Ao longo das últimas décadas têm sido regularmente publicados livros e ensaios que procuram fazer um sumário e atualização dos modos como a antropologia pensou e pensa a arte, e que oferecem assim o que podemos chamar um estado da arte da antropologia da arte (Silver 1979; Layton 2001 [1991]; Coote e Shelton 1992; Hatcher 1999; Morphy 1994; Van Damme 2003; Morphy e Perkins 2006). Esses trabalhos têm o mérito de procurar trazer ordem a um campo manifestamente desordenado - uma constatação comum desses exercícios é a de que a reflexão antropológica sobre arte nunca se constituiu verdadeiramente como uma tradição subdisciplinar, dado o carácter episódico e a diversidade e ecletismo dos modos como na história da disciplina ela foi sendo pensada. Seja como for, e como esses textos mostram, é sem dúvida possível e útil traçar o percurso histórico da reflexão antropológica sobre arte, os principais impulsos teóricos que a moveram, e as obras e autores que, de muito diferentes maneiras, foram marcando os seus descontínuos rumos. De modos e sob prismas diferentes, esses exercícios acabam por percorrer um mesmo terreno e bibliografia e por fazer dele retratos a que não faltam o inventário dos cruzamentos interdisciplinares que a reflexão antropológica sobre a arte estabeleceu, o modo como cada um deles repercutiu os parâmetros fundamentais que guiaram a disciplina nos seus diferentes momentos, e como esses autores e obras prolongaram ou transformaram os termos da reflexão antropológica sobre arte.
Mas mais interessante e porventura mais relevante do que repisar trajetos já percorridos por esses textos é inquirir criticamente sobre a razão de ser do lugar marginal que a arte tendeu a ocupar na curiosidade antropológica. Esse é o ponto de partida deste ensaio, que tem por objetivo mais geral e central resgatá-la dessa marginalidade trazendo a reflexão antropológica sobre arte a uma perspetiva fenomenológica e, em particular, ao modo como Heidegger e alguns dos herdeiros pensaram o que Agamben veio a chamar “potencialidade ontológica”. Este é, assim, um ensaio muito mais prospetivo do que retrospetivo, que procura delinear um futuro mais do que recapitular um passado. Contra a desvalorização da arte propõe-se aqui não apenas valorizá-la como um domínio privilegiado de reflexão da antropologia, mas, também, e por arrasto, de reflexão sobre a antropologia e as suas possibilidades como projeto de conhecimento.
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A marginalidade e desvalorização da arte como domínio de interrogação antropológica radicam em duas influências: da estética e da teoria sociológica. A estética enfatizou como fundamento da sua existência como disciplina ou área da filosofia a ideia da autonomia da arte, que culminaria na ideia de “arte pela arte”, e privilegiou a análise dos seus aspetos formais e a sua relação com a sensibilidade e uma forma própria, “distanciada”, “desinteressada” e “reflexiva” de juízo. A teoria sociológica, tal como definida nos seus termos fundamentais no seu período “clássico”, remeteu-a para um plano secundário em relação a dimensões sociológicas e culturais consideradas mais primordiais, no passo em que convidou à sua continuada e frequente subsunção sob categorias consideradas como mais aptas a elucidações de natureza teórica: religião, ideologia, ritual, propaganda… Os debates antropológicos sobre a arte ficaram assim presos a dilemas básicos de definição em que combinaram a herança da teoria sociológica com as polaridades herdadas da estética (arte vs. artesanato; arte vs. conhecimento; juízos reflexivos vs. juízos determinantes) não apenas no que a estética foi primordialmente (uma teoria da receção), mas também no modo como nela se considerou a produção da arte (como a concretização de “ideias estéticas” sob a mão da idiossincrasia do “génio” individual). Em última análise, foram essas influências que criaram a situação bizarra de, por um lado, se questionar a possibilidade de aplicar transculturalmente a categoria de arte e, assim, a um encerramento das formas de arte não ocidentais nos quadros de uma “primitividade” que a disciplina procurou desde cedo pôr de lado à luz da crítica do etnocentrismo; e, por outro lado, e como forma de contornar esse etnocentrismo, a múltiplas e infrutuosas buscas nessa arte - eminentemente conservadora em termos formais e de estilo e desatenta a questões de autoria - de características que permitissem enquadrá-la e aos seus produtores nos cânones da conceção estética de arte e de artista.
Sintomaticamente, a relevância da “arte primitiva” para os termos ocidentais de compreensão da arte - e assim também dos parâmetros possíveis da sua produção e receção - deveu-se não tanto à antropologia mas à atração de algumas das mais salientes figuras do modernismo pelo caráter inusitado que muitas das suas obras apresentavam para a sensibilidade educada pela tradição artística do ocidente. Movidos pelo desejo de rutura que cada vez mais caracterizava o movimento histórico da arte ocidental, os modernistas tomaram-nas como fonte de inspiração criativa, no passo em que assim a popularizaram perante um público (e um mercado) de elite que as viu como manifestações “vitais” de impulsos e sentimentos não refreados pela civilização que povoavam o seu imaginário e fantasias sobre a primitividade (ver Price 1989). O destino duplo dessas obras é sintomático de aspetos gerais do contexto de emergência e existência da antropologia da arte. As obras de arte “primitiva” foram por um lado integradas nos grandes museus de arte a par das obras da tradição artística do ocidente como objetos autónomos de contemplação estética, e, por outro, nos museus etnográficos ou de arte popular, como objetos que motivaram uma contínua busca antropológica de teorias que guiem o modo de os contextualizar em termos históricos e/ou etnológicos. Esses seus dois modos de exibição, que pressupõem naturalmente diferentes modos de a situar e compreender, parecem encerrar a contradição fundamental do contexto global onde nasceu e se procurou dar contornos à reflexão antropológica sobre a arte - que quando procura enquadrar as obras desses outros mundos como arte perde o horizonte do seu enraizamento nas dimensões práticas locais onde emergiram e cumpriram a sua função e adquiriam o seu sentido; e que quando procura estes últimos perde os referentes que, desde logo, mas assim de modo sempre equívoco, permitem qualificar essas obras como arte.
