Introdução
A paisagem da área central e da orla marítima e portuária do Recife, integrada pelos bairros de Recife Antigo, Santo Antônio, Santo Amaro, São José e Boa Vista, onde se localizam as principais construções históricas da capital pernambucana e sua antiga região portuária (Porto do Recife), vem atravessando intensa transformação, acompanhada de diferentes enfoques e prioridades expressas nos planos, projetos urbanos e instrumentos da política urbana, desvalorizada pelo declínio e deslocamento das atividades portuárias com a construção do Porto de Suape (1978).
O objetivo deste artigo é compreender processos e mecanismos que fazem com que instrumentos da política urbana legitimem que o interesse público seja obscurecido pela hegemonia de atores privados, sugerindo dissonâncias e afastamento destes instrumentos dos planos e projetos urbanos propostos para Recife (2000-2023). Exemplifica-se esses desencontros e sua prevalência na produção da cidade que acompanha a orla fluvial e marítima na área central, supondo que investimentos de atores privados nos centros históricos estão diretamente ligados e favorecidos por políticas públicas (ou à sua incapacidade de contrabalançar o avanço imobiliário), resultando que a valorização da terra não seja objeto de justa redistribuição, conduzida pela política urbana.
Parte-se de que o espaço urbano é objeto e resultado de conflitos e desigualdade socioespacial, e de que, no marco de uma prática capitalista monopolista (Santos, 2001) e oligopolista (Lacerda e Bernardino, 2020), interesses de empreiteiras e empreendedores imobiliários, e a privatização de terras públicas, resultam em pressões de agentes privados sobre o Estado e a sociedade.
Contribui-se ao apontar processos indutores e resultados da privatização da cidade, que consistem em sua negação como bem público. Princípios norteadores dos planos e projetos urbanos propostos, sinalizando eventos e motivações de incentivo ou abandono, permitem identificar dissonâncias no processo de transformação urbana. As principais políticas, planos, instrumentos urbanísticos e de gestão do Recife no período podem explicitar descompassos e descontinuidades em sua formulação e aplicação, e evidenciar que, se coordenados, podem servir à transformação territorial multidimensional, caso atuem como forças de balanceamento à privatização do uso do solo. Sinaliza-se a necessidade de regulação nacional de uso e concessão de terras públicas de orla (de marinha, incluindo portuárias) aos diversos entes federativos, a fim de regular sua apropriação pelos agentes da transformação urbana.
A genealogia de Recife explicita suas mudanças e atualidade, e como a condução pública e privada do desenvolvimento territorial interfere na ocupação do solo e transformação da morfologia urbana, indutora da localização de planos e projetos na área central. Percorre-se o processo histórico da região e seus planos e políticas, compreendendo a apropriação e transformações da morfologia urbana. Conceitua-se a condição pública do urbano, e analisam-se as propostas para o centro do Porto Digital (2000), do irrealizado Projeto Urbano Recife-Olinda (2005-2009) e Projeto Novo Recife (2012-2023)1, oportunizado pela desativação da Estação Rádio Pina (ERPINA), junto ao Parque dos Manguezais, zona sul, identificando hiatos e debilidades entre a ação do mercado imobiliário e a política urbana para a região central.
Analisa-se a defasagem na implementação dos Planos Diretores e o desenrolar das transformações da área central, verificando possibilidades e limites do Plano Diretor de 1991, o Plano Diretor da Cidade do Recife - PDCR, de 1998, o Plano Diretor aprovado em 2008 (Lei nº 17.511/2008, que esteve em vigência até o fim de 2020), e o PDR-2020 (Lei nº 18.770) que institui o atual Plano Diretor do Recife, regulamentado em 2021. Alguns desses planos não foram regulamentados, ou não tiveram prosseguimento; outros o foram após o impacto do mercado imobiliário, o que justifica um debate de como esses instrumentos intermediam o interesse público, ou são obscurecidos pela hegemonia de atores privados.
A tendência à privatização urbana repousa na atual agenda da produção capitalista, apoiada na circulação do capital e no uso da terra, como seu fator de êxito (Harvey, 2014), ao incentivar e aprofundar a capacidade do mercado imobiliário e seus agentes de se apropriar da renda e da valorização do solo. Esses processos motivam descompassos (dissonâncias), e a fratura entre a acumulação baseada no valor da terra, capturada por agentes privados (Lacerda e Bernardino, 2022), a partir das pressões que exercem sobre a transformação do espaço, e a redistribuição de seus frutos por políticas de Estado.
Recife, gênese, desenvolvimento e ocupação da área central
No Bairro do Recife localizava-se o porto, onde nasceu o povoado da Ribeira de Mar dos Arrecifes dos Navios. No Recife Antigo e na porção da linha d’água da bacia do Rio Pina, que contorna a área central, e na antiga região portuária, inovações construtivas convivem com o casario histórico, e com torres de edifícios e shopping centres. A região central nasceu como porto natural da sede da Capitania de Pernambuco (Pontual, 2007), e no século XIX e início do XX, a península e o porto sofreram reformas. Princípios higienistas e concepções de inspiração haussmaniana, moldaram a cidade moderna, mantendo intacta a função portuária até a década de 1980. A convivência do porto com atividades abrigadas em edificações históricas, nos casarios, fortificações, edifícios de comércio destinados à importação e exportação, sedes de bancos, edificações religiosas e alfandegárias configurou o caráter e a identidade dessa porção da cidade.
A urbanização do Recife venceu as águas (Figura 1). Boa parte de sua área edificável resultou de aterros (Figura 2) no estuário comum aos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió. O Marco Zero (Figura 3) situa o nascimento da cidade, junto à Praça Rio Branco, ao lado do porto, no Bairro do Recife, que ocupa uma ilha inexistente até princípios do século XX. Um canal ligando o mar à bacia do Rio Beberibe foi proposto no século XIX, no Projeto de Melhoramento do Porto do Recife (1874), e o istmo formado por Olinda e Recife era uma estreita faixa ligando o porto à Vila de Olinda, configurando um sítio de grande significado histórico.
