Introdução
Cada vez mais presente nos dias de hoje, a relação entre trabalho e tecnologia pode analisar-se sob vários/as temas/perspetivas: transformações socio-históricas nos processos de trabalho e reconfigurações profissionais daí decorrentes; impactos das mutações tecnológicas nos atores coletivos; emergência de novas formas de organização e representação; nexos de causalidade entre inovação tecnológica e criação/destruição de emprego; condições de trabalho e desestruturação das relações de emprego padronizadas e da figura do contrato; reconfiguração do tempo e do local de trabalho; enquadramentos regulatórios ajustados à indústria 4.0; desafios em matéria de proteção social e reinvenção do Estado-providência; mapeamento das novas brechas que se abrem no domínio das desigualdades (Estanque et al., 2018; Vandaele, 2018; Anner et al., 2019; Costa, 2019; Drahokoupil e Vandaele, 2021a; Dufresne e Leterme, 2021; Rego e Costa, 2022).
Ainda que a tecnologia digital já fosse omnipresente antes da pandemia de COVID-19, a sua eclosão afetou sociabilidades, identidades, qualificações, gostos, autonomias, etc. (Huws, 2014). E os trabalhadores da gig economy1 foram particularmente penalizados. Desde logo por exercerem atividades que não foram suspensas pelas medidas sanitárias, nem estavam enquadradas por formas de proteção que lhes permitissem não trabalhar e manter algum rendimento - como sucedeu com o recurso ao lay-off ou ao subsídio de desemprego. De facto, motoristas de aplicações e entregadores de comida (cuja circulação aumentou consideravelmente nos espaços urbanos entre 2020 e 2022) foram um exemplo flagrante da exposição aos múltiplos riscos e à vulnerabilidade perante a doença (ILO/OECD, 2020).
Agentes de intermediação multifacetada (Butollo et al., 2022), as plataformas digitais podem ser analisadas, entre outros aspetos, enquanto modelos de negócios, pelos seus aspetos regulatórios, segundo a sua base - seja ela online ou localizada - e pelas formas de resistência ou organização laboral que estimulam (Drahokoupil, 2021; Drahokoupil e Vandaele, 2021b).
Num cenário de externalização de atividades em larga escala (crowdsourcing) orientadas para trabalhadores que se conectam a uma aplicação, a nossa pergunta de investigação poderia formular-se do seguinte modo: o que condiciona e regula a atividade laboral mediada por plataformas digitais e a organização coletiva dos trabalhadores em dois setores específicos em Portugal? Para responder a esta questão, assinalamos, num primeiro momento, algumas condicionantes que moldam o trabalho contemporâneo mediado por plataformas digitais. Em segundo lugar, identificamos características da plataformização do trabalho e damos conta do statu quo em matéria de construção normativa (por iniciativa legal ou jurisprudencial), tendente a reconhecer, em determinadas circunstâncias, o estatuto de emprego dos trabalhadores das plataformas. Em terceiro lugar, tendo por referência o contexto português, concedemos espaço a lógicas reivindicativas e organizativas em construção, tomando como objeto empírico os motoristas TVDE (Transporte individual e remunerado de passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de plataforma Eletrónica) e os estafetas entregadores de comida. Num quarto momento, discutimos os dois casos, lançando reflexões para o debate sobre a organização coletiva destes setores em Portugal e os desafios que colocam à representação e regulação laborais.
Do ponto de vista metodológico, selecionamos dois casos de estudo que representam as duas realidades mais visíveis do trabalho através de plataformas digitais realizado on location em Portugal. Para cada um, procedeu-se à análise de documentos normativos e de materiais produzidos em contexto de mobilizações (comunicados, cadernos reivindicativos e manifestos), no período entre 2018 e 2022. Adicionalmente, realizaram-se entrevistas e recolheram-se testemunhos de dirigentes sindicais e de movimentos de trabalhadores em plataformas, seja agendando encontros para o efeito, seja recolhendo o testemunho de trabalhadores em contexto de protesto.
1. Condicionantes do trabalho via plataformas digitais
A realização do trabalho contemporâneo mediado por plataformas digitais coloca sérios desafios à agenda do “trabalho digno” da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Se a dignidade do trabalho se afere pelas condições em que é realizado, no quadro da indústria 4.0 ela é posta recorrentemente à prova. É verdade que a digitalização não deve ser vista automaticamente como um fator de degradação laboral e de desproteção das pessoas que vivem do trabalho, podendo haver impactos positivos, negativos ou um misto de ambos (Fernandes, 2021: 54). Mas o cenário que se abre às relações laborais no quadro da economia de plataformas é pouco auspicioso e está sujeito a um conjunto de condicionantes, que descrevemos de seguida.
Em primeiro lugar, a reconfiguração das sociabilidades contemporâneas é afetada por um processo de digitalização que transforma relações sociais, económicas e políticas (Trillo Párraga, 2016: 61). Como sublinha Huws (2014: 5-6), os jovens (mas não só) estão hoje submetidos a uma cultura de comunicação que faz com que, mesmo quando caminham em grupo pela rua, releguem para segundo plano uma ideia de presencialidade. Algo de semelhante se passa quando pessoas sentadas a uma mesa de café enviam mensagens de texto ou usam o telefone para fotografar os arredores, parecendo desprezar o contacto interpessoal entre elas; ou quando, num autocarro, estão presas a dispositivos eletrónicos e com auriculares nos ouvidos; ou ainda quando, numa conferência, trabalham simultaneamente nos seus computadores, respondendo a emails e fazendo outras tarefas, quase sem contacto visual entre elas.
Por outro lado, as relações de classe e as suas hierarquias internas não desapareceram no mundo das plataformas digitais. No topo, encontramos analistas, arquitetos de dados, desenvolvedores de software e aplicativos, especialistas em networking e inteligência artificial, designers e produtores de novas máquinas inteligentes, robôs e impressoras 3D, especialistas em marketing digital e comércio eletrónico. Na base da hierarquia, encontramos “escravos digitais” trabalhando nas plataformas digitais, motoristas da Uber, pessoas que fazem serviços ocasionais (reparações, prestação de cuidados a animais de estimação, etc.) no quadro da chamada “economia ‘colaborativa’” (Degryse, 2016: 23).2 Ainda que a economia digital possa abrir novos horizontes e oportunidades, dando lugar a formas de ocupação para segmentos com grande dificuldade de acesso ao mercado de trabalho (por exemplo, migrantes sem estatuto de cidadania regularizado), a emergência dessas “novas” formas de trabalho tem sido acompanhada por relações de emprego que combinam locais de trabalho não convencionais com novos arranjos contratuais distantes de condições de trabalho outrora consideradas típicas (Valenduc e Vendramin, 2016).