Presa dessa contradição estrutural cuja origem repousa nos termos estéticos como o mundo de origem dos antropólogos pensou e definiu a arte e as suas obras, os antropólogos foram, como veremos, incapazes de estabelecer com elas a relação de reciprocidade interpretativa que define os encontros autênticos com a arte, o que se traduziu, num plano imediato, na ideia de que entre eles e essas obras deve haver uma mediação de natureza teórica. As obras de arte foram assim erguidas (ou diminuídas) à condição de objetos, entidades definíveis pelas suas propriedades, cuja elucidação por parte dos sujeitos requer um aparato de natureza explicativa, onde tiveram lugar de destaque as disciplinas cognitivas, a semiologia, a semiótica, a teoria da comunicação e teorias de médio alcance sobre, por exemplo, a troca, a magia ou a performance - numa manifestação comum de uma escolha reducionista que tendeu a caracterizar as ciências sociais e que em nenhum outro domínio parece ser tão estéril como quando se trata de arte. No fim de tudo, fica o atribuir à arte finalidades e funções, as suas obras passam a ser vistas como dotadas de propriedades que permitem a sua categorização, a sua forma como resultado de constrangimentos técnicos, materiais ou mentais de representação e como expressão do “estilo” de uma cultura. Não há nada de particularmente problemático nisso, as interpretações encontram aquilo que procuram, e não é descabido dizer que a arte é finalista e cumpre funções, que as suas obras podem ser categorizadas, têm propriedades, e expressam algo. Mas isso pode-se dizer de qualquer artefacto humano, até de um garfo, um utensílio que tem por função espetar os alimentos evitando tocar-lhes com a mão, que é novo ou velho, de metal ou de plástico, e expressa um estilo de etiqueta alimentar.
Nas últimas décadas a reflexão sobre a arte pela antropologia, como que arrastada pelas momentosas transformações sofridas pela disciplina, testemunhou alguma renovação que a trouxe por vezes para um lugar central. Podemos situá-las em duas perspetivas fundamentais. Por um lado, aquelas que procuram uma recontextualização da arte das sociedades não ocidentais nos novos termos e tempos da sua produção e mercantilização em âmbitos regionais e transnacionais pós-coloniais e do modo como esse processo se repercute no plano local - nos termos da sua valorização, das transformações dos seus modos de produção e de apropriação dos estilos tradicionais, do seu papel nas negociações e reconfigurações de natureza política, cultural e identitária, e, por fim, da própria compreensão do significado e funções que essa arte e os seus produtores assim adquirem (ver Graburn 1976; Appadurai 1986; Kopytoff 1986; Thomas 1991; Steiner 1994). Por outro lado, e com um lugar proeminente nos debates sobre arte na disciplina, estão os dois mais consumados esforços de inquirir a arte “primitiva” em termos que permitam evitar os recorrentes equívocos e limitações trazidos pela assunção por parte dos antropólogos das sempre equívocas premissas do seu entendimento, simultaneamente local e cosmopolita, de arte. Os seus autores são Alfred Gell (1998) e Philippe Descola (2006, 2009, 2011), que somam a essa intenção a de tornar a arte o pretexto de produção ou “testagem” de teorias antropológicas de alcance geral, e que, portanto, se guiam por objetivos que, afinal, rapidamente assumem uma ambição heurística que a transcende e a reduz a uma dimensão epifenomenal.
Sumamente críticos da história da reflexão antropológica sobre arte e da influência que a estética sobre ela exerceu, Gell e Descola procuraram abrir novos caminhos através de um aprofundamento de uma perspetiva especificamente antropológica, algo que lhes permitiu desenredar-se da necessidade de procurar alguma definição de arte que satisfaça uma conceção estética e não sacrifique a compreensão das raízes profundas que a arte tem na sociedade e na cultura. Gell foi buscar esse enraizamento antropológico à tradição britânica e ao seu acento na dimensão sociológica da disciplina; Descola à sua obra anterior, uma sequela e desenvolvimento do legado de Lévi-Strauss.
Tomando por inspiração a semiótica de C. S. Peirce, Gell elabora um sofisticado exercício de categorização e elaboração conceptual - que me parece ser sobrevalorizado pelos seus comentadores - de que resultou uma “combinatória generativa” da relação dos produtores e “pacientes” (i.e. recetores) da arte com o que chama “índices” (i.e. obras de arte) e “protótipos” (i.e. o que estas representam). Inquirindo a arte a partir do primado da figuração e da “agencialidade” (como expressão e meio de realização de intenções e de “abdução” de “estados mentais”), Gell subordina-a a um olhar explicativo que não quer outra coisa do que captar, por um lado, o processo de produção da arte e da transformação dos seus estilos, e, por outro lado, os seus efeitos num dado universo de relações sociais e em fenómenos como o ritual, a feitiçaria, a troca ou até a guerra. Mas a própria dificuldade de Art and Agency, que Gell terminou apressadamente pouco antes da sua morte precoce e foi publicado postumamente, mostra quanto o livro está exposto à navalha de Ockham (para um diagnóstico crítico dos seus elementos contraditórios e insuficiências ver Bowden 2004 e Layton 2003). Descola, por seu turno, e seguindo Gell tanto na centralidade atribuída à “agência” da arte como num explícito distanciamento crítico da estética e da “antropologia da arte”, pensa-a a partir da sua dimensão figurativa, reclamando que as suas obras “morfologizam”, ou seja, repercutem e manifestam em termos sensíveis, os planos ontológicos-culturais (animista, totémico, naturalista e analógico) que a sua obra anterior havia definido. A arte é assim, mais uma vez, um elemento menor de uma praxis que define e encontra os seus princípios, finalidades e horizonte noutros planos que as teorias sociológica e antropológica reputam como mais fundamentais - uma “estrutura social” para Gell ou uma ontologia que ela figura ou materializa, de acordo com Descola.
Esses sofisticados exercícios parecem-nos porém ser caracterizados negativamente por algo que a sua própria intenção de produzir de uma teoria antropológica de alcance geral parece convidar: uma sobreconcepualização que nos afasta irremediavelmente da arte como aquilo que descobrimos que ela é quando não a pensamos abstrata e teoricamente, e vamos antes ao encontro do que ela é concretamente - e ela é sempre obra, e como tal algo que nos interpela em termos que, como veremos, não exigem, de todo exigem, um exercício de teorização, ou pelo menos um exercício de teorização tal como Gell e Descola o compreendem.
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O caminho que conduziu à conceção estética e teórica de arte foi o caminho em que esta perdeu o rasto do que a torna uma concomitância do humano e lhe confere universalidade - a sua ligação íntima e inextricável com a vida, a história, a sociedade e o mundo. Nessa universalidade, a arte nunca teve por condição de existência uma palavra que a designe e lhe trace fronteiras, de um campo teórico de interrogação ou reflexão sobre ela, ou de alguma filosofia que elucide em termos transcendentais a natureza dos “juízos sensíveis”. Em nenhum mundo senão o dos europeus a partir da modernidade ocorreu criar as cesuras que atribuem a verdade à filosofia e à ciência, o bem à moral, o numinoso à religião e o belo à arte. Como o compreendeu Kierkegaard (2004 (1843(), o que essas cesuras fizeram foi seccionar um todo para obter partes onde esse todo já não é reencontrável, pensar o homem como dividido entre necessidades, apelos e finalidades sem relação entre si, como um compósito precário de diferentes e contraditórias demandas - alimentando e dando forma ao niilismo que a própria arte contemporânea tantas vezes ecoa e alimenta.
As consequências da estética não se resumiram naturalmente aos labirintos em que envolveu a reflexão da antropologia sobre arte, dado que contaminou o ambiente moderno, e depois modernista e finalmente pós-moderno - e com ele o curso da própria arte. Não é difícil reconhecer a quem olha para a história da arte ocidental nos últimos dois séculos, e em particular no último, que, fora das altas esferas da estética e dos juízos e cálculos comercias dos connoisseurs e marchands, a candeia da estética conduziu-nos a um tempo e condição em que a arte se tornou coisa comum, entretenimento de domingo ou de férias. As multidões que frequentam os museus e se acotovelam no Louvre perante a Mona Lisa, entre hambúrgueres e ouvindo hip-hop em auscultadores, pensam difusamente que no grande museu tiveram acesso à arte, mas na verdade não fazem mais do que cumprir sonâmbula e ritualmente o luto de uma ideia de arte que tornou a arte marginal às suas vidas. Terminada a visita ao museu e à arte concebida em termos estéticos e como um domínio autónomo e imaginário gerado pela fantasia do génio (a amabilis insania do artista), essas multidões, quando reencontram o mundo real, pensam que tiveram acesso a ela, que não sabem bem por que razão, por algum eco distante do passado que não conhecem, consideram ser importante sem que na verdade nem isso saibam porquê. E talvez tenham tido acesso à arte, no abandono em que estão perante ela, perante si próprios, perante aquilo em que a própria arte se tornou no mundo que habitam.
No outro extremo do espectro, e com o estatuto que confere o poder de demarcar os contornos do “mundo da arte” e da sua maquinaria institucional, estão as elites que, assim, o sustêm. É com um sentimento de ironia e perplexidade que essas elites veem a atração que as massas em férias têm pela arte. Como bem sabem, estas, pela sua falta de capital cultural, preferem nas suas vidas a arte popular, o kitsch ou as obras que por mera convenção adquiriram um lugar canónico na história da arte (ver a obra clássica de Bourdieu neste domínio, 1979). Menosprezam assim condescendentemente essas massas que se especam frente à Mona Lisa, uma obra que consideram como menor - como desde logo o revela a sua popularidade - e como incapaz de comunicar o sentido e lugar da arte no mundo contemporâneo, um sentido que encontram no que as massas olham com absoluta indiferença: no enigma sustentado que lhes causam as obras que não se distinguem dos objetos industriais de consumo que imitam ou de que se apropriam para os trazerem à condição de arte, de uma arte que já não é senão a consumação da ideia de que esta, afinal, é uma forma provocatória de não-arte - e que teria assim chegado, segundo Danto (1983 [1981], 2014), um dos mais autorizados intérpretes do movimento da arte moderna e contemporânea, à sua fase “pós-histórica”. O que assim se criou foi o que Agamben (1999 [1994]) chamou “deserto” da terra aesthetica, onde nem a promessa de um oásis existe dado que não é senão o resultado da ideia que os seus habitantes estimam como valiosa, segundo a qual, como disse Bell, “para apreciar uma obra de arte não precisamos de trazer connosco a não ser um sentido da forma e da cor e o conhecimento do espaço tridimensional” (Bell 1914: 27, ênfase nosso)… Contra isso, há que dizer que a arte é menos algo para ser apreciado nas suas formas do que compreendido no seu conteúdo. E também que, como o próprio percurso histórico da estética mostra, a compreendemos tanto menos quanto mais procuramos apurar os termos dessa apreciação - um processo pelo qual, como veremos, a arte perdeu os laços com o mundo e com a textura da existência.
Provavelmente, o mais salutar e razoável quando se pretende pensar a arte e a dimensão poética do humano é meramente esquecer a conceção estética da arte, que, como tantas vezes se diz, é tão irrelevante para a compreensão da arte quanto a ornitologia o é para as aves - e, podemos acrescentar, atendendo a algumas das suas obras icónicas contemporâneas, foi tão perniciosa para ela como DDT para os insetos. Esquecer esse movimento da história estética que criou o “mundo da arte” é necessário para fazer regressar a arte não ao que foi no passado mas ao lugar que ela sempre ocupa quando é grande arte e assim cumpre o papel de abrir um espaço de desocultação pelo qual as entidades - os homens, as mulheres, os deuses, a natureza e tudo o que material e idealmente faz a fábrica da sociedade - se mostram e revelam como o que são, à luz do modo como as obras de arte os trazem à presença e à existência. Há assim que tomar as obras de arte não como repositórios de formas que emanam e apelam à sensibilidade e ao gosto e subjetividade de sujeitos, mas como o que historicamente mais centralmente vai traçando os contornos e as possibilidades que nos definem como seres-no-mundo - um ponto a que regressaremos.
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O que as heranças da estética e da delimitação teórica do conhecimento que a antropologia acolheu subtraíram ao olhar antropológico sobre a arte foi algo que Hegel expressou de modo direto e simples: “toda a obra de arte é um diálogo com aquele que está frente a ela” (Hegel 1988 (1851(: 264.). Tornando central essa dimensão dialógica, Hans-Georg Gadamer viria a tornar a arte o fulcro da sua reinterpretação hermenêutica e fenomenológica das ciências sociais, no passo em que as enraizou na tradição humanística e emancipou da metafísica (da presença e da subjetividade) que as sustentou, mas que a tradição fenomenológica, e do outro lado do Atlântico o pragmatismo, fizeram ruir. Gadamer fê-lo em alguns textos tardios, mas mais fundamentalmente em Verdade e Método (1975 (1960(), cuja primeira parte tem como título “A questão da verdade tal como emerge da experiência da arte”.
O intento de Gadamer não é tanto deixar a estética para trás, como o lugar central que a Critique of Judgement de Kant (2007[1790]) ocupa na sua reflexão o indica, mas antes trazer para a nossa compreensão da arte algo que a estética e a ideia da sua “autonomia” fez esquecer: que apesar de o juízo estético não se socorrer de categorias ou conceitos universais (e portanto e segundo Kant não poder chegar assim à “determinação” de algum objeto ou realidade), a arte não pode ser dissociada do conhecimento ou veicular uma verdade que se resuma à fantasia, idiossincrasia e subjetividade dos seus autores - e intérpretes. Diferentemente, para Gadamer a arte é um meio de conhecimento e uma fonte de verdade, e por isso mesmo o fulcro da sua reivindicação do valor da tradição que sempre soube tal: as humanidades. Mas que conhecimento e verdade são esses? O seu interesse pela a filosofia hermenêutica reside no facto de ser um conhecimento não apenas sobre o mundo e o humano, mas também um conhecimento sobre a interpretação (porque a arte não é outra coisa do que interpretação), e por isso um conhecimento sobre o conhecimento, uma verdade sobre a verdade.
Herdeiro da crítica de Heidegger da metafísica que pensava o conhecimento como o resultado do encontro de duas entidades concebidas como distintas e independentes uma da outra - de um lado o sujeito definido como uma mente capaz de se autoexaminar e desse modo identificar e expurgar os condicionamentos que lhe são exteriores e contingentes; e do outro o mundo concebido como uma coleção de objetos dotados de qualidades e propriedades que lhes são intrínsecas e perfazem a sua natureza objetiva - e da proclamação também heideggeriana da dimensão ontológica da interpretação - que não é tanto um ato como um modo de ser, o modo de ser único e específico do Dasein -, Gadamer vê a arte e a experiência da arte como a expressão por excelência da ideia onde conduz toda a sua hermenêutica. O que interpretamos, e só interpretamos o que já (pré)compreendemos, é sempre e em última instância a nós próprios, e nós interpretamo-nos e compreendemo-nos e conduzimo-nos pelo mundo não guiados pelo tribunal autónomo do que chamámos consciência, mas pela nossa imersão, pela nossa pertença ao “mundo da vida” e, com ele, à história e à linguagem - e assim a compreensão deve ser entendida não tanto como uma ação da subjetividade, mas antes como a participação num acontecimento no qual passado e presente são mediados e sintetizados no fluir tranquilo ou agitado, mas sempre contínuo, de uma tradição histórica.
A interpretação e a compreensão têm assim a dimensão não de um ato mas de um acontecimento, ela não é algo que possamos programar ou dirigir, criar ou sujeitar a algum tipo de controlo, mas algo que, simplesmente, por via de certas experiências, nos acontece. E a arte, por múltiplas razões, oferece-nos de forma primordial o que possibilita essas experiências (Erlebnis, uma noção que Gadamer recebe de Dilthey), que, uma vez delas afastados, na ordem regular e quotidiana da vida comum, o olhar retrospetivo dos sujeitos reconstrói e compreende como algo que interrompeu a serialidade do tempo, o curso episódico e anónimo dos dias e da vida, num processo em que elas são psicologicamente singularizadas e unificadas como uma unidade de coerência e sentido, como uma totalidade onde se entrecruzam num sentido existencialmente significativo passado e presente, o excecional e o quotidiano, a experiência biográfica e a vivência histórica. E assim, em última análise, o que essas experiências que a arte faculta revelam é que a verdade não é possessão da consciência - quanto mais não seja porque o que quer que esta seja sai transformado da experiência da arte. É que a história, e com ela o seu legado fundamental, a linguagem, nunca podem ser objetivadas, dado a influência por elas exercidas ultrapassar sempre os limites da nossa consciência dessa influência - uma ideia que Gadamer sintetiza na noção de wirkungsgeschtliches Bewusstein, da “consciência como sujeita aos efeitos da história e da linguagem”, que é no quadro da sua filosofia a expressão central da finitude e da historicidade da verdade.
Como veículo de um diálogo, a obra é obra de arte quando nos convoca para um acontecimento compreensivo que envolve não apenas o autor e o seu recetor, mas também o acontecer histórico da própria obra e do modo como este definiu o cânone à luz do qual nos relacionamos com ela. Nesse sentido, a arte envolve-nos num círculo interpretativo que tem por base os quadros pré-compreensivos que a história como background nos oferece e cujo impulso é dado por uma dialética de questões e respostas, pelo vaivém em que cada questão entrevê uma resposta que, uma vez dada, transforma a questão inicial que assim apela a uma nova resposta e a uma nova questão. Um processo que afinal desenha não tanto um movimento circular como uma espiral que nunca retoma o trajeto percorrido, mas antes apenas dele se aproxima tangencialmente, dado ser um processo que se desenrola no tempo e que se revela pelo efeito que traz: a aquisição por essa via de um alargado campo ou horizonte de compreensão e conhecimento, e assim uma transformação daqueles que nele se envolveram. No círculo hermenêutico, como disse Agamben (2017 (2015(: 65), “a questão, ‘Quem conhece?’ ”, não é passível de ser respondida pela escolha, afinal sem sentido, sobre se é “o intérprete, a obra interpretada ou o seu autor” - e não por acaso Gadamer pensou o modo de existência da arte comparando-a com o jogo, como o palco desse acontecimento compreensivo e de conhecimento onde as coordenadas da delimitação entre sujeito e objeto colapsam, dada a natureza correlativa da compreensão da obra, do que ela presentifica e tematiza, e de nós mesmos como seus intérpretes. Como disse em Verdade e Método:
“The work of art is not an object that stands over against a subject for itself. Instead the work of art has its true being in the fact that it becomes an experience that changes the person who experiences it. The ‘subject’ of the experience of art, that which remains and endures, is not the subjectivity of the person who experiences it but the work itself.” (Gadamer 1975 [1960]: 102)
A relação que assim se estabelece com uma obra de arte não é naturalmente passível de ser descrita como o “bom infinito” hegeliano, como algo que chega ao seu termo e se totaliza pelo esgotar e imobilizar do que ela contém e nos traz; antes como um “mau infinito”, no sentido em que não há meio de deter o fluxo histórico dos modos como ela, e com ela o mundo e as suas entidades vão sendo desvelados, compreendidos e interpretados. Sendo certo que “ao ser apresentado pela arte, o que é emerge” (ibid.: 112), não o é menos do que a possibilidade de por sua via algo se desocultar pressupõe algo que permanece na ocultação e se não manifesta, e que permanece como o ímpeto do próprio movimento da interpretação. Mas tratando-se de “mau infinito”, ele não deixa de ser afinal virtuoso, porque é a razão mesma do jogo universal a que não podemos furtar-nos, que é o jogo de ser-(se)-no-mundo.
Em suma, a genealogia de autores que se distanciaram criticamente da estética oferece todo um outro horizonte de relação com a arte e com o seu significado - precisamente aquele que permite pensar o que parece fundamental para a antropologia: a sua omnipresença nos mundos humanos, a universalidade que convida a interrogar o que possa estar por detrás dela e que se mostra de forma dir-se-ia infinita e primordial no impulso decorativo - dos corpos, dos artefactos, ou da própria paisagem. Essa genealogia que aqui nos guia tem como momentos-chave a constatação de Hegel de que a arte na modernidade europeia “já não faculta a satisfação das necessidades espirituais e intelectuais que outros povos e tempos encontraram nela, e só nela”, e que, portanto, “na sua mais alta vocação ela é para nós uma coisa do passado” (Hegel 1988[1851]: 10 e 11) - na famosa formulação sintética e mais tardia de Benjamin (2017[1935]), na idade da técnica a arte já não pertence a um tempo e a um espaço, a uma “tradição” e, assim, “perdeu a aura”; a perceção de Kierkegaard da insuficiência existencial da dimensão estética perante a ética e a religiosa; o modo como Heidegger mostrou que a arte é um meio de constituição dos mundos e as suas obras um meio privilegiado do seu desvelar para aqueles que estão fora deles; e, por fim, o modo como na sua esteira Gadamer contrariou as cesuras que a estética estabeleceu entre a arte, a realidade, o conhecimento e a história - no passo em que reabilitou o gosto enquanto juízo interpretativo e como competência cognitiva, vendo a arte como um elo histórico do acontecer compreensivo pelo qual as tradições vivem. É assim por via dessa linha que remonta a Hegel, tem em Heidegger e Gadamer os seus pivots e em Agamben o seu mais significativo herdeiro contemporâneo, que podemos chegar a encontrar o que a arte tem de primordial e sobre o qual repousa não apenas a sua universalidade mas também o lugar central que ocupa nos mundos de que como antropólogos estamos próximos. Já não nos ajoelhamos perante obras de arte, disse Hegel, mas nem por isso nós que já não sabemos da sua aura podemos perder de vista que é isso que fazem tantos dos mundos com os quais procuramos compreender o que o nosso próprio mundo (já) não nos ensina.
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Os antropólogos, aqui e ali, observam a dança de um ritual, a intrincada decoração de canoas, casas ou templos, escutam e registam os cantos e as narrativas dos episódios da vida de deuses ou heróis lendários, atentam aos elementos formais de uma pintura ou escultura ou aos padrões da tecelagem ou das decorações corporais, mas tantas vezes simplesmente não interrogam essas atividades e a sua razão de ser. Por detrás delas permanece implicitamente um vago e misterioso impulso estético e decorativo pelo qual os povos, no quadro circunscrito de uma tradição e de um estilo, se envolvem produzindo entidades dessa natureza, que rapidamente são devolvidas pelo olhar antropológico a alguma dimensão e função ou determinação social, cognitiva ou simbólica. À luz de pressuposições que radicam na história que desde o século XVII europeu se foi decidindo o que pode ser descrito e qualificado como arte, a escultura, a música, a pintura, as decorações corporais e de objetos, a arquitetura, a dança e a literatura oral foram integradas como um “domínio” da cultura, mas um domínio subordinado a outros, dado que na essência não faria senão “expressar”, “figurar”, “indiciar” ou “refletir” algo que lhes é preexistente e lhe confere forma e significado. Desse modo, os antropólogos identificam o que os gregos, mais avisados do que nós contemporâneos neste domínio, distinguiam: techne como atividade informada por e expressiva de uma intenção e de uma competência; e poiesis (poiein), como o trazer de algo à existência, não no sentido prático e voluntário da materialização de uma vontade ou ideia, mas antes como o desencobrimento do que até então permanecia na ocultação (ver Agamben 1999 [1994]). E foi essa distinção que permitiu aos gregos pensar a arte nos termos que a fenomenologia viria a recuperar para trazer para o primeiro plano não o seu aspeto voluntário, intencional e prático, mas o de ser um modo de acesso à verdade entendida como aletheia, como o acontecimento não premeditado de desencobrimento do que permanecia na ocultação e como o movimento da passagem do não-ser à presença do ser - na linguagem de Heidegger, como o que assim se mostra em si mesmo (“that which shows itself in itself”).
O que a antropologia tendeu portanto a não abarcar é que a arte manifesta o facto de o homem ser produtor não apenas no sentido imediato e pragmático em que age de acordo com a vontade de obter um resultado ou efeito determinado, mas também no sentido mais significativo em que pela sua atividade poética desvela parcelas do ser, as subtrai da ocultação e as manifesta como aquilo que são e no significado e valor que possuem. Esquecer essa dimensão poética impediu-a de perceber que esse desvelamento não opera como manifestação de uma ideia ou modelo preexistente mas sim como um ato e acontecimento projetivo, que se estende para além dos limites do que é conhecido e que tem por isso um poder de revelação e, em última análise, de criar e suster um dado entendimento do ser - e é por isso que para Heidegger “toda a arte é, na sua essência, poesia.” (Heidegger 2014 [1935-36]: 77) Assim, na perspetiva da fenomenologia, as obras de arte devem ser pensadas como acontecimentos ontológicos, como o veículo generativo e constituinte de uma tradição, no sentido em que, como diz Agamben, elas “constroem o espaço onde o homem (diferentemente do animal( encontra as suas certezas e onde garante a liberdade e duração das suas ações” (Agamben 1999(1994(: 69). Como o assinalou Heidegger tomando como referente o templo grego, em “A origem da obra de arte” (2014 [1935-36]) - porventura o mais importante texto sobre arte desde A Crítica do Juízo de Kant -, aqueles que não partilham a nossa metafísica da representação e da subjetividade não veem na estátua do deus uma imagem deste como mera transposição e representação sensível da ideia que dele têm, mas o deus ele próprio, que pela imagem e no templo se torna presente e é consagrado como o deus que é. Como diz Heidegger: “Na obra - caso nela aconteça uma patenteação originária do ente naquilo que ele é e como é -, está em obra um acontecer da verdade” (ibid.: 31). E, nesse sentido, são esse deus, o templo e a estátua ou imagem que o presentifica, e tudo o que eles demarcam em termos ontológicos - e sociológicos e morais - o que ergue, congrega e unifica uma comunidade, o que “funda” e “ergue” um mundo:
“A obra que o tempo é articula e reúne pela primeira vez à sua volta, ao mesmo tempo, a unidade das vias e das conexões em que nascimento e morte, desgraça e bênção, triunfo e opróbrio, perseverança e decadência… conferem ao ser-humano a figura do seu destino. A vastidão vigente destas conexões que estão abertas é o mundo deste povo histórico. […] O templo, no seu estar-aí-de-pé, dá às coisas pela primeira vez o seu rosto, e aos homens dá pela primeira vez a perspetiva acerca de si mesmos.” (ibid.: 38 e 40)
No pensamento de Heidegger, a procura da dimensão e potencialidade ontológica da arte faz-se pelo acolher da palavra grega aletheia, que dizia o desencobrir, o subtrair do encobrimento para trazer ao gesto e ao pensamento a significância e significado do que antes desse acontecimento permanecia “retirado”, como não notado e não reconhecido e que uma vez reconhecido se mostra a si mesmo como aquilo que é. E para Heidegger e para sua fenomenologia o que assim vem a acontecer e a mostrar-se é, então e fundamentalmente, o que não se mostra - o horizonte que possibilita que se possam descobrir as coisas no que elas são, para fazer e elaborar aquilo que elas permitem fazer e elaborar, mas que permanece sempre ele próprio encoberto, como o não experimentado e impensado, e que assim permanece mesmo quando por alguma razão (por alguma obra de arte) se mostra precisamente como o que se oculta. A verdade é assim também a não-verdade, é o desencobrir que mostra algo que não se desencobre, que permanece encerrado e inexplicado. No vocabulário de Heidegger a obra de arte é nessa sua dimensão terra:
“O mundo é a abertura que se abre das longas vias das decisões simples e essenciais do destino de um povo histórico. A terra é o surgir diante, não impelido para nada, daquilo que constantemente se encerra, e que, assim, põe a coberto. Mundo e terra são essencialmente distintos e, no entanto, nunca estão separados. O mundo funda-se na terra e a terra irrompe pelo mundo. Só que a relação entre mundo e terra não se reduz de maneira alguma à unidade vazia dos opostos que nada têm a ver um com o outro. O mundo aspira, no seu assentar sobre a terra, a fazê-la sobressair. Sendo aquilo que se abre, não suporta nada de encerrado. Contudo, a terra inclina-se, como aquilo que põe a coberto, a implicar e reter em si o mundo.” (ibid.: 47)
É o mundo e a terra que a obra de arte articula, e ela fá-lo expondo a sua relação como uma contenda, como um combate entre antagonistas que se erguem e se tornam o que são nesse combate. Nesse sentido, o combate travado entre terra - o fechamento, o inexplicado, a resistência - e mundo - o desvelamento, o trazer coisas ao que assim se tornam - abre um espaço, uma “clareira”, onde a compreensão do ser, por via da obra de arte e desse combate, se manifesta como um campo de possibilidades, como a abertura onde se joga o destino de um mundo histórico, e o que este, na indeterminação desse combate sem fim, vem a ser. E tal como a obra de arte ergue assim um mundo, também o fazem os atos de sacrifício e aqueles que fundam uma comunidade política e um Estado, como também os atos de fé e, de um modo mais primordial, a linguagem, dado que em nenhum desses atos fundadores deixa de estar já contido na linguagem e na sua dimensão especulativa - a linguagem que sempre permaneceu para Heidegger como a “casa do ser”.
Nesse sentido, a origem da obra repousa não apenas no ato da sua criação mas também naqueles que habitam o mundo que ela cria e a que confere dignidade e esplendor, naqueles que são os seus “guardiães” e que sempre como de uma primeira vez se envolvem com ela, nos atos em que uma tradição é preservada pela sua contínua reinvenção, no travar sem fim desse combate em que terra e mundo se afrontam e mostram e ocultam, e assim abrem não a possibilidade de um fim mas de um sempre renovado começo. Até que, pela força e razões da história, o mundo a que a obra pertence se extingue pelo extinguir do entendimento do ser e dos próprios gestos que a mantinham como obra de arte, e ao templo como espaço sagrado. E quando o mundo se ausentou assim do templo, este começou a tornar-se ruína, tornou-se mero testemunho de outro tempo e de outro mundo. O morrer do mundo cujos caminhos e elementos ele articulava e sintetizava, que ele reunia como totalidade unificada, foi o desaparecer do que o tornava o templo que era e do que lhe permitia cumprir essa função. E no dia em que a estátua foi retirada do seu interior, talvez para ser matéria-prima de outra construção, ou para ser colocada num museu, isso aconteceu porque ela já não consagrava e glorificava, porque o deus já tinha perdido o seu esplendor, já não era o deus perante o qual os crentes se ajoelhavam - tornou-se meramente a escultura e obra de arte que observamos em termos estéticos e como entidade autónoma no grande museu.
Mas porque são múltiplos os “tempos históricos”, são também múltiplos os templos, as “grandes obras” pelas quais os povos forjaram e sustentaram as figuras dos seus destinos e uma perspetiva sobre si mesmos. O que Heidegger diz do templo grego é afinal verdadeiro para qualquer templo e, em geral, para tudo o que para uma comunidade constitui o que Dreyfus (2005: 411), num dos seus textos de comentário à obra de Heidegger, chamou “paradigma cultural”, como o que “coleta as práticas dispersas de um grupo, as unifica como possibilidades concretas de ação e sustém o estilo resultante para as pessoas, que então agem e se relacionam nos seus termos”.
E assim também a catedral cristã, a Ilíada e o Mahabharata, a caligrafia chinesa, o plano das aldeias bororo e da capital do império Lunda, as decorações corporais polinésias, as danças cerimoniais balinesas e a geografia e a vida cerimonial peripatética dos caminhos das canções australianos, dado que todos eles são, a seu modo, templos, parte fundamental do erguer poético dos seus respetivos mundos. É por sua via e neles que silenciosamente a arte opera como um meio de instrução, educação e enculturação, pelo definir dos planos de partilha intersubjetiva que estão na base do que chamamos comunidade, povo, nação ou tradição - que a antropologia de forma mais ou menos bem-sucedida articulou por via de noções como “personalidade de base” (Benedict), “habitus” (Bourdieu), “ethos” (Geertz), ou, mais simples e comummente, “cultura”.
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São estes os rudimentos de uma reivindicação da importância de resgatar a arte da sua condição de marginalidade na curiosidade antropológica para a tornar o seu fulcro, e que por isso, para isso, e como condição disso, acolhe o que a fenomenologia e a hermenêutica (desde Heidegger e de O Ser e o Tempo inseparáveis) trazem para a pensar na sua universalidade e nos modos esplendorosos e infinitamente diversos como a podemos encontrar nos mundos humanos. Não a arte enquanto “conceito”, ou tão-pouco como o que se exibe e comercializa sob a tutela do “mundo da arte”, também não para a tornar pretexto de um reducionismo espúrio ou da produção de etéreas e sempre novas e efémeras teorias sobre a mente, a sociedade ou a cultura - ou sobre a própria arte -, mas pelo simples facto de ela ser, como Freud disse dos sonhos por relação ao inconsciente, a “via real” de acesso a esses mundos que cativam a nossa atenção como promessa de instrução sobre os modos múltiplos e diferentes como se é humano.
Interrogar esses mundos por via de um diálogo com as suas obras de arte - que tantas vezes desafiam a nossa própria delimitação comum e estética do que é ou não é arte - é também e naturalmente o filiar desse inquérito não em algo que possa ser qualificado como “teoria”, mas na longa conversação histórica que sempre constituiu o fulcro das humanidades - tão mais atentas à arte e ao seu significado e importância histórica do que essa outra tradição de raiz moderna que é a das ciências, e no interior desta a das ciências sociais. A demarcação da diferença entre as ciências e as humanidades no plano da arte coloca-se de forma essencial na forma ela própria diferente como a interrogam. As primeiras em termos que a conduzem à busca de alguma verdade sobre a arte, as segundas à verdade da arte. É esta segunda perspetiva que, argumentamos, deve guiar a interrogação antropológica da arte, não apenas porque é a condição de atender aos elementos generativos do que chamamos sociedade e cultura, mas também porque é apenas assim que nos desligamos do paternalismo e presunção de superioridade cognitiva pelos quais a antropologia continuamente procura produzir sobre esses outros verdades teóricas que esses outros, mais do que desconhecerem, não reconhecem. Aquilo que a arte convoca para uma antropologia definida em termos fenomenológicos já o sabemos: a um envolvimento interpretativo com as suas obras, no qual não somos sujeitos com a capacidade de autonomamente determinar as propriedades de objetos, mas participantes de um jogo muito particular, que se manifesta não apenas nos termos kantianos de uma relação “livre” entre o pensamento e sensibilidade, mas mais fundamentalmente como um diálogo que em última análise nos faculta experiências que, como disse Hegel, “nos confrontam connosco próprios” - experiências que nos movem, transportam e educam, que são formativas no sentido captado pela grande palavra alemã da tradição humanística, Bildung.
O dilema contemporâneo da antropologia da arte é assim o de permanecer fiel à conceção de arte que a inabilitou a reconhecer na arte outro estatuto do que o de um plano subordinado e dependente do fenómeno geral da cultura e que a subjuga a espúrias elucidações teóricas, ou de a trocar por uma outra conceção que a traz para o lugar matricial que ela ocupa nesses mundos onde a sua aura não se dissipou, e também para o centro da reflexão antropológica como um meio de repensamento desta enquanto acontecimento interpretativo e dialógico. As possibilidades da antropologia da arte parecem hoje decidir-se nessa escolha, e em ela optar por trocar a procura da produção de uma verdade de raiz teórica sobre a arte - o velho, episódico, eclético e, na nossa perspetiva, malsucedido projeto da antropologia da arte - pela procura humanística da verdade da arte, trazendo para o centro do empreendimento antropológico algo fundamental que lhe escapou e que todos afinal sabemos, e sabemos precisamente através do nosso envolvimento com obras de arte: que mais do que interpretá-las, somos interpretados por elas, e que nenhuma dessas coisas requer que as “expliquemos”. E é esse o plano em que o encontro da arte e da curiosidade antropológica engendra e faculta um diferente modo de fazer antropologia - a disciplina que, assim pensada, nos permite justamente isso, compreendermo-nos diferentemente e melhor pelo ato de percorrer o círculo hermenêutico na companhia dos nossos interlocutores, os criadores e guardiões dessas obras de arte pelas quais nos deixamos interpretar, no ato mesmo de as descrever e assim compreender - e com elas também aos mundos de onde provêm e que sustinham conferindo-lhes definição e contorno.