1. Introdução
Este estudo se alinha àqueles interessados pelas trocas e aprendizagens recíprocas entre novatos e trabalhadores experientes, ou experts, em situação de trabalho (Delgoulet, 2015), empreendendo análises dos diálogos e tensões da atividade para o desenvolvimento dos coletivos profissionais e dos dispositivos de formação. Neste sentido, exploramos aqui uma experiência de pesquisa e intervenção centrada no Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde (PET-Saúde), dispositivo voltado à formação em saúde pública no Brasil.
Partindo de trabalhos anteriores (Rosa et al., 2019) nos quais consideramos que as experiências do PET-Saúde fornecem situações privilegiadas para o estudo da formação enquanto atividade, defendemos uma conceção da formação como via de entrada no ofício (Clot, 2007). Com base nisso, objetivamos aqui explorar a atividade de formação, e seu desenvolvimento, à luz de uma experiência de análise coletiva empreendida com um grupo de estudantes que, durante a pesquisa, eram bolsistas de dois projetos vinculados ao PET-Saúde em uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) no estado do Rio de Janeiro. Este contexto nos desperta o interesse em investigar o modo como os novatos são introduzidos e como se apropriam dos (acordos) subentendidos e das controvérsias compartilhadas pelos trabalhadores experientes, movimento por meio do qual se dá o desenvolvimento de recursos para agir. Assim, reafirmamos o imprescindível encontro entre saberes mais sistematizados ou maduros e saberes mais desorganizados ou espontâneos (Granovsky, 2018) construídos nas situações reais de trabalho em saúde.
Tal encontro alimenta a análise coletiva da atividade operada por métodos dialógicos, proporcionando um enriquecimento da experiência profissional, como aponta nossa experiência com o método de instruções ao sósia (Clot, 2010a; Oddone & Briante, 2023) no PET-Saúde. Acreditamos poder, assim, contribuir, não só com os debates no campo da formação profissional, mas em especial com o campo da Saúde do Trabalhador (ST), já que o desenvolvimento de recursos para agir no ofício é um caminho profícuo para se operar saúde (Clot, 2013a).
2. Trabalho, atividade e ofício: distinções conceituais preliminares
Recorrendo aos dicionários de língua portuguesa é frequente encontrarmos o verbete ‘trabalho’ como sinônimo de atividade profissional, emprego, ocupação e ofício 1. Entretanto, apesar de por vezes o encontrarmos associado ao exercício de uma profissão - o que nos remete a uma educação formal, “profissionalizante” -, ou a um vínculo empregatício submetido a um aparato legal, ou ainda associado a um cargo ou posto de trabalho ocupado por um trabalhador - uma ocupação que não necessariamente se relaciona a uma profissão de formação-, nos estudos sobre o trabalho, este objeto não tem sido identificado exclusivamente a nenhum desses termos.
No Brasil, o campo da Saúde do Trabalhador (Osorio-da-Silva & Conceição, 2023) parte de uma conceção marxista de trabalho, na qual ele é entendido enquanto um processo em que o homem põe em movimento as forças naturais a fim de apropriar-se da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida (Marx, 2015). Este processo é sempre historicamente situado, o que nos leva a compreender a determinação social da relação saúde-trabalho (Laurell, 1982), tendo o processo de trabalho como categoria central de análise.
Não é só neste campo de estudos que a conceção marxista de trabalho tem expressão. Sua presença pode ser notada nas perspetivas clínicas do trabalho, que, tendo emergido em suas diferentes correntes em laboratórios de pesquisa franceses, também possuem uma presença relevante no Brasil (Lacomblez, 2020).
Interessadas mais especificamente nas relações entre subjetividade e trabalho, tais correntes, como sublinha Clot, 2010b) compõem, em maior ou menor grau, uma psicologia do trabalho francesa interessada na análise do trabalho enquanto atividade. No entanto, é importante ressaltar, que existem especificidades no modo como cada uma concebe o par conceitual atividade/subjetividade. A clínica da atividade, perspetiva da qual nos apropriamos em uma composição com a ST e a análise institucional francesa (Osorio-da-Silva, 2016; (Osorio-da-Silva & Conceição, 2023), toma este par conceitual, não em uma oposição ou dicotomia, mas em uma relação de indissociabilidade. A subjetividade é conceituada como uma atividade sobre a atividade, por exemplo, uma atividade pensamento sobre uma atividade de trabalho. Em outras palavras, a subjetividade é entendida como uma relação entre atividades (Clot, 2010b).
Já no que diz respeito à conceção da atividade, ao apontar uma divergência entre o real da atividade e a atividade realizada - ou seja, aquilo que podemos observar quando o trabalhador executa a tarefa -, a clínica da atividade traz a criação, e por consequência a transformação, como algo que lhe é intrínseco e que, por se tratar de algo que não pode ser diretamente observável, requer métodos indiretos no seu estudo e intervenção:
“(...) a atividade é, na realização efetiva da tarefa - a seu favor, assim como, às vezes, contra ela -, produção de um meio de objetos materiais ou simbólicos, de relações humanas ou, mais exatamente, recriação de um meio de vida. A atividade prática de um sujeito não é jamais somente um efeito das condições externas, tampouco é a resposta a essas condições; por sua vez, a atividade psíquica não é mais também a reprodução interna dessas condições. A atividade - prática e psíquica - é sempre a sede de investimentos vitais: ela transforma os objetos do mundo em meio de viver ou fracassa ao fazê-lo. Em vez de ser determinada mecanicamente por seu contexto, a atividade dos sujeitos no trabalho implica a metamorfose desse contexto. Ela livra - correndo sempre o risco de fracassar nessa tentativa - o sujeito das dependências da situação concreta e subordina a si o contexto em questão” (Clot, 2010a, pp. 7-8).
Autores como Bakhtin, Vigotski e Spinoza são fundamentais para a construção de uma versão conflitual, triádica e recriadora da atividade, que vem sendo elaborada, ao longo dos últimos trinta anos, pela equipe francesa de clínica da atividade (Clot, 2016a). À maneira do enunciado de Bakhtin, o primeiro conflito da atividade caracteriza-a como sempre endereçada, não somente ao seu objeto, mas às atividades de outros sobre este mesmo objeto. Isso porque este é sempre já ocupado, “pré-ocupado”, pela atividade dos outros, nele incorporadas, e, inversamente, as trocas com os outros nunca ocorrem sem objeto, seja ele físico ou simbólico. Assim, o objeto da atividade é um traço de união, sempre controverso, entre os seres humanos, produzindo uma conflituosidade por meio da colisão entre atividades que buscam ocupá-lo (Clot, 2010a, Clot, 2016a).
