Introdução
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2021), atualmente uma em cada cinco pessoas no mundo vivem com perda auditiva. A previsão para 2050 será de uma em cada quatro pessoas. Isso significa que 2.5 bilhões de pessoas no mundo terão problemas auditivos. Entre as possíveis causas estão as perdas auditivas induzidas por níveis de pressão sonora (NPS) elevados, seja em ambientes de trabalho ou de lazer, nos quais também estão incluídos os músicos.
Há um consenso na literatura mundial de que a exposição abusiva a NPS pode acarretar alterações auditivas, como perda auditiva, zumbido, hipersensibilidades auditivas, diplacusia e alterações vestibulares, como vertigem e desequilíbrio, além de impactar a qualidade de vida das pessoas devido aos aspectos psicossociais decorrentes da deficiência auditiva, como depressão, ansiedade e isolamento social.
Não é incomum músicos que desistem ou têm suas carreiras ameaçadas devido a problemas auditivos. Entre vários músicos que sofrem com a perda auditiva e que tornaram isso público, pode-se citar artistas de diferentes estilos musicais, como Eric Clapton, Al di Meola, Bonno Vox, The Edge, Phill Collins, Sting e, mais recentemente, Chris Martin, da Banda Cold Play.
Com raríssimas exceções (talvez Beethoven na idade adulta), a capacidade de produzir e/ou executar uma música requer não somente um bom funcionamento do sistema auditivo como também a capacidade de reconhecer, lembrar, distinguir, quantificar, assim como muitos outros processamentos auditivos desafiadores. Qualquer perda no processamento auditivo normal pode prejudicar o desempenho musical do artista e, consequentemente, sua profissão.
O grau de danos à audição é resultado de uma combinação do volume do som e da duração da exposição. Compreender esses parâmetros permite estabelecer diretrizes para determinar os limites da exposição sonora, o que reduzirá a probabilidade de um músico sofrer lesões auditivas. Além disso, existem estratégias disponíveis para reduzir a exposição sonora cumulativa dos músicos, o que pode prolongar suas carreiras e sua vida útil musical.
No entanto, essas estratégias de proteção auditiva requerem mudanças de comportamento por parte do indivíduo, e isso, muitas vezes, é o grande desafio da preservação auditiva.
A preservação da audição começa com a conscientização do músico e de sua equipe técnica que inclui engenheiros de som, produtor musical, roadies e todos os envolvidos na produção dos concertos, que devem ter consciência sobre a importância de uma audição segura, não somente para os músicos, mas também para eles mesmos.
Sendo assim, fica notória a importância de programas de preservação auditiva bem estabelecidos, reconhecidos, com base em construções da ciência da comunicação em saúde e direcionados aos profissionais da música.
O objetivo principal deste artigo é discutir o que pode ser feito para prevenir distúrbios auditivos em músicos causados por níveis de pressão sonora elevados em seus ambientes de trabalho, estudo ou lazer, uma vez que não existem critérios de risco validados para esta população. Este artigo é uma combinação de uma revisão seletiva de estudos relevantes e de 75 anos somados de experiência clínica e de pesquisa dos autores.
Com foco na prática clínica baseada em evidências, este artigo abordará os seguintes itens:
A fisiologia da audição humana e seu funcionamento.
Consequências da superexposição ao som.
Limites de exposição ao som para minimizar o risco de perda auditiva.
Avaliação Audiológica específica para músicos.
Tecnologias e estratégias para prevenir a perda auditiva em músicos.
Programas de Preservação Auditiva direcionados para músicos.
Depoimentos, como o relatado a seguir, são molas propulsoras para que mais pesquisas científicas possam ser realizadas e para que a prática clínica possa cada vez mais ser baseada em evidência.
“Meu nome é Nina Pará, comecei a tocar bateria em 1998 e, profissionalmente, desde 2002. Desde o início da minha vida musical tive a preocupação em me proteger com protetores auditivos durante a minha prática e as aulas, mas nunca usei um filtro adequado para músicos; sempre usava aqueles de espuma comprados em farmácia ou os feitos para trabalhadores da construção civil. Outro costume que eu tinha era o de praticar muito com os protetores, mas nunca usá-los em ensaios ou em shows ao vivo. Por volta de 2015, após um show, eu percebi que estava com um zumbido nos ouvidos, o que já tinha acontecido anteriormente, logo após os shows. A única diferença foi que esse zumbido não passou com o decorrer das horas, dias... Aliado a esse zumbido, comecei a perceber uma sensibilidade muito grande a sons comuns em minha casa, como talheres raspando num prato de cerâmica ou o cachorro latindo, o volume da tv e até pessoas falando com um pouco mais de vigor me incomodava. Junto com esses sintomas vieram a enxaqueca, um pouco de tontura, muito incômodo e mal estar. Foi nessa época que procurei ajuda de alguns profissionais, e foi com a ajuda de uma audiologista que fui orientada e tive minhas muitas dúvidas esclarecidas a respeito das questões auditivas. Eu fui diagnosticada com hiperacusia e iniciei o tratamento. Eu não tive perda auditiva significativa, apenas o normal para a minha idade na época, mas considero a hiperacusia um aviso do corpo para um problema maior que poderia acontecer. Hoje protejo-me sempre com os filtros próprios para músicos e também uso os fones in ear moldados para os meus ouvidos. Considero-me curada, mas não posso me descuidar e estar em um ambiente com ruídos altos sem proteção. O zumbido, com o passar do tempo, sumiu, mas de vez em quando ele aparece após uma semana muito intensa de trabalho e volume alto, ou de muito stress. Hoje em dia, considero a preservação auditiva uma grande aliada do sucesso da minha profissão.” (Nina Pará, baterista brasileira,Figura 1)
1. A Fisiologia da Audição Humana e seu Funcionamento
A audição é um processo complexo por meio do qual as vibrações da energia sonora são convertidas em sinais elétricos e recebem um significado pelo cérebro.
Mas como funciona esse sistema, o que e como os sons são ouvidos?
O que ouvimos?
Objetos vibrantes causam interrupções nas moléculas de ar que os cercam, criando ondas de alta e baixa pressão que se afastam da fonte vibratória em todas as direções. A energia sonora pode ser medida utilizando um medidor de nível de pressão sonora (NPS). Esses dispositivos geralmente medem o nível de pressão sonora em decibels, com referência a um padrão de 20 µPa (0 dB SPL). O ouvido humano, no seu funcionamento normal, pode processar vibrações sonoras que variam de 20 vibrações/segundo (Hertz ou Hz) a 20.000 Hz. A pressão sonora mais alta que o ouvido humano pode tolerar (acima de 120 dB SPL) é mais de 1.000.000 vezes maior do que a pressão sonora do som mais suave que o ouvido pode perceber (0 dB SPL).
Atualmente, muitos telefones celulares possuem aplicativos que podem realizar as medições de nível de pressão sonora, com vários graus de precisão.
Todos os telefones celulares que possuem esses aplicativos devem ser calibrados usando um sinal de frequência e intensidade conhecidas. Os aplicativos executados em dispositivos iOS tendem a ser mais precisos que aqueles em dispositivos Android devido à qualidade e consistência dos microfones em dispositivos iOS e à capacidade desses dispositivos de desativar a compactação automática de volume que limita o alcance dinâmico do sistema. Dois aplicativos gratuitos de medição de NPS para iOS são o Sound Meter X (Faber Acoustical) e o NIOSH Sound Level Meter (Instituto Nacional de Segurança e Saúde Ocupacional dos EUA). Quando devidamente calibrados, esses aplicativos podem fornecer ao músico informações valiosas sobre suas exposições sonoras.
Os instrumentos musicais criam energia sonora que varia nas frequências dos sons que produzem e podem gerar uma ampla gama de níveis sonoros. É de suma importância que os músicos saibam sobre a frequência e o nível sonoro de seus instrumentos.
Na Tabela 1, tem-se exemplos de frequência e NPS dos instrumentos musicais:
Como ouvimos?
A energia sonora, na forma de ondas sonoras, é captada na entrada da orelha externa pela cartilagem e pelo retalho cutâneo na lateral da cabeça, chamado pavilhão auricular. As ondas sonoras viajam até o canal auditivo, que tem cerca de 2,5 cm de comprimento em adultos. No final do canal auditivo está a fina membrana timpânica (tímpano) que se move para frente e para trás em uma velocidade correspondente à frequência do som. O grau ou a profundidade de movimento do tímpano é determinado pelo nível de pressão sonora. Anexado à parte posterior da membrana timpânica está o primeiro de três pequenos ossos chamados martelo, bigorna e estribo, que estão na orelha média. São os menores ossos do corpo humano. Esses ossículos são dimensionados e conectados de maneira a amplificar a energia vibracional transferida para a orelha interna. A plataforma do estribo passa as vibrações para um túnel em forma de caracol cheio de líquido no crânio chamado cóclea. Três câmaras, separadas por membranas flexíveis, percorrem toda a extensão da cóclea.
Cerca de 18.000 células sensoriais microscópicas chamadas células ciliadas estão montadas ao longo da membrana basilar central. As ondas sonoras que passam para a cóclea movem as membranas para cima e para baixo, em uma frequência e amplitude correspondentes às características do sinal sonoro. As células ciliadas convertem os movimentos mecânicos em sinais elétricos que são passados das células ciliadas para as vias nervosas, que sobem até os centros auditivos no cérebro. O cérebro aprende a reconhecer os padrões de disparo do nervo e dar significado a eles. A Fig.2 demonstra uma visão anterior e coronal do ouvido humano.
2. Consequências da Superexposição ao Som
Primeiramente, antes de abordar diretamente as consequências da superexposição ao som, faz-se importante descrever sobre a natureza dos possíveis problemas auditivos que podem ocorrer nesse complexo processo da audição.
Dificuldades auditivas podem ser causadas por disfunções em qualquer um ou em vários locais ao longo desta via. Qualquer bloqueio na condução da vibração sonora através da orelha externa ou média resultará em uma perda auditiva condutiva. As células ciliadas e as vias neurais auditivas, não são afetadas por perdas auditivas condutivas. As perdas auditivas condutivas podem ser causadas por acúmulo de cera de ouvido (cerume) ou outros objetos estranhos no canal auditivo. Infecções da orelha média também podem causar perdas condutivas. A maioria das perdas condutivas podem ser resolvidas clínica ou cirurgicamente.
Danos ou perda de células ciliadas resultam em perdas auditivas sensório neurais. Essas perdas podem ser causadas por traumatismo craniano, infecções virais, bloqueios do fluxo sanguíneo, distúrbios metabólicos, envelhecimento, fatores genéticos e superexposição ao som. As perdas auditivas sensório neurais são raramente tratáveis.
Distúrbios das vias neurais e do cérebro causam distúrbios auditivos retrococleares. Perdas auditivas retrococleares podem causar perda auditiva, dificuldade de compreensão da fala, distúrbios de processamento temporal e outras dificuldades de processamento do som. As causas incluem traumatismo craniano, doenças neurodegenerativas, tumores, acidente vascular cerebral, envelhecimento e fatores genéticos. Assim como as perdas sensório neurais, as perdas retrococleares também costumam ser irreversíveis.
Como visto, existem várias causas de perda auditiva que não são possíveis de se evitar. No entanto, a perda auditiva causada por exposição a NPS elevados pode ser evitada e profissionais de saúde devem estar muito atentos a todos os danos causados por essa superexposição, sugerindo assim medidas preventivas.
A exposição a NPS elevados pode acometer a saúde do indivíduo de forma direta, causando alterações auditivas, vestibulares (vertigens e desequilíbrio), e ainda podendo causar efeitos extra-auditivos, como alterações no sono, concentração, irritabilidade, ritmo cardíaco cefaléia e até mesmo depressão. Essas alterações podem ocorrer de modo isolado ou em conjunto, o que é devastador na vida profissional do músico.
A seguir serão discutidas as possíveis alterações auditivas nos músicos como a Perda Auditiva Induzida por Música (PAIM), Recrutamento, Zumbido e Hiperacusia.
2.1. Perda auditiva induzida por música (PAIM)
O ouvido foi projetado para detectar sons de volume extremamente baixo. A membrana timpânica se move apenas cerca de 1 x 10-9 cm, que é menor que o diâmetro de um átomo de hidrogênio, no limiar do som. As células ciliadas e outras estruturas delicadas da orelha interna podem ser, temporariamente ou permanentemente, danificadas por sons que podem diferir quanto ao nível sonoro e/ou a duração. Isso pode resultar em perda de sensibilidade auditiva a sons suaves, intolerância a sons de níve elevado, distorção de som e zumbido.
As células ciliadas e as estruturas de suporte podem ser danificadas pela força da onda sonora que viaja pela cóclea. Estimulação prolongada, mesmo em níveis sonoros apenas moderadamente altos, pode causar superestimulação na conexão entre as células ciliadas e o nervo auditivo, resultando em morte celular. O inchaço intracelular após estimulação sonora intensa, também pode causar danos permanentes à cóclea.
Qualquer combinação dessas lesões pode causar perda auditiva e/ou zumbido.
A perda auditiva por exposição ao som é mais comumente insidiosa e progressiva. O indivíduo pode não reconhecer que perdeu a sensibilidade auditiva até que a perda comece a atrapalhar a comunicação e a vida diária. Foi publicado um estudo que mostrou que o zumbido pode ser um indicador precoce de que os ouvidos foram danificados pela exposição ao som (Griest & Bishop, 1998).
Um dos maiores equívocos sobre a perda auditiva causada pela exposição ao som é que o dano depende da qualidade ou tipo de som ao qual a pessoa está exposta. Muitos pensam que se o som for agradável ao ouvinte, não haverá danos. Este equívoco é comumente aplicado à música. No entanto, o ouvido pode ser facilmente danificado pela exposição à música, assim como a outros tipos de som. A perda auditiva resultante da exposição a volume intensos ou a longos períodos de exposição à música de nível sonoro moderado é chamada de Perda Auditiva Induzida por Música (PAIM). PAIM e/ou zumbido podem ser lesões que acabam com a carreira de músicos, pois essas condições prejudicam a capacidade de monitorar a música que os músicos estão produzindo, bem como a música produzida por outros artistas.
2.2. Recrutamento
O recrutamento é causado por danos à cóclea e pode ser descrito como um aumento da percepção da intensidade de um som experimentado pelo indivíduo e que cresce desproporcionalmente em relação ao aumento da intensidade física do som.
Explicando de forma bem simples, uma cóclea saudável permite uma grande amplificação de sons de baixo nível sonoro (NS) e uma limitada amplificação de sons de alto NS. Isso permite ao ouvido processar uma gama extremamente ampla de níveis sonoros. Quando as células ciliadas externas (CCE) são danificadas, os sons de baixo NS não são amplificados ou percebidos (como em uma perda auditiva) e os sons de nível moderado a alto não são moderados, causando desconforto devido ao alto volume. O recrutamento pode ser muito perturbador para um músico.
Uma pessoa com recrutamento reclamará: "Não grite, porque eu não sou surdo", mesmo que tenha perda auditiva.
2.3. Zumbido
O zumbido é a percepção de um som na ausência de uma fonte sonora externa. Muitas vezes soa como apito, barulho de cachoeira, motor, grilo, chuva, panela de pressão, chiado, rádio fora de sintonia, cigarra, batimentos cardíacos, abelha e muitos outros.
Acredita-se que seja uma atividade nervosa anormal que é interpretada pelo cérebro como som. Pode estar associada a perdas auditivas do tipo condutiva, sensório neural ou retrococlear, porém também pode ocorrer em indivíduos sem processos patológicos ativos. A maioria das pessoas com zumbido não se incomoda com isso, mas cerca de um quarto das pessoas com zumbido considera-o altamente problemático.
É importante compreender que o zumbido é um sintoma e não uma causa. Embora existam inúmeras causas do zumbido, existe uma grande associação da sua incidência com a perda auditiva induzida por níveis de pressão sonora elevados (NPS), incluindo a Perda auditiva induzida por música (PAIM). As possíveis causas do zumbido podem ser divididas nos seguintes subgrupos: auditivas, metabólicas, musculares, vasculares, erros alimentares e ainda as causas somatossensoriais (cabeça, pescoço e cintura escapular).
São inúmeros os músicos de rock que já admitiram sofrer com zumbido e relatam ter limitação em seu desempenho musical, ou até mesmo relatam ter se aposentado da profissão de músico devido a esse problema (Einhorn, 2009).
Os músicos que mais têm queixas de zumbido após a exposição a NPS elevados são os violinistas e os bateristas devido à proximidade do instrumento a uma única orelha e à posição dos pratos na altura de ambas as orelhas, respectivamente.
Muitos músicos têm incorporado nas letras de suas canções referências às percepções de seus próprios zumbidos, como por exemplo o cantor Bob Dilan na canção “Call Letter Blues”, e a banda U2 na canção “Starting at the Sun”, de autoria de Bono Vox e The Edge, em 2000:
Bob Dylan
“Call Letter Blues”
“My ears are ringing, ringing like empty shells. Well, it can´t be no guitar player. Must be...convent bells”
U2
“Staring at the sun”
There´s an insect in your ear, if you scratch it won´t disappear, its gonna itch and burn and sting, you wanna see what the scratching brings... waves that leave me out of reach, breaking on your back like a beach, will we ever live in peace? As those that can´t do, often have to preach to the ones, staring at the sun...
2.4. Hiperacusia
Considerada uma disfunção do sistema nervoso central, tem como característica principal uma sensibilidade sonora, provocando um incômodo ou uma intolerância a sons de baixo e moderado volume que, para outras pessoas, não provocam nenhum incômodo, como um barulho de teclado de computador, uma risada, voz de uma criança ou até mesmo um latido de cachorro.
As causas desse tipo de disfunção não são totalmente conhecidas, mas acredita-se que podem estar relacionadas a causas hormonais, danos sofridos pela orelha interna ou deterioração das vias auditivas, principalmente na cóclea, origem genética e superexposição a NPS elevados, como é o caso da música em níveis sonoros elevados.
Existe uma tendência por parte das pessoas que têm hiperacusia de utilizar protetores auditivos para se proteger dos sons. Essa conduta é inadequada e totalmente contraindicada. Protetores auditivos, sejam eles de qual modelo forem, têm como função primária proteger a audição de sons que causem danos nocivos ao sistema auditivo. Já para exposição a sons que não têm nível sonoro suficiente para causar esse prejuízo, não existe a indicação de proteção.
Ao contrário do que se imagina, o uso excessivo de protetores auditivos em situações de sons pouco intensos, piora o quadro de intolerância, tornando a sensação de sensibilidade maior. Muitas vezes, pessoas que não apresentam nenhum sintoma de hiperacusia acabam desencadeando-a como consequência do uso abusivo de protetores por um longo período, em ambientes quase silenciosos.
3. Limites de exposição ao som para minimizar o risco de perda auditiva
Danos nas estruturas da orelha interna resultam da combinação de dois fatores principais: nível sonoro e duração da exposição. O dano ocorre instantaneamente se os níveis de som forem intensos o suficiente. À medida que os níveis sonoros diminuem, o tempo de exposição necessário para causar danos aumenta. O estudo clássico de Taylor et al. (1965) apresentou limiares auditivos de 493 orelhas de mulheres que tiveram carreiras usando teares motorizados de < 1 a 52 anos. Os trabalhadores foram expostos a níveis contínuos de ruído de 99-102 dB NPS. Os resultados mostraram que a evidência de um leve aumento nos limiares auditivos em 4.000 e 6.000 Hz estava presente mesmo naqueles que trabalhavam há menos de um ano. O grau da perda auditiva esteve diretamente relacionado aos anos de exposição. As frequências afetadas foram principalmente 3.000, 4.000 e 6.000 Hz, mas os limiares de 2.000 e 8.000 Hz também se deterioraram após exposição prolongada. Os limiares audiométricos médios do trabalhador exposto ao ruído e dos controles pareados por idade são apresentados na Figura 3.
