Introdução
A internet, que já foi compreendida como uma força para liberdade e para democracia, tem se tornado um espaço para amplificação da desinformação, incitação da violência e de contestação da confiabilidade da mídia e das instituições democráticas, configurando-se um local favorável para a ascensão e difusão dos radicalismos de extrema-direita1. Sobre isso, a última década mostrou à sociedade mundial - em especial à sul-americana - os grandes desafios aos quais as democracias estarão submetidas no século XXI. Com processos cada vez mais deturpados sobre o conteúdo verídico das informações sobre política, economia, política externa, cultura, segurança e defesa, é possível observar um movimento de crescente descrença da sociedade no conteúdo da informação que recebe dos tradicionais canais de notícias. O resultado desse movimento tem sido um exponencial aumento da crença dos indivíduos em informações de conteúdo falso, transmitida por agentes de espectro ideológico próximo ao do cidadão.
Como consequência, o novo meio digital de sociabilidade da informação tem provocado sérios danos aos pilares democráticos dos Estados, pois a desinformação e as informações falsas têm virado recurso do debate político oficial. Nessa perspectiva, entre as diversas ameaças observadas nesse novo espaço estão as denominadas interferências híbridas, campanhas de desinformação,fake news2, propaganda computacional e outras formas de manipulação da informação por meio do ciberespaço. Tais ferramentas possuem o potencial de comprometer valores democráticos e desestabilizar instituições políticas. Também podem pressionar organizações econômicas e financeiras de um país, afetar seu moral e moldar o cenário interno, conforme as preferências de determinado grupo ou país. Isso tudo com a vantagem do anonimato, já que é extremamente difícil a identificação da origem exata desse tipo de campanha cibernética.
Os países sul-americanos enfrentam uma série de fragilidades políticas e institucionais que se somam a desafios econômicos e geopolíticos enfrentados pela região. Especificamente, no âmbito cibernético, tais países carecem de capacidades cibernéticas3 e suas debilidades estruturais se originam desde frágeis bases educacionais, especificamente, da falta de incentivos à educação cibernética da sua população, da falta de políticas públicas para a ciência nacional e para a conscientização, até a formação e capacitação de recursos humanos. Sendo a educação, a formação de talentos e o desenvolvimento científico e tecnológico um pilar estratégico para a construção de capacidades cibernéticas, que é a base da qual as demais dimensões da construção de capacidades se sustentarão e, da mesma forma, entendendo a camadapeopleware4 como a mais importante para a segurança cibernética de uma nação, essa carência acaba por se refletir nos atuais desafios cibernéticos e democráticos dos países da região. Essa situação deixa esse grupo de países, em sua maioria considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, vulneráveis diante das inúmeras ameaças advindas do ciberespaço. Além disso, esse contexto resulta em vantagens e oportunidades de intervenções de atores estatais mais desenvolvidos em países do Sul Geopolítico5|6.
Diante do exposto, e devido à dinâmica transfronteiriça do mundo digital e do disseminado alcance de suas ações e consequências, entende-se que a busca por uma solução para essas demandas perpassa pelo processo de aprofundamento da cooperação interestatal, no qual as estratégias de política externa dos Estados são fundamentais para a construção de uma resposta efetiva a esse tipo de ameaça que traz riscos, inclusive, aos seus processos democráticos. Desse modo, o artigo pretende trabalhar a seguinte questão: os países sul-americanos estão construindo processos cooperativos regionais na área de segurança e defesa cibernética de modo a protegerem suas democracias frente aos desafios da era digital? Acredita-se que, apesar de iniciativas de cooperação cibernética terem tomado forma na região e mesmo com o potencial regional para avançar em processos cooperativos, pouco se evoluiu no sentido de implementar agendas de cooperação multilateral que auxiliem na proteção dos sistemas democráticos regionais.
Esta pesquisa parte de uma perspectiva que evidencia a interdependência entre os Estados e adota-se uma concepção cooperativa para refletir sobre os obstáculos enfrentados pelos países sul-americanos, atentando para as dinâmicas geopolíticas próprias da região. Neste sentido, pelo fato de haver dinâmicas geopolíticas e securitárias a América do Sul justifica-se como um objeto de análise por si só na medida em que este trabalho analisa os elementos de cooperação desenvolvidos a partir dos mecanismos regionais sul-americanos. Embora a analogia trazida da economia de que o Brasil seja um rinoceronte em uma loja de cristais se comparado aos demais países da América do Sul7, a mesma não retira a capacidade analítica da região como espaço específico de análise.
Para alcançar o objetivo proposto, adota-se a técnica de pesquisa bibliográfica, utilizando, eventualmente, documentos oficiais e notícias para auxiliar na discussão dos tópicos mais atuais. Ademais, ressalta-se que, para analisar a cooperação cibernética na América do Sul, tem-se o ano de 2012 como marco temporal, visto que neste ano os membros da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) iniciaram um plano de trabalho para cooperação multilateral na área cibernética no âmbito do seu Conselho de Defesa.
Para desenvolver essa pesquisa o artigo está dividido em três seções. Iniciamos apresentando as principais ameaças à segurança e defesa dos Estados, inclusive no que diz respeito à proteção dos sistemas democráticos. Em seguida, trazemos a discussão sobre processos de cooperação estatal no setor cibernético, destacando estudos que apontam para as vantagens de estratégias cooperativas principalmente para os países do Sul Geopolítico e para países que não possuem nítidos rivais no âmbito militar. Por fim, analisamos o processo de cooperação cibernética que tomou forma na América do Sul, os percalços ao longo dos últimos anos e os efeitos de tais processos cooperativos para a construção de capacidades e proteção das democracias dos países da região.
Ameaças cibernéticas e os riscos à democracia no século XXI
As ferramentas do ciberespaço vêm sendo aperfeiçoadas de maneira a revolucionar o modo de se fazer a guerra no século XXI e esse cenário tornou a ciberguerra uma das grandes preocupações das defesas nacionais hoje em dia8. Isso se deve às características que tornam esse espaço diferenciado dos demais9, à crescente digitalização dos processos e das infraestruturas críticas dos Estados e às consequentes vulnerabilidades inerentes dessas infraestruturas que dependem dos sistemas computacionais10. Com isso, constroem-se cenários potencialmente catastróficos, no qual o poder cibernético se traduz em diversas vantagens em conflitos.
Entretanto, segundo Thomas Rid, a probabilidade de uma guerra autônoma no ciberespaço é baixa, quando se conceitua corretamente o termo e se observa as formas mais comuns de atuação dos atores nesse espaço. Para o autor, os atores têm utilizado ferramentas digitais para sabotagem, espionagem e subversão, as quais podem acompanhar operações militares tradicionais, mas não a guerra como a conhecemos desde a teorização clausewitzina11. Contudo, tendo em vista as oportunidades que os recursos cibernéticos apresentam para os atores, é necessário entender o crescimento das campanhas de desinformação, propaganda computacional ou manipulação da informação como um elemento promotor do conflito na esfera cibernética12. Sobre isso, é importante apresentar o que se tem denominado por interferências híbridas. Interferências híbridas podem ser definidas como ataques sutis, como manipulação da informação, uso de campanhas de desinformação e uma série de recursos não militares, utilizados como meios indiretos para influenciar o debate público, acelerar polarizações políticas, ideológicas, econômicas e sociais de um país e minar sua coesão interna13.
Elemento central das interferências híbridas é a subversão, citada por Rid, na qual o alvo é a mente humana e sua consciência identitária dentro da sociedade. A subversão pode ser entendida como tentativas de desestabilizar ou minar a integridade ou autoridade do Estado alvo através de atores locais, usando como ferramentas as campanhas de desinformação14. Nesse sentido, tais interferências podem ser utilizadas como estratégias complementares (em situações de conflito ou não) para desestabilizar um país e fazê-lo adotar determinada postura. Isso tudo com a vantagem do anonimato e sem ultrapassar o limiar do conflito. Somando-se a isso, essas ações possuem um custo financeiro baixo e menor aporte tecnológico e intelectual. Ao mesmo tempo, são altamente prejudiciais, podendo resultar em importantes danos no «mundo físico», além de serem de difícil contenção e resiliência por parte do ator atacado.
As campanhas de desinformação têm como elemento central a distorção da verdade, de modo que se torna cada vez mais difícil distinguir fato de ficção. Tais ferramentas digitais tornaram-se fundamentais para obter vantagens em períodos eleitorais e têm sido utilizadas para promover artificialmente ou manipular pontos de vista que favorecem líderes políticos, para abafar opiniões divergentes ou para atacar ou desacreditar opositores. Desse modo, têm potencial de acelerar a polarização, interferir ou alterar resultados políticos e, de forma efetiva, desestabilizar os pilares das democracias liberais, pondo em risco as liberdades civis15.
Apontou-se, em estudo publicado em 2019, que 68% dos países utilizaramtrolls,patrocinados pelo Estado, para atingir opositores e/ou jornalistas; 89% usaram de propaganda computacional para atacar a oposição política; e 75% dos países usaram desinformação e manipulação da mídia para enganar os usuários. Constatou-se que, pelo menos, 70 países vêm realizando campanhas cibernéticas com fins políticos16. De forma similar, em investigações realizadas entre 2016 e 2019, as quais analisaram 97 eleições nacionais em países livres ou parcialmente livres, identificou que em 20 países17 houve claras evidências de interferências estrangeiras. Entre os 20 países citados neste estudo estão Brasil e Colômbia18.
As eleições presidenciais do Brasil, em 2018 e 2022, são importantes exemplos na região sul-americana do potencial desestabilizador das ferramentas digitais, uma vez que o processo foi caracterizado pelo uso das redes sociais para disseminar notícias falsas, contestar a confiabilidade da mídia e das instituições democráticas, acirrando a polarização, aumentando a violência política e minando a coesão interna19. Na Colômbia, o referendo para a paz em 2016 e as eleições presidenciais em 2018 e em 2022 também envolveram «mentiras estratégicas, falácias, propaganda, fortes apelos à emoção, conspirações ou narrativas de polarização»20. Ainda, as eleições na Argentina em 2023 e outros tantos cenários de desinformação e manipulação através das plataformas digitais marcaram a política latino-americana nos últimos anos21. Cabe reiterar a complexidade de definir a origem exata dessas campanhas cibernéticas, as quais podem se originar ou serem financiadas por atores externos.
As manipulações que podem surgir como ação de atores externos nesse pleito fazem com que a democracia seja o alvo direto dos recursos cibernéticos utilizados numa lógica não violenta. Logo, a clivagem ideológica que tal ação pode causar promove ruptura social e pode, como afirmam Oliveira e Izycki,
«ser interpretad[a] como evidência de um ambiente democrático em deterioração ou, pelo menos, de um ecossistema político no qual a violação da privacidade dos cidadãos com o objetivo de direcionar sua assimilação cognitiva da realidade é uma forma aceitável de conduzir os assuntos governamentais»22.
O fato é que, como já antevê o relatório do Fórum Econômico Mundial de Davos de 2024, a informação falsa e a desinformação serão as principais ameaças securitárias do mundo no curto prazo. Isso porque nos próximos dois anos mais de 97 países, incluindo o mais populoso do mundo - a Índia - e o mais rico do mundo - os Estados Unidos - terão eleições importantes23.
Todavia, quando se trata de recursos cibernéticos, há a necessidade de se ajustar o foco da segurança e da defesa, abarcando toda a complexidade e sinuosidade dos desafios que advêm do ciberespaço, já que medidas tradicionais de defesa não são suficientes para esses novos tipos de ameaças. Além disso, Wigell reitera que os meios para se proteger desses novos métodos devem considerar também a defesa dos valores democráticos. Para o autor,
«os valores democráticos liberais não têm de ser vulnerabilidades em matéria de segurança, mas podem ser transformados em pontos fortes e instrumentos para dissuadir de forma credível os agressores híbridos, tornando simultaneamente as nossas democracias ocidentais mais robustas e resilientes»24.
Nesse sentido, as estratégias de segurança, defesa e construção de capacidades cibernéticas amplas devem considerar abordagens que envolvam toda a sociedade, abordagens cooperativas entre autoridades do setor público, do setor privado, da academia e demais organizações da sociedade civil25. Ou, como alguns autores denominam, uma abordagem em tríplice hélice26. Como pondera Wigell, «nesta nova era de política subversiva, em que a dicotomia clássica vestefaliana entre assuntos internos e externos do Estado se esbateu, a dissuasão é mais difícil de alcançar apenas através da ação do Estado»27.
Nessa direção, tendo em vista a dinâmica transfronteiriça do mundo digital e o disseminado alcance de suas ações, medidas de cooperação interestatais também são fundamentais para promover segurança, bem como para a promoção de um processo de governança cibernética internacional que deve ser consolidado de forma ampla. Nesse sentido, analisando os diversos desafios enfrentados pelos países sul-americanos na construção de suas capacidades cibernéticas, conforme mencionado anteriormente, entendemos que o processo de aprofundamento da cooperação estatal é fundamental para a construção de uma resposta efetiva a essas ameaças na região. Essa é a discussão que pretendemos ressaltar na seção seguinte.
Cooperação para a construção de capacidades cibernéticas: buscando superar desafios provenientes do ciberespaço
Apesar de iniciativas cooperativas estarem tomando forma, estudos que discutam profundamente a cooperação internacional ainda não estão no centro da discussão quando o assunto é segurança e defesa cibernética, sobretudo por tratar de temas sensíveis e que envolvem a construção da confiança entre os atores28. A lógica dominante dá ênfase à securitização e, mesmo, militarização do ciberespaço, abordando-o como um novo domínio para realização de guerras; discute-se, portanto, conflitos, armas cibernéticas, dissuasão militar cibernética e possibilidade de uma corrida armamentista cibernética se desenvolver29. Esse contexto deixaria pouco espaço para medidas cooperativas, já que ressalta um ambiente de competição onde a construção da confiança torna-se uma missão quase impossível.
Entretanto, novas perspectivas sobre a temática vêm tomando forma, ressaltando a necessidade de propor alternativas para a construção de capacidades cibernéticas que ultrapassem a lógica militarizada, atentando para o fato que a era digital demanda respostas diferenciadas30. Essas visões apontam para dinâmicas cooperativas, o desenvolvimento da diplomacia cibernética e de ações coordenadas entre atores estatais, não estatais e os diversos setores da sociedade. Justifica-se o caráter transnacional dessa esfera, a interligação dos sistemas, a interdependência entre os atores e as características intrínsecas desse ambiente para fortalecer temáticas relacionadas à governança da internet, a construção da confiança entre os atores e o estabelecimento de acordos bilaterais e multilaterais no setor31.
Conforme Mikser32, pensar a construção de capacidades cibernéticas desde uma perspectiva cooperativa regional pode melhorar a condição dos países se desenvolverem neste setor, construindo capacidades mais sólidas, aumentando sua consciência sobre as ameaças emergentes e propondo mecanismos mais efetivos para enfrentá-las. Isso propiciaria um espaço mais estável, principalmente levando em consideração a interconexão entre os Estados no ciberespaço.
Diante disso, pode-se observar iniciativas cooperativas tomando forma em organizações internacionais, como na Organização do Tratado do Atlântico Norte, na União Europeia, na Associação das Nações do Sudeste Asiático, na Organização dos Estados Americanos, no Mercosul e nos fóruns existentes no âmbito das Nações Unidas e na União Internacional de Telecomunicações, como as reuniões do Group of Governmental Experts e do Open-Ended Working Group33.
Perspectivas cooperativas são particularmente importantes para os países sul-americanos, os quais enfrentam dificuldades econômicas, carecem de recursos humanos qualificados, de habilidades e conhecimento, de desenvolvimento tecnológico e investimento em ciência nacional. Consequentemente, permanecem dependentes dos países desenvolvidos, importando suas soluções para o setor34. Ademais, de modo geral, possuem fragilidades institucionais e fraca estrutura de governança cibernética interna35.
Adicionalmente, conforme destacam Ceballos, Maisonnave e Londoño:
«Asfake newse olawfare, fenômenos plenamente presentes nas disputas latino-americanas, são apenas exemplos do potencial antidemocrático das ferramentas digitais se não houver uma visão estratégica em torno delas. A colonialidade do poder e do saber faz com que, enquanto as grandes potências priorizam sua autonomia digital na América Latina, os avanços neoliberais desfazem as políticas estatais de desenvolvimento nacional. Desta forma, a formação de profissionais em tecnologia é negligenciada, estes são flexíveis à estrangeirização dos nossos sistemas tecnológicos e de gestão da informação e, do ponto de vista de uma integração tecnológica regional essencial, carecem de projetos sustentáveis»36.
Cabe ressaltar que a interconectividade dos sistemas e a carência de regulamentação no ciberespaço facilitam ataques que possam promover rupturas políticas e militares. Assim, em um contexto de acirramento da competição geopolítica internacional, para esse grupo de países torna-se particularmente fundamental a construção de capacidades cibernéticas para que sejam capazes de proteger suas instituições políticas, econômicas e militares, inclusive frente às interferências híbridas mencionadas37.
Ainda, países do Sul Geopolítico, como os países sul-americanos, encontram-se à margem da construção de uma governança cibernética internacional, sendo insuficientemente representados nas instâncias internacionais de tomada de decisão, de formulação de políticas e de desenvolvimento de mecanismos para o futuro do ciberespaço. Analisando por essa perspectiva, constata-se, portanto, que a estrutura global do ciberespaço perpetua a divisão Norte-Sul38.
Desse modo, reitera-se a importância de processos de cooperação Sul-Sul para que esses países possam articular ações para a promoção de medidas de segurança, defesa e resiliência no espaço cibernético, desenvolvendo mecanismos de compartilhamento de informações, conhecimentos e experiências, iniciativas conjuntas para treinamento, capacitação e resolução de desafios comuns, trabalhando conjuntamente para a construção de suas capacidades cibernéticas, diminuindo os custos envolvidos, e buscando romper com sua dependência em relação aos países desenvolvidos. Ademais, processos cooperativos são fundamentais para que esses países possam coordenar posições visando aumentar seu poder de decisão e de barganha, para que tenham seus interesses atendidos nos espaços de governança internacional39.
Como aponta Herz:
«o debate público sobre segurança cibernética precisa ser promovido em base local, nacional, regional e internacional. Diferentes órgãos e setores do aparato estatal, organizações da sociedade civil, comunidade técnica, setor privado, academia e entidades internacionais precisam ser ouvidos e precisam ter participação nas formas de coordenação. Este processo diz respeito à saúde das instituições democráticas, mas também à necessidade de informação da população sobre as regras e processos relativos à Quarta Revolução Industrial»40.
Assim, refletindo sobre o histórico das iniciativas de cooperação e integração na América do Sul - principalmente considerando a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da Unasul e as novas agendas postas no Mercosul nas últimas duas décadas -, bem como os avanços que tais processos proporcionaram no auge de seus funcionamentos41, percebe-se o potencial para medidas cooperativas na região também para o âmbito cibernético. Ainda, observando o cenário regional, não há percepções sobre disputas de poder no domínio cibernético entre os países sul-americanos e os países que já projetaram e desenvolveram iniciativas de cooperação cibernética42. Desse modo, a próxima seção buscará compreender como foi e está sendo encaminhada uma agenda de cooperação multilateral na área cibernética.
Cooperação cibernética na América do Sul: avanços e retrocessos
A América do Sul é uma região consideravelmente heterogênea, onde se observam notáveis assimetrias em questões econômicas, políticas, sociais e securitárias. Apesar das inúmeras diferenças entre os Estados da região, o contexto geopolítico internacional os une, já que, por um ângulo distinto, tais países também enfrentam inúmeros desafios políticos, econômicos, sociais e securitários que os aproximam para além do aspecto meramente geográfico. Da mesma forma, se observarmos as capacidades cibernéticas desses Estados, encontraremos situações substancialmente diferenciadas e, por outro lado, desafios que têm o potencial de os aproximar, já que os diferentes estágios em que os países se encontram nessa área podem ser analisados a partir de uma perspectiva de complementaridade, na qual os países podem cooperar e contribuir para a construção de capacidades regionais a partir de suas experiências e avanços individuais43. Do ponto de vista da cooperação multilateral, os países sul-americanos iniciaram um importante diálogo no âmbito do CDS da Unasul. Em 2012, os Estados-Membros criaram um plano de trabalho buscando oportunidades de coordenar posições e de estabelecer políticas e mecanismos regionais para combater as ameaças cibernéticas e informáticas. Os Estados estabeleceram a criação de um Grupo de Trabalho em Ciberdefesa e entenderam, como um primeiro passo, a necessidade de definir conceitos comuns na área. A partir disso, seriam avaliadas as possibilidades de avanços com a criação de políticas e mecanismos para lidar com tais ameaças cibernéticas. Entre outras coisas, também previram que buscariam diagnosticar as situações enfrentadas pelos países, identificar os principais atores, instituições e protocolos de cada país, propor programas de educação e exercícios de capacitação conjuntos44.
Após os escândalos de espionagem norte-americana, houve um fortalecimento das iniciativas no âmbito da Unasul, com ênfase à defesa cibernética. Em 2013, em declaração conjunta, os países estabeleceram, inclusive, a intenção de promover o desenvolvimento de tecnologias regionais e de instituir iniciativas conjuntas entre Mercosul e Unasul45. Ainda, nesse período, chegaram a propor a construção e conexão das redes de fibra ótica dos países, visando tornar as telecomunicações mais seguras46.
Da mesma forma, após esses vazamentos, algumas conversações no âmbito do Mercosul também tomaram forma, essas mais voltadas à segurança da informação e das comunicações. Cria-se, a partir disso, um grupo de trabalho com especialistas sobre o tema, os quais chegaram a esboçar linhas de ação que perpassavam discussões sobre regulamentações, desenvolvimento desoftwares, intercâmbio de informação, capacitação e desenvolvimento tecnológico. O grupo, no entanto, não obteve resultados concretos e deixou de se reunir após 201547.
Já no âmbito da Unasul, em 2014, na X Reunião da Instância Executiva do Conselho de Defesa Sul-Americano, os países-membros estabeleceram, entre seus objetivos: produzir e sistematizar uma ampla reflexão sobre as definições conceituais da defesa e segurança cibernética, de modo a unificá-las no nível regional; criar um grupo de trabalho e uma rede de contatos entre as autoridades competentes para troca de conhecimentos, de procedimentos e de soluções no âmbito da defesa cibernética48. Os planos de ação de 2015, 2016 e 2017 previram a continuação das atividades do Grupo de Trabalho de Ciberdefesa, a coordenação de ações com o Conselho de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) e a realização de um seminário sobre o tema, além da necessidade de repensar o cronograma do plano de trabalho da instituição49.
No âmbito do Mercosul, também foi criado o Grupo Agenda Digital em 2017. Este se voltou, principalmente, ao tema da economia digital. Os planos do Grupo discutem, entre outros tópicos, aspectos técnicos e regulatórios sobre governo eletrônico, infraestrutura digital e conectividade, segurança e confiança do ambiente digital, bem como habilidades digitais50.
Desafortunadamente, não se constatou significativos progressos nas discussões. Observa-se que os países não conseguiram avançar nem no sentido de homogeneizar os termos e desenvolver conceitualizações comuns, muito menos avançaram na proposição de políticas e estratégias conjuntas para o setor51. Entre os principais agravantes para esse cenário estão a polarização política, as crises internas enfrentadas pelos países e as interferências externas à região, as quais resultaram no processo de desmantelamento da Unasul a partir de 2016 e a consequente paralização dos direcionamentos que vinham sendo dados no âmbito do CDS, bem como a relativa estagnação nas conversações no âmbito do Mercosul52.
Ainda, o cenário da cooperação e da integração na região já enfrentava diversos problemas estruturais, que perpassam, por exemplo, a fraca institucionalidade dos processos de integração, a falta de recursos e as debilidades internas dos Estados que travam o prosseguimento de vários projetos. Ademais, diante da polarização e das heterogeneidades regionais, seja em termos políticos, econômicos, sociais ou securitários, as decisões por consenso tornam-se complexas53.
Assim, conforme pondera Justribó, os países sul-americanos apresentam marcos legislativos, políticos e doutrinários diferentes, o que resulta em avanços heterogêneos54. Isso tudo dificulta posicionamentos e avanços conjuntos em processos cooperativos na América do Sul, além de deixar a região em mais um cenário de dependência dos atores hegemônicos do sistema e vulnerável diante das inúmeras ameaças cibernéticas mencionadas na primeira seção deste artigo. Para Herz, o desmantelamento da Unasul, especificamente do CDS, representou uma oportunidade perdida, diante da viabilidade de, regionalmente, harmonizar as legislações, criar regras e articular políticas, criar mecanismos de gestão de crises e coordenar posições em fóruns internacionais55.
Diante do enfraquecimento dos processos cooperativos no âmbito sul-americano, ampliou-se o espaço para a atuação em mecanismos no nível continental, já que os países alargaram o diálogo sobre tais temas na Junta Interamericana de Defesa OEA. A OEA adotou ainda em 2004 uma estratégia conjunta para segurança cibernética e vem avançando com a proposição de medidas de confiança, realizando investigações nos países-membros, desenvolvendo informes e propondo treinamentos, simulações e capacitações conjuntas56. Cabe mencionar, entretanto, que a instituição é sediada nos Estados Unidos - sendo este também seu principal financiador - e tem sido, historicamente, um espaço para a propagação da agenda securitária da potência do Norte, sendo, portanto, um símbolo da ordem norte-americana na América Latina. Para mais, essa situação deixa a América do Sul novamente dependente de mecanismos externos para a resolução de problemáticas regionais57.
Não obstante, alguns consensos parecem persistir na região. Entre eles estão a defensa da necessidade de normas mais específicas e vinculativas no nível internacional, a construção de confiança entre os atores e o estabelecimento da Organização das Nações Unidas como plataforma para diálogos sobre a paz, a segurança e a estabilidade internacional do ciberespaço58. Partindo de consensos já estabelecidos e buscando novas agendas, os Estados podem unir forças para fazer frente em processos de governança internacional, aumentar seus níveis de segurança cibernética e combater os desafios que ameaçam as democracias sul-americanas.
Por fim, apesar dos desafios para a consolidação de uma agenda de cooperação cibernética na América do Sul, o período de auge dos processos de cooperação e integração regional demonstra o potencial da região em avançar na proposição de medidas conjuntas em diversas áreas, inclusive em segurança e defesa, e solucionar controvérsias regionalmente de forma autônoma. Tais iniciativas possibilitaram a maior coesão regional e demonstraram a capacidade de mobilização da região em prol de uma inserção internacional menos dependente59, processo que, principalmente na esfera cibernética, será fator estratégico em um futuro próximo tanto para o desenvolvimento da região como para sua segurança em âmbito coletivo.
Considerações finais
Esta pesquisa visou, em um primeiro momento, analisar as ameaças cibernéticas e os desafios que estas oferecem à estabilidade democrática. A partir disso, discutiu-se as abordagens cooperativas no setor cibernético e a construção de processos de cooperação na América do Sul, observando o cenário geopolítico sul-americano e ponderando sobre os efeitos dessas medidas para a proteção dos pilares democráticos. Defendemos que a busca por uma solução para as demandas dos países perpassa pelo processo de aprofundamento da cooperação regional, uma vez que estratégias de política externa são fundamentais para construção de uma resposta efetiva a essas novas ameaças à segurança e defesa dos Estados. Além disso, argumentamos que as ameaças cibernéticas demandam abordagens diferenciadas e mais abrangentes que abarquem toda a complexidade e sinuosidade dos desafios estabelecidos com o espaço cibernético.
Partindo dessa perspectiva, retomando as discussões propostas, além de todas as ameaças originadas no ciberespaço já amplamente discutidas, esse ambiente traz novas ferramentas que atuam também de forma mais sutil e que possuem a capacidade de acelerar polarizações, minar a coesão interna e, principalmente, desestruturar os sistemas democráticos. Essas ferramentas estão sendo empregadas em interferências híbridas em diversos Estados, utilizando, frequentemente, atores locais para tais ações. Diante disso, abordagens que ultrapassem a lógica militarizada, que abranjam medidas cooperativas multissetoriais, envolvendo os setores público e privado bem como a sociedade civil, e medidas de cooperação interestatais estão sendo discutidas pela academia. Compreende-se que tais ameaças necessitam de respostas mais abrangentes, que melhorem as condições dos países se desenvolverem no setor e auxiliem no desenvolvimento de mecanismos mais eficientes para enfrentar os desafios emergentes. Essas discussões têm especial relevância para os países do Sul Geopolítico, que enfrentam desafios econômicos, tecnológicos, fragilidades institucionais e grande dependência em relação às potências do Norte.
Muito embora os desafios à cooperação entre os países da região apontados neste trabalho permaneçam, a percepção desses acerca da importância de normas multilaterais internacionais construtoras da confiança demonstra que há consenso no que diz respeito à necessidade de criação de normas de governança cibernética. Este é um ponto fundamental para sustentar o argumento de que os países devem buscar respostas que ultrapassem as tradicionais reações securitárias, voltando seus esforços também para ações multilaterais centradas no nível regional, desenvolvendo estratégias conjuntas na região. Como apontado, isso configuraria um caminho promissor, de modo a fazer frente às ameaças digitais que vêm desestabilizando suas democracias nos últimos anos.