Sob o impacto do primeiro conflito triádico - sujeito, objeto e outros -, situado no presente, a atividade é afetada, ou seja, flutua em sua vitalidade, situando o sujeito também em outros tempos. É a partir dos afetos, em uma conceção spinozista, que o segundo conflito da atividade é pensado, dando história ao desenvolvimento (Clot, 2016a). Isso porque o vivo requisita o já vivido, nos esquemas para agir construídos com os outros ao longo do tempo. Para Clot (2015) é a atividade viva em curso com os outros que mobiliza ou imobiliza a atividade já vivida, afetando-a, fazendo-a “mudar de temperatura”. O afeto vital, com todas as suas intermitências, será então compreendido como ativo quando se consegue fazer do já vivido um meio para viver o novo, regenerando a atividade, ampliando o poder de agir. Na contramão, o afeto vital é passivo quando a atividade viva se torna um meio de viver a mesma coisa, uma defesa de hábitos e esquemas já bem estabelecidos.
O segundo conflito da atividade situa-se, assim, nesse curso potencial do conhecido ao desconhecido, na flutuação da vitalidade da atividade afetada, produzindo uma temporalidade inédita e um destino imprevisível (Clot, 2015).
Dando estes contornos ao conceito de atividade, a clínica da atividade explora a conceção de psicologia de Vigotski, entendida como um instrumento auxiliar do desenvolvimento impedido, uma prática clínica para restaurar a capacidade dos sujeitos de retomar o curso do seu desenvolvimento, ou ainda, uma metodologia que busca fazer com que o vivido seja continuamente apropriado como meio de agir. Tal clínica faz do desenvolvimento da atividade de trabalho seu objeto e método, não para saber o que ele é, mas para experimentar aí um devir (Clot, 2010a, 2015).
Neste ponto podemos passar à noção de ofício, que também assume contornos específicos na clínica da atividade, nos permitindo vislumbrar melhor a dinâmica deste devir potencial (Clot, 2013a). Podemos dizer que o ofício é pensado na expectativa de escapar de uma conceção sedentária, universalizante e unívoca de trabalho, comportando tanto seus aspetos instituídos - suas prescrições, acordos e valores já bem estabilizados, técnicas etc. - quanto instituintes - toda criação e renovação possível dessas técnicas, das normas, dos saberes, dos fazeres, das relações, das organizações, das estruturas de hierarquia etc. Sem dicotomia e nem gerenciamento dessas forças em conflito, é justamente pela motricidade das trocas entre os trabalhadores em atividade que o ofício se renova e conserva (Clot, 2016a), enriquecendo-se e operando saúde.
Desse modo, o ofício só sobrevive, como aponta Clot, em seu devir: “A única maneira de defender seu ofício é também atacá-lo coletivamente para forçar seus limites face ao real da atividade” (Clot, 2013a, p. 7). O que se destaca nessa noção, não é só o fato dela ser uma perspetiva processual do trabalho, mas de assumir o conflito em sua positividade.
Assim, atuando como uma espécie de antídoto para uma visão binária dos conflitos, o ofício torna-se um conceito útil para as pesquisas que, ao invés das dicotomias, identidades e representações, buscam operar na diferença, na multiplicidade, entendendo que as relações de dominação se dão num diagrama complexo de forças (Rauter & Rebello, 2017).
Das diversas formas que o coletivo atravessa o ofício, sem dúvida a que mais chama atenção é esta, que desenvolve-o, ou ataca-o para defendê-lo. Escapando de uma gestão psicológica amenizadora dos efeitos deletérios da organização do trabalho, tal coletivo não nega os conflitos; tendo, com isso, a oportunidade de cuidar do trabalho, discutindo seus critérios de qualidade. Sempre parciais, estas discussões sobre a qualidade do trabalho devem ser refeitas e retomadas a partir dos desafios que se encontram no desenrolar da atividade real. Neste sentido, o coletivo, segundo Clot, 2013a), é, de algum modo, um limite a desenvolver. Utilizando a perspetiva vygotskiana, o autor enfatiza que o coletivo está no indivíduo do mesmo modo que o inverso também se verifica, apontando o desenvolvimento possível de suas relações:
“Cada vez que “encontramos” o coletivo, é porque ele foi recriado para além dele mesmo pela atividade própria de cada um (Tosquelles, 2009). (...) o coletivo e mesmo o coletivo incorporado não recobre o todo do ofício. Se o ofício não se sustenta ele tampouco se esconde nas “comunidades de práticas” locais ou no corpo de cada um. O ofício é também o desenrolar de uma carreira com uma “aposentadoria” antecipável, uma circulação de “funções”, em certos casos um “estatuto” e em outros um “percurso” (...). Tudo que se gerencia nos escritórios da Gestão de Recursos Humanos da empresa, mas também além disso, é um mercado de trabalho no qual se deslocam grupos profissionais, e de modo diferente para mulheres e homens” (Clot, 2013a, pp. 9-10).
Desse modo, o ofício também não se confunde com uma profissão, um emprego, ou mesmo com a atividade. Ele seria uma discordância criativa/destrutiva entre quatro instâncias em conflito: o impessoal, o interpessoal, o transpessoal e o pessoal (Clot, 2010a, (Clot, 2013a). Para entender tais instâncias, entre as quais o ofício vive em migração, a situação da entrada de um novato no ofício é paradigmática e é por meio dela que podemos acessar a ideia de uma atividade de formação.
Inicialmente, segundo Clot, 2010a), o novato conta quase que exclusivamente com as prescrições -em alguma medida passadas pelo crivo do pessoal -, entendidas como a instância impessoal do ofício, para dar conta do trabalho. Apesar de elas serem a principal fonte de ação do novato, é bom lembrar que elas também constituem importante recurso para os trabalhadores experientes. Isso porque a expertise no trabalho tem a ver não só com certo domínio das prescrições, mas também com seu uso reinventado frente aos desafios do real, ou seja, sua potencial renovação. Nesse movimento, desenvolve-se o ofício naquilo que ele tem de mais impessoal, de mais instituído.
Também cabe lembrar que não é raro verificar o impedimento desse processo, ou o enrijecimento do impessoal. Nestes casos, inacessível às iniciativas daqueles que trabalham, o desenvolvimento do ofício, e a saúde dos trabalhadores, se veem ameaçados, chocando-se com o monopólio das hierarquias na tomada de decisões sobre os critérios de qualidade do trabalho (Clot, 2013a).
O novato, então, não tarda em encontrar-se em um conflito clássico no campo dos estudos ergonômicos: a discrepância entre o prescrito e o real. Assim, quando o impessoal não dá conta, a imitação dos pares, em suas maneiras pessoais de lidar com este conflito, é uma tentativa de superá-lo, mesmo que também provisória. Neste ponto, encontramos a instância interpessoal, levantando outras contradições para o novato, como por exemplo as convergências e divergências das maneiras em que cada um de seus pares executa o trabalho. A própria ação de imitação não é em nada simples. Ela também não é uma ação solitária, como aponta Granovsky, 2018), mediante estrita “emulação” não encontramos condições favoráveis para o desenvolvimento, mas ao contrário quando há assistência e interação com os mais experientes. Já Clot, 2010a), usando Wallon, nos traz uma noção de imitação em vários tempos:
“A imitação é, em primeiro lugar, uma ação do sujeito sobre si mesmo. Ele se faz instrumento do que ele vê realizar-se perto dele e parece eclipsar-se diante do modelo que age nele. Mas, longe de somente aplicar esse modelo, ele o coloca, em seguida, a serviço da sua própria ação que já não está dirigida para si, mas para o mundo. E assim, a imitação incorporada a essa ação altera seu estatuto. Tendo começado por ser objeto da ação do sujeito sobre si mesmo, eis que o modelo se converte em meio de sua ação sobre o mundo. O gesto, modelo imitado, separa-se, então, da pessoa imitada. Ele se torna o gesto do imitador que, por retroação - como observa, de forma mais geral, Wallon -, toma assim consciência de si próprio através do outro: “Ao pretender assemelhar-se ao modelo é que ele se opõe à pessoa e deve efetivamente acabar por se distinguir, também, do modelo” (1970, p. 157). Esse é o terceiro tempo da imitação que se apresenta, finalmente, como um desenvolvimento possível do gesto modelo, se tiver a autorização da pessoa imitada, ou seja, como um movimento que vai, nesta eventualidade, de dentro para fora. Aliás, se esse desenvolvimento da imitação esbarra no imobilismo do imitado, ele pode ficar “em suspenso” (Clot, 2010a, p. 159).
É, então, no escopo de um desenvolvimento da imitação, que é também um desenvolvimento do gesto, que podemos falar em uma “transmissão” do ofício. Não como uma simples reprodução, mas como apropriação (Clot, 2006), que, ao imitar, recria o gesto no curso da ação, apontando para uma atividade própria. Reprodução e criação se veem, assim, indissociavelmente ligados na atividade cotidiana de trabalho.
Para Vigotski, a base da criação se encontra na capacidade de combinação de elementos já conhecidos, dependendo diretamente de uma atividade de reprodução na qual, quanto mais rica e diversa for as experiências anteriores, mais fértil será a atividade de criação. Desse modo, se por um lado a criação se produz pela reprodução, esta torna-se mais complexa com a criação, já que aquela encontra suas bases na plasticidade, ou seja, na ideia de uma conservação que mantém as marcas das suas alterações (Vigotski, 2018) 2. Nestes termos, essa atividade reprodutiva/criativa do/no trabalho depende de um cuidado com a história, da conservação de um patrimônio de maneiras de fazer o trabalho que seja apenas relativamente estável. Aqui encontramos a instância transpessoal do ofício 3, com sua paleta de gestos genéricos acumulados ao longo do tempo.
Ao observar a atividade de seus pares mais experientes, o novato percebe não só os modos como cada um se apropria do gesto, ou seja, as diferenças, mas também aquilo que há de comum. Nesse jogo de contrastes e semelhanças, “o gesto se desliga de cada um e, por fim, deixa de pertencer a alguém em particular. Sem proprietário exclusivo, ei-lo disponível. Posso, então, dispor dele, apropriar-me e tomar posse dele” (Clot, 2010a, p. 160). No entanto, é apenas quando se consegue usá-lo com liberdade e contribuir para o gesto dos outros, que encontramos com o ofício de forma pessoal, entendido como a singularização, ou ainda o devir possível, de sua forma transpessoal.
A atividade de formação é entendida, então, como uma via de entrada no ofício, em que a experiência profissional, ou a expertise, não é adquirida pelo novato, mas desenvolvida a partir de sua apropriação e uso no real da atividade. Desse modo, ela implica a criação de modos de fazer/viver no ofício.
A atividade de trabalho é também, sempre, uma atividade de formação. Em outras palavras, para que o ofício se mantenha vivo, é preciso que a atividade de trabalho se desenvolva também como uma atividade de formação, em um refazer da experiência profissional que tem como condição a sua recriação frente aos desafios que surgem no encontro com o real.
3. Formação e a atuação profissional em saúde no Brasil
No Brasil, a formação profissional para o cuidado em saúde vem se constituindo em um privilegiado objeto de debates e políticas públicas, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980, com as lutas e conquistas da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), responsável pela maneira como hoje pensamos, estruturamos, atuamos e formamos nos serviços e para os serviços de atenção à saúde. De forma breve, podemos dizer que a RSB é um complexo processo no qual foi se construindo uma nova perspetiva de cuidado e atenção à saúde, nos levando à compreensão de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, como consta na Constituição Brasileira de 1988. Assim, teve como alguns de seus importantes desafios produzir um rompimento com o modelo de atenção à saúde excludente e hospitalocêntrico que existia neste período 4 e com uma conceção de saúde segundo o modelo flexneriano, ou seja, restrita ao diagnóstico das doenças, realizado por especialistas academicamente certificados (Brasil, 2006).
O cuidado, enquanto tecnologia de assistência, passou a ser concebido, então, enquanto uma prática que não integra um conjunto de normas, mas se realiza por meio de ações locais atentas às necessidades de cada caso, tendo em vista a saúde integral, ou seja, a não fragmentação do corpo que é o objeto do cuidado. Neste sentido, a formação para o cuidado em saúde não pode ser orientada por um modelo de ensino tradicional entendido prioritariamente como transmissão de informações ou protocolos biomédicos, visando o domínio técnico-científico da profissão (Gigante & Campos, 2016).
Se o cuidado não pode ser visto unicamente como um conjunto de normas é porque, para nós, ele se produz, neste contexto, enquanto uma atividade de trabalho, envolvendo as quatro instâncias dos ofícios da saúde - o impessoal com suas normas prescritas, das quais não se pode prescindir; o interpessoal, fruto das relações nas equipes de saúde; o pessoal, caracterizando o modo singular em que cada trabalhador se apropria das normas; e o transpessoal, constituindo um trabalho coletivo de reorganização das tarefas e compondo um patrimônio histórico não formalizado de recursos para agir - as quais, quando não encontram impedimentos em sua alternância funcional, podem operar saúde também naqueles que exercem tal atividade de trabalho (Clot, 2013a).
Desse modo, o cuidado é uma prática que se dá em relação e idealmente em via de mão dupla, implicando uma atividade dirigida que inclui o profissional em ação, o usuário do sistema de saúde que é “objeto” dessa ação e as outras atividades que incidem sobre esse usuário. Isso quer dizer que o trabalho daqueles que cuidam só é exercido a partir da mobilização de uma rede de relações e não em uma ação unidirecional.
Se retomarmos as contribuições de Tosquelles à clínica da atividade (Clot, 2013b), podemos afirmar que cuidar implica chamar à atividade, convocar todos os sujeitos envolvidos à atividade. Neste contexto, a formação significa muito mais do que a transmissão de informações, normas ou protocolos técnicos. Ela significa, igualmente, chamar à atividade. É claro que toda prática de ensino implica uma atividade -de pensamento, por exemplo -, mas o que propomos é desenvolvê-la buscando transmitir, não só conteúdos, mas experiências, para que elas sejam apropriadas e transformadas em recursos para realização de novas experiências. Em outras palavras podemos dizer que a formação, quando pensada enquanto uma entrada no ofício, é o desenvolvimento da experiência profissional no/com o coletivo. Como Oddone, Re e Briante (2023), nos interessamos pela formalização e transmissão da experiência de trabalho, de modo que a formação para o cuidado implique em um cuidado com a formação.
Em suma, apostamos, não só com a clínica da atividade, mas também com importantes políticas públicas voltadas à formação para o cuidado em saúde como a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2009), que a formação não pode prescindir do contato com as situações reais de trabalho, com o encontro entre pares novatos e experientes, em diálogos reais e virtuais (interiores), debatendo os diferentes modos de fazer o mesmo trabalho e criando recursos que alimentam o saber da experiência. Os dispositivos que permitem uma formação pelo trabalho, tais como o PET-Saúde, são, assim, fundamentais quando aliados à espaços de discussão coletiva sobre a atividade, pois possibilitam o desenvolvimento pelo/do trabalho a partir das controvérsias, ampliando o poder de agir (Conceição et al., 2018).
Como aponta Clot, 2010a), um ofício que não tem a oportunidade de ser tomado como objeto de análise coletiva entre pares, deixa de ser um recurso para o desenvolvimento dos sujeitos; é um ofício maltratado, tornando-se fonte de sofrimento e adoecimento. Neste sentido, cuidar da formação é também crucial para que se possa cuidar de um ofício, afinal, se formar é também ampliar o poder de agir, os estudantes tornam-se novatos equipados com mais recursos para transformação dos meios de trabalho adoecedores. Encontra-se aqui, também, um forte argumento para que a saúde dos estudantes, não só faça parte, como seja um objeto nobre nos estudos em ST.
Adiciona-se a essas questões um preocupante cenário revelado pela V Pesquisa Nacional de perfil socioeconômico e cultural dos (as) graduandos (as) das IFES, realizada em 2018 pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (FONAPRACE) - vinculado à Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). A partir dela, conclui-se que as condições de saúde dos estudantes de graduação não são das melhores:
“Tomando todas as dimensões até aqui analisadas, observa-se que o percentual de estudantes que se alimenta adequadamente (três ou mais refeições diárias), que se exercita regularmente (pelo menos três vezes por semana) e que busca atendimento médico e odontológico especializado ou preventivo é de apenas 8,9%. Considerando-se os desdobramentos da insuficiência de cada uma destas dimensões vitais na composição da cidadania ou das condições do bom desenvolvimento acadêmico, este percentual deve ocupar a atenção de gestores das IFES” (FONAPRACE/ANDIFES, 2019, p. 200).
Destacando algumas dessas dimensões e realizando um comparativo com os dados da mesma pesquisa realizada em sua edição anterior, no ano de 2014, podemos observar um agravamento no quadro geral de vida já que os estudantes que fazem apenas duas refeições diárias passaram de 6,9% para 12,5% em 2018 e aqueles que declararam não realizar nenhuma atividade física passaram de 29,2% para 39,9%. A saúde mental também foi objeto do estudo, nos apresentando alarmantes dados: em 2018, 83,5% dos (as) graduandos (as) entrevistados (as) assinalaram vivenciar alguma dificuldade emocional - tais como ansiedade, insônia, sensação desamparo ou desespero e tristeza persistente - que interfere na sua vida acadêmica, em 2014 eram 79,8% (FONAPRACE/ANDIFES, 2019) ().
A partir deste inquietante cenário, justifica-se uma espécie de ampliação do nosso olhar no que diz respeito às preocupações com o adoecimento dos profissionais da saúde, temática sobre a qual o campo da ST tradicionalmente se debruça. Reafirmamos, afinal, a importância de olharmos também para a formação se queremos pesquisar e intervir na saúde dos trabalhadores, apostando nas possibilidades de por meio do trabalho produzir-se, não só sofrimento e adoecimento, mas saúde e expansão da vida.
4. Experiência: As instruções ao sósia no PET-Saúde
O Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde (PET-Saúde) é uma política pública destinada a fomentar grupos de aprendizagem tutorial como instrumento para qualificação em serviço dos profissionais da saúde, bem como iniciação ao trabalho dos estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação em saúde. Dentre seus objetivos está o fomento à articulação entre ensino, serviço e comunidade, contribuindo para formação de profissionais da saúde com perfil adequado às necessidades e às políticas de saúde brasileiras (Portaria Interministerial nº. 421, 2010).
Com exceção do usuário do serviço de saúde, que é o objeto da atividade de trabalho e formação, são três os atores privilegiados deste programa: o tutor - que é um docente vinculado a alguma instituição de ensino superior exercendo um papel de supervisor dos estudantes e orientador de referência para os profissionais de saúde vinculados ao programa -, o preceptor - que exerce uma supervisão das atividades dos estudantes exercidas em campo - e o estudante bolsista - que, sob orientação do tutor e do preceptor, tem a oportunidade de vivenciar uma iniciação ao trabalho. Todos eles recebem um apoio financeiro para dar conta de suas atividades de formação pelo trabalho.
Configurado desta forma, acreditamos serem as experiências do PET-Saúde situações privilegiadas para o estudo da formação enquanto atividade, possibilitando, como aponta Clot, 2007), que o encontro de novatos e experientes na formação se constitua enquanto uma zona de migração funcional do saber acadêmico/teórico em experiência e vice-versa, fazendo da formação permanente dos profissionais uma espécie de correia de transmissão entre a formação teórica e o exercício do ofício. Assim pensada, produzimos com este estudo uma análise da atividade de formação pelo trabalho, intensificando tal migração funcional e favorecendo a transmissão/transformação da experiência profissional, como também o desenvolvimento no/do ofício. Para isso, fizemos uso do método de instruções ao sósia 5 (Clot, 2010a; Oddone et al., 2023), no qual se propõe um exercício de grupo com o objetivo de explicitar, compartilhar, discutir e desenvolver coletivamente os diferentes modos de exercer a atividade.
Tal método foi gestado a partir do encontro entre pesquisadores e operários italianos, por volta da década de 1970, que perceberam a importância da experiência ligada à situação concreta de trabalho na análise das relações entre a situação produtiva e a situação de saúde. Forjaram, então, este método com o intuito de repetir o complexo processo que levava os operários a traduzirem em comportamento real a experiência que eles tinham, por meio de um exercício em que cada um daria instruções a um outro “ele mesmo”, um sósia (Oddone et al., 2023). Na década de 1990, a equipe francesa de clínica da atividade se apropriou deste método como instrumento de intervenção na perspetiva histórico-desenvolvimental (Clot, 2010a), isto é, buscando um acesso ao real da atividade por meios indiretos, neste caso, pela interlocução com um suposto sósia. Desse modo, o interesse da equipe italiana pelo enriquecimento contínuo dos planos de ação no ato de instruir é lido, em clínica da atividade, como uma ampliação do poder de agir que tem positivas implicações na saúde e no desenvolvimento dos coletivos profissionais.
No que tange à maneira como operacionalizamos o método de instruções ao sósia no PET-Saúde em questão, foram realizados três encontros no espaço e horário de tutoria dos estudantes, todos contando, inclusive, com a presença de uma das tutoras dos dois projetos convidados. No primeiro encontro, contamos com a participação voluntária de 12 estudantes que, após a apresentação da proposta de pesquisa-intervenção e esclarecimento de dúvidas, foram convidados para a realização do exercício e posterior discussão dele. Também utilizamos esse primeiro encontro para explorar os detalhes do Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e pactuar a gravação em áudio dos próximos encontros. No segundo, o grupo - contando neste dia com 7 participantes - elegeu uma estudante para assumir o papel de instrutora, ficando responsável por dar os comandos necessários para que a sósia-pesquisadora a substituísse em seu campo de atuação no PET-Saúde. A tarefa da sósia é resistir à atividade da instrutora, o que dificulta o desenrolar de uma versão operatória, já naturalizada, do trabalho e recoloca aquela frente as escolhas feitas no curso da ação. A instrutora-estudante participou, então, de uma autoconfrontação, em um primeiro momento, mediada pelo diálogo com a sósia-pesquisadora e, em um segundo momento, mediada pelo diálogo com os pares, que prosseguiram com a tarefa da sósia. Antes do terceiro e último encontro, o áudio do exercício foi disponibilizado à instrutora-estudante, para que ela pudesse tecer comentários sobre esta experiência, oportunizando mais uma autoconfrontação. Por fim, nos encontramos para discutir coletivamente o que se passou no exercício, permitindo aos 9 estudantes presentes explorar diferentes formas de lidar com algumas das situações que apareceram nas instruções, ampliando o patrimônio coletivo de possibilidades de ação.
O trecho que acompanharemos a seguir, retirado das transcrições do terceiro encontro - no qual discutimos o que havíamos experimentado com o exercício -, retoma o diálogo entre instrutora-estudante e sósia-pesquisadora no exercício de instruções ocorrido no segundo encontro. Neste, as instruções apontavam que, no encontro da estudante com os usuários dos serviços de saúde, mesmo que estes se emocionem, aquela deve escutar e acolher sem expressar pena ou misericórdia, ou ainda, fazendo “cara de paisagem”. Ainda no segundo encontro, em outro momento das instruções, a instrutora-estudante é questionada se fica emocionada quando os usuários dos serviços se emocionam ao serem acolhidos, ela prontamente responde que “raramente”. Este ponto do diálogo é, então, retomado por outros estudantes no terceiro encontro (trecho reproduzido a seguir) e desenvolvido, permitindo acompanhar uma das dificuldades no trabalho em saúde - o manejo das emoções no contato com os usuários do serviço -, bem como o autorreconhecimento de que eles têm criado recursos para lidar com esta dificuldade.
A relação com o objeto de trabalho (que no caso dos estudantes são os usuários dos serviços de saúde) é um dos pontos cruciais que avalia a qualidade do trabalho, por mais que esta avaliação sempre seja discutível quando considerado distintos critérios. Aliás, foi o despertar do termo ‘ofício’, métier em francês, no uso linguageiro cotidiano daqueles que trabalham com serviços, um dos motivos elencados por Clot, 2010a) para justificar o interesse em uma apropriação do termo como um conceito em clínica da atividade. A utilidade de se construir um conceito psicológico de ofício, estaria justificada pelas possibilidades que ele traria em pensarmos, não só os sujeitos no ofício, mas o ofício nos sujeitos, ou seja, as possibilidades de desenvolvimento individual e coletivo - e seus impedimentos - oferecidas pelo ofício. Ancora-se nesta discussão uma contribuição desta perspetiva ao debate do reconhecimento, no qual “Reconhecer-se no que se se fez é estar seguro tanto da utilidade social do objeto ou do serviço, como de sua qualidade” (Clot, 2010a, p. 289).
Deste modo, é com a expectativa de destacar, a partir do tema da relação com o usuário do serviço de saúde, a discussão de critérios de qualidade do trabalho, ou a discussão do trabalho bem-feito, e suas implicações na atividade de trabalho e formação dos estudantes que reproduzimos abaixo um trecho da discussão coletiva 6 que retoma este ponto.
I: Eu estava pensando no que a R (Instrutora) falou, eu não sou do mesmo projeto, eu tenho um projeto diferente então eu não faço esse tipo de... não tenho esse acolhimento assim. Mas eu me identifiquei nas coisas que você sentia (...). Eu fico ansiosa quando a gente vai começar a fazer um livro, uma construção de um livro com um adolescente que a gente não sabe como aquele adolescente vai reagir e quando ele conta coisas que, assim, vão te impactar de alguma forma, mas você não pode transparecer isso para o adolescente, então isso me faz ficar ansiosa e ainda meio apreensiva, "Meu deus, eu tenho que me controlar, eu não posso... ou eu não posso chorar ou eu não posso fazer uma cara de espanto, ou uma cara de 'Ai meu deus'...", sabe? Querer pegar no colo. Então você tem que se manter ali meio... como uma profissional com aquele menino, sem perder a... não é...
R (Instrutora): A sensibilidade.
I: É, sem perder sua sensibilidade. Você mostrar que você está ali disponível para ajudar, mas que você tem que ter essa barreira, essa barreira que eu digo assim, esse distanciamento para que não se confundam as coisas.
Tutora: Não seria um distanciamento de ser fria...
I: Isso! Não seria um distanciamento de ser fria, mas assim, dele não achar que a relação é de colega (...).
Pesquisadora: Mas eu achei muito legal isso que você falou de uma certa ansiedade que aparece ali no trabalho e eu queria perguntar se alguém mais se sente assim, como é que é, porque... muito interessante de você ter falado de uma certa posição profissional... você falou alguma coisa mais ou menos assim: nem amiga, nem profissional fria. Como é que é isso, gente? Isso é bem interessante, né.
H: Super difícil! Quando se fala de questão grupo.
I: É uma linha tênue.
H: Não tem jeito, elas vêm em cima de você, às vezes jogam umas coisas assim em cima de você que é às vezes até muito pesado. E às vezes você está tão com aquele controle que você faz para não chorar ou ter alguma reação, assim..., negativa, mas ao mesmo tempo conseguir ajudar, depois no final você fica, assim, eu me sinto, assim, eu diria que eu fico meio cansada dependendo do que... teve um dia que foi bem...
Pesquisadora: Mas é um esforço, né. Eu estou vendo que vocês estão me falando assim oh, não posso chorar... não posso... claro que você fica cansada. Imagina!
H: Teve um dia que foi bem pesado assim porque uma das usuárias tinha perdido o cunhado, ele se matou. Mas o jeito... e ela era apegada a ele então ela chorava, ela chorava, eu sinceramente, assim, esse lance de morte mexe muito comigo, eu tenho problema com isso assim e é uma coisa que eu tenho problema, então ficar falando disso comigo... eu sinto que isso mexe demais comigo quando alguém morreu e ainda morreu dessa forma. Aí eu fiquei escutando aquilo me controlando, é claro, para não demonstrar que eu estava meio perturbada com isso, e ela chorava, e ela chorava, ela, "Não posso chorar porque...", falei, "Não, pode chorar, pode demonstrar, aqui é espaço para isso", e ela falou... depois ela se sentiu... no final ela falou, “Não, estou super bem. Obrigada! Vocês ligam para a gente, vocês escutam a gente, aqui eu posso jogar tudo para fora.", só que depois que ela jogou tudo para fora, eu que depois quando ela foi embora, eu que estava assim oh, meu deus, fiquei até com dor de cabeça o resto do dia. Porque foi tanto esforço para mim para não demonstrar, porque assim, quando você tem medo de um assunto é muito difícil você não fazer aquela cara de “Meu deus do céu!", e ao mesmo tempo também dar apoio para a pessoa, não deixar a pessoa ali sozinha se debulhando, se desmontando toda na sua frente e você também não falar nada, não fazer nada.
R (Instrutora): É, acho que é algo que eu até comentei na semana passada foi que você vê coisas ali que você não... eu pelo menos, que eu nunca imaginei que eu veria, ouvir coisas que eu nunca imaginei que eu ouviria de pessoas e essa... esse... você ficar surpreso, tem que ter cuidado para você não mostrar.
H: É. Pra não mostrar no seu olhar.
(...)
Pesquisadora: Mas não pode chorar?
R (Instrutora): Eu não sei [fala com hesitação].
[Risos]
[Várias pessoas falam juntas]
R (Instrutora): Teve uma outra experiência que eu demonstrei, eu acho que eu tive um comportamento que talvez; foi inadequado. Foi num varal de emoções, que foi uma atividade que a gente faz que eles estendem uma toalha, uma canga e eles têm que jogar um retalho e ali externar alguma emoção. E aí tinha uma senhora que falou que estava com o joelho ruim, que ela tem artrite e ela estava com o joelho muito... estava em crise, e aí ela falou que ela não ia participar, só que quando começou ela foi a mais craque de todas porque ela saiu pegando tudo e a eu fiquei apontando assim, "hahahahaha", aí depois a L2 falou para mim, "R (Instrutora), você tem que fazer treinamento de cara de paisagem porque você não consegue" (...). Eu fico assim, "o que pode e o que não pode?", eu não sei.
Pesquisadora: E que neutralidade é essa que a gente busca?
R (Instrutora): É, não dá. Não dá, porque neutro acho que é impossível.
H: Ah, mas entra a questão do profissionalismo... eu não sei se é questão do profissionalismo excessivo que a gente fica assim, "Ah, eu sou profissional, eu não...", eu acho que fica um profissional biônico, "eu não posso chorar! Eu tenho que ficar aqui na posição".
I: Sabe o que eu acho também, até isso de você querer ser um profissional, ainda mais agora, nós que estamos na Academia ainda então a gente quer aprender como que a gente tem que ficar, se portar...
H: Ter postura...
I: Como a gente tem que ficar, se portar, mas tem aquilo da gente estar sentindo alguma coisa e a gente mesmo, pelo menos eu, ter medo não conseguir controlar. Porque você falou, "não pode chorar?", pode chorar, mas se eu não conseguir parar de chorar? Se eu ficar tão desestabilizada e não conseguir voltar ali e dar conta daquela situação, que naquele momento eu sou a profissional que estou com aquele indivíduo... aquele paciente?!
H: Eu me descontrolar a ponto de nem conseguir ajudar a pessoa.
I: Sim, eu ficar tão desorganizada... eu tenho muito medo.
H: A pessoa já está desorganizada eu também vou me desorganizar.
R (Instrutora): É, e você está na Academia você olha para o profissional que está ali de frente, então você quer de alguma forma imitá-lo. Então você olha, eu olho para a psicóloga, X1, e fico pensando, "Nossa, o jeito que ela age... pode assim... não é a fórmula do bolo, mas é o mais aproximado do que tenho do que seria certo então eu vou tentar agir com ela".
H: Mesma coisa, eu olho a X2, eu falo assim a X2 enquanto eu estou lá... ela fica, consegue, escuta aquilo com uma calma e fala... e depois responde... daqui a pouco ela pensa... daqui a pouco ela responde com a maior calma. Às vezes eu deixo até ela falar... assim, nesse dia eu até deixei ela falar um pouco mais porque eu estava... não conseguia falar.
R (Instrutora): Eu já fui para o banheiro chorar uma vez. Nesse dia que o meu olho encheu d'água eu me controlei... eu fui, tipo assim, fingi que ia beber água, fui para o banheiro e comecei a chorar, porque eu... é estranho, às vezes eu fico... às vezes eu sinto que eu fico fria... às vezes eu sinto... não é fria, mas assim, que aquilo não me afeta. Mas esse dia me afetou muito e eu tive que sair para não demostrar, "Meu deus, você tá chorando". Não foi aquela coisa de "Oh morrer", mas as lágrimas saíram, então eu fiquei... "tenho que sair daqui".
L: Eu lembro que uma vez, eu não lembro o relato, porque assim, alguns relatos são bem parecidos então você se comove com todos, mas tem sempre um ou outro que realmente desperta uma emoção maior dentro da gente. Eu não lembro assim na íntegra qual era o relato, mas foi algo que me marcou dentro de todas as oficinas que eu já participei até hoje... que um desses relatos assim... que a gente está falando do individual de cada um, mas eu me lembro bem que era uma coisa assim tão... que despertou algo tão intenso dentro da gente que eu olhei em volta da X3, que é a psicóloga, da X4, de todo mundo, eu observei porque eu acho que aquilo estivesse mexendo só comigo...e essa coisa do controle né. Eu lembro que eu respirei fundo, meu olho enchei d'água na hora, mas quando eu olhei para todo mundo, assim, discretamente, o olho da gente que estava ali atuando como profissional, todos os olhos brilhavam... assim... de emoção. Então assim, você vê que o comportamento é bem parecido, essa coisa de você querer controlar né, às vezes você não aguenta mesmo, entendeu?
Pesquisadora: Agora, eu acho que a minha pergunta... assim, não é que ela tenha uma resposta certa, ou que sim ou que não, mas assim, esse controle tem a ver com ser um bom profissional? Eu não demonstrar ou eu não chorar, isso tem a ver com eu conseguir atuar da forma que eu devo?
I: Acho que sim. Sim, está relacionado também. Porque se você não consegue ter o mínimo de controle ali, como é que você atuar com aquela população? Eu acho, assim... No começo, logo assim que eu entrei no projeto β... é um assunto que mexe muito comigo, então eu ia para lá, tinham os relatos, era certo, toda vez que eu saia, eu entrava no carro, mas eu chorava, chorava, chorava, aí ficava dias pensando, aí chorando, chorando, chorando. Quando a gente perdeu um menino também eu acabei... a gente foi no enterro, nossa, eu fiquei dias chorando, dias assim, aí meu marido, "Pelo amor de Deus! Pára com isso! Isso já está te fazendo mal! Você não consegue, só fala disso, não sei o que...". A gente pensa, "Será que eu estou preparada para estar atuando nesse... é o lugar que eu deveria estar?", aí você começa a refletir se aquele trabalho, aquela atividade é pra você ou não, né. E aí a gente começa a se portar melhor, assim... Não vou dizer que hoje eu não fico emocionada, fico, saio, choro, mas assim, não é com aquela intensidade que eu... eu consigo controlar melhor...
R (Instrutora): É, eu acho que é um processo de adaptação.
T: Eu também me sinto do mesmo jeito que ela. No começo eu também era assim, eu era muito emotiva, então assim, tanto emotiva... e tanto assim... Quando ela falou... tudo eu tinha que me envolver, então hoje já na reta final eu já me vejo mais madura... tipo assim, eu me envolvo, mas assim, eu consigo colocar esse limite entre o que é profissional, entre o que é pessoal e entre o que eu posso ser como profissional. Então assim, eu passei por tudo isso só que no meu caso... assim... é mais com relação às experiências porque eu atuo com muito adolescente então ele sempre olha você como referência. Então qualquer coisa que você venha falar, você pode ter uma repercussão. Eu atendi um caso de uma menina que a gente trabalhou muito com orientação sexual, muito com a questão do uso de preservativo, tudo. E ela... e aí quando acabou a reunião ela veio me procurar e falou assim para mim, "Ah, eu estou pensando em começar a relação sexual e como foi a sua?", aí eu me vi... falei assim, gente, como é que eu vou colocar a minha experiência... essa garota... eu posso interferir, influenciar, eu falei assim, "Eu acho que experiência é pessoal, eu tive a minha, você vai ter sua. Só que eu acho que tudo tem que ter o consenso...". Então quando eu acabei aquilo, eu falei assim, gente eu nunca pensei que eu era tão madura assim...
R (Instrutora): É, você conseguiu reagir...
T: Eu consegui dar um limite ali, limitar ali. Na hora que eu conversei isso com a tutora do projeto β, a gente morria de rir, porque assim, quem me conhece sabe que eu sou assim né, toda doida, e ali eu consegui me ver madura profissionalmente. Não como uma estagiária, como uma profissional. Entendeu? Então assim, eu acho que a própria formação vai te dando isso, a própria experiência vai te dando isso.
Podemos acompanhar neste trecho transcrito, em primeiro lugar, que os estudantes se identificam no receio de que as emoções suscitadas no encontro com o usuário do sistema de saúde interfiram negativamente no trabalho do cuidado (falas 68, 83, 85, 105 e 108). Como lembra Clot, 2007), se comparado ao trabalho industrial, o trabalho no setor de serviços parece trazer desafios ainda maiores no que diz respeito ao objeto de trabalho que, neste caso, é a atividade de outras pessoas. Neste sentido, pode-se atuar sobre ele, com ele, por ele, mas também contra ele, ou mesmo no pior dos casos, sem ele, o que intensifica as questões sobre o trabalho e seus fins. Na discussão dos estudantes parece haver uma questão transversal: como manejar as emoções que aparecem no contato com o objeto de trabalho sem perder de vista a ação de cuidar?
Esta questão transversal, podemos dizer também genérica, possibilita uma discussão em torno da qualidade do trabalho (falas 70 e 72, por exemplo), ou seja, uma avaliação de maneiras mais ou menos adequadas de lidar com as emoções em situação de trabalho. A “linha tênue” (fala 82) sobre a qual agem para não sucumbir nem a uma frieza e distanciamento, nem perder a sensibilidade necessária para manter um trabalho de cuidado, caracteriza, assim, um conflito experimentado não só pelos estudantes, mas também pelos profissionais da saúde mais experientes (fala 106). Para este conflito, os estudantes recorrem à imitação (falas 103 e 104), mas, como exploramos anteriormente, a imitação é um recurso apenas na medida em que se torne desenvolvimento, ou seja, na medida em que é apropriada e recriada pelos estudantes.
Nos relatos, podemos ver a relação de uma profissional experiente com um usuário da saúde em um atendimento (fala 104): ela escuta com calma, pensa e fala também calma. Isso não significa que esta relação não tenha despertado nela emoções diversas, mas, apesar delas e com elas, a profissional elabora uma resposta atenta à demanda específica que lhe aparece. O mesmo movimento é perceptível no relato da estudante que reconhece a qualidade do seu trabalho (fala 110), no qual ela estava atenta a demanda e foi capaz de orientar a adolescente que havia lhe procurado sem expor sua vida pessoal. Acreditamos ter, neste exemplo, um uso da imitação “deslocado”, isto é, uma tentativa de fazer como os experientes a partir das convocações da situação concreta atual. É em diálogo com as situações reais, com o coletivo - sejam eles novatos ou experientes - e consigo mesmo, que cada um vai ensaiando, e com isso desenvolvendo, o “profissionalismo” referido (fala 96).
Podemos acrescentar ainda que é tomando essas experiências de “controle”, de manejo das emoções como objeto de discussão, ou seja, produzindo uma migração funcional (Clot, 2015), de meio profissional para objeto da análise coletiva, que elas podem ser enriquecidas, tornando-se disponíveis para novas apreciações e outros usos na atividade reprodutiva/criativa (Vigotski, 2018). Isto é, intensificamos, com as instruções ao sósia no PET-Saúde, a migração funcional entre trabalho e formação e vice-versa, na medida em que as experiências foram compartilhadas, discutidas e reelaboradas na atividade dialógica, o que as torna mais disponíveis para seu “reuso” no curso da ação, ampliando o poder de agir.
Esse movimento é especialmente visível quando notamos que essa questão do manejo das emoções se desloca. Ela aparece no exercício de instruções ao sósia por meio de uma versão “autorizada” do trabalho (Clot, 2010a), uma versão já sedimentada e historicamente compartilhada do trabalho em saúde na qual o almejado “controle” das emoções aparece como uma espécie de assepsia das emoções. Na contramão desta herança, marcada pelo domínio técnico-científico da prática profissional no campo da saúde pública (Gigante & Campos, 2016) - nos apresentando um trabalho concebido como uma sequência de gestos operacionais regidos por uma inteligência desencarnada (Osorio, 2006) -, acompanhamos, com o trecho da discussão do terceiro encontro recortado por nós, uma versão do trabalho repleta de conflitos, dúvidas e paixões, no que se refere às emoções. Assim, em um primeiro momento, temos acesso a uma dimensão operacional da atividade de trabalho e com a análise coletiva acessamos sua dimensão opcional, o que nos possibilita explorar a gênese das escolhas no curso da ação, alimentando o plano de ações possíveis e desenvolvendo a experiência profissional (Clot, 2010a).
Também vale lembrar os comentários de Vigotski sobre o problema da psicologia da criação pelo ator, que giram em torno, essencialmente, das relações entre as emoções artificialmente produzidas na atuação e as emoções “naturais” da vida do ator (Vigotski, 2023). Ele nos chama a atenção para um deslocamento metodológico no que concerne o estudo de tal problema, do contexto psicológico individual do ator, para o contexto sociopsicológico, ou relacional, da atividade. As emoções do ator, segundo ele, vão além dos limites de sua personalidade e compõem também uma parte do diálogo entre o ator e o público. Tendo isto em vista, o caminho para o domínio das emoções diz respeito ao âmbito das relações, em nosso caso: tanto entre novatos e experientes, quanto entre trabalhadores e usuários do sistema de saúde e, ainda, entre funções psicológicas.
Essa mobilidade das emoções, quando se encontra sob o impacto de afetos ativos, permite o desenvolvimento de uma flexibilidade das funções psicológicas e, consequentemente, uma maior liberdade de ação. Já quando a atividade se encontra sob a variação de afetos passivos, somos menos capazes de nos servirmos das emoções para agir e agir para nos servirmos das emoções (Clot, 2016b). Igualmente no caso dos estudantes, controlar as emoções não significa reprimi-las ou torná-las imperceptíveis na atividade, mas ser capaz de servir-se delas para agir. Está aqui a importância de retomá-las e analisá-las por meio de métodos dialógicos.
Essa é nossa aposta junto à clínica da atividade, ser um instrumento auxiliar ao desenvolvimento para que o trabalho possa também formar e operar saúde. Neste sentido, as emoções são menos obstáculos e mais objetos de um desenvolvimento possível no real da atividade, quando o coletivo passa a se ocupar também com a discussão sobre o trabalho bem-feito. Essa é a via para que o seu manejo repouse minimamente numa rigidez operatória - cuja resultante é o medo do descontrole (falas 99, 100 e 101) ou o sofrido esforço para não demonstrar as emoções, gerando cansaço e dor de cabeça (falas 68, 83, 85, 105 e 108) - e maximamente em sua experimentação, ou seja, repouse sobretudo nos usos possíveis das emoções para a conquista de uma liberdade de ação, o que só é possível em um coletivo no qual o diálogo não esteja interditado.
Vale lembrar, enfim, que os estudantes, especialmente aqueles envolvidos com uma educação pelo trabalho, não estão longe das formas predominantes de adoecimento frequentemente encontradas em seus ofícios de formação, como a chamada síndrome de burnout no caso de uma parcela expressiva das profissões ligadas à saúde. Em 2022, esta síndrome, que tem como uma importante dimensão a exaustão emocional (Assunção, 2011), teve sua primeira aparição no código internacional de doenças (CID-11), ampliando seu reconhecimento e associação com as situações de trabalho.
Entretanto, nossa abordagem se diferencia daquelas que tratam deste modo de adoecimento a partir das teorias do estresse, construindo instrumentos de medição e avaliação que contam com versões para as áreas da saúde, da educação e até mesmo voltado para estudantes, com adaptações transculturais (Campos & Maroco, 2012). Com (Vigotski, 2023) visamos nos distanciar do empirismo para apostar numa possível zona de desenvolvimento que nos permita pensar a atividade de formação como a contínua construção de um saber coletivamente gerado a partir da interação, ou afecção, de saberes mais sistematizados ou maduros e saberes mais desorganizados ou espontâneos (Granovsky, 2018).
Desse modo, a formação também pode se constituir enquanto um importante operador de saúde. Afinal, entrar em um ofício é também assumir em alguma medida sua história, no caso que viemos acompanhando dos estudantes do PET-Saúde, é também assumir uma ideia de profissionalismo tradicionalmente pautada na assepsia das emoções. É aqui, igualmente, que, ao se apropriar e transformar o que é entendido por eles como profissionalismo, os novatos podem contribuir para revitalização do ofício para o qual estão se formando.
5. Considerações finais
Uma das perguntas disparadoras do trabalho que temos desenvolvido emergiu no contato com estudantes da saúde de diferentes cursos de graduação, vinculados ou não ao PET-Saúde, em duas IFES do estado do Rio de Janeiro: como um processo de formação que tem por objetivo “ensinar a produzir saúde” pode estar produzindo adoecimento? Ao priorizar as perspetivas orientadas para saúde, e não para os processos de adoecimento, optamos por uma metodologia que visa ser um instrumento auxiliar do desenvolvimento impedido ou uma prática clínica voltada à ampliação do poder de agir (Clot, 2010a, (Clot, 2015). Foi assim que o PET-saúde vinculado a uma dessas instituições se tornou o dispositivo de formação de interesse, no qual produzimos uma atividade de análise sobre a atividade de formação pelo trabalho, com o método de instruções ao sósia.
Tal método, ao formalizar e transmitir a experiência do grupo de estudantes no âmbito do PET-Saúde, permitiu um deslocamento de sentidos no que tange ao manejo das emoções na atividade. Aparecendo, a princípio, durante as instruções ao sósia, como uma espécie de versão autorizada, ideal, desse manejo, no momento da discussão no coletivo torna-se um verdadeiro objeto de debate, de controvérsia, em torno da qualidade do trabalho. Tendo em vista a diversidade de situações apresentadas neste debate, a experiência relacionada ao manejo das emoções em atividade se enriquece, ampliando a paleta coletiva de gestos possíveis para o trabalho do cuidado em saúde.
Além disso, podemos apontar também o reconhecimento da produção de um trabalho de qualidade, adequado aos princípios que orientam a atuação dos profissionais da saúde no SUS. Em outras palavras, é possível reconhecer que, no âmbito do PET-Saúde estudado, a atividade de formação está em curso, permitindo o desenvolvimento dos estudantes e, evidentemente, a entrada no ofício compartilhado de maneira transversal pelos profissionais do campo da saúde no Brasil.
Esta pesquisa também nos apontou para uma suavização das rígidas fronteiras que tradicionalmente separam formação e trabalho, nos permitindo entender que toda atividade de trabalho é também uma atividade de formação, na medida em que oportunizam zonas de desenvolvimento. Por fim, as formações de novatos e experientes no ofício se correlacionam, sendo enriquecidas pelas migrações de funções psicológicas, como defendido pela clínica da atividade a partir de uma perspetiva histórico-desenvolvimental (Clot, 2007, Clot, 2010a).