A superfície de marinha no Recife central, significativa e valorizada, é alvo de disputas de ocupação, gestão e uso da terra urbana. A tensão entre atores e práticas técnico-políticas acirra-se com a conduta monopolista (monopólio locacional, cf. Lacerda; Bernardino, 2020) e oligopolista (consórcios privados de desenvolvimento urbano e alianças de empreiteiras e empreendedores) (Lacerda, 2018), que favorecem agentes privados na transformação do território, consistindo em fator de fragmentação e desigualdade.
O monopólio de atividades e oligopólio de empreiteiras resultam na especialização dos usos do solo, e definem protagonistas na apropriação da terra, intensificando a circulação do capital financeiro e imobiliário (Leal et al., 2012), que aporta no território moldando a oferta de riqueza e o exercício do poder. Isso se evidencia na destinação, ocupação e valor da terra, nas formas predatórias de urbanização com deslocamento ou exclusão de populações vulneráveis das áreas mais valorizadas, e pressões sobre instâncias regulatórias.
Tal especialização e segregação estão em conflito com o direito à cidade e a função social da propriedade (Brasil, 2023), divergindo da oferta de bens públicos e oportunidades coletivas (Harvey, 2014). Avanços e retrocessos da gestão da terra e sua negociação por atores públicos e privados, e hiatos entre planos, projetos urbanos e marcos regulatórios são significativos para discutir tensões envolvendo o rol de atores, em movimentos em que predomina a captura de terras públicas, fragilizando o acesso à cidade (Lefèbvre, 1968). No contexto recifense, avanços do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257 de 2001) e instrumentos da função social da propriedade parecem não acompanhar ritmos e a reprodução do mercado imobiliário, atrasando a redistribuição de mais-valias da valorização da terra urbana, legitimando o sombreamento do interesse público e prevalência de agentes privados na produção espacial.
Recife e a urbanização brasileira: transformações da vocação do espaço urbano e metropolitano
Os principais planos, projetos e intervenções urbanas para Recife têm nos anos 2000 importante marco temporal, enraizando-se na urbanização brasileira desde 1980, e na gestão empresarial da terra urbana, que parece reger a formação das cidades (Santos, 2001). O perfil da urbanização afirmou as metrópoles e a aceleração de fluxos econômicos e financeiros, materiais e imateriais, e sistemas sociotécnicos e informacionais (id., ibid.). Esse processo acarreta crescentes gastos públicos de renovação ou requalificação urbana, em infraestruturas e construções voltadas ao privilégio de agentes hegemônicos (id., ibid.).
A instalação do Porto Digital (2000) no Recife Antigo se justifica pela iniciativa do Governo do estado de Pernambuco, em parceria com a Prefeitura, Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.), e Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (CIn/UFPE), escolhendo essa localização como alvo de investimentos em Tecnologias da Informação (TIC), ao implantar um sistema local de inovação integrado a outros polos similares, e inserindo-se nas cadeias industrial e de serviços (Silva et al., 2020).
Entre os principais produtos, encontram-se empresas de software, de modo que o Programa assumiu um vínculo com o território urbano com a recuperação e preservação de patrimônio histórico, destinando imóveis à fixação das empresas, propondo reconverter e preservá-los na Zona Especial de Preservação Histórica 09 - ZEPH 09 (Albuquerque, 2016).
A Lei Municipal nº 16.176/96 concedeu isenção de IPTU, de acordo com o tipo de reforma no imóvel nas ZEPH, em sítios, ruínas e conjuntos antigos de relevante expressão arquitetônica, histórica, cultural e paisagística. A Lei municipal nº 16.290/97 definiu condições especiais de uso e ocupação do solo, mecanismos de planejamento e gestão fundamentados no Plano de Revitalização para a ZEPH 09 (Bairro do Recife). Já a Lei Municipal 17.244/2006 instituiu o Programa de Incentivos ao Porto Digital, concedendo benefícios fiscais a estabelecimentos e empresas embarcadas, contribuintes do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza - ISSQN, com desconto de 60% às empresas do perímetro de revitalização da zona especial (id., ibid.).
Embora o Porto Digital tenha transformado setores tradicionais por meio de conhecimento especializado, sua natureza de OS - organização social, regulamentava por contrato privado de gestão as atividades de uma entidade privada com obrigações públicas, contribuindo para sua independência frente às esferas governamentais. Abria-se flanco ao não acompanhamento pari passu pela regulamentação dos efeitos espaciais e urbanos de sua instalação, o que consiste em uma das dissonâncias.
O compromisso inicial da OS em preservar o patrimônio foi alterado pela Lei 17.942 de 2013, desobrigando a recuperação de imóveis no Bairro Recife Antigo mediante a instalação de empresas de TI, e estendendo benefícios fiscais ao quadrilátero de Santo Amaro, evidenciando a ação independente do Porto Digital na requalificação do centro, seu processo expansionista e de operação imobiliária e rentista (Fernandes e Lacerda, 2023). A atuação imobiliária do Porto Digital é um dos fatores de valorização da terra, gentrificação e transformação urbana, ocupando grande porção da área central, e impelindo o desenvolvimento imobiliário verticalizado, corporativo e residencial à faixa de orla, a reboque desses processos, condicionando-o à morfologia da linha d’água.
A substituição de usos deflagrada com o Porto Digital excluiu populações afetadas pela requalificação, sofrendo impacto da atuação do mercado imobiliário e dos diversos atores (Lacerda e Fernandes, 2015). Usos quase monopolizados (Lacerda e Bernardino, 2020) acentuaram desigualdades, ao voltar grande parte das estruturas físicas a atividades de trabalho especializado, para uma nova elite econômica.
A implantação de meios técnico-científicos no território central, com o Porto Digital, e outras formas de ocupação da linha de orla por empreendimentos novos contribuíram para o capital em circulação, em busca de ancorar-se em intervenções urbanas. Parques tecnológicos, e a fixação de sedes de operações financeiras em áreas oportunas e estratégicas, como a linha d’água de portos desativados ou ociosos, possibilitam ao meio informacional se intensificar, em busca da fluidez da circulação de informações, bens, pessoas e mercadorias, potencializando a ação conjunta dos fatores de produção, trabalho e capital indissociáveis da terra urbana (Sassen, 2007).
Sob a ação do mercado imobiliário, potencializou-se no Porto Digital a circulação de capital e informação, instrumentalizando o espaço urbano. Espaços ocupados por empresas nacionais e estrangeiras, e polos tecnológicos da indústria 4.0 capturam a cidade como meio, acompanhando-se de trabalho intelectual e imaterial relevante para a economia (Gorz, 2005). Uma nova agenda que supere a transformação espacial primordialmente econômica, e que inclua a mitigação da pobreza com enfoque social se faz então premente.
No Nordeste, o perfil agrário e fundiário da sociedade atrasou a economia urbana (terciarização, desenvolvimento do setor de serviços, etc.), contribuindo por décadas para aprofundar desigualdades (Santos, 2001). Inovações sociais e materiais sofreram grande resistência da parte de processos e atores ligados aos proprietários de terras e a todo tipo de privilégios, gerando sua expressão urbana, a especulação do solo e imobiliária.
A transformação da área central de Recife exemplifica práticas hegemônicas que favoreceram e naturalizaram a negociação de terras públicas (Rolnik, 2014), parcerias público-privadas, acordos e colaborações entre agentes que se valem dessas terras para empreendimentos imobiliários de interesse social questionável (id., ibid.). A Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha (Rio de Janeiro) (Abascal e Abascal Bilbao, 2021) exemplifica dissonâncias que apontam para movimentos imobiliários com resultados conflitantes, acontecendo em Recife no centro, em terras públicas de marinha, ferroviárias e portuárias, patrimônio da União2.
Diferentemente de contextos em que Projetos Urbanos se fundamentam em acordos entre distintas esferas de governo que regulamentam a cessão de terras públicas nacionais (redes e pátios ferroviários, terras portuárias) aos municípios3, motivados a gerir grandes projetos e tributando as terras em nível municipal, o Brasil permaneceu até recentemente sem legislar sobre a questão, abrindo flanco a práticas gestoras discricionárias. Somente em 2018, a Câmara Legislativa aprovou a lei substitutiva à Proposta de Emenda à Constituição (PEC 39/11), a qual extinguia o conceito de terreno de marinha. A nova lei permitirá, se aprovada no Senado, a transferência de terrenos de marinha aos estados e municípios em caso de defesa do interesse público (Brasil, Câmara dos Deputados, 2018)4.
Diante desse hiato regulatório nacional, e descompassos entre a regulação municipal e a dinâmica imobiliária local, decisões sobre cedência e uso de terrenos públicos ficaram à margem5, desconsiderando contrapartidas à cidade que poderiam ser orquestradas pela concertação dessas esferas e por planos, projetos urbanos e instrumentos urbanísticos. A política urbana e instrumentos de planejamento e gestão podem ser ferramentas para um olhar multidimensional, ao atuarem como forças de caráter público, contrabalançando a privatização. Seus princípios, contingências e nexos causais em sua proposição e abandono, motivações e descontinuidades, permitem identificar o que se está denominando “dissonâncias”.
A participação social questionou o privilégio de interesses e propostas divergentes das necessidades e aspirações de moradores e usuários. O Movimento Ocupe Estelita (defensor da preservação patrimonial e ambiental do Cais homônimo) demonstra que os cidadãos vêm contestando intervenções contrárias às suas expectativas e às relações de identidade e memória.
As tensões mencionadas se explicam por um mercado hierarquizado, comandado por poderes hegemônicos, dependente do espaço urbano em busca de terras, e empresas nacionais e transnacionais que o comandam e moldam (Sassen, 2007), definindo redes de poder e investimentos. Forças patrimonialistas em aliança com o Estado (Faoro, 2012) reconfiguram-se sob a economia globalizada (id., ibid.), com amplo leque de atores em conflito, em perspectiva multiescalar. Seus resultados, a dispersão social e produtiva e a metropolização periférica, a conviver com o trabalho intelectual concentrado em áreas centrais, motivam a gentrificação (Smith, 1996) ao estender franjas urbanas. A seletividade concentrada das atividades econômicas aliada à ocupação das terras de marinha, em Recife, é uma das causas de fragmentação do território, urgindo o resgate de conexões e fluxos da cidade, não apenas a serviço do mundo econômico, mas de seus habitantes (Santos, 2001).
Dissonâncias emergem ao comparar os fios condutores e resultados díspares do Porto Digital (2000), do Projeto Urbano Recife-Olinda (2005-2009) e Projeto Novo Recife (2012), que exemplificam o esgarçamento de relações entre operações imobiliárias e regulação urbanística. Verificam-se resultados opostos - o Projeto Urbano se fundamentava em instrumentos redistributivos e numa continuidade socioespacial negada com o avanço do mercado imobiliário em terras de orla, e o segundo, favoreceu uma linha de exclusão e riqueza, desde o Marco Zero até Boa Viagem, acompanhando as frentes d’água6. Uma cidade corporativa vem se formando na área central do Recife (Santos, 2001), induzida pela dinâmica imobiliária concentrada em consórcios de empreendedores. O enfraquecimento da política urbana de interesse social facilitou o avanço monopolista e oligopolista no fazer cidade (Lacerda e Bernardino, 2022), e planos diretores esvaziados como letra morta, sobrepujados pela força corporativa e técnico-informacional aliada ao capitalismo monopolista (Fernandes, apudSantos, 2001), caracterizaram laços que favoreceram que empreiteiras e empreendedores imobiliários avançassem na apropriação e negociação do solo.
A circulação econômica e financeira nas práticas capitalistas apontadas exige amplo investimento público em infraestruturas para realizar o meio técnico e informacional, em graus, intensidades e ritmos distintos, tanto na política econômica e territorial do Porto Digital e naquela conduzida pelo Estado para o Projeto Urbano Recife-Olinda (não implementado), e nas intervenções no Cais José Estelita, na linha da orla, com o Projeto Novo Recife (Figura 5).
Planos, Projetos Urbanos e intervenções na área central do Recife (2000 a 2023) - aproximação ou afastamento da cidade como bem público?
Desde fins dos anos 1930, impulsionando-se na década de 1960, o centro do Recife experimentou esvaziamento econômico e degradação de suas construções (Lacerda e Zancheti, 1999). Nos anos 1970, novas centralidades abrigaram as classes média e alta, que priorizaram residir em apartamentos na orla com ampla oferta de comércio, serviços e amenidades, em Boa Viagem, Casa Forte e Espinheiro, contribuindo para a perda populacional do centro e progressivo declínio (id., ibid.).
A área central não mais seria o epicentro econômico, social e cultural da cidade, e a região do Porto do Recife deixou de receber melhoramentos, intervenções e políticas de revitalização. A diminuição do interesse pelo Bairro do Recife acarretou sua desvalorização, potencializada pelo declínio das atividades portuárias deslocadas para o Porto de Suape (1978) (Braga, 2013). A intensificação industrial do estado de Pernambuco induziu que a Região Metropolitana do Recife se formasse, levando populações e empresas a se trasladarem, esvaziando a área central.
Somente em 1976, a região despertou interesse, motivado pelo desenvolvimento econômico, preservação do sítio e dos edifícios de valor com o Plano de Preservação dos Sítios Históricos da Região Metropolitana do Recife, identificando o valor artístico do conjunto urbanístico da área central. Essa relevância como sítio histórico foi regulamentada com base nos espaços públicos (Lacerda, 1999), reforçando o patrimônio e sua preservação como critérios para um planejamento ecoando a Conservação Integrada7, praticada em Bolonha e Ferrara, na década de 1970.
Em 1987, diante da perda populacional e degradação física, a ênfase econômica da revitalização tomou a dianteira. A Prefeitura liderou o Plano de Reabilitação do Bairro do Recife, em referência ao Plano de Bolonha8 e experiências de Oriol Bohigas para Barcelona (Pontual, 2007), destinando imóveis a escritórios e centros comerciais, sem alterar padrões arquitetônicos. Preservava-se a população residente e trabalhadora, como no plano de Cervelatti (Bolonha), provendo habitações, restaurante popular e núcleo cooperativo de capacitação de mão-de-obra.
A participação da comunidade (Pontual, 2007) era a tônica aliada à conservação e preservação do patrimônio histórico e edificado, incluindo novos usos. O Bairro do Recife Antigo fora tombado em 1988 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por suas edificações, estilos arquitetônicos e morfologia urbana, priorizando a conservação dos bens patrimoniais, a participação social e manutenção da população residente.
O Plano de Revitalização do Bairro do Recife (Lei nº. 16.290, de 1993) deixou de privilegiar a conservação de imóveis históricos, reafirmando a dimensão econômica. Coerente com o ideário urbanístico, estendia-se não só às áreas de valor patrimonial, emulando a revitalização de áreas portuárias em Boston, Baltimore e São Francisco; Londres e Glasgow; Barcelona, Bilbao e Lisboa, para atrair investimentos com mote cultural, estimular a economia e revitalizar a área portuária. Além de conservar o patrimônio histórico e cultural, modernizava-se a economia e o centro, transformando-o em polo regional de serviços, comércio, lazer e cultura.
Em 1997, normas foram estabelecidas pela Prefeitura para a área central, com a Lei nº. 16.290 do Sítio Histórico do Bairro do Recife. Assegurava-se a setorização e execução de projetos previstos no Plano de Revitalização de 1993. Intensificava-se a densidade construtiva e modificavam-se índices urbanísticos com três linhas de intervenção - controlada; de renovação e conservação urbana, fixando-se condições de uso e ocupação do solo e mecanismos de planejamento e gestão. A setorização deveria controlar a descaracterização do casario histórico quando objeto de reformas, regulando o gabarito de altura, taxa de ocupação e coeficiente de utilização. O setor com índices mais flexíveis, permitindo maior verticalização era o de renovação.
Instrumentos urbanísticos fundamentados na função social da propriedade e mecanismos redistributivos seriam definidos a seguir (2001) pelo Estatuto da Cidade, como operações urbanas, operações urbanas consorciadas, direito de preempção, solo criado, outorga onerosa e transferência do direito de construir, buscando justiça social coerente com os debates em torno da elaboração da Lei Federal, consistindo na primeira vez em que operações urbanas foram aventadas para transformar a área central. A incorporação destes instrumentos aos documentos dos Planos Diretores não significou sua aplicação, pois somente em 2022, as leis complementares de operacionalização destes foram aprovadas.
Revisões do Plano Diretor de 1991 levariam à aprovação do Plano Diretor da Cidade do Recife - PDCR 1998. Embora redigido sob o espírito da Reforma Urbana e debates do Estatuto da Cidade, o PDCR não alcançou implementação, sequer foi objeto de acompanhamento (Nunes, 2013). Seguindo princípios democráticos e propondo cumprir com a participação social, o PDCR não avançou quando exposto a forças legislativas locais, cujos interesses descaracterizaram (id., ibid.) o projeto original, sobretudo os índices urbanísticos. O PDCR embasou a revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo - LUOS nº 16.176/97 (1994), e a proposta de instrumentos urbanísticos (id., ibid.), mas o descompasso e o vácuo deixado por sua descontinuidade, evidencia realizações fragmentadas e dissonantes.
Desde o final dos 1990 e anos 2000, o empreendedorismo urbano (Compans, 2005) se tornou pauta urbanística, e despontou no Recife, na contramão do planejamento progressista e social. Programas, políticas públicas e Projetos Urbanos coerentes com o planejamento estratégico, e com a ação imobiliária e parcerias público-privado, estavam alinhados à promoção econômica e cultural em áreas esvaziadas ou em declínio, com apelo à imagem urbana e à qualidade turística. Distintas linhas de transformação urbana conviviam, sem se encontrar; uma emanava desse ideário e a outra, da elaboração dos Planos Diretores de 1991 e 1998, e daquele aprovado em 2008 (Lei nº 17.511/2008), vigente até o fim de 2020, e nas leis complementares, nem todas alcançadas, mas enunciando objetivos sociais significativos. Tais políticas municipais conviviam com programas estratégicos do Governo do Estado de Pernambuco, com resultados em nível local, como a implantação do Porto Digital (2000).
Na primeira metade dos anos 2000, o Complexo Turístico Cultural Recife/Olinda (2003), que deveria vir à luz por meio do Projeto Urbano Recife-Olinda (2005-2009), ganha ênfase. A política urbana e os Planos Diretores continuavam a não acompanhar os planos e programas para a área central, que entendiam a cultura como mote do desenvolvimento urbano à luz de ecos neoliberais, evidenciando o descompasso de instrumentos, leis e intervenções. Mesmo com as revisões dos marcos legais apoiando a transformação orquestrada por interesses públicos, nesse meio tempo, o Projeto Urbano Recife-Olinda não prosperou.
À sombra dos planos diretores, seguiu-se também o Plano Metrópole Estratégica 2010 (elaborado em 2002), que identificou o centro como território de oportunidades para empreendimentos e investimento. O Porto Digital nasceu nesse contexto, como política pública e privada de implantação do polo de tecnologia e economia criativa9, beneficiando-se da localização e provendo benfeitorias para o turismo (Lima, 2012). Sua expansão foi regulamentada pela Lei Municipal nº 17.762/2011, pela importância para a economia do estado e da cidade e desempenho como agente imobiliário, potencializando a negociação de imóveis, crescendo para além do Bairro do Recife (Figura 4), ao ocupar 171 hectares no quadrilátero de Santo Amaro e parte dos bairros de Santo Antônio e São José. Conforme Lacerda e Tourinho (2022), entre 2013 e 2016, ao crescer a abrangência territorial do Porto Digital, aumentaram os setores com isenção parcial de ISS, incluindo os de economia criativa e educacional, com a chegada de universidades à região.
O polo de tecnologia vinculou a lógica de embarque empresarial ao território expandido, amplificando sua ação econômica no setor de TIC e locadora de imóveis (Simas et al., 2020). Ao atuar no mercado imobiliário, o Porto Digital conquistou o Laboratório de Objetos Urbanos Conectados, que tomou o Edifício Apolo 235, causa da expulsão de antigos moradores da região (id., ibid.). Tornando-se um “agente imobiliário” importante, a permanência do Porto Digital no Bairro do Recife explica-se pela localização estratégica no centro da região metropolitana, facilitando conexões e acesso a qualquer ponto da cidade, a 7 km do Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes Gilberto Freyre, o principal do Nordeste (Porto Digital, 2023), e também pela facilidade de negócios imobiliários que podem ser desenvolvidos na área central.
A situação do Porto Digital e sua lógica expansiva, e o uso monopolista locacional (Lacerda e Bernardino, 2022) explicam a destinação da linha d’água para empreendimentos novos de promoção privada, sob a insígnia de inovadores. A fim de se reproduzir, o mercado imobiliário tomou as franjas marítima e fluvial dos manguezais impelindo a produção imobiliária para esses terrenos, pois a antiga ilha e entorno foram ocupadas pelo polo tecnológico. Em zonas muito próximas ou contíguas surgiram distintos padrões de paisagem e diferentes lógicas imobiliárias (Lacerda e Bernardino, 2020), sem continuidade morfológica ou tipológica, contribuindo para a cidade fragmentada, que representa usos, ocupação do solo e públicos conflitantes (Santos, 2001).
O Projeto e a Operação Urbana Recife-Olinda visavam promover uma intervenção integrada, com instrumentos urbanísticos redistributivos. Uma operação urbana consorciada se estenderia unindo a Colina Histórica de Olinda ao Parque da antiga Estação Rádio Pina. O Porto Digital, no intuito de expandir sua influência se tornaria um dos principais atores do Projeto Recife-Olinda, que apesar de não ter saído do papel, foi desdobrado em outros planos de impacto, como Porto Novo Recife (2014) - para sustentar a candidatura da cidade a sediar a Copa do Mundo, e Projeto Novo Recife (2012) para o Cais Estelita, que até hoje se desdobra em ações imobiliárias e resistências.
Orquestrado pelo poder público em várias esferas, Recife-Olinda teria um Consórcio de gestão mediante protocolo de cooperação técnica e financeira entre Governo do Estado de Pernambuco, municípios e a empresa Parque Expo98, S.A., responsável pela remodelação da antiga área ferroviária e do porto, em Lisboa. Em abril de 2005, as quatro entidades envolvidas assinaram acordo de cooperação técnica (Complexo Turístico Cultural Recife/Olinda, 2003 apud Barbosa, 2014).
A requalificação urbanística e ambiental utilizava-se de um dos instrumentos do Estatuto da Cidade (Operação Urbana Consorciada), com apelo ao interesse público. A articulação de órgãos do governo federal, como a Secretaria do Patrimônio da União e o Iphan (Rolnik, 2012) contribuía para deflagrar o Projeto, e a Operação Urbana incluiria Coqueiral de Olinda e Vila Naval de Recife, com princípios urbanísticos e sociais que foram sendo apagados pela concessão a atores privados que sobreviria.
As negociações entre entes institucionais para o Projeto Recife-Olinda incluíam um Grupo de Trabalho envolvendo os dois municípios, o Estado de Pernambuco e a União, e assinatura de convênio entre prefeitos, governador e ministros de Estado. Para implementar o projeto e evitar sobrecarga das instituições públicas, concebeu-se uma Agência gestora autônoma, para a qual seriam repassados os terrenos da União e do governo do Estado de Pernambuco. O debate dos instrumentos e fontes de recursos financeiros, aportes legais e urbanísticos se tornou premente, levando à reflexão sobre a parceria público-privado no âmbito dos Projetos Urbanos e vantagens do solo criado e resgate de contrapartidas onerosas.
As intervenções se dariam nos terrenos de marinha de ambas as cidades, e o perímetro alvo foi subdividido em 12 setores. Com ênfase nos espaços públicos e em transportes multimodais servindo aos 2 municípios, previam-se 1/3 do total das habitações destinadas a faixas populares, e recursos para urbanizar todas as favelas. Uma superfície de 1,5 milhão de m² de áreas livres conteria equipamentos comunitários e turísticos, usos múltiplos, e ampliação da infraestrutura.
Um projeto específico seria desenvolvido para cada um dos setores, como nas ZAC (Zone d’Aménagement Concertée)10, e na transformação das antigas áreas portuárias de Gênova, Barcelona, Roterdam, Hamburgo, Liverpool, Marselha e Bilbao. Na América Latina, Porto Madero era referência, com áreas subutilizadas com potencial de renovação urbana, como a área portuária liberada ou ocupada por ferrovias desativadas no Cais José Estelita e Cais Santa Rita.
Uma execução faseada caberia aos setores por 15 a 20 anos; os menos densos deveriam atrair novos usos e fixar moradores originais. Assentamentos informais seriam incluídos como ação estratégica (Rolnik, 2012), tais como a Comunidade do Pilar, Santo Amaro, Azeitona, Coque e Salgadinho. Parcerias público-privado deveriam ser impulsionadas pela ação do mercado imobiliário, ancoradas em instrumentos urbanísticos, com diretrizes dos governos federal e estadual e prefeituras de Recife e Olinda, e consultoria da Organização Social Núcleo de Gestão do Porto Digital e Parque Expo.
Em 2007, mediante descontinuidade técnica e política do governo de Pernambuco, a nova gestão paralisou o projeto. Dois anos depois (Rolnik, 2012) o mesmo ocorreu em Recife, acentuando descompassos entre planos, projetos e política urbana, acelerando a crescente privatização. Essa região, onde armazéns foram edificados sobre aterros, foi sendo apropriada pela iniciativa privada, durante o leilão de terrenos pela Rede Ferroviária Federal em 2008, quando o Consórcio Novo Recife os adquiriu. O projeto ficou a cargo das construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos, que passariam a transformar a área da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA) onde se situam os mencionados Cais, no bairro de São José. Uma ação dissonante, na contramão do Projeto Urbano, foi o governo do Estado ter se desfeito de terrenos no perímetro do projeto, vendendo-os a atores privados (Rolnik, 2012), contribuindo para a privatização da terra, destinando-os para um fim contrário ao proposto, deixando-se com esse gesto de atender ao déficit social e habitacional da Região Metropolitana do Recife.
Porto Novo (iniciativa pública) e Porto Novo Recife (iniciativa privada) era a denominação dos projetos propostos, com a parceria do Governo de Pernambuco e iniciativa privada, para requalificar espaços antes dedicados à operação portuária, no período de 2012 a 2014. As iniciativas públicas envolveram feiras de artesanatos, apresentações culturais, exposições de artistas em espaços fruto de reconversão de galpões portuários ou edificados em seus terrenos, como o Centro de Artesanato de Pernambuco, o Museu do Cais do Sertão Luiz Gonzaga (armazém 10), o Centro Cultural (módulo 1 e 2) e Terminal Marítimo de Passageiros (armazém 7).
Ao Porto Novo Recife caberia transformar antigos armazéns de carga, e sete deles (9, 12, 13, 14, 15, 16 e 17) seriam reformados para escritórios, restaurantes, bares, lojas de entretenimento e pontos comerciais (Porto do Recife, s.d.). Atualmente, sob a designação Porto Novo Recife está sendo construído um complexo com um hotel-marina e um centro de convenções no Bairro do Recife, dando marcha ao projeto anunciado em 2012-14, no Cais Santa Rita, integrando um grande empreendimento de iniciativa privada, da Ponte Giratória até o Forte do Brum (Kirzner, 2021). As obras desse complexo estavam embargadas desde 2014, sofrendo judicializações. A versão atual do Porto Novo Recife (Figura 6) compreende parte dos Bairros do Recife e São José, onde se localizam aterros dos séculos XVIII e XIX, requalificando uma faixa de 1,5 km da frente d’água que não é tombada, de frente para o delta das bacias dos rios Capibaribe, Beberibe, Pina e Jordão, junto à sua confluência com o manguezal, em parte da zona sul da cidade.
https://portusonline.org/projeto-porto-novo-requalificacao-como-estrategia-de-preservacao-da-memoria-portuaria-da-cidade-do-recife-2/
Junto ao Cais Estelita, o Projeto Novo Recife tem também raízes na prevalência da lógica de empreendimentos imobiliários, ajudado por um entorno regulatório e infraestrutural - leis, infraestrutura viária, prioridade a megaempreendimentos comerciais e residenciais, conduzido pelo poder público municipal e iniciativa privada. Tal conjunto de condições e normativo serve à renovação e revalorização da orla do Capibaribe e linha d’agua, vocacionando-se ao turismo e ao mercado imobiliário (id., ibid.). Isto vai na contramão uma vez mais de uma política urbana de corte social concertada com a dinâmica imobiliária, e coincide com a desativação da Estação Rádio Pina (ERPINA), onde hoje se encontra o Parque dos Manguezais.
A área no bairro do Pina (lindeiro à Boa Viagem), continha durante a Segunda Guerra Mundial uma base militar da Marinha dos Estados Unidos, a qual, findo o conflito, foi cedida à Marinha do Brasil. A ERPINA e o Aeroclube do Recife consistiam em barreira à verticalização, devido ao cone de influência desses equipamentos. Com a desativação da Rádio Pina, o padrão construtivo do bairro seguiu o de Boa Viagem, onde a verticalização era tônica há décadas. Diante da inexistência de restrição de gabarito condicionada pela base militar, o mercado imobiliário passou a construir edifícios altos no bairro do Pina. Esta prática ajudava a consolidar uma cultura de prevalência de interesses e opções do mercado, com empreendimentos e obras viárias de grande porte que pautaram as práticas contemporâneas, e oportunidade ao Projeto Novo Recife (Figura 7). A Via Mangue, o Shopping RioMar e os edifícios residenciais de alto padrão Le Parc abriram a porta a essa maneira de fazer cidade (Kirzner, 2021). Na esteira desses empreendimentos, surgiram sem restrição de gabarito de altura duas grandes torres residenciais de alto padrão, as “Torres Gêmeas”, no Cais Santa Rita, alentando os megaempreendimentos no Cais Estelita.
https://acidadeeourbano.wixsite.com/blog/single-post/2016/09/26/Novo-Recife-um-projeto-moderno-com-velhas-contradi%C3%A7%C3%B5es
O primeiro projeto do Consórcio Novo Recife, despreocupado da conexão com a cidade, e descuidando de impactos ambientais, urbanísticos e sociais, foi aprovado em dezembro de 2012, pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Prefeitura do Recife, seguido de debates e protestos durante as votações, constatada a inexistência de estudos urbanísticos exigidos por lei. Em 2013, insurgências contra danos ambientais e lacunas programáticas alcançaram que o pressuposto passasse de R$ 32 para R$ 62,7 milhões, ao incluir biblioteca pública e parque linear (G1 PE, 2019). Em 2014, o Consórcio Novo Recife deu início à demolição dos galpões, o que levou os manifestantes a ocuparam o terreno do Cais Estelita.
Após várias ocupações por manifestantes, exigiam-se providências contra a privatização, e audiências públicas. Em setembro de 2014, a Prefeitura reapresentou o projeto - um conjunto de obras de urbanização simultâneas a um Projeto de Lei para regulamentar um Plano Específico para o Cais Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga, mencionados no Plano Diretor 2008 como oportunidades de ordem paisagística, cultural e econômica (Baratto, 2014), na forma de projetos especiais.
Em 2015, a compra do terreno do Cais José Estelita pelo Consórcio foi anulada por decisão judicial, comprovando-se irregularidades no leilão, e aquisição por valor inferior ao de mercado. O poder público impediria então qualquer projeto junto ao Forte das Cinco Pontas, incluindo o Cais, além de obrigar o Consórcio Novo Recife a reverter modificações. Após controvérsias, a Câmara dos Vereadores aprovou nesse ano o Plano Específico para o Cais Santa Rita, José Estelita e Cabanga.
Em 2017, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) autorizou a construção de prédios no terreno dos armazéns, por decisão unânime, ao concluir que não havia comprovação das irregularidades do leilão dos terrenos. Em 2019, o Iphan finalizou a análise do Cais José Estelita, com base no licenciamento ambiental, encerrando o embargo que corria desde 2014, dando oportunidade ao prosseguimento do projeto, cercado de críticas, devido a seu teor privatista.
Constavam onze torres, de 12 a 40 andares, pretensões contestadas pelos ativistas do Movimento Ocupe Estelita, cuja mobilização resultou na proposta de 65% da área para espaços públicos e 35% para ocupação privada. Atualmente, treze torres seguem no projeto, com três de 38 pavimentos destinados a apartamentos de alto padrão em fase de finalização; o residencial Mirante do Cais reúne os apartamentos de maior área útil construídos no Recife, evidenciando a privatização, que se beneficiou da poupança e juros elevados durante a pandemia, acelerando o mercado imobiliário.
O parque e o pátio ferroviário das Cinco Pontas, e o vazio remanescente da ligação ferrovia-porto, a orla e a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) Cabanga reservados para parques e equipamentos coletivos, tiveram as obras timidamente iniciadas em 2023, à espera da biblioteca pública e atividades culturais em promessa. A abertura da Av. Dantas Barreto até a orla; um parque linear no Cais Estelita; o escalonamento de altura com prédios mais baixos próximos ao atual viaduto das Cinco Pontas e mais altos próximos ao viaduto Joana Bezerra; assim como fachadas ativas no térreo dos prédios com serviços abertos à população, estão em curso ou a espera do início. A tônica em torres residenciais de alto padrão e a transformação do Cais José Estelita em área corporativa seguem na dianteira, e a coordenação com a política urbana questionável com chamar as obras necessárias à dimensão pública de “ações de mitigação”.
A solução viária de integração com o bairro e equipamentos coletivos não se cumpriu; a ciclovia executada não se integrou à rede cicloviária, servindo exclusivamente às imediações. Parques e praças dispõem-se como jardins dos prédios, e não se desempenham como espaços públicos, aprofundando a privatização. A infraestrutura de mobilidade urbana, custeada pelo poder público, nas três esferas, foi proposta como forma de integrar o território, compensando a ausência de desenho urbano com espaços de uso público (Barbosa; Miranda, 2021), e não tem prazo para ser implementada, porque depende dos empreendimentos junto às 13 torres residenciais e empresariais.
A Política Urbana não pode se resumir a mitigar impactos sobre o meio-ambiente na linha d’água, sequer considerar menores os efeitos e os problemas urbanísticos que o projeto escancara. O entorno da Bacia do Rio Pina segue intensamente ocupado pela ação imobiliária, utilizando-se de terrenos de domínio público e privados, e a fragmentação visual da paisagem se verifica, sob ênfase da construção de edifícios.
A implementação do Recentro, um programa de manutenção, cuidado, e incentivos fiscais para o centro da cidade e governança, reforça a vocação da área para a inovação e tecnologia, e fortalece o Porto Digital. Junto ao amplo programa de isenção fiscal (IPTU, ISS, ITBI), parece se configurar a retomada de políticas públicas para o centro, mas sua articulação com o PDCR 2021 não está clara. As isenções são generosas, por exemplo, se o imóvel for destinado à moradia, o prazo de isenção pode chegar a 10 anos, o IPTU terá desconto de 100% para projetos de construção e recuperação total, e 50% para reparo e manutenção dos imóveis, por cinco anos para uso não residencial, e oito para uso residencial (habitação de interesse social), etc. valendo para o Recife Antigo, Santo Amaro e São José, e mais recentemente, Boa Vista (PCR, 2023); beneficiários de programas de habitação popular teriam isenção do IPTU por dez anos. Ao sabor dessa isenção massiva, pode haver intensificação da construção e retrofit para alta renda, reiterando a formação da linha de riqueza desde aí até Boa Viagem11.
O Recentro não esclarece se isenções serão aplicadas a imóveis novos ou reformas, pois em áreas protegidas como as ZEPH, dificilmente haverá construções novas. Então, se couber ao mercado de edificações novas, que relação guarda com os instrumentos do PDCR 2021, aprovado e regulamentado? Não ficam claras as possíveis relações do Programa com projetos como Novo Recife, alvo de verticalização generosa, que poderia gerar pagamento de contrapartidas e redistribuição, e não apenas a prática da isenção, favorecedora do mercado imobiliário.
Outra questão significativa é que a propriedade da terra na orla é da União, devendo cumprir função social (Brasil, CF, 2023), sendo questionável deixar parte da área central relegada a interesses particulares, de forma que todo projeto ali executado repercute na cidade e no desenvolvimento do centro. Em 2021 foi proposta Lei Federal regulamentando terrenos de marinha, e sua cessão para estados e municípios, mediante interesse coletivo, como planos e projetos ancorados por habitação de interesse social, e ao preservar áreas relevantes ao combate à crise climática, contribuindo para conter a privatização e a pressão imobiliária.
A Proposta de Emenda à Constituição PEC 3/22, aprovada no legislativo passou ao Senado, em tramitação e apreciação da lei. Se aprovada, ao regulamentar áreas de terrenos de marinha (Decreto-Lei 9.760/46) que pertencem à União, derruba-se a obrigatoriedade do regime de aforamento, transferindo gratuitamente as terras a estados e municípios, mediante benefício social. O regime fiscal de terras de marinha dotará então recursos do IPTU aos municípios, contribuindo para sua receita. Garante-se o direito de propriedade aos moradores originais e se evita bitributação, pois impostos federais e municipais incidem sobre essas terras, favorecendo a realização de projetos urbanos, tal como o Projeto Recife-Olinda.
Para além dos impasses fundiários, descompassos de coordenação da política urbana e dos planos e projetos foram e continuam regra. Um Plano de Ordenamento Territorial do Recife (POT Recife), aprovado em 2008, acompanhou a revisão do Plano Diretor (Lei nº 17.511/2008) e da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 16.176/1996). Manifestava-se por fim uma legislação para regulamentar os instrumentos urbanísticos fundamentais à aplicação da função social da propriedade urbana, sacramentada somente no novo Plano Diretor de 2021 (Prefeitura do Recife, Lei nº 17.511/2008, p. 1).
Mesmo com a Lei Municipal nº 18.901, de 23 de março de 2022, definindo normas e procedimentos que regulamentam a aplicação da Transferência do Direito de Construir - TDC (Recife, Leis Municipais, 2022); e a Lei complementar nº 18900 de 23/03/2022, regulamentando a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), prevista no Artigo 98, VI e 115 a 123 da Lei Complementar nº 02, de 23 de abril de 2021, que instituiu o Plano Diretor do Município, esses instrumentos parecem seguir como anúncio, sem realizar-se, o que faz o quadro de dissonâncias persistir, e refletir o desencontro do público e privado na produção do espaço urbano.
Considerações finais
A lógica empresarial de alianças entre mercado imobiliário e agentes públicos vem orientando a transformação do centro, em uma clara ação de renovação urbana que resulta na valorização da terra de orla. A prioridade das práticas de empreiteiras e transformação urbana por agentes privados, como no Projeto Novo Recife, prossegue intensificando a cedência de terras públicas a entes privados e a privatização do uso do solo, que influem na remodelação física e social da área central, promovendo uma ocupação elitista e pautada pela gentrificação.
O Projeto Novo Recife aportou fragilidades na defesa do patrimônio do antigo conjunto ferroviário e da paisagem cultural do centro histórico, indo de encontro aos planos analisados, que tinham como mote a preservação do patrimônio e da paisagem cultural recifenses, juntamente com a fixação de populações residentes e originárias.
O avanço da Proposta de Emenda à Constituição PEC 3/22 é uma oportunidade de regulamentar terrenos de marinha (Decreto-Lei 9.760/46) que pertencem à União, em direção à cidade como bem público, avançando ao transferir essas terras a estados e municípios, quando o benefício social justificar, favorecendo a política e os projetos urbanos.
Outros avanços parecem advir da regulamentação de instrumentos onerosos no Plano Diretor 2021, que segue fragilizada pelas estratégias dos agentes públicos e privados, e a desarticulação da política urbana e promoções imobiliárias privadas, carecendo dessa coordenação para construir uma cidade mais justa.