O risco de incorrer em perda auditiva permanente devido à exposição ao som pode ser reduzido seguindo as diretrizes do nível de exposição recomendado (NER), estabelecidas por várias instituições e agências. Essas diretrizes e regulamentos foram desenvolvidos para locais de trabalho. Cada NER tem um risco associado de perda auditiva.
Uma exposição ocupacional diária recomendada comumente aceita é o equivalente a 85 dBA por um período de 8 horas com uma taxa de mudança de intensidade-tempo de 3dB. Ou seja, para cada aumento de 3 dB no nível sonoro, a duração da exposição recomendada é reduzida pela metade (por exemplo, 88 dBA por 4 horas, 91 dBA por 2 horas, etc.). No entanto, seguir esta recomendação não protege totalmente contra a perda auditiva. A probabilidade de desenvolver uma perda auditiva permanente ao longo de uma carreira de 40 anos (8 horas por dia, 5 dias por semana) foi estimada com base no nível sonoro médio da exposição. Na tabela 2 é demonstrado o risco de ser ter uma perda auditiva significativa após 40 anos de trabalho.
Deve-se notar que níveis de som muito intensos (> 130 dB de pico) podem causar perda auditiva a partir de uma única exposição muito breve (Hamernik et al, 1991).
Não é razoável aplicar os critérios de risco de perda auditiva acima para músicos. É importante reconhecer que a exposição ao som que contribui para a perda auditiva é cumulativa ao longo da vida. Portanto, isso inclui prática e performance musical, uso de fones de ouvido para ouvir audios, exposição à música por lazer em clubes ou concertos, exposição a sons relacionados ao trabalho, andar de motocicleta ou jet ski, armas de fogo, atividades de construção, uso de ferramentas elétricas, fogos de artifício ou qualquer outra atividade de exposição a níveis sonoros elevados. Ouvintes esclarecidos podem estimar sua exposição total diária ao som para calcular o risco de perda auditiva. Ao fazer isso, eles podem organizar estrategicamente suas exposições sonoras de forma a minimizar o risco de perda auditiva e zumbido e prolongar a duração de suas carreiras musicais.
4. Avaliação Audiológica Específica para Músicos
Em 2021, a OMS divulgou o 1º Relatório Mundial da Audição, com dados alarmantes sobre os Riscos Auditivos que a população mundial está enfrentando. Entre todas as ações de saúde pública propostas para que seja possível uma audição segura ao longo da vida, estão o diagnóstico precoce, prevenção e cuidados apropriados.
Embora não seja a realidade de muitos países, não existe nenhuma dúvida na literatura e no senso comum de que é de extrema importância a realização de avaliações de rotina, como check-up de saúde geral, para diagnóstico precoce. No entanto, essa não é uma prática comum quando o assunto é a saúde auditiva, especialmente em músicos.
Se por um lado a grande maioria dos músicos não tem o hábito de realizar avaliação audiológica e medidas preventivas, por outro ainda são poucos os audiologistas que se especializaram nessa população.
Estudo realizado por um grupo de pesquisadores da Austrália revela a necessidade de Guias de Boas Práticas para o atendimento dos músicos. Por meio de questionários, foram investigados 31 audiologistas, dos quais apenas um terço relata realizar audiometria tonal liminar antes da adaptação dos protetores auditivos (McGinnity et al., 2018).
Alguns estudos têm utilizado a audiometria tonal convencional para avaliar a audição de músicos e os resultados demonstraram que ao longo dos anos de exposição, estes indivíduos podem apresentar perda de audição, com piora nas frequências de 4kHz a 8 kHz (Pouryaghoub et al., 2017).
De acordo com a Academia Americana de Audiologia é recomendado que a bateria de avaliação audiológica para músicos inclua: audiometria tonal liminar (ATL) de 250Hz a 8KHz, incluindo as frequências de interoitavas (750Hz, 1500Hz, 3000Hz e 6000Hz); audiometria de alta frequência (quando disponível equipamento) exames de emissões otoacústicas e medidas de imitância acústica (AAA, 2020).
A seguir serão explicados todos os exames da avaliação audiológica utilizados na prática clínica para atendimento de músicos e que possam resultar em dados importantes para o direcionamento das condutas a serem seguidas, com foco na Preservação Auditiva e reabilitação, quando necessário.
4.1. Audiometria tonal liminar convencional (250Hz a 8kHz) e de alta frequência (9kHz a 20kHz)
A avaliação audiológica básica é composta por uma bateria de testes constituída por audiometria tonal liminar (ATL) convencional, que envolve a pesquisa do limiar na via aérea (250 Hz a 8 kHz) e na via óssea (500 Hz a 4 kHz); logoaudiometria, que envolve os testes de percepção de fala e medidas de imitância acústica. Esses são procedimentos básicos e iniciais no processo de avaliação e diagnóstico audiológico.
A ATL é ainda considerada o padrão ouro para avaliação da função auditiva periférica. (Reddy & Fredriksson, 2023).
Seu principal objetivo é mensurar a sensibilidade auditiva de um indivíduo, pesquisando-se o mínimo limiar auditivo que o indivíduo é capaz de detetar. Nos casos de alterações auditivas, determina o tipo, grau e a configuração da perda auditiva. É um exame que depende da resposta do indivíduo aos estímulos apresentados. Na população de músicos, os estímulos são facilmente detectados, justamente com a familiaridade que esses possuem quanto à percepção de frequências e intensidades, o que aumenta a confiabilidade das respostas.
Embora esta avaliação seja a pedra fundamental na mensuração da audição, é de suma importância que na população de músicos não seja o único instrumento a ser utilizado. Sabe-se que a faixa de frequência dos sons da fala abrange de 250 Hz a 6 kHz e que os músicos não lidam na rotina de trabalho somente com sons dessa região, necessitando, portanto de uma avaliação com abrangência maior de frequências. Dessa maneira, fica nítida a necessidade de avaliar a audição do músico também na alta frequência, acima de 8 kHz (Freire, 2014).
A audiometria de alta frequência (AAF) avalia os limiares audiométricos a partir de 9 kHz a 20 kHz, tornando-se uma prática importante no monitoramento de danos auditivos, causados por agentes otoagressores, como a exposição prolongada a ruído e/ou outros fatores associados a ototoxicidade, trauma acústico, como é o caso dos músicos (Freire, 2014; Mehrparvar et al., 2015).
Há muitas décadas a AAF passou a ser considerada na rotina clínica após a comprovação de que danos no ducto coclear poderiam ser detectados pelo procedimento antes mesmo de queixas e do acometimento nas frequências até 8kHz (Amaral & Momensohn Santos, 2022).
A AAF assumiu papel de destaque no diagnóstico audiológico, pois estas frequências são as primeiras a serem acometidas na maioria das doenças que afetam a orelha interna. (Carvallo et al., 2002).
Estudos têm demonstrado piora nos limiares auditivos de altas frequências em indivíduos com zumbido antes das alterações de limiares na faixa de frequência convencional, que abrange de 250Hz a 8kHz (Peng et al., 2007).
É importante que o audiologista tenha a consciência de que os resultados encontrados na avaliação audiológica dos profissionais da música, especialmente nos limiares da audiometria de alta frequência (até 20 kHz), são dados fundamentais que devem ser considerados como a base da equalização e mixagem dos retornos de som, sejam esses monitores in ears (fones de ouvido) ou de chão (caixas de som). Porém, infelizmente, ainda são poucos os audiologistas que atuam nessa área e, desse modo, são poucos os engenheiros de som que têm conhecimento de como utilizar esses limiares para otimizar a equalização e a mixagem do som (Freire, 2014).
Vale ressaltar que a avaliação audiológica é importante não somente para os músicos, mas também para os engenheiros e técnicos de som, que serão os responsáveis pela mixagem dos monitores e precisam ter consciência do quadro audiológico do artista para o qual estão realizando as mixagens, bem como de sua própria audição.
4.2. Emissões Otoacústicas
O teste de Emissões Otoacústicas (EOA) constitui como um dos mais promissores para o diagnóstico de problemas na audição; ele mede a atividade motora da cóclea, ou seja, o mecanismo de amplificação coclear. Tais emissões são provenientes de vibrações produzidas em vários locais da cóclea, retornando para a cadeia ossicular, membrana timpânica e meato acústico externo (MAE), a fim de serem captadas (Freire, 2014).
Os tipos de EOA mais utilizados na prática clínica são as evocadas: por estímulo transiente (EOAT) e as por produto de distorção (EOAPD). As EOAPD são mais sensíveis para avaliações ocupacionais em sujeitos expostos a NPS elevados, e as EOAT refletem mais as mudanças temporárias do limiar de audibilidade.
A presença das emissões otoacústicas indica integridade do mecanismo de recepção coclear pré-neural aos sons e a avaliação específica por frequência fornece informações sobre diferentes partes da cóclea (Kemp, 1978).
Alguns estudos relatam que adultos que apresentam audiometria convencional normal já demonstraram que a presença do zumbido geralmente se associa a alterações nas emissões otoacústicas (Thabet, 2009).
Isso reforça que, clinicamente, o zumbido pode aparecer antes da perda auditiva e que as emissões otoacústicas são capazes de detectar alterações cocleares mínimas em indivíduos com audiometria normal.
Esse dado é de extrema importância para o músico, já que estão expostos a NPS elevados, por longos períodos de tempo, seja no seu ambiente de estudo ou de trabalho, mas que nem sempre apresentam resultados de audiometria alterado num primeiro momento.
As EOA têm se demonstrado fortes aliadas na detecção precoce de perdas auditivas induzidas por ruído, juntamente com a audiometria de alta frequência. Com esses resultados, é possível tomar medidas preventivas e de reabilitação que contribuam para a preservação auditiva do profissional da música.
4.3. Medidas de Imitância Acústica: timpanometria e reflexos acústicos
As medidas de imitância acústica são um procedimento eletroacústico que tem como função principal analisar as respostas acústicas provenientes da orelha média (OM). A orelha média não é um transdutor que permite a passagem integral de todos os sons captados pelo pavilhão auricular e encaminhados via orelha externa. A OM irá oferecer um pouco de oposição à passagem do som. Essa oposição à passagem do som é chamada de Impedância acústica, enquanto a energia que realmente flui pelo sistema é chamada de admitância acústica. Sendo assim, as Medidas de Imitância Acústica possibilitam os procedimentos de timpanometria e de reflexos acústicos realizados por meio da impedância ou de admitância (Carvallo & Sanches, 2022).
A timpanometria é uma medida dinâmica e é um procedimento objetivo utilizado para avaliar a função da orelha média, ou seja, a mobilidade do sistema tímpano-ossicular (membrana timpânica e ossos de condução do som), criando variações da pressão do ar no canal auditivo (meato acústico externo).
Já os reflexos acústicos, também constituem um outro procedimento da imitância acústica e são de grande valor diagnóstico, pois complementam as informações obtidas pela timpanometria, diagnosticando o tipo de perda auditiva (perdas condutivas ou neurossensoriais). Clinicamente, o limiar de reflexo acústico é uma importante medida de integridade auditiva. Para que seja pesquisado, há a apresentação de um estímulo ativador de reflexos, geralmente com tom puro de 500 a 4000Hz. Com isso, irá acontecer a contração dos músculos da orelha média, desde que seja estimulada por um nível elevado de pressão sonora. Tal contração irá gerar uma diminuição transitória na admitância do sistema, que será registrada. Quanto maior a intensidade do estímulo em decibels, maior a magnitude do reflexo acústico.
As medidas de imitância acústica são medidas objetivas e que não dependem da resposta do indivíduo. Esse procedimento, aliado aos resultados da audiometria, constituem uma valiosa ferramenta na avaliação audiológica dos músicos, uma vez que é frequente a exposição a NPS elevados e é de suma importância avaliar o funcionamento da OM, pois esse é o caminho que irá conduzir todo o som recebido pela orelha externa até chegar na orelha interna. Se ocorrer uma interrupção dessa condução, o músico terá sua audição afetada, prejudicando o seu desempenho.
5. Tecnologias e estratégias para prevenir a Perda Auditiva Induzida por Música (PAIM)
“Prevenir é melhor que remediar”, famosa frase do filósofo Desiderius Erasmus, circa 1500. Mas, quanto custa não prevenir e não tratar uma perda auditiva?
De acordo com dados da OMS (World Health Organization, 2021)), anualmente 980 bilhões de dólares são perdidos, principalmente devido a perda de produtividade e isolamento social atribuídos à perda auditiva não tratada e não prevenida, incluindo também a PAIM.
Existe uma grande preocupação da comunidade científica mundial em prevenir a perda auditiva induzida por ruído (PAIR) e a PAIM, pois essas lesões são irreversíveis, interferindo diretamente na vida pessoal e profissional dos músicos.
Por outro lado, a preocupação dos músicos quando se pensa em prevenir perda auditiva é devido a ideia equivocada de que terão que parar de cantar, tocar, ou perderão a qualidade do som que produzem e ouvem, podendo também sofrer um prejuízo em suas carreiras profissionais.
Ambas as preocupações são pertinentes. Sendo assim, existe aqui um dilema e um desafio. Como prevenir a PAIM sem prejudicar o que se ouve originalmente?
5.1. Protetores Auditivos
Existem várias estratégias que permitem aos músicos proteger sua audição. Um meio simples e eficaz, mas impopular, de reduzir a exposição a NPS elevados é usar dispositivos de proteção auditiva, mais comumente chamados protetores auditivos
Os protetores auriculares reduzem a energia sonora que entra no meato acústico externo (MAE), comumente chamado de canal auditivo e, portanto, reduzem a energia transferida para as células ciliadas. Os protetores auditivos mais comuns são impopulares entre os músicos porque o som ouvido ao usá-los pode ser muito diferente do que é ouvido normalmente. Há mudanças no volume do som e, frequentemente, na distribuição de energia nas frequências sonoras.
Os cérebros dos músicos aprenderam a perceber sons com níveis de volume específicos e qualidades distintas, dependendo das características de ressonância do instrumento ou da voz. Alterações nessas referências normais não são bem-vindas, mesmo que possam salvar a audição.
Cada indivíduo possui uma ressonância natural única em suas orelhas externas, que pode ser entendida como a amplificação natural que as estruturas da orelha externa (pavilhão auricular, concha e meato acústico externo) promovem no som. Isso acontece devido ao processo de transmissão do som pela orelha externa, que provoca modificações no padrão acústico transmitido.
Quando se utiliza um protetor auditivo comum perde-se essa ressonância natural do canal auditivo numa região de frequências crucial para os músicos, o que garante o “brilho” da música. Considera-se esse o principal motivo pelos quais os músicos não se adaptam a esse tipo de protetor auditivo, que funciona como se fosse um tampão de ouvido, fazendo com o som fique abafado.
Portanto, um importante avanço tecnológico foi o desenvolvimento de protetores auditivos de alta fidelidade, chamados “protetores auditivos específicos para músicos”.
Esses protetores minimizam a distorção reduzindo a energia sonora igualmente em todas as frequências (Figura 4). No entanto, os músicos precisarão de um período de ajuste para que seus cérebros se adaptem à experiência auditiva modificada.
Esse tipo de protetor auditivo pode ser personalizado, manufaturado a partir de uma pré-moldagem do MAE realizada por um audiologista. Possuem diferentes filtros de atenuação. A escolha do filtro depende do nível sonoro, do tempo a que o músico está exposto e do tipo de instrumento que toca. Podem ser de 9dB, 15B ou de 25dB e podem ser trocados conforme a necessidade (Figura 5 e 6). No entanto, podem variar, de acordo com o fabricante.
Se a opção for ter o melhor custo-benefício, é indicado o protetor auditivo universal, com filtro linear fixo de 20 dB, se bem inserido (Figura 7). Atualmente, existem vários fabricantes pelo mundo que produzem esse tipo de protetor auditivo, com diferentes atenuações e diferentes tamanhos, de acordo com o canal auditivo do indivíduo.
Diferentes instrumentos musicais ou diferentes parâmetros de desempenho (por exemplo, prática vs. desempenho, localização do músico em um concerto, duração da exposição da música, instrumento que se toca) podem exigir diferentes tipos de protetores auditivos de músico. É aconselhável que os músicos trabalhem em estreita colaboração com um audiologista especializado em dispositivos de proteção auditiva, para garantir que a proteção adequada seja fornecida às necessidades do indivíduo.
Muitos produtos são comercializados como protetores específicos de músicos ou de alta fidelidade, mas diferem consideravelmente na quantidade de redução de som que fornecem em cada frequência e na uniformidade da resposta de frequência (para minimizar a distorção).
Em um estudo foi avaliada a audição e o uso de protetores de 24 músicos de bandas de pop rock por meio dos seguintes procedimentos: avaliação audiológica, teste de emissões otoacústicas (EOAT e EOAPD), anamnese e um questionário sobre a satisfação após o uso do protetor auditivo. Dentre todos os resultados em relação à satisfação no uso de protetor, 75% dos músicos atribuíram nota maior do que sete, indicando uma favorável aceitação de tal dispositivo para a prevenção de perdas auditivas. O autor concluiu que a prevalência da perda auditiva e as ausências do teste de EOA foram acima da expectativa do estudo. Sendo assim, seria necessária a implementação de um programa de prevenção de perdas auditivas em músicos (Santoni & Fiorini, 2010).
Outras abordagens de proteção incluem o registro de exposições sonoras regulares e controlá-las estrategicamente para minimizar os riscos de perda auditiva e zumbido para o músico. Por exemplo, pode ser necessário que os músicos aumentem seu tempo de prática (individualmente ou em grupo) quando estão próximos da data de uma apresentação. Isso aumenta a exposição sonora à audição e o risco de danos. Neste caso, seria prudente usar protetores auditivos durante a prática e reduzir outros tipos de exposições sonoras por lazer, como frequentar clubes, concertos ou ouvir fones de ouvido, em níveis de intensidade abusiva. Sendo assim, o músico pode e deve proteger sua audição, controlando suas exposições sonoras cumulativas durante específicos períodos de tempo.
Além dos protetores auditivos, existem ainda outras opções aliadas a preservação auditiva. Entre elas, pode-se citar os Monitores in Ears (IEMs).
5.2. Monitores in-ears individuais personalizados ou universais
É sabido que a prática dos NPS em um palco musical, seja ele amador ou profissional, pode provocar a PAIM, que já foi descrita anteriormente. Muitas bandas ainda optam em utilizar os “retornos de chão”, o que faz aumentar mais ainda o NPS do palco.
Originalmente usado apenas por músicos profissionais e famosos (em função dos custos envolvidos), os IEMs já existem há muitas décadas.
Atualmente já é de fácil acesso a todos os profissionais da música. Os benefícios são muitos: melhor qualidade sonora, melhor imagem estéreo, menor esforço vocal, portabilidade, aumento de ganho antes do feedback, menor volume no palco e, consequentemente, maior preservação auditiva.
Os (IEMs) são fones de ouvido utilizados pelos músicos para ter o retorno e ouvir com clareza e definição a equalização e mixagem do som num volume desejável e seguro. Possuem drivers, que são mini alto-falantes, como seu principal componente, e foram desenvolvidos para serem utilizados nos ouvidos dos músicos, funcionando como um retorno da voz e dos instrumentos.
Possuem fios e podem ser conectados diretamente na mesa de som, principalmente no caso de bateristas, ou num transmissor (body pack) que estabelecerá a conexão sem fio com a mesa de som, via UHF ou via Frequência Modulada (FM) (Figura 8).
O body pack fica preso em alguma parte do corpo do artista, seja na cintura, no caso dos homens, ou vestidos, no caso das mulheres.
Existem dois tipos de monitores individuais: os universais e os personalizados.
Os universais são cápsulas não personalizadas e que são utilizadas com espumas ou acopladores de silicone que possuem três tamanhos diferentes e se adaptam a todos os tamanhos de conduto auditivo. Sua maior vantagem é que o mesmo monitor pode ser utilizado por vários músicos, desde que as espumas sejam substituídas, por questões de higiene e para prevenir infecções (Figura 9).
Já os monitores personalizados são os preferidos pelos músicos. São manufaturados especialmente para cada músico. O audiologista realiza uma pré-moldagem com massa de silicone e envia para o laboratório que irá manufaturar a concha dos monitores, de acordo com a anatomia do meato acústico externo (Figura 10).
Essa concha customizada irá acomodar os drivers, que podem variar de número, tamanho, impedância e sensibilidade, o que faz definir as características eletroacústicas de cada monitor.
A principal finalidade do desenvolvimento dos IEMs é a substituição das caixas de som de retorno que ficam nos palcos.
Seus principais benefícios são: proteção auditiva, qualidade de som, equalizações e mixagens personalizadas, controle individual e preservação vocal, no caso dos cantores.
Existem diferentes marcas e modelos no mercado mundial. No entanto, é considerado um produto de boa qualidade quando consegue-se proporcionar um isolamento acústico mínimo de 25 dB. Esse isolamento faz com que o músico não esteja exposto a NPS externos intensos e ouça somente o que está sendo reproduzido nos fones.
O uso dos IEMs deve ser binaural, ou seja, em ambas as orelhas. Quando o indivíduo utiliza o fone nas duas orelhas, acontece o efeito de somação binaural, o qual se tem 6 dB de ganho pelo cérebro, naturalmente. Isso faz com que não haja necessidade de aumento do volume do fone, ajudando assim na preservação auditiva.
Embora com grandes benefícios do uso binaural dos IEMs, ainda existe uma resistência por parte de alguns músicos, pois julgam que o uso do monitor em apenas uma orelha é melhor, pois desejam ouvir a ambiência do palco e da plateia.
No entanto, essa é uma ideia equivocada, pois o uso unilateral é um grande risco para a audição. Com o uso dessa maneira existe uma tendência a aumentar o volume do body-pack para se obter uma audibilidade melhor e compensar o ruído externo que é percebido pela orelha oposta.
Quando se aumenta o volume numa cavidade menor, como num canal auditivo, o nível de pressão sonora (NPS) emitido é muito maior do que num palco aberto, por exemplo. Então, o risco para desenvolver uma PAIM é duplicado, pois a orelha com o IEMs, sofrerá devido ao NPS excessivo e a orelha aberta sofrerá com a exposição ao NPS do volume do palco com todos os instrumentos tocando juntos.
Além disso, vale a pena ressaltar que o uso do fone em ambas as orelhas, poderá permitir uma mixagem estéreo, oferecendo muito mais condições de ouvir todos os instrumentos em seus devidos lugares, com uma sensação de audição 3D (tridimensional), o que não acontece no uso monoaural.
Uma grande queixa dos músicos e a justificativa para usarem fones em apenas uma orelha é a falta de ambiência, que faz com que não consigam sentir a emoção e a reação do público, uma vez que estão ouvindo apenas pelos IEMs o som da voz e dos instrumentos. A solução técnica para essa questão é fazer uso de microfones de ambiência no palco. Esses microfones poderão ser posicionados de maneira que façam a captação do som emitido pelo público, que será enviado para os fones da mesma maneira que os sons dos instrumentos e da voz dos músicos, via mesa de som, pelo engenheiro de som.
A opção pelo uso de microfones de ambiência, monitores in ears de modo binaural, assim como o volume dos IMEs deve ser feita em comum acordo com a equipe técnica do artista, não sendo essa uma decisão somente do audiologista. Esse é um trabalho interdisciplinar, no qual a área do Áudio (Engenharia de Audio) faz uma intersecção com a Audio, (Audiologia), garantindo assim uma segurança com qualidade do trabalho do músico.
Todas as estratégias de proteção auditiva para os músicos devem ser direcionadas e adaptadas às necessidades individuais de cada músico e estilo musical, seja com o uso de protetores auditivos de alta fidelidade ou uso de monitores in ears.
Segundo recomendações do Programa Dangerous Decibels DD (que será detalhado a seguir), existem três maneiras para se prevenir uma perda auditiva: abaixar o volume, afastar-se das fontes sonoras ruidosas ou utilizar protetores auditivos. Dessa maneira, todos poderão tocar um instrumento, cantar, apreciar um show ou ouvir música de maneira prazerosa e com uma audição segura.
6. Programa de Preservação Auditiva para Músicos
Existem medidas preventivas que são exigidas por lei e que protegem os funcionários de indústrias que trabalham em ambientes insalubres, expostos a níveis de pressão sonora elevados, a não desenvolverem a P.A.I.R. O Programa de Conservação Auditiva (PCA) aplicado aos trabalhadores não deve ser o mesmo para os músicos, uma vez que as realidades diferem em muitos aspectos, como jornada e ambiente de trabalho, espectro e intensidade do som.
Nos Estados Unidos da América, Fligor e Wartinger (2011) desenvolveram um Programa de Prevenção de Perda Auditiva (HLPP) que é composto pelos seguintes itens:
Pesquisa sobre a exposição ao Nível Sonoro
Uso de dosímetros e medidores de pressão sonora para avaliar o nível sonoro X tempo de exposição.
Controles de engenharia e administrativos
Remoção física dos músicos do palco
Utilizar períodos de “repouso auditivo”
Redução dos níveis sonoros: barreiras na bateria; redução de amplificadores no palco
Uso de Monitores in ears pelos músicos
Monitoramento Audiométrico
Realizar audiometria anualmente (como nas indústrias)
Imitanciometria
EOA - DPOAE
Avaliação do Zumbido, Hiperacusia
Educação e Motivação
Orientação e Aconselhamento: um dos itens mais importantes
Risco de Perda Auditiva X Lesão das células auditivas
Equipamentos de Proteção Auditiva
Protetores comuns de espuma sem filtros
Protetores personalizados com filtros flat - 9 dB, 15 dB ou 25 dB
Protetores com filtro flat não personalizados ER20
Monitores in ears
Para aplicar esse programa é necessário é necessário que os profissionais da música tenham consciência da importância da prevenção da perda auditiva para os profissionais da música. Na realidade de países em desenvolvimento, como o Brasil, nem sempre isso é possível, sendo necessário, antes de tudo, uma mudança cultural. Para tornar factível esse tipo de prevenção e baseada na prática clínica do atendimento personalizado a músicos brasileiros e técnicos de som, assim como na realidade do show business no país,Freire, 2014) sugere que um Programa de Preservação Auditiva para Músicos (PPAM) seja composto pelos seguintes itens:
Monitoração da exposição ao Nível de Pressão Sonora (NPS)
Reposicionamento físico de músicos dentro da banda - quando necessário, dependendo do risco auditivo dos músicos.
Avaliação Audiológica: audiometria de 250 Hz a 16 kHz e Emissões Otoacústicas
Avaliação do Zumbido e Hiperacusia (quando presentes)
Indicação e adaptação de protetores auditivos e monitores personalizados ou universais
Triagem do Processamento Auditivo Central (Padrões Temporais e Integração Binaural)
Treinamento Auditivo Musical (www.treinamentoauditivomusical.com.br)
Mudança Cultural: orientação, conscientização e mudanças de hábitos
Outro programa mundialmente conhecido é o Programa Dangerous Decibels. Dangerous Decibels® (www.dangerousdecibels.org) é um programa de prevenção de perda auditiva e zumbido globalmente reconhecido e baseado em evidências, com base em construções da ciência da comunicação em saúde. O programa foi iniciado em 1999 por especialistas em saúde auditiva, zumbido, saúde pública, extensão educacional e prevenção de perda auditiva com a intenção de mudar comportamentos de escuta (Martin et al., 2006; Martin et al., 2013).
O programa é altamente interativo e prático. As principais mensagens educacionais são:
Quais são as fontes de sons perigosos?
Quais são as consequências de estar perto de sons perigosos?
Como me protejo de sons perigosos?
O programa inicialmente visava crianças em idade escolar primária, uma vez que pesquisas indicavam que crianças nessa faixa etária apresentavam perda auditiva atribuída à exposição ao som.
Posteriormente, o programa foi adaptado para outros grupos, incluindo alunos do ensino médio, trabalhadores de fábricas, militares, atiradores recreativos, instrutores de ginástica em grupo e músicos. O programa foi realizado em 19 países. Doze estudos em 6 países (Griest et al., 2007; Griest, 2008; Becker et al., 2012; Martin, 2012; Martin et al., 2013; Knobel & Lima, 2014; Welch et al., 2016; Reddy et al., 2017; Deng, 2019; Deveraj, 2021; Gomes et al., 2023) demonstraram que o Programa Dangerous Decibels é eficaz para melhorar o conhecimento, atitudes e comportamentos em relação à exposição a sons perigosos e ao uso adequado de estratégias de proteção auditiva.
As três estratégias apresentadas pelo programa são (Figura 11, 12 e 13):
Sempre que possível, reduza o volume da música para um nível seguro.
Se não for possível baixar o volume, afaste-se do som ou limite o tempo na presença de um som perigoso. Cada vez que você dobra a distância de uma fonte de som, a pressão do som diminui pela metade (ou diminui em 6 dB). Intervalos de audição permitem que o ouvido se recupere da tensão da superestimulação.
3) Se não for possível afastar-se do som ou limitar o tempo de exposição, use protetores auditivos (tampões ou abafadores). Isso reduzirá a energia sonora que entra no ouvido e prolongará o tempo de escuta segura.
Os workshops de treinamento para educadores da Dangerous Decibels treinam, equipam e certificam indivíduos para ministrar o programa de maneira eficaz. São realizados internacionalmente e on-line. Os participantes aprendem os conceitos básicos da física do som, anatomia e fisiologia da audição, fisiopatologia da perda auditiva e zumbido, habilidades do apresentador, ciência da comunicação em saúde e como ministrar o programa Dangerous Decibels.
O sucesso de qualquer programa de prevenção auditiva depende não somente da conscientização sobre os danos auditivos, mas também de uma mudança de hábitos auditivos. Existem alguns fatores que levam um indivíduo a mudanças de hábitos. Por um lado, tem-se um aumento não só da conscientização, como também da defesa sobre os riscos auditivos. E, por outro lado, são necessárias normas e padronizações.
E isso, muitas vezes, é o aspecto mais desafiador da segurança auditiva do músico.
Baseados nessa problemática, o grupo Make Listening Safe e o Fórum Mundial da Audição, ambos iniciativas da OMS, desenvolveram um manual de como implementar ações que garantam uma audição segura em situações que envolvam música (World Health Organization & International Telecommunication Union, 2022).
Conclusão
A perda auditiva e o zumbido podem ser o resultado direto da exposição excessiva a altos níveis de música. Essas lesões podem ser devastadoras para os músicos e têm potencial para resultar no encerramento da carreira.
No entanto, ambas as condições são facilmente evitáveis por meio da aplicação de estratégias simples de proteção auditiva. Os músicos devem educar-se sobre os perigos da exposição ao som de todos os tipos e tomar medidas para proteger seus ouvidos a fim de proteger e prolongar suas habilidades de desempenho. Para continuar sendo músico, é necessário proteger a audição.
Além dos próprios músicos, outros profissionais também devem estar atentos ao tema da PAIM, como os ergonomistas, especialistas em audição e outros profissionais ligados à saúde ocupacional. Além de compreender suas causas e formas de prevenção, eles devem também investigar características da atividade dos músicos relevantes para a prevenção, por exemplo os tipos de instrumentos, os tempos de trabalho, a localização no palco, os tipos de bandas ou orquestras. A atuação interdisciplinar irá resultar em melhores cuidados da saúde geral do músico, com uma atenção individualizada, prolongando assim sua carreira musical.
Considerações finais:
Após a redação desse artigo, faz-se necessário relatar suas limitações. São elas:
1. Esta não é uma revisão exaustiva da literatura.
2. Existem muitos outros exemplos dos efeitos da perda auditiva e do zumbido em músicos que não estão incluídos neste artigo.
Tratando-se da relevância do tema, os autores identificam linhas de pesquisa futuras voltadas: à quantificação da exposição sonora dos músicos durante a prática, a performance e durante atividades de vida não relacionadas à música para descrever a exposição cumulativa ao longo da vida e os riscos de perda auditiva e zumbido; desenvolvimento e avaliação da eficácia de programas educativos para a prevenção da perda auditiva adequados a diferentes populações de músicos dedicadas a gêneros específicos - rock, música clássica, jazz - a estudantes de música e trabalhadores na, produção musical e engenharia.