Em terceiro lugar, os processos de supervisão da atividade laboral são também alterados. Além das crescentes assimetrias de poder entre quem controla o trabalho e quem o realiza (Crouch, 2018), a supervisão do trabalho é realizada por meios informáticos, evidenciando que a suposta autonomia dos trabalhadores é condicionada por um “algoritmo, o programa-chave pré-definido de acordo com os propósitos e critérios empresariais” (Fernandes, 2021: 55). Esse aumento do poder de vigilância gerencial vem a par com uma opacidade e falta de transparência do algoritmo (Barcevičius et al., 2021: 5; Moreira, 2021: 147) e revela uma desresponsabilização das entidades empregadoras na proteção de riscos relacionados com a saúde, acidentes de trabalho e segurança social (Crouch, 2018).
Finalmente, o local e o tempo de trabalho reconfiguraram o seu “estatuto”, por via de um amplo processo de diluição de fronteiras entre trabalho e não trabalho, entre espaço público e espaço privado, entre baixo custo e elevado custo de produção de bens, etc. (Méda, 2016; Körfer e Röthig, 2017; Huws et al., 2018). Por um lado, o local onde o trabalho é realizado deixou de ser exclusivamente físico, podendo acompanhar o trabalhador para “todo o lado”, fazendo ressurgir os “fantasmas da ubiquidade” (Supiot, 2002: 21). As interações físicas com supervisores e trabalhadores são consideradas muitas vezes obsoletas ou até contraprodutivas pelo facto de poderem introduzir alterações indesejáveis nos processos de matching da oferta e procura (Bérastégui e Garben, 2021: 104). Por outro lado, a fluidez do horário em que o trabalho é realizado, a desconsideração do “tempo de disponibilidade” e/ou do “tempo de espera” do trabalhador, que não são remunerados, e o prolongamento informal de horários por via de uma cultura de “conexão permanente” (Amado e Moreira, 2020) geram “subtis compressões da liberdade e desgastes psicofísicos cumulativos” (Fernandes, 2021: 54), colocando em causa a limitação do período de trabalho (Moreira, 2021: 102-105).
Estas questões, que floresceram com a “economia de plataformas”, têm desafiado os sistemas de relações laborais, nomeadamente no plano europeu. Daí que tratemos seguidamente algumas das características do trabalho via plataformas digitais (secção 2.1), bem como do estatuto do trabalhador plataformizado (secção 2.2), aspetos que nos guiam ao contexto português (secção 2.3).
2. Plataformização do trabalho: características e debates em torno da regulação
Estimam-se em 28,3 milhões os trabalhadores de plataformas digitais na União Europeia (UE) a 27, um número que poderá atingir os 42,7 milhões em 2030 (Barcevičius et al., 2021: 5). A plataformização é um movimento multiforme a que correspondem inovações no processo produtivo, mas sobretudo novas formas de prestar, organizar e controlar o trabalho. Inclui atividades que podem ser executadas em qualquer lugar do mundo e online e outras que exigem presença física, tendo em comum o facto de serem exercidas fora das estruturas tradicionais do direito do trabalho, da proteção social e das responsabilidades definidas numa relação de emprego (Visser, 2020: 10).
2.1. As características do crowdsourcing e do trabalho presencial via aplicação
Neste artigo, a nossa análise incide sobre dois dos setores mais visíveis deste processo em Portugal - o transporte de passageiros e a entrega de comida. Antes de apresentarmos os estudos de caso, vale a pena sistematizar o que nos parecem ser as cinco principais características do crowdsourcing.
A primeira é que os operadores de plataformas digitais apresentam-se formalmente como meros mediadores, i.e., empresas que apenas detêm os meios tecnológicos para “organizar o encontro entre oferta e procura” de diferentes atividades económicas (Abílio, 2020: 114), pretendendo invisibilizar as formas de subordinação jurídica e de controlo do trabalho que elas próprias exercem (Trillo Párraga, 2016) e subtrair-se assim às suas responsabilidades empregatícias.
Em segundo lugar, os trabalhadores que prestam a sua atividade através das plataformas são, regra geral, enquadrados formalmente como trabalhadores independentes ou empresários em nome individual, encontrando-se excluídos das formas de proteção social, de seguros ou planos de saúde, dos limites de horários ou das regras de remuneração mínima previstas pela lei (De Stefano, 2016), bem como das estruturas e dos acordos sindicais (Visser, 2020). Segundo Barcevičius et al. (2021: 5), cerca de 5,51 milhões de trabalhadores de plataformas digitais na UE têm um enquadramento laboral inadequado, um número provavelmente subestimado.
A terceira característica relaciona-se com o facto de as plataformas digitais serem agentes de uma forma particular de externalização: já não para um contingente predefinido de trabalhadores vinculados a uma empresa externa prestadora de serviços (o tradicional outsourcing), mas sim para uma multidão (crowd) indeterminada e despersonalizada de trabalhadores ligados a uma aplicação, que concorrem entre si pelo trabalho disponível e com os quais a plataforma não estabelece nenhum vínculo laboral, mas uma suposta “parceria” com “trabalhadores-empresários” (Howe, 2006; Abílio, 2020: 114). A externalização também abrange uma parte do capital fixo das empresas, a cargo dos trabalhadores que têm de alugar os seus carros ou motos, ou adquiri-los através do endividamento, num modelo de lean platform e de redução dos custos (Tomassoni e Pirina, 2022: 250).
Um quarto aspeto é a gestão algorítmica da atividade (a que já antes aludimos) ser pautada por uma grande dispersão dos agentes que nela participam (os clientes/consumidores) e por uma enorme centralização da informação, que permite novas e intensas formas de subordinação e de controlo caracterizadas pela opacidade (Abílio, 2020). O algoritmo monitoriza continuamente o comportamento dos trabalhadores, avalia em permanência o seu desempenho, elimina os mecanismos de negociação entre trabalhador e empresa, suprime as formas de comunicação direta com as chefias e escapa às regras mais básicas de transparência (Moreira, 2021; Braga e Silva, 2022).
