Introdução
Com origem numa recolha documental iniciada em 2017, o presente estudo propõe tratar um considerável conjunto de manuscritos referente à reconstrução da igreja conventual de São Domingos de Lisboa, grandemente afetada pelo Terramoto de 1755 e subsequente incêndio.
As fontes em causa, maioritariamente conservadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, consistem em escrupulosos registos de despesa, a partir dos quais é possível proceder a um pormenorizado retrato dos trabalhos de reedificação do edifício dominicano e, em particular, do seu templo. Estes elementos documentais foram já sumariamente referidos por outros autores (Pinheiro, 1989; Silva & Lourenço, 2019), aos quais, contudo, não foi possível a merecida detenção sobre este conjunto arquivístico.
De facto, o cenóbio dominicano possui uma bibliografia escassa, a qual o tem ora como objeto de breves estudos, fundados num corpo documental de dimensão variável, mas em que os manuscritos em questão estão omissos (Andrade, 1959; Ataíde, 1970; Ataíde, 1973; Rollo, 1994); ora como um elemento secundário de abordagens mais vastas (Pinheiro, 1989; Lima, 2013; Silva & Lourenço, 2019)1.
Tal, aliado ao manifesto interesse dos dados coligidos, documentando a atividade de Carlos Mardel (c. 1695-1763) e Manuel Caetano de Sousa (1742-1802) no estaleiro dominicano, mas também a de outros artistas de referência, como Joaquim José de Barros Laborão (1762-1820), António Machado (m. 1810) e Nicolau José Vilela, justifica a edição do presente texto. Este assume-se como uma primeira consubstanciação de um estudo em curso, sendo uma das múltiplas abordagens possíveis às fontes a que nos vimos referindo2.
Tendo em conta o espaço de que dispomos, optámos por nos concentrar sobre a igreja conventual. O nosso enfoque atende, desde logo, às fontes analisadas, as quais autonomizam a despesa com a reconstrução da igreja dos demais gastos da comunidade, o que bem demonstra a importância desta empresa para o cenóbio. Em segundo lugar, ao facto de, após a colocação do Santíssimo Sacramento no templo reedificado, verificarmos o início de uma nova campanha artística, agora na sala capitular, onde se celebravam os ofícios divinos sensivelmente desde o cataclismo. Por último, à definitiva autonomização da igreja do restante complexo quando, após a extinção das ordens religiosas, se traslada a paróquia de Santa Justa e Santa Rufina para o templo dominicano, o que ocorre a 30 de novembro de 18343.
De igual modo, definimos como balizas cronológicas deste estudo o ano do Terramoto e o da trasladação do Santíssimo Sacramento para o templo, o que sucede em maio de 1791. As despesas com a reconstrução da igreja e do restante complexo continuaram após essa data, porém o grosso da campanha terá ocorrido neste intervalo, no decorrer do qual verificamos a colaboração dos artistas anteriormente nomeados.
Trataremos a cronologia proposta atendendo a dois intervalos temporais, os quais definimos a partir do volume de informação compulsado e que, por isso mesmo, não podem ser entendidos como duas fases distintas do vigor reconstrutivo. O primeiro respeita aos anos de 1755 a 1786, podendo então compreender-se, genericamente, as principais prioridades do cenóbio no rescaldo do Terramoto e discutir a autoria do projeto da igreja e convento. Por sua vez, o segundo período, mais rico em informação, situa-se entre 1786 e 1791, subdividindo-se em quatro subcapítulos, referentes a quatro áreas de atuação claramente identificáveis, a saber, a ereção da fachada do templo, a execução dos altares da nave e a reparação do altar-mor, a construção do órgão e a pintura do teto.
A destruição dos interiores da igreja de São Domingos por força do incêndio que deflagrou a 13 de agosto de 1959 surge, contudo, como uma dificuldade na reflexão sobre os dados reunidos neste estudo. É certo que a perda de parte significativa das estruturas retabulares pode ser colmatada por fotografias e por um corte longitudinal do templo, conservado na Academia Nacional de Belas-Artes, porém os acervos documentais consultados levam-nos a crer que o grosso das componentes escultórica e pictórica da igreja de São Domingos parecem irremediavelmente perdidas e de difícil apreensão. Restam-nos, neste último caso, as modestas referências à igreja em roteiros e outro tipo de bibliografia de caráter abrangente.
O início dos trabalhos, o risco e a direção da obra (1755-1786)
Bautista Castro (1763) fornece um retrato detalhado do impacto do Terramoto sobre o complexo dominicano após o terramoto: «ao primeiro impulso delle cahio o oculo do frontispicio da Igreja, que matou bastante numero de gente, que vinha fugindo para o adro. