaços estavam carregados de simbolismos e o trânsito entre os universos não ocorria impunemente.
Em uma dessas ocasiões, notamos que a recorrência do interesse em marcar encontros e conceder a entrevista no sindicato parecia atender a outros propósitos. Foi assim que Léli 3 nos encontrou numa determinada manhã, no sindicato, para uma primeira entrevista. Preparou caprichosamente alguns detalhes do que julgava importante dizer em um pedaço de papel, já que “nunca tinha sido ouvida antes”. Tirou o dia para permanecer com a gente e continuar a conversa, mesmo que preferíssemos uma pausa para retomar em outra ocasião. Mas estar lá era poder almoçar no restaurante localizado no último andar e, dessa forma, ser vista. Em outro momento, e agora com um ex-operário, fomos instigados a ter uma pequena conversa no hall do sindicato, local de passagem e, portanto, de grande visibilidade, mesmo que estivesse à nossa disposição uma sala no subsolo, ideal para uma entrevista. A todo o momento ele fazia questão de chamar alguém que passava e dizer que “estava participando de uma pesquisa”, aproveitando para também indicar o colega para ser ouvido por nós ao julgar que ele “tinha história para contar”.
Refletir sobre tais imbricações é outra forma de trazer à tona a distinção clássica entre o “observador” e o “observado”, bem como a noção de “campo” como sendo “outro lugar”. O relato de tais situações esbatia a nossa posição de diferentes formas. Primeiro, a nossa história, a que viria para fins de publicação científica, poderia obliterar as ambiguidades das diferentes versões (a nossa e a deles/as) sobre os acontecimentos em tela pelo recurso ao ascetismo linguístico, ou seja, poderíamos simplesmente consagrar o nosso relato como sendo aquele mais objetivo, que transpõe a interpretação feita pelos nativos sem recusar o crivo da objetividade. Aqui está a ideia do risco de o nosso relato se distanciar dos diferentes pontos de vista.4 Acreditamos ser esta também uma dimensão política dos efeitos da escrita. Segundo, assumir com cautela a distinção entre “nós” (pesquisadores) e “eles” (sujeitos da pesquisa) era, de igual modo, recusar a noção de campo como sendo “outro lugar”, distinto do nosso universo, fechando as portas para eventuais zonas de comunalidades. O aceno era para perceber como os diferentes relatos estavam sendo mobilizados em nossa análise. Parecia-nos de bom alvitre considerar as diferentes mediações entre familiaridades e exotismos em nosso processo de conhecimento, evitando, com isso, tomar o campo como algo meramente desconhecido. Mas o desafio não era somente de ordem metodológica, da ordem das formas de compreensão da interação entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa, mas igualmente do modo de representação em nossa escrita. Veremos isso logo mais. Antes, porém, voltemos à contextualização do trabalho de campo.
Em nosso registro, os modos de autoridade e do estatuto conferido ao “outro” tornavam-se ainda mais problemáticos num contexto em que as formas de narrar e a eleição das personagens parecia operar silenciamentos em desfavor das mulheres trabalhadoras, encadeando narrativas em torno dos que se construíram como “lideranças”, ou ao sabor da História com H maiúsculo, a do registro dito “oficial”; próximo do que Pollak (1989) descreveu como “enquadramento da memória”. Isto para dizer que os efeitos da escrita e a concepção da relação “nós-eles” não advinha da preocupação com uma nova maneira de escrever sobre o tema da memória, ou para dar consequência a um modo de reflexividade confessional, mas para questionar a maneira de produzir conhecimento através dos procedimentos metodológicos que nos valemos. É outro modo de assumir o que Marcus e Cushman (1982) pretendem ao colocar em debate os pressupostos tácitos assumidos pela prática da pesquisa e as implicações no translado entre os fatos observados e o plano do discurso.
Foi assim que, a partir das informações iniciais colhidas, propusemos um recorte com as mulheres trabalhadoras que eventualmente tivessem participado do I Congresso da Mulher Metalúrgica, ocorrido em 1978. Sucede que, após as primeiras ligações por telefone, tivemos uma surpresa: percebemos que havia uma forte resistência em falar sobre as suas vidas. De fato, perdemos alguns contatos pela recusa em participar da pesquisa. Quando começamos a realizar as entrevistas, logo percebemos que os silêncios, a resignação, a difícil conciliação entre a vida privada e o trabalho reverberavam nos relatos das memórias narradas.
Com o intuito de compreender as trajetórias ocupacionais dessas mulheres e o engajamento na militância sem, contudo, afastar a dimensão da vida privada, lançamos mão da diferenciação entre história de vida vivenciada e história de vida narrada proposta por Rosenthal (2014). Pretendíamos estabelecer conexões entre a narrativa dos acontecimentos relatados e o efeito do contexto (passado e presente) sobre as experiências e expectativas das entrevistadas. O suposto é o de que as narrativas têm lugar num espaço determinado (história vivida), mas também acontecem no tempo (história narrada).
Animados com esse entendimento, fizemos algumas entrevistas no espaço do sindicato, por sugestão das nossas informantes, porém, logo percebemos que havia nesse propósito um interesse paralelo, que se insinuava como forma de barganhar legitimidade e prestígio para as histórias contadas, como dissemos antes. O efeito do tempo presente, em que se disputam narrativas, deixava entrever que “contar” era igualmente resistir. Sobre isso, uma pequena digressão. Aventamos a suposição de que havia um silenciamento sobre a participação das mulheres nas greves que denotava a incorporação desigual das demandas das trabalhadoras frente às demandas da classe, como bem mostraram Souza-Lobo (2011), Cappellin (1994) e Humphrey (1983). O fato novo parecia estar nas consequências desse silenciamento sobre a vida delas e como isso impactava na relação com o sindicato.
Em igual compasso, à medida que a notícia da pesquisa foi se alastrando entre as pessoas, passou a ser decisivo o cuidado com relação à nossa rede de contatos para viabilizar, ou não, a realização de entrevistas. Havia, portanto, marcadores narrativos sobre as histórias que seriam contadas, disputas sobre o que seria contado e sobre quem as contava. Ainda nesse sentido, é impossível contornar os efeitos do impeachment da presidente Dilma Roussef e, posteriormente, da prisão de Lula, pela vinculação histórica do Partido dos Trabalhadores com o sindicato e o simbolismo associado à figura do ex-presidente, personagem icônico do ciclo de greves que era do nosso interesse. Falar sobre a história das greves de fins da década de 1970, da classe operária que emergiu naquele contexto à luz dos desdobramentos mais recentes da política nacional, impunha efeitos diversos na maneira como cada pessoa com quem conversávamos contava sobre a sua vida. Este fato descortinou uma brecha para que tentássemos compreender não apenas o conteúdo dos relatos que versavam sobre os primeiros anos de vida com a família, as trajetórias ocupacionais e os cotidianos de trabalho, o início da militância, entre outros assuntos. A performance do ato de narrar aquelas memórias sugeria também ser um ato de resistência dessas mulheres em face das omissões e silenciamentos por elas vivenciados.
Na maioria dos casos, por se tratar de personagens já idosas, o tom épico da narrativa predominante sobre os significados atribuídos às greves do ABC nem sempre encontrava assento tranquilo em suas histórias de vida. Um exemplo ajuda a ilustrar. Gil entrou para a militância no sindicato ainda muito nova, ocasião em que enfrentou os dilemas de ser mãe solteira, as humilhações sofridas nas fábricas em que trabalhou e a violência simbólica sofrida na militância sindical que, naquele momento, era um ambiente majoritariamente masculino. Em todos os encontros houve períodos de pausa por conta da forte emoção que invadia a conversa, obrigando-nos a interrompê-la. Embora ela não tivesse avançado na explicação das causas do seu sofrimento, a narrativa da sua história de vida deixava entrever uma enorme dificuldade em lidar com o passado. Não se tratava de um sentimento de resignação, mas da dificuldade de encontrar o reconhecimento esperado para os anos de militância no quadro de interpretação da sua vida. Encontramos o mesmo aspecto em outros casos e não seria arriscado estender esta hipótese para aquelas pessoas que se recusaram a contar as suas histórias.
Se havia um efeito terapêutico naqueles relatos, algumas vezes confessado aos pesquisadores, também era evidente um esforço de reconstrução de uma imagem que se quer transmitir;5 não por acaso foi comum ouvirmos a tentativa de encontrar, no passado, as origens de uma rebeldia nativa que desse sentido à entrada delas na militância sindical. A tematização de certos aspectos da vida do entrevistado, proposta por nós, ou por ele escolhida, mostra como se distribuem as densidades narrativas. Com isso queremos dizer que, em alguns casos, conquanto soubéssemos que a pessoa teve uma vida de intensa militância no sindicato, ela conferia maior densidade ao período anterior, ainda na infância, sempre destacando características da sua personalidade que posteriormente serviriam como explicação para o comportamento. Outros soldavam as suas histórias à militância e ao trabalho e pouco ou nada sobrava para a história da família, da casa - como faziam os homens.
Nas mulheres, os efeitos da cisão entre histórias de trabalho e histórias de família era claro, ou seja, o casamento, os filhos, os cuidados e responsabilidades com a casa e o marido constituíam balizadores de conduta em sua vida como militante e operária. Para os homens, exceto quando perguntados, pouco ou nada aparecia da família, da casa. A densidade narrativa se concentrava muito mais no tema do trabalho, no espaço público.6
A reivindicação de memórias como ato de resistência, fulcro principal das configurações discursivas, constituía um aspecto claro nas entrevistas e no registro etnográfico. O ato certamente vem carregado de (re)interpretações acerca das origens do engajamento na militância, do comportamento rebelde, da atribuição de sentido às ações e a qualquer aspecto que construa uma narrativa coerente com a história das greves. A oportunidade de falar sobre a vida e apresentá-la como um enredo dialoga com representações de si, como identidade narrada (Ricœur 1991). Neste quesito, parece-nos seguro resistir à falsa tentação entre opor texto e vida, como se quiséssemos encontrar verdades por detrás das histórias de vida narradas. Desse modo, nem o texto é um elemento morto à espera de quem o encontre, como saída para uma suposta objetividade das análises que recorrem à história oral, nem conferimos à vida a exclusividade interpretativa da análise concedendo à subjetividade a chave para compreendermos os relatos. A ambição, ao invés, é o de uma fotografia em movimento, ou, como sugere Rosenthal (2014), não se trata de tomar as histórias de vida como uma cadeia atomística de experiências cujo significado é criado no momento da articulação no discurso, mas de um processo que tem lugar simultaneamente contra a tela de fundo de uma estrutura de significado biográfico, esta sempre móvel e sujeita a constantes reinterpretações.
Dito de outro modo, sendo distintas as experiências e expectativas, temos também diferentes cortes narrativos sob a influência do tempo presente e da proposta temática sugerida pelo pesquisador no momento da entrevista. Um exemplo irá nos ajudar a clarificar o que estamos arguindo.
Nas entrevistas, para dar início à conversa, após uma apresentação breve sobre o tema da pesquisa, pedíamos que a pessoa falasse sobre a infância, a juventude, para abarcar também dimensões prévias à trajetória ocupacional. O desejo de memória, de dar perenidade às suas trajetórias de vida no trabalho e na militância, num contexto em que elas (as memórias) estão sendo disputadas, parecia impulsionar as nossas entrevistadas a promover uma releitura dos primeiros anos da sua vida reunindo indícios do que seria uma militância prematura. É assim que Léli, falando da sua infância, nos diz:
“Vocês estão fazendo uma pergunta boa. Saudades. Porque eu tive uma mãe ma-ra-vi-lho-sa [separando as palavras]. Era pequenininha, mas era uma gigante. Uma mulher marcante na vida de todos que passaram por ela. Eu tinha dois irmãos, José e Marinete. Mas era filho de um nordestino lá de Alagoas. Eram meus irmãos por parte de mãe, mas a minha mãe, ela gostava da vida, ela não ficava sozinha que nem eu estou, não [sorri longamente]. Ela era uma militante inconsciente. Ela não sabia o que significava essa palavra. Mi-li-tan-te.” [Léli, 77 anos]
Ao longo do relato, ela procura enaltecer uma imagem de si que se pretende desbravadora, de uma rebeldia nativa, que servirá como um fio de condão para associar aos acontecimentos posteriores da sua vida, à época da militância sindical, emprestando-lhes sentido. A narrativa não nos serve apenas como ponte para a compreensão de um passado, é ela mesma que está em tela no tempo presente. Pretendíamos, portanto, compreender como as nossas personagens contam histórias, quais são os marcos que se estabelecem e que permitem selecionar e omitir.
Mas até chegarmos a esse momento da palavra era preciso superar antes a resistência em contar as suas histórias. O trauma dos silenciamentos sofridos por essas mulheres, e a dificuldade que tínhamos para registrá-lo, expunha os limites metodológicos da nossa abordagem. Os silêncios e as recusas em conceder uma entrevista pareciam mais reveladores do que os relatos. Seriam eles também um ato de resistência contra as formas de opressão ainda presentes? Recusar era, nesse sentido, opor-se à disputa de narrativas ainda vivas no tempo presente. Éramos tentados a semantizar o silêncio. O efeito da interpretação do passado na memória de idosos acaba por sugerir uma espécie de “balanço da vida”, um saldo, onde o indivíduo procura equilibrar os investimentos de uma vida pretérita com a situação atual em que se encontra. O esforço não deixa de ser o de alinhar as histórias vistas sob o prisma mais amplo do quadro social em que elas estão inseridas.
Como se nota, há pelo menos duas acepções sobre os “silêncios” e o “silenciamento” que precisamos aclarar pois, queremos crer, estão interligadas. Primeiro o que se manifesta como recusa em falar sobre as suas memórias. No sentido da dificuldade de evocar um passado vivido e o retorno a ele decorridos 40 anos; portanto, menos pelos traumas ocasionalmente gerados e o controle sobre o que contar e mais em razão de como transmitir um conjunto de experiências a quem não as viveu. Mas não só isso, e esse é o ponto em que o segundo sentido emerge, o “silenciamento” alinhava memória e história. Vale dizer, é a feição opressiva da memória oficial onde marginalizados e minorias nem sempre têm lugar, mas não deixam de existir operando no silêncio. Ora, confessamos aqui o partido assumido que opera na mesma perspectiva de Pollak (1989, 2010), ou seja, história e memória precisam estar relacionadas tanto aos lugares de produção quanto à plateia ouvinte.
Para o caso das mulheres, o esforço conciliatório entre o passado e o presente não se exaure na tentativa de conferir sentido ao conteúdo do vivido, para dizer que “valeu a pena”, mas sobressai o interesse em retirar da penumbra histórias que foram silenciadas em razão da sua condição de gênero.
“- Como era sua vida? Trabalhar, na sua época, não era muito normal para as mulheres que tinham filhos. Como você contornava isso? - Foi muito difícil. Mas a minha sorte é que eu vim na frente, mas depois minha mãe e meu pai vieram. Então eles moravam comigo. Meu pai, minha mãe e meu irmão caçula. E aí a luta começou mesmo. Eu fui trabalhar, e trabalhar não era fácil; a discriminação era grande, muito grande. - Essa discriminação que a senhora diz é em relação a quê? - Pelo fato de ser mulher. Você era cantada, você era desrespeitada, as pessoas não tinham respeito pela gente. No meu tempo, no ônibus… Nossa! Eu fui aprender a me defender quando eu entrei no comitê de mulheres. Que era uma luta muito gostosa, muito forte. Lá que eu aprendi a ter coragem, a me defender. Porque você sempre tinha que calar. E eu vi desrespeito com outras pessoas, e eu via calada, porque eu tinha medo. Mas depois aprendi a falar, a responder, a me defender.” [Rutinha, 60 anos]
Outra personagem:
“- E nesse sindicato, você se lembra, no prédio ali do sindicato, essas reuniões, essas conversas, eram com mulher ou… - Tinha muita mulher, o problema é que as mulheres eram invisível. Era como se fosse invisível. Elas não falavam nas assembleias, as mulheres estavam lá e as mulheres iam as assembleias. Inclusive na Revescar [empresa] a gente ia um grupo grande para as assembleias. Sempre ia eu… - Só da sua fábrica? - Só da minha fábrica tinha umas oito pessoas que participava. Eram uma fábrica de 600 pessoas, né? Tinha muita gente nas assembleias, o problema que quem falava eram os homens. Mas, mesmo assim, eu comecei a me interessar em participar em ver que a vida… entender a questão do preconceito, fui começando a entender a questão da luta de classes, fui começando a entender que o mundo não era assim mesmo, que trabalhador tinha que trabalhar e ser explorado. Era assim mesmo era a vida. Os patrões para explorar e o trabalhador para ser explorado e pronto. Aí eu descobri a mais-valia… a gente trabalhava muito isso…” [Gil, 73 anos]
Mas o silenciamento também carregava elementos de tensão na medida em que a ação sindical possibilitava o compartilhamento de problemas antes vividos individualmente, como a dificuldade para se obter creche, o enfrentamento das injustiças nos locais de trabalho, entre outras coisas. Este foi um recurso mobilizado pelas mulheres a despeito da assimetria das relações enquanto militantes.7
São elas também que majoritariamente falam no tema da família, da casa, da vida privada. Em todos os relatos assume forma essa dimensão sexuada da memória que já havíamos visto em outra pesquisa (Thibes, Menezes e Santos Júnior 2018). Os problemas do mundo da “rua” e do universo da “casa” caminham nos dois sentidos, seja para que os problemas da família ecoem e amplifiquem-se no mundo do trabalho, como quando se requer tempo para cuidar da casa e dos filhos, seja o inverso, a exemplo de quando a presença de mulheres na militância sindical assumia uma conotação negativa na família.
“- A senhora disse que passou 34 anos casada, e o seu marido a senhora mesmo falou que era ‘machão’. Como a senhora conseguia participar com um marido assim? - Escondida. Muito escondida. Ele não sabia. Eu tenho uma netinha que chama Gabriela. Minha filha trabalhava e eu cuidava dela. Eu ia nas reuniões com a minha neta, depois do almoço. Meu marido era machão a ponto de, se ele chegasse em casa e não achasse tudo feito - comida pronta, roupa na gaveta, fogão limpo… Ai dele chegar em casa com o fogão sujo. E ele era bravo, ameaçava bater. Tentou bater, mas não conseguiu. Até aí eu era pacífica, não brigava nem nada. Então eu levava minha neta comigo em reunião do comitê de mulheres, e lá era uma loucura. Eu precisava correr muito, porque ele era muito pontual. Chegava em casa pontualmente às 17h30. Aí ele chegava e eu já estava em casa, tudo prontinho. O fogão estava limpo, mas a louça suja estava escondida, embaixo da pia, dentro da geladeira, p’ra ele não ver. Porque se ele visse, ele quebrava a casa.” [Teté, 82 anos]
Do apanhado das várias entrevistas que realizamos, e à medida que nos familiarizávamos com a instituição, emergia com mais força o que parecia ser um dilema: como dar tratamento analítico a essas narrativas sem, contudo, entrar nas disputas ali existentes em torno da memória e, com isso, constranger nossos(as) informantes ao, de certo modo, plasmar uma versão? Àquela altura, a pesquisa estava sendo incorporada (ou seria apropriada?) pelos sujeitos para fins diversos, obnubilando as fronteiras que marcam a distinção de autoria do texto. Eles sabiam que os resultados da pesquisa, que viriam na forma de livro e artigos, entrariam no mercado das narrativas concorrendo pelo noticiário. Estar ali, ou poder interferir no que seria dito, importava no jogo de prestígio e poder. A jusante e a montante, a escrita poderia reivindicar autonomia e contrariar os interesses dos nossos informantes, numa espécie de ascetismo linguístico, ou deveríamos equacionar os compromissos assumidos e omitir, para não cabular, a evidência empírica quando ela colidia com esses interesses? Assim formulada, a pergunta nos pareceu reducionista. Em geral, resolvemos esses dilemas na escrita sem, contudo, mencioná-los como limites metodológicos e operando fora desses polos. A seguir, retomamos essa questão para refletir sobre os modos de se instituir os termos do discurso.
Silêncio e esquecimento
Ao trazer a lume as histórias que ouvimos, e constatando a persistência das disputas narrativas sobre a memória das greves e seus protagonistas, fomos colocados diante do seguinte dilema: como dar visibilidade a essas histórias sem comprometer o anonimato das fontes? Não se tratava somente de omitir os nomes reais; uma vez que os textos estariam disponíveis para os(as) demais informantes, facilmente eles(as) poderiam reconhecer quem teria dado aquele depoimento. Ressentimentos, angústias que nos foram confiados não poderiam estar sujeitos às disputas públicas entre narrativas e reivindicações de protagonismo. O clamor para dar visibilidade a essas histórias que foram silenciadas encontrava o temor da exposição pública sem o véu do anonimato.
Como já dissemos, lançar mão dessas memórias de pessoas idosas não significava garimpar algo que teria ficado num passado longínquo. Como sugere farta literatura (Halbwachs 2013; Ricœur 1991), há um vínculo constitutivo entre memória e ação. Há interesse no ato de rememorar e não se quer apenas conhecer o passado, mas agir sobre o presente. Bem como imaginar o passado é também uma chance para reinventá-lo. Na medida em que assumíamos os sujeitos da pesquisa enquanto interlocutores (para dizer coautores) do material que estávamos produzindo e, portanto, suscitando apropriações diversas, um artigo se transformava em recurso para legitimar uma narrativa. O crivo do “pesquisador” expressava, para eles(as), uma peça poderosa de ação que entraria na disputa por prestígio e poder. Todavia, o nosso texto também se alimentava de estratégias retóricas para convencer outras plateias e, ao fazê-lo, procurava se asseverar dos recursos capazes de legitimar os nossos achados.
Existem diferentes maneiras de percebermos epistemologicamente essa relação de proximidade entre os vínculos com os(as) informantes, o registro etnográfico e a posição do observador externo, donde emanam formas de autoridade. É sobre isso que, por exemplo, recaem os pares objetividade/subjetividade que norteiam o nosso ofício. Pareceu-nos elementar reconhecer que havia um claro mercado de interesses na relação com os(as) nossos(as) informantes e que isso reordenava as manifestações de autoridade entre quem pergunta e quem responde. Como nos alerta Geertz (2018), se antes a separação entre sujeito e objeto opunha entidades moralmente desvinculadas, agora “eles” são convidados a se manifestar e opinar, implodindo a antiga barreira.
Mas o reconhecimento dessa “autoridade etnográfica” (Clifford 2016) não tem como sucedâneo a simples pretensão de reparti-la com os informantes, uma vez que permanece conosco o domínio sobre o que será escrito. De outro modo, o que se pretende é talvez minorar os seus efeitos na construção de um saber compartilhado, situado.8 A vontade de narrar, o fato de ter sido “eleito/a” na amostra dos casos, estabelece os termos da barganha de que certamente os nossos informantes fazem uso. Somos levados a crer que essa relação, ainda que assimétrica, não deve supor a inocência do outro. No mesmo sentido de Caldeira (1981), o ato de narrar as memórias é carregado de significados diversos e interesses, não sendo o que presta o depoimento um ente passivo; mesmo reconhecendo o dispositivo do saber-poder do discurso científico que conclama o outro a quase obrigação de “falar”. Em nosso caso, tais interesses eram o mais das vezes associados à possibilidade de serem ouvidas, do desabafo, para citar alguns exemplos. Sabemos que a distância etnográfica opera entre a alteridade e a identidade, para dizer que estamos sempre preocupados em não ser suficientemente neutros pari passu em não estar assaz engajado. A preocupação que enfrentamos com o texto não se reduz à insegurança em não saber como contar as histórias que ouvimos, mas em revelar o que antes não era discutido abertamente ou, como propõe Geertz (2018), não se quer com isso fugir do “ônus da autoria”, transferindo para o método, ou para a linguagem, o peso da assinatura de um texto, como sendo uma espécie de confessionalismo etnográfico, momento em que a experiência subjetiva do etnógrafo, e não do objeto estudado, torna-se o objeto primário da atenção analítica.
Vamos além, parece-nos sugestivo o argumento de Strathern (2017) quando propõe que antes de pensar a relação entre o nosso texto e os efeitos sobre os “outros” que descrevemos é importante tomar em conta a relação entre o que foi dito e “eles”, o que atinge as narrativas das mulheres que entrevistamos e suas pretensões de afirmação e denúncia.
Mas, olho vivo. Os efeitos do silenciamento nas mulheres e as formas de enunciação revelavam-se como resquícios, “resto”, na acepção de Agamben (1999), como experiência ainda carente de significado e sujeita a interrogações. A pretensão de denúncia, somos levados a crer, desvela-se assim de modo sutil e sofre o efeito do contexto de enunciação dos relatos passados 40 anos dos acontecimentos, quando a percepção do passado vivido sofre as influências do tempo presente e fornece a elas munição para contestar antigas clivagens, como arguimos em Santos Júnior e Menezes (2019). Conjugadas no masculino, as narrativas sobre as greves omitiam, ou incorporavam em segundo plano, a presença das trabalhadoras que participaram da militância sindical durante as greves. Embora elas estivessem presentes e fossem atuantes nas formas de contestação no chão de fábrica, nas greves e mesmo na militância sindical, a dinâmica das formas de engajamento ganha nitidez quando compreendemos a clivagem que pesava sobre elas no quadro social mais amplo das famílias e da estrutura sindical naquele momento.
Uma das entrevistadas, Rutinha, conta que entrou para a diretoria em 1987 e não lembra da presença de outras mulheres na composição da chapa executiva. Ela recorda do seu envolvimento na criação da Comissão de Mulheres Metalúrgicas como forma de promover a participação delas em seus locais de trabalho, na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), nas Comissões de Fábrica, na esperança de que, um dia, pudessem ocupar cargos na diretoria do sindicato, mas eis as dificuldades:
“[…] não foi uma coisa fácil, porque meu pai brigava muito, meu pai falava para mim que eu estava em um lugar que não era para mulher e eu não aceitava, eu nunca aceitei. E, na verdade, na cabeça de muitos [companheiros] era, né? Porque se você pegar esse sindicato, para mim continua sendo o sindicato mais combativo, mais importante no país, continua sendo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, mas você não vê nenhuma mulher que foi presidente, vice-presidente. Aí fala, ‘Ah! Mas [as mulheres] não participa, não tem capacidade’. Não é verdade, não é verdade! É que a maioria da categoria são homens, maioria da diretoria são homens, então para chegar ao ponto de ter uma mulher presidente deste sindicato vai ser difícil, não impossível. Vai ser muito difícil ainda. Então a gente o tempo todo tem que ficar mostrando que você é capaz, que você tem capacidade igual ou até mais do que alguns homens, que isso ocorre não por questão de disputa, não é nada disso, é uma questão de cada um.” [Rutinha, 60 anos]
São essas reminiscências que se mostram ainda vivas, com sequelas que falam sobre o distanciamento do sindicato, a ruptura com o Partido dos Trabalhadores, é um desencaixe entre as expectativas de reconhecimento e a persistência das formas de omissão e silenciamento no tempo presente. Como se depreende nessa passagem de outra personagem:
“- Aquele sindicato parece outro espaço. Não tem mais nada. Eu não tenho nem vontade de ir lá. Em nenhum dos dois. Nem dos metalúrgicos, nem da construção civil, que teve tantos altos e baixos… - E alguém lhe chamou lá p’ra homenagem, p’ra participar de alguma coisa?… - No sindicato dos Metalúrgicos já. - Agora, não muito tempo atrás? - De vez em quando. Eles me entrevistaram para falar do congresso das mulheres, do congresso. - O de 2010, você participou? - Eu acho que não participei. Eu dei entrevista para esse congresso. Eles pediram para eu dar entrevista. Eles pediram para dar entrevista sobre o primeiro congresso. Tanto que teve uma mulher que falou em uma reunião de diretoria, ‘quem é essa tal de Gil?’. - Foi mesmo? Olha só. Isso, de certa forma, é o que também te leva a não ir lá? - É sim… Eu já dei a minha contribuição, do meu jeito. Hoje eu já estou velha, ainda trabalho, mas tenho muitas limitações de saúde, uma delas é a depressão. Cada vez eu fico lutando contra essa depressão.” [Gil, 73 anos]
Por certo, há um componente geracional que fala sobre o lugar das ausências na memória, como transparece no relato acima. No entanto, a vontade de narrar, para os casos que pudemos colher, reclama a permanência, a tentativa de emprestar sentido à história de vida em face do caráter efêmero, contingente, da “pessoa-trabalho”, do corpo que envelhece, para ceder lugar a “pessoa-memória”. Nesse sentido, a pesquisa emergia como uma nova arena para as disputas de narrativas, transbordando as suas consequências sobre o que seria (ou deveria ser) dito.
Isso ficou evidente a partir de um encontro que realizamos em São Paulo com vários(as) ex-operários(as) e militantes de quatro sindicatos de metalúrgicos: de São Paulo, do ABC, de Guarulhos e de Osasco, além de alguns representantes dos canavieiros de Pernambuco. Pretendíamos colher relatos sob o efeito do grupo, não apenas individualmente como estávamos fazendo. A fase anterior de preparação e acordo sobre a dinâmica das apresentações por nós pensada - que envolvia a reunião em grupos menores, mesas-redondas com a participação dos convidados - deixava a olhos vistos os conflitos que estávamos tentando compreender. Em público, os relatos desnudavam-se para o livre escrutínio dos colegas. O experimento/evento ameaçava sair do nosso “controle” para ganhar ares de assembleia.
“No encontro ocorrido em São Paulo, em uma das mesas que contou com a participação de ex-metalúrgicos e dirigentes sindicais, o pesquisador que atuava como mediador do debate informou, ao final das apresentações, que os presentes poderiam fazer suas perguntas aos que estavam na mesa. Comum nos eventos científicos que participamos, a proposta de colocar questões para os membros da mesa que deram depoimentos sobre as suas trajetórias não caiu bem. De súbito, um dos participantes levantou-se mais exaltado para dizer que não iria fazer ‘pergunta’, mas iria ‘falar’. A distinção no emprego dos dois verbos marcava também a posição de quem enunciava. ‘Perguntar’ era conceder primazia à história que fora apresentada, ‘falar’ era concorrer, disputar no mercado das versões a legitimidade do que iria ser contado. E foi esse o grande trunfo do projeto, dar consequência a essa interlocução como recurso para formular/pensar conjuntamente as questões da pesquisa.” (Menezes e Santos Júnior 2021).
Mais uma vez, e para reunir os resultados da pesquisa colhidos por meio dos diversos recursos que empregamos, éramos tentados a incorrer na “sedução verbal”, na azáfama de emprestar ao texto uma retórica capaz de afastar possíveis vieses. Opusemos resistência a essa alternativa para, como propõe Tyler (2016), enfatizar a natureza cooperativa da situação etnográfica, cedendo lugar à polifonia e evitando a imagem de que fôssemos observadores externos, distantes. Nos resultados já publicados, procuramos preservar o princípio geertziano de “sentir o fardo”, ou seja, deixamos no anonimato aquilo que nos fora confidenciado no íntimo para não comprometer o que nos foi pedido. Todavia, tomamos os silêncios, as recusas, como um dado a ser incorporado e pretendíamos, com isso, colocá-lo no noticiário das disputas narrativas. Mas não decorre dessa preocupação em reconhecer à ordem política do texto um mero efeito de retorno a uma forma de autoridade etnográfica dissimulada? Acreditamos que interrogar o lugar que ocupamos no texto é tentar, na análise dos achados, ponderar que a nossa presença havia alterado o modo como as coisas acontecem.
Não se quer, portanto, declinar da carga que nos compete em propor uma interpretação para os achados que colhemos em campo e as confissões das possíveis interferências das nossas personagens como um recurso para asseverar o nosso rigor metodológico, que se quer “consciente” ao chegar a uma conclusão mais sólida. A contrapelo, pretendíamos inserir a reflexividade no próprio texto, compartilhando com os nossos informantes a produção do conhecimento e ofertando ao leitor as tensões e impasses sobre como os acontecimentos foram percebidos, explicando a nossa posição. Recuperando, para dar consequência, a “contradição fundamental” da qual nos fala Fabian (2014) ao lembrar que, a despeito do conhecimento antropológico, no trabalho de campo, que ocorre por meio da comunicação intersubjetiva, nem sempre se reconhece isto na apresentação dos nossos trabalhos que, não raro, suprimem a dimensão constitutiva das realidades dialógicas que geraram o conhecimento.
O que nos parece diferente da mera descrição dos fatos, de como as coisas ocorrem e da autoridade que emana do haver “estado lá”. Vê-se, com isso, como a disposição das personagens no texto, as gradações entre formas de autoria do que está sendo dito e os recursos linguísticos mobilizados comportam uma dimensão política marcada por relações de poder assimétricas. Portanto, registrar narrativas assumindo-as como um instrumento cognitivo para pensar os modos de representação antropológica é outra forma de reavivar e dar consequência ao questionamento da maneira canônica do distanciamento objetivo, o que não é o mesmo que desistir do distanciamento subjetivo. E há bons ventos que caminham nessa direção. Em outra obra, decorridos 20 anos do impacto de Time and the Other, Fabian (2007) atualiza os termos desse debate mostrando como se transformou o papel da representação do “outro” em nossas investigações, sobretudo pela incorporação, na modelagem epistêmica, da linguagem.
Na seção final, retornaremos às questões suscitadas ao longo do texto.
Encaminhamentos
Apesar de a pesquisa ter encontrado o seu fim em 2019, o vínculo criado entre os pesquisadores e as pessoas que entrevistamos continuou a ser mobilizado para novas demandas dos(as) nossos(as) informantes. Não sendo uma ocorrência atípica em abordagens do gênero, o que nos inquietava era a maneira como iríamos representar, no texto, os elementos de uma pesquisa cujos resultados eram, ao menos para nós, tributários de um intenso deslocamento de posições entre as nossas figuras no campo, com acenos à reflexividade de ambas as partes. O problema não se restringia à forma de apresentar o texto etnográfico, sendo um impasse de estilo literário, mas se desdobrava em questões epistemológicas sobre a distinção entre insider e outsider e os efeitos das formas de representação - da realidade, dos(as) nossos(as) narradores(as) e também a nossa - que estávamos construindo narrativamente.
Havia alguma dose de apreensão da nossa parte que não era meramente metodológica, mas ética, sobre a eventual sensação de “traição” entre as partes.9 Deles(as), por não se reconhecer no que fora dito, e nossa, por não ter sido capaz de revelar o que estava em jogo. Nesse quesito, as confissões mais íntimas e os traumas revelados provocavam em nós e neles(as) um intenso processo reflexivo, a exposição pública dos resultados constituiria um primeiro teste.
Ao esmiuçar os significados contidos nessa ambiguidade de formas de representação dos pares da pesquisa, encontramos o que sugere Narayan (1993), quando lembra que fatores tais como educação, gênero, classe, raça, ou mesmo o tempo de duração dos contatos, podem interferir nos modos de identificação que associamos aos de “dentro” e aos de “fora”. Essa é uma brecha onde se refugia uma importante reflexão sobre a prática etnográfica e os modos de condução da pesquisa de campo ao recolocar as assimetrias das relações de poder e o estatuto conferido ao saber leigo (Clough 1992). O “conhecimento situado” (Haraway 1988; Harding 1991) desvela as tensões presentes nas formas de objetivação dos sujeitos da análise que estariam ausentes no modo canônico de separação entre “nós” e “eles”. A pista que perseguimos é a mesma deixada por Geertz (2018), Clifford (2016), Narayan (1993), Rosaldo (1993) e Pina-Cabral (2003, 2013) quando denunciavam as formas de autoridade presentes na escrita etnográfica para reivindicar, de uma parte, as múltiplas identidades dos sujeitos que poderiam ser ativadas, ou não, durante a pesquisa, tanto para recuperar o distanciamento mais objetivo quanto para estabelecer níveis de proximidade e familiaridade entre os pares da pesquisa.
Para Narayan (1993), tiraremos melhor proveito se dermos atenção à qualidade das relações com as pessoas em campo e que nós queremos representar no texto. No nosso caso, estava claro que seria ingênuo considerar que a nossa posição em campo como “professores” não exerceria alguma influência na forma de coleta das informações. Mas isso não nos impediu de encontrar zonas de comunalidade com os nossos informantes, como propõe Narayan (1993), negociando as identidades e representações associadas às nossas posições no campo. Dito de outro modo, ser “professor” vinculava-se, na representação dos nossos informantes, como alguém cujo discurso poderia ser usado para conferir legitimidade às histórias que seriam narradas e que estavam em disputa. Mas igualmente servia como um acesso para se aproximar dos filhos(as) dessas pessoas, uma vez que havia um claro investimento na educação para os membros da segunda geração dessas famílias.
Ainda nesse mesmo sentido, encontramos esteio acerca dos modos de como essa relação pode ser constitutiva do próprio conhecimento etnográfico em Viegas e Mapril (2012), quando argumentam em favor, sob o guarda-chuva conceitual de Pina-Cabral no que tange à ideia de “mutualidade”, da passagem do “reflexivismo metodológico” para o reflexivismo epistêmico. Para dar conta do processo intersubjetivo de produção do conhecimento antropológico, que incorpora o “outro” no coração do conhecimento que esperamos, juntos, alcançar.10 Donde os dilemas éticos que representam o fio da navalha em nossas costas.
O termo “nativo” encontra nessa perspectiva um limite, porque ele recusa qualquer juízo de “autenticidade” ao recuperar o que há de política e história nesses processos de constituição identitária. No mesmo embalo, Appadurai (1996) desloca a base sobre a qual se assenta a ideia de “campo” como lugar estável, homogêneo, para pensá-lo a partir dos efeitos da globalização e da migração.
De outra parte, a disposição do conteúdo no texto, que por vezes opõe a fala dos protagonistas (eles/as) e a do narrador (nós), pode realçar hierarquias ao suprimir as negociações desse conhecimento que é resultado da mediação dos nossos papéis. Como argumenta Rosaldo (1993), é curto o fosso entre uma caracterização objetiva e uma “caricatura objetificada”, que transforma pessoas em fantoches teóricos. Mas a saída metodológica, diríamos, não está em um suposto ascetismo linguístico, que se arvora a recuperar a objetividade científica que teria sido maculada pela nossa confissão das diferentes vozes que “falam” no texto e que, por conseguinte, são também signatárias dos resultados que colhemos. Notemos, contudo, que este deslocamento entre pontos de vista não é mero efeito de relativização, mas pretende dar consequência analítica aos diferentes estilos de reflexividade que estão em jogo nessa interação com os sujeitos da pesquisa. Valendo-se do ferramentário ricœurtiano para pensar a distensão temporal interior da identidade do antropólogo, Rocha e Eckert (1998) lembram que no modelo canônico do registro etnográfico tudo se passava como se a voz do locutor da narrativa fosse a única que se mantém, ou deve se manter, inalterada, fria e distante, eliminando-se, por isso, a questão da ipseidade enquanto dimensão da sua identidade. Já dissemos antes que a virada interpretativa feita pela antropologia pós-colonial inseriu no debate a dimensão intersubjetiva da produção dos dados etnográficos, para pensá-la em termos da reflexividade oriunda da relação dialógica entre o antropólogo e o “outro”, contudo, como bem lembram Rocha e Eckert (1998), há um nó no processo de transformar acontecimentos - experiências tão distintas, por vezes desconexas - em história, que não se resolve sem inserir a dimensão temporal da nossa experiência. Há nessa forma de arguir a reivindicação de que o desafio do método etnográfico está em reconhecer a presença do autor e a posição que ele ocupa no texto para pensá-la sob a égide da dimensão narrativa da sua experiência em campo e da produção do texto etnográfico, sem proscrever a ação do tempo.
Talvez por isso a inquietação tenha se manifestado em nós primeiro no processo de trabalho de campo e condução das entrevistas, isto é, da negociação dos interesses manifestos e das representações associadas às nossas posições no campo. Depois, na conversão para o texto das dimensões do real que foram objetificadas para fins de análise. Julgamos que o processo reflexivo esteve presente (i) nas negociações dos significados atribuídos aos códigos subjetivos (a relação entre trabalho e vida, a aparente dimensão política da organização da vida privada, o ato de rememorar acontecimentos como uma estratégia de resistência, para citar os mais palpitantes), (ii) no nosso papel como parte das disputas de narrativas sobre os significados das greves históricas ocorridas no ABC Paulista e, por fim, (iii) na escrita de um texto que dá forma a personagens, propõe um enredo e, por assim dizer, torna a redefinir as nossas posições em campo. Sim, porque a apresentação dos resultados aos nossos informantes desvelou um novo processo de negociação dos interesses e das nossas identidades.
Essas deliberações reflexivas que ocorreram durante todo o processo revelam a mediação da agência dos sujeitos, o esforço que fizemos foi para levar a termo o compartilhamento intersubjetivo das formas de apreensão da realidade mediada pela forma do registro etnográfico e do uso de entrevistas biográficas. O desdobramento de outras frentes de trabalho após a finalização do projeto de pesquisa tem permitido amadurecer as categorias que utilizamos para narrar os eventos que nos foram contados, decantando longitudinalmente os efeitos da passagem do tempo sobre as formas de representação das nossas identidades.