Por fim, no caso do crowdwork offline, também designado work-on-demand via apps, que é o objeto deste artigo, estamos perante atividades intermediadas por uma aplicação digital, mas cuja execução é realizada localmente e fora da rede - quer o transporte de passageiros quer a entrega de comida não podem ser efetuados online, como acontece com serviços ou microtarefas como design, tradução, etc.. Assim, o local de trabalho é móvel, mas não desaparece, nem se dissolve na cloud. O facto de haver um vínculo territorial e de o trabalho não estar sujeito à concorrência global da mesma forma que aquele que é feito integralmente online é relevante para equacionar as possibilidades de ação coletiva. A existência de um contacto presencial com o cliente comporta riscos laborais, mas também permite uma relação direta com os consumidores, conferindo maior visibilidade à pessoa do trabalhador e aumentando o potencial de organização dos trabalhadores.
2.2. Mapeamentos regulatórios - O direito do trabalho posto à prova?
Ao estilhaçar os principais pressupostos da relação de emprego típica (emprego por tempo indeterminado, vínculo estável, a tempo integral, remuneração mensal fixa, inserção numa organização e acesso a proteção social maioritariamente a cargo do empregador) e ao diluir algumas das categorias essenciais da regulação jurídica existente, a “economia das plataformas” acentuou uma “crise de identidade de certos institutos básicos” do direito do trabalho (Moreira, 2021: 32). O modelo de prestação de trabalho no paradigma do crowdsourcing levanta questões difíceis no que diz respeito à aplicação dos quadros jurídicos em vigor. E mesmo quando a lei procura acompanhar as mudanças que ocorrem no campo da economia e da gestão, as plataformas são relativamente flexíveis na adaptação das suas formas organizativas e contratuais por forma a dissimularem os tipos de subordinação laboral que exercem e a fugirem à regulação existente. Tendo em conta que o direito do trabalho tutela o “trabalho subordinado”, realizado sob a direção e a dependência organizacional e funcional de uma entidade empregadora, a qualificação da relação de trabalho como estando sob o poder diretivo daquela continua a constituir o nó górdio da definição, nos nossos sistemas legais, do estatuto de “emprego”, e a ser condição de acesso aos direitos e proteções historicamente construídas em torno dele.
Recorde-se que o movimento contra os “falsos recibos verdes”, muito ativo em Portugal entre 2008 e 2014, já colocava essa questão no centro das suas reivindicações. O direito do trabalho também já há muito identificou situações fraudulentas de recurso a contratos de prestação de serviço para dissimular relações de emprego e fugir à aplicação da legislação laboral e até se adotaram instrumentos legais inovadores, como a ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho (Soeiro, 2020). A questão é que a realidade do crowdsourcing e do trabalho em plataforma veio complexificar este problema, na medida em que a “presunção de laboralidade” e a identificação dos “indícios” de um contrato de trabalho foram perspetivados, no enquadramento legal existente, para relações de trabalho bilaterais (sem intermediação de uma plataforma) e para uma era de trabalho “pré-digital” (Moreira, 2021: 73), anteriores à gestão algorítmica da atividade laboral.
Compreende-se, pois, que o debate sobre o estatuto laboral dos trabalhadores de plataformas venha ocupando os operadores de justiça um pouco por todo o mundo. Desde 2016, e sobretudo a partir de 2020, tem existido um intenso movimento jurisprudencial de progressivo reconhecimento de muitos destes trabalhadores “uberizados” (particularmente estafetas/entregadores e motoristas de passageiros) como trabalhadores por conta de outrem.3 A Comissão Europeia apresentou também, em dezembro de 2021, uma proposta de diretiva para “melhorar as condições de trabalho nas plataformas digitais” (European Commission, 2021), incidindo designadamente sobre estatuto profissional, transparência do algoritmo e deveres de informação das plataformas.
2.3. O caso português
Um inquérito de 2017 sobre “economia colaborativa e emprego” na UE estimava que mais de 10% da população adulta portuguesa já prestara algum serviço a partir de uma plataforma digital, havendo entre 1,6% a 4,2% a ter nas plataformas digitais uma fonte significativa (ou única) de rendimento (Pesole et al., 2018). Nas estimativas mais conservadoras, serão pelo menos 80 mil trabalhadores neste setor, em Portugal.4 Na verdade, é impossível saber ao certo quantas pessoas estão efetivamente a trabalhar nas plataformas de crowdwork offline (Boavida et al., 2021). Se no caso dos TVDE é conhecido o número de licenças, no caso dos estafetas a inexistência de uma lei específica e a prevalência da informalidade tornam a tarefa ainda mais difícil.
Para Tomassoni e Pirina (2022: 249), “Portugal, e em particular Lisboa, estão a ser o laboratório da expansão de um capitalismo de plataforma muito apoiado pelos poderes públicos”, assinalando que a Uber escolheu a capital portuguesa para instalar o seu centro tecnológico na Europa. Por outro lado, a Lei 45/2018 (conhecida como “Lei Uber”),5 que regula o transporte de passageiros, foi considerada “original” e até “surpreendente” por introduzir a figura do “operador de TVDE”, inexistente em qualquer outro país, num modelo que “pressupõe a inexistência de qualquer contrato de trabalho entre a empresa operadora de plataforma tecnológica e o motorista” (Amado e Moreira, 2019: 76), libertando assim as plataformas digitais de compromissos laborais. Embora a lei coloque na esfera jurídica das plataformas vários poderes típicos de empregador, como o controlo do tempo de trabalho (Moreira, 2021: 95), não prevê a existência de vínculo de emprego entre trabalhadores e plataformas. A haver qualquer relação de emprego será, segundo a lei, entre o trabalhador e o “operador de TVDE”, restando saber quantos destes operadores não serão, afinal, trabalhadores empresarializados, i.e., verdadeiros “emprecários”.
Em 2021, o Livro verde sobre o futuro do trabalho (MTSSS, 2021: 172) assumiu a pertinência de “criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria”. Abriu-se, assim, caminho para um possível reconhecimento da relação de trabalho subordinado entre plataformas e trabalhadores.
Esta possibilidade foi consagrada numa proposta de lei de outubro de 2021 para apreciação pública.6 Nela previa-se a existência de uma nova “presunção de laboralidade” (um artigo 12-A a aditar ao Código do Trabalho) que identificava uma série de indícios (decorrentes quer das características da relação entre operador da plataforma e prestador de atividade, quer entre este e o utilizador dos serviços) que, a serem verificados (pelo menos dois), faziam presumir a existência de uma relação de trabalho dependente com a plataforma digital. Posteriormente, uma nova proposta de lei do Governo reintroduziu, em junho de 2022, um “terceiro ente” legal entre a plataforma e o trabalhador, tendo merecido críticas dos coordenadores do Livro verde sobre o futuro do trabalho e da Autoridade para as Condições de Trabalho por dificultar o reconhecimento da relação laboral com as plataformas. A solução adotada no final do processo legislativo, em dezembro de 2022, acabaria por dar prioridade à plataforma na presunção de contrato, ainda que admitindo a existência de um intermediário e atribuindo aos tribunais a decisão final sobre o empregador a reconhecer. Ao mesmo tempo, a lei clarificou que tal presunção inclui o regime legal dos TVDE (regulado pela Lei 45/2018), mantendo-se em aberto o modo de compatibilização entre a lei geral e as normas específicas relativas ao transporte de passageiros em veículos descaracterizados.
Esta contextualização sobre o trabalho via plataformas digitais, a problemática da sua regulação, bem como a repercussão no mercado de trabalho português teve como objetivo enquadrar o nosso objeto de estudo. Na sequência, apresenta-se o trabalho empírico e dedica-se especial atenção aos casos concretos de lutas de trabalhadores do setor de transporte de passageiros e entrega de comida através de plataformas digitais de trabalho em Portugal.
3. Narrativas e formas de organização coletiva em construção: as lutas dos motoristas TVDE e de estafetas entregadores de comida
Nesta secção analisamos as lógicas reivindicativas e organizativas de motoristas de TVDE e entregadores de comida. Utilizam-se como fontes primárias do caso dos motoristas de TVDE o “Caderno Reivindicativo TVDE” elaborado pela FECTRANS - Federação dos Sindicatos dos Transportes e Comunicações,7 bem como documentos das estruturas sindicais da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), além de dez entrevistas semiestruturadas a trabalhadores, ativistas e dirigentes sindicais do setor (realizadas entre novembro de 2021 e março de 2022), e observações in loco. Para o caso dos estafetas, utilizam-se documentos do movimento Estafetas em Luta e do Sindicato de Hotelaria do Norte, bem como o registo de entrevistas e testemunhos recolhidos junto de seis trabalhadores em abril de 2022 e da observação in loco de manifestações.
3.1. Os motoristas de TVDE
Em Portugal, o transporte de passageiros via plataformas digitais iniciou-se em julho de 2014 com a empresa Uber. As lutas dos trabalhadores do setor por melhores condições de trabalho já duram, portanto, há quase uma década. Através da “Lei Uber”, tais processos adquiriram um novo sentido e é nesse contexto que um grupo de trabalhadores estabelece contacto com o Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP) em busca de soluções para os seus problemas. De acordo com o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), no final de 2021, estavam certificados em Portugal 30 314 motoristas e 8494 operadores de TVDE (IMT, 2021). Trata-se de um número expressivo para o contexto laboral português, ainda que fosse curial percecionar o grau de coincidência entre licenças emitidas e trabalhadores em exercício efetivo da sua atividade. Importa, pois, olhar para os discursos e estratégias organizativas destes profissionais.
3.1.1. A lógica reivindicativa
Um marco importante das reivindicações laborais está plasmado no “Caderno Reivindicativo TVDE”. A partir de um diagnóstico das insuficiências de regulação da atividade de TVDE, o documento (de novembro de 2020) apresenta propostas de melhoria e dignificação dos trabalhadores do setor.8 De acordo com um ativista entrevistado, “o caderno reivindicativo nasce da primeira reunião que tivemos no sindicato, em setembro” daquele ano. O documento incorpora uma pauta reivindicativa com 14 pontos, desde a relação direta dos trabalhadores com as plataformas até à estabelecida com o Estado português. De acordo com uma ativista, “ninguém foi consultado [sobre a “Lei Uber”], porque se [os motoristas] tivessem sido consultados a Lei teria sido feita de outra maneira”. Nesse sentido, aquela parece ter constituído uma resposta às empresas de táxi que se sentiram ameaçadas com a chegada do transporte via plataformas digitais, como de resto foi possível testemunhar nas manifestações contra os trabalhadores de plataformas junto ao aeroporto de Lisboa em 2016. Segundo um dirigente do STRUP, “tudo isso fez com que o governo português tivesse que regulamentar a atividade, sob pena de se criar um caos no país”.
Destacamos três tipos de reivindicações. A montante, emerge uma questão estrutural relacionada como o poder excessivo das plataformas: “as plataformas têm poder disciplinar sobre os motoristas sem sequer sentirem obrigação de dar explicações” (trabalhador/ativista); “as plataformas no âmbito dos TVDE são um Estado dentro do Estado” (dirigente do STRUP). Daí a necessidade de se reivindicarem formas de poder capazes de deter bloqueios arbitrários: “as plataformas têm que descer à terra e tem que haver uma entidade que vá arbitrar estes tipos de conflitos”, dizia um trabalhador. A Lei 45/2018 adensou este cenário de desconfiança, ao criar a tal figura intermediária entre trabalhadores e as plataformas, o “operador de TVDE” (conhecidos como “parceiros”). Embora sejam os operadores que contratam os motoristas, o poder disciplinar não está nas suas mãos, mas sim nas plataformas: “quem tem que ter o poder disciplinar sobre o trabalhador é a sua entidade patronal e não uma entidade terceira” (dirigente da FECTRANS).
O estatuto de motorista e a existência de um contrato coletivo de trabalho capaz de garantir um rendimento mínimo aos profissionais que desempenham esta atividade a tempo inteiro é outro dos aspetos salientados. Por um lado, observa-se uma dedicação à atividade que não tem tradução num reconhecimento pecuniário adequado: “neste momento nós corremos o risco de trabalhar 30 dias no mês, 18 horas por dia, e no final aquilo que sobra para o motorista não chega ao ordenado mínimo nacional”, como nos referiu um trabalhador. Outro entrevistado lembrava que “se a Lei [Lei 45/2018, artigo 10º, n. 2, alínea e)] fosse cumprida, cada trabalhador teria um contrato de trabalho” (dirigente do STRUP). Esta reclamação de efetividade e cumprimento da lei põe em destaque um conjunto de matérias relacionadas com direitos por cumprir, plasmados na “lei escrita”, mas não na “lei na prática”, tais como a proteção social em caso de baixa médica ou a concessão de subsídios (de refeição, férias ou Natal).
O ponto anterior já deixou antever a centralidade das questões remuneratórias: “a política tarifária determinada unilateralmente pelas plataformas digitais não compensa de forma nenhuma os custos com a própria atividade” (dirigente do STRUP), o que “prova que nós trabalhamos abaixo do preço de custo” (trabalhador). Ora, se nos termos do artigo 15.º, n.º 2 da Lei 45/2018 se estabelece que “os preços finais [devem] cobrir todos os custos associados ao serviço”, a preocupação dos ativistas é que, através da lei, se garanta que “qualquer plataforma que opere ou venha a operar em Portugal não possa fazer isso abaixo de determinado valor” (trabalhador/ativista), o qual deve ser revisto periodicamente. Portanto, “a questão dos custos operacionais também é uma questão premente aqui no setor”, segundo outro entrevistado.
É interessante notar também a predominância masculina no setor, que deve ser equacionada tendo em conta a divisão sexual do trabalho, o tipo de disponibilidade requerida, as estruturas familiares e a assunção, por parte das mulheres, de quase todo o trabalho não remunerado de cuidados de crianças e outros familiares, como fica patente quando um trabalhador reconhece: “se é mãe e tem filhos pequenos, é possível que a nível do horário tenha mais dificuldade”. Embora a “ausência” das mulheres seja justificada pelos dirigentes masculinos em termos de “vontade” (“elas próprias não querem”) e de um suposto menor compromisso contestatário (“infelizmente nas lutas [em] que nós andamos elas não aparecem, o que é uma pena porque parece que só os homens é que andam em luta”), há queixas específicas de mulheres neste setor de atividade, mas o “Caderno Reivindicativo TVDE” não lhes reserva espaço. As reivindicações específicas e a participação das mulheres neste setor de atividade são questões que devem ser aprofundadas em investigações futuras.
3.1.2. A lógica organizativa
Como corolário da lógica reivindicativa, a lógica organizativa dos motoristas TVDE pode estruturar-se em cinco aspetos. Em primeiro lugar, observam-se as “reuniões plenárias”. Desde 2020 é possível localizar registos da realização de seis “reuniões plenárias” organizadas entre trabalhadores dos TVDE e o STRUP, conforme consta do próprio site oficial deste sindicato. Em tais reuniões discutem-se diversas questões, desde a necessidade de alteração da Lei 45/2018, até ao planeamento das ações no espaço público e junto do Governo, constituindo estas um espaço para o exercício da deliberação democrática na tomada de decisões na busca de soluções para os problemas do setor.
Em segundo lugar, destaca-se a formação de um grupo de trabalho no âmbito do próprio STRUP. Segundo um trabalhador, “conseguimos enumerar pelo menos cinco sindicatos a nível nacional que representam o setor dos transportes e apenas um deles aceitou ouvir-nos e receber-nos em julho do ano passado [2020], foi o STRUP”. Em diálogo com a legislação do setor, o grupo, também denominado grupo executivo, é constituído por dois operadores de TVDE (“parceiros”) e dois motoristas.
Em terceiro lugar, importa contemplar os protestos de rua, tendo havido já uma dezena de manifestações organizadas por ativistas e pela organização sindical afiliada na CGTP. O auge desses protestos terá sido a manifestação ocorrida em novembro de 2020, altura em que foi entregue o “Caderno Reivindicativo TVDE”: “no dia da sua entrega desfilamos [em marcha lenta] com cerca de 800 viaturas, junto do AMT [Autoridade da Mobilidade e dos Transportes], junto do IMT e, por fim, na Assembleia da República, onde fizemos a entrega do documento” (dirigente do STRUP). Outro momento que deve ser destacado é a manifestação ocorrida em novembro de 2021, aquando das intervenções dos responsáveis pelas plataformas digitais no âmbito do evento internacional Web Summit.9 De acordo com um dos entrevistados, procurou-se nesse espaço de grande visibilidade mediática “esclarecer as pessoas sobre o que se passa” no setor. Nessas ocasiões, os motoristas denunciaram as condições precárias em que trabalham.
Uma quarta dinâmica organizativa é a sindicalização. Já antes se mencionou que o número de motoristas TVDE certificados em Portugal é superior a 30 mil. Os Estatutos do STRUP estabelecem que qualquer trabalhador que exerça a sua atividade no setor de transportes rodoviários e urbanos é um potencial filiado no sindicato. Por um lado, “hoje há muito mais trabalhadores TVDE sindicalizados do que havia, por exemplo, há dois ou três anos” (dirigente da CGTP). Por outro, reconhece-se que “a taxa de sindicalização destes trabalhadores [ainda] é particularmente baixa” (dirigente do STRUP). A explicação para tal pode relacionar-se com a própria “Lei Uber”, pois “muitos destes trabalhadores interiorizaram a questão de serem empresários em nome individual” (dirigente da CGTP). Existe também a perceção de que neste setor “[…] há uma aversão ao sindicato, criada estrategicamente não sei por quem” (dirigente do STRUP). Por fim, o setor é marcado por “problemas de imigração”, ou seja, trabalhadores que estão numa situação não totalmente regularizada ou com algum receio de exposição, que tornam pronunciada a “dificuldade da intervenção sindical” (dirigente da FECTRANS). Daí o STRUP ter vindo a realizar campanhas para captar associados.
Finalmente, a utilização das redes sociais tem ganho crescente expressão. Além de os motoristas TVDE possuírem um separador no site do STRUP10 e de disporem de informações regularmente veiculadas nos sites da FECTRANS e da CGTP, têm-se valido das redes sociais, tais como Telegram (aproximadamente 2000 membros) e Facebook11 para se organizarem e divulgarem as suas reivindicações. Desde o início da pandemia da COVID-19, os trabalhadores passaram a utilizar o instrumento das “reuniões plenárias híbridas” (em modo presencial e remoto), possibilitando “reuniões plenárias mais alargadas”12 (dirigente do STRUP). Presentemente, está a planear-se a criação de um canal no YouTube do setor de TVDE com o objetivo de apresentação de reivindicações para o público em geral.
3.2. Estafetas entregadores de comida
As plataformas de distribuição de refeições operam em Portugal desde 2017, sendo as maiores a UberEats (30% do mercado) e a Glovo (com 20%), a que se juntam outras, como a BoltFood ou a Takeaway.com13 (Boavida et al., 2021: 14). A atividade opera do modo que já foi caracterizado, sendo os pagamentos feitos, por regra, através de uma taxa fixa por entrega, de uma taxa variável em função dos quilómetros e de uma percentagem do valor cobrado pela entrega, que é retido pela plataforma (geralmente 25%).
A esmagadora maioria dos entregadores de comida está enquadrada como trabalhador independente ou empresário em nome individual, mas nem todos estabelecem uma relação direta com a plataforma. Há empresários que fazem uma intermediação com alguns trabalhadores através das “contas de plataformas” (como acontece na UberEats) e há também intermediação através de empresas de trabalho temporário ou de prestação de serviços (como acontecia com a Randstad na Takeaway.com). A realidade laboral que observámos confirma a tendência da literatura. Os horários de trabalho são muito prolongados, sobretudo para quem procura obter um pouco mais de rendimento: “eles dormem em cima da moto”, dizia-nos um trabalhador entrevistado; “hoje fiz 16 horas”, relatava-nos outro. Os rendimentos são baixos (1,10 € por cada recolha, a que se soma 0,24 € por quilómetro realizado) e todas as despesas, desde o combustível ao seguro de acidentes de trabalho, correm por conta dos trabalhadores. O trabalho é essencialmente masculino e migrante. Nos movimentos de protesto, a presença de mulheres é residual. De acordo com um dos entregadores entrevistados, o universo dos estafetas do Porto terá aproximadamente “70% [de] brasileiros, 10% [de] portugueses e 20% de paquistaneses, indianos, venezuelanos, ciganos”.
3.2.1. A lógica reivindicativa
De entre as reivindicações dos estafetas que têm organizado os protestos no Porto em 2022, destacam-se três temas. O primeiro tem a ver com o custo crescente com os meios e instrumentos de trabalho, ao qual não corresponde nenhum aumento do rendimento nem da distribuição das receitas entre plataforma e trabalhadores. Nas palavras de um estafeta entrevistado: “Além do aumento da gasolina, é o aumento de tudo… as plataformas, ao invés de aumentarem os nossos rendimentos, estão a diminuir. Estamos a perder 50% no valor das tarifas, a Glovo aboliu o bónus chuva, está inviável. Onde a Glovo pagava 42 cêntimos por quilómetro, hoje paga 24. Numa viagem de 10 quilómetros, que é uma viagem longa, nós ganhamos 2,5 - 3 €. Estamos a pagar para trabalhar!”. Um dos trabalhadores explicou que a razão dos protestos é quererem uma “recomposição dos valores”, “temos uma inflação de mercado, de compras, de comida, os combustíveis absurdamente caros […] e a empresa nem sequer se propõe conversar para recompor os valores, [o que] fazem é diminuir os valores”; “estamos há três anos recebendo a mesma coisa”, referiu outro.
O comunicado distribuído na manifestação realizada em abril de 2022 enumera as exigências centradas no valor das taxas: “um mínimo de 0,80 € do preço de gasolina por cada km, contado desde a receção do pedido até à entrega do mesmo”, “o aumento do valor pago por cada entrega para 2,5 €”, “um valor adicional em caso de espera superior a 10 minutos de 1 €”. O folheto refere ainda outras matérias: “um salário mínimo garantido de 800 €”, bem como “férias pagas e um subsídio de Natal no valor proporcional ao do ano trabalhado”, além da responsabilização das plataformas na subsidiação da “aquisição dos veículos” e sua “reparação, face ao aumento brutal destes custos”.
Um segundo tema é a gestão algorítmica da atividade, porque esta não é transparente nos critérios de distribuição de trabalho: “Não sabemos como o algoritmo trabalha, está fechado a sete chaves!” referiu um estafeta; “os pedidos caem para pessoas que não estão à porta [do restaurante], devia[-se] criar um sistema de dar as entregas por ordem de chegada”, “queremos falar com alguém, não há ninguém que nos atenda…”, disse outro. Com efeito, a existência do algoritmo elimina a comunicação direta, a interação humana e o feedback: “não tem onde recorrer, manda mensagem para um lugar que você não sabe onde é…”; “eles falam em abstrato pela aplicação, 90% das respostas que recebemos são automáticas”; “quando nos queixamos de qualquer problema não temos ninguém que nos dê um apoio, um acompanhamento…”. A contestação da gestão algorítmica resulta ainda de esta dissolver a “empresa” num espaço online aparentemente intangível: “nem sequer tem um escritório, um telefone, um lugar… se precisarmos de acionar a polícia, o Ministério Público, seja quem for, para procurar a Glovo para buscar nossos direitos, nós não temos. Aonde vamos mandar a correspondência? Onde é que um oficial de justiça vai entregar uma intimação? Isso juridicamente não devia acontecer, deviam garantir algum ponto onde a gente pudesse conversar com essa gente…”; “a Uber tinha atendimento presencial para os motoristas no Porto, mas encerrou. Para os estafetas nunca teve”.
Um terceiro tópico prende-se com as condições de segurança laboral e com os acidentes de trabalho. Como relatou um dos estafetas: “eu sofri um acidente na Uber, uma fratura exposta, passei dois meses sem trabalhar, nunca recebi nenhuma resposta da Uber, mandei 20 emails, não pagaram sequer as despesas médicas, não temos com quem falar, só [nos] temos a nós mesmos…”. São frequentes os testemunhos de acidentes (nomeadamente por causa do mau tempo) e de agressões por parte de clientes bem como as queixas contra a ausência de proteção e contra o facto de o seguro ser responsabilidade exclusiva do trabalhador.
Embora muitas das reivindicações estejam próximas de direitos laborais associados ao estatuto de emprego e respetiva proteção social, a exigência do contrato de trabalho não aparece nos materiais dos Estafetas em Luta e gera muitas dúvidas entre os entregadores entrevistados. O receio mais comum é o de que a definição de um salário e de um horário possa limitar os rendimentos que os trabalhadores têm. Muitos ganham um pouco acima do salário mínimo, ainda que à custa de jornadas laborais de 12, 14 ou 16 horas por dia, e temem que a limitação de horário e um possível nivelamento pelo salário mínimo os impeça de conseguirem manter os rendimentos. Por outro lado, há uma valorização da escolha flexível do horário a que se “ligam” e o temor de que uma “nova lei” possa levar as empresas a abandonarem a operação. Assim, o próprio sindicato vai formulando uma agenda reivindicativa assente na melhoria dos rendimentos e das proteções, sem referir explicitamente o “contrato de trabalho”. Como dizia um dirigente sindical na intervenção pública feita numa concentração de estafetas: “vocês não têm contrato de trabalho e preferem a situação que têm, mas têm de ser melhor [sic] remunerados, ter também férias pagas, subsídio de férias pago, proporcionalmente ao ano que trabalham, etc.”.
3.2.2. A lógica organizativa
Anos antes de começarem os protestos dos estafetas no Porto, os acidentes de trabalho destes trabalhadores já haviam provocado indignação nas redes sociais e a intervenção pública do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte. Entre 2018 e 2019, este sindicato apelou a que a Autoridade para as Condições de Trabalho e o Ministério do Trabalho realizassem ações inspetivas no setor. Mas foi em março de 2019 que o sindicato ensaiou as primeiras aproximações ao universo dos estafetas. Essa iniciativa partia de um diagnóstico crítico sobre a realidade: “estes trabalhadores não têm contrato de trabalho, são todos contratados a recibo verde, não têm seguro contra acidentes de trabalho, ficam numa situação muito vulnerável em caso de doença ou desemprego, não têm direito a férias, subsídio de férias, subsídio de Natal, alimentação em espécie ou subsídio noturno, salário mínimo”, afirmava então em comunicado. Partia também de uma aposta estratégica na possibilidade de reverter para a luta dos estafetas de plataformas digitais a experiência acumulada no enquadramento coletivo dos estafetas “pré-digitais”, particularmente de empresas como a Pizza Hut ou a Telepizza, com uma longa tradição de serviços de entrega de refeições ao domicílio. Na primavera de 2019, o projeto do sindicato era “eleger uma comissão e elaborar uma carta reivindicativa para melhorar as condições de vida e trabalho”, além de pressionar a fiscalização do “trabalho clandestino” e dos falsos recibos verdes.14
A perceção era também que o “modelo de negócio” das plataformas começava a ameaçar um terreno já “trabalhado” pelo sindicato, no qual a organização havia dado frutos, nomeadamente a empresa Ibersol, detentora da Pizza Hut. De acordo com um comunicado, datado de 27 de abril de 2020, “as vendas da Pizza Hut têm aumentado muito neste quadro epidémico e os trabalhadores não têm beneficiado nada com isso”, acrescentando-se que, face a este aumento da procura, “a empresa, em lugar de aumentar o seu quadro de pessoal, tem recorrido à Uber Eats e à Glovo para a entrega ao domicílio de refeições, pondo em causa a qualidade de serviço, já que estas empresas não garantem a mesma qualidade que a Ibersol”.
Seria preciso esperar por 2021, todavia, para que, no Porto, se assistisse à primeira manifestação pública dos estafetas de plataformas. Em março desse ano, “dezenas de trabalhadores reuniram-se em frente à Câmara portuense para, na sequência de várias agressões e roubos, reclamarem medidas de segurança”, e em maio, cerca de 30 estafetas concentraram-se frente às instalações da Uber reivindicando “um seguro mais abrangente e que cobrisse acidentes ocorridos após a entrega da encomenda”.15 O salto em termos da sua visibilidade pública e capacidade de articulação dá-se, contudo, no ano seguinte. A 12 de março de 2022, o grupo informal Estafetas em Luta convoca - através de redes sociais como o Facebook e grupos de WhatsApp (onde participam centenas de trabalhadores) - uma “paralisação geral dos estafetas do Porto”, tendo como uma das reivindicações principais o aumento do valor pago por quilómetro, designadamente face ao aumento do preço dos combustíveis. De acordo com um dos organizadores entrevistados, este primeiro protesto contou com cerca de 200 participantes, todos estafetas. “Os motoca do Porto” entravam assim em “paralisação”16: naquele dia estariam “em off”. Nos repertórios de luta utilizados, era notória a influência das lutas dos estafetas no Brasil, a que não será alheio o facto de a mobilização ser dirigida, no Porto, por migrantes brasileiros.
Foi neste protesto que se começou a estabelecer uma relação entre o grupo informal Estafetas em Luta e o sindicato, quer através de um dirigente sindical atento às movimentações dos estafetas, quer por via de um outro trabalhador vindo da Pizza Hut que estava sindicalizado e que, tendo começado a trabalhar também com a Uber, acabou por conhecer o grupo Estafetas em Luta e fazer a ponte com o sindicato. Segundo um dos trabalhadores entrevistados, o dirigente sindical nunca impôs uma agenda em torno da “exigência do contrato de trabalho” (que não fazia parte das reivindicações do movimento) e “não forçou a adesão ao sindicato para nos ajudar”.
A 2 de abril de 2022, os estafetas marcaram nova concentração. A convocatória foi feita pelo Estafetas em Luta, mas, desta vez, as reivindicações já eram enquadradas pelo sindicato num panfleto com a sua assinatura. No essencial, focavam-se no valor das comissões pagas aos estafetas e nas condições de trabalho, procurando aproximá-las das que têm os entregadores ao domicílio abrangidos por contrato coletivo, como o da Ibersol. Este protesto contou com cerca de 60 estafetas, mais uma dezena e meia de pessoas de organizações políticas e sindicais solidárias. Depois da concentração, os estafetas realizaram uma “motosseata” (uma passeata de moto), “nos principais pontos da cidade: McDonald’s Imperial, McDonald’s das Antas, praça dos Poveiros, para fazer a conscientização das pessoas que não aderiram ao movimento”, como nos referiu um organizador. Depois disso, uma comissão conjunta de estafetas e dirigentes sindicais solicitou uma reunião ao Ministério do Trabalho, iniciando uma colaboração que se pretende vir a aprofundar.
Estas têm sido, em síntese, as principais reivindicações, estratégias organizativas e lutas de motoristas de TVDE e estafetas/entregadores de comida mediadas por plataformas digitais de trabalho em Portugal entre 2018 e 2022.
4. Algumas conclusões e questões em debate
Dos retratos que aqui deixámos tendo por base as experiências de motoristas de TVDE e de entregadores de comida extraímos algumas ilações e hipóteses que apresentamos para debate.
A plataformização do trabalho e o paradigma do crowdsourcing encontram-se em plena expansão na Europa e em Portugal. Mesmo reconhecendo que a digitalização do trabalho traz novas oportunidades de emprego, ela tem colocado significativos desafios ao “trabalho digno”, à democracia laboral, à organização sindical, à capacidade reguladora do direito e aos mecanismos de proteção social. Através de um processo de “emprecarização” dos trabalhadores, a “uberização” acentua a dinâmica de financeirização das empresas e radicaliza a lógica de externalização do trabalho e de precarização das relações de emprego.
Para compreender o trabalho presencial feito através de plataformas digitais em Portugal, as mobilizações dos trabalhadores, a sua organização e as disputas em torno da regulação jurídica do fenómeno, é necessário pensar em várias escalas: nas dinâmicas globais de financeirização e plataformização que escapam às legislações nacionais; nos processos de regulação laboral à escala do Estado-nação; na dimensão local de serviços territorializados em “cidades digitais”, onde a “invisibilidade” social e simbólica dos trabalhadores das plataformas digitais contrasta com a sua visibilidade no espaço público urbano, onde ocorrem os protestos. O recurso a diferentes escalas verifica-se ainda quando se remete a regulação quer “para cima” (concorrência internacional ou diretivas europeias) quer “para baixo” (para as autarquias, como aconteceu com o TVDE).
A análise deste fenómeno convoca uma perspetiva interseccional. Por um lado, que considere os fluxos globais de mão de obra e o predomínio do trabalho migrante, evidente no setor das entregas, onde se cruza a facilidade de acesso à plataforma com a exploração de um estatuto de cidadania fragilizado. Por outro, que considere a divisão sexual do trabalho e as desigualdades de género de modo a perceber as formas de organizar a atividade, de prolongar o tempo de trabalho, de cultivar uma disponibilidade permanente que acentuam a masculinização destas funções e a quase ausência de trabalhadoras nas mobilizações.
Nos últimos anos, as mobilizações de motoristas de TVDE e de estafetas de plataforma fizeram nascer uma voz coletiva, recriando dinâmicas de intervenção sindical e uma relação entre estruturas formais e informais. Para isso, contribuiu a iniciativa dos trabalhadores e a sua comunicação através de grupos em redes sociais (sobretudo WhatsApp ou Telegram) assim como a “contaminação” por experiências noutros países (como o Brasil) e a ação de dirigentes sindicais que têm procurado articulações, formas de organização e de recrutamento destes trabalhadores. O facto de estas duas atividades serem uma espécie de reconfiguração digital de setores onde já havia uma tradição sindical e de contratação coletiva - o táxi e as entregas de comida ao domicílio - poderá ajudar a explicar as iniciativas e estratégias sindicais em presença.
Na análise da ação coletiva destes trabalhadores, há que considerar os múltiplos fatores que podem inibir o envolvimento e a mobilização: o multiemprego; a perceção de se estar transitoriamente naquele trabalho para acumular o máximo de rendimento possível à custa de horários extremamente prolongados; a fragmentação de condições estimulada pela própria lei, por exemplo no caso do TVDE (uns são “parceiros” proprietários de viaturas, outros trabalham para esses operadores); a permeabilidade da ideologia da “autonomia” e do “empreendedorismo” e o desenvolvimento de disposições e de expectativas conjugadas mais em termos de sobrevivência e sucesso individual do que de luta coletiva; o estatuto de “emprecário”; a dispersão dos locais de trabalho; a pluralidade linguística da comunidade de trabalho; a condição migrante e a sua fragilidade face, por exemplo, aos donos das contas que as subalugam a quem não tem estatuto de cidadania regularizado.
À semelhança do que aconteceu no passado com a “agenda do precariado” em torno dos falsos recibos verdes, a organização coletiva dos trabalhadores das plataformas resulta de processos complexos, exprimindo as contradições das identidades e o efeito dos contextos culturais, históricos e sociojurídicos que condicionam a experiência subjetiva do trabalho. Portugal não tem património jurisprudencial de reconhecimento de contratos de trabalho em plataformas digitais. Há receios por parte de alguns trabalhadores que a regulamentação se possa traduzir em menores rendimentos ou em barreiras ao acesso de migrantes ao trabalho e existe alguma descrença sobre a eficácia da legislação, nomeadamente face ao regime existente para os TVDE - que se revelou incapaz de controlar ou limitar os tempos de trabalho (ao desconsiderar o tempo de espera e de “disponibilidade” e ao não cumular a ligação a diferentes plataformas pelo mesmo trabalhador) bem como de melhorar os rendimentos.
Na agenda de mobilização sindical destes trabalhadores, as reivindicações laborais são conjugadas em torno i) dos rendimentos e da remuneração, seja em termos da definição de patamares mínimos de vencimento, seja na disputa sobre os valores de cada tarifa, das percentagem e do pagamento das viagens; ii) da gestão algorítmica, da sua transparência e do excessivo poder das plataformas; e iii) do estatuto e condições de trabalho, nomeadamente das regras que possam aproximá-las das de contratos coletivos mais favoráveis. Os repertórios sindicais ajustam-se a uma realidade diversa e ao tipo de identidade laboral construída nestes setores.
A questão do contrato de trabalho e da intermediação laboral não é explicitamente enunciada por aquelas agendas, mas a disputa em torno da qualificação contratual permanece no centro do debate sobre a regulação do trabalho em plataforma digital. Por um lado, porque ela pode ser a porta de acesso a vários dos direitos sociais e remuneratórios enunciados. Por outro, pela existência de uma dinâmica internacional com vista ao reconhecimento de relações de trabalho subordinado entre trabalhadores e plataformas de crowdwork offline. A existência de uma proposta de diretiva europeia e de uma proposta de lei que enquadram esse debate terá influência na evolução das agendas reivindicativas futuras, do mesmo modo que o desenvolvimento da organização e voz coletiva destes trabalhadores poderá influenciar os marcos regulatórios a consagrar.
Em forma de fecho, os vários pontos assinalados sobre a plataformização do trabalho em Portugal evidenciam o seu crescimento exponencial; uma lógica multiescalar; a necessidade de uma perspetiva interseccional; a recriação de estratégias de ação coletiva (velhas e novas); a diversidade de fatores de estímulo à mobilização laboral; a presença de agendas reivindicativas delineadas um quadro de conjugações identitárias complexas; a prevalência de uma disputa em redor da qualificação contratual. Os estudos de caso analisados lançam luz sobre a realidade em dois setores específicos - motoristas TVDE e estafetas entregadores de comida - contribuindo para uma melhor perceção das lógicas organizativas aí desenhadas. Além disso, coloca em evidência um claro défice de regulação, em contraste com outros países europeus, vertido na ausência de jurisprudência sobre a relação laboral com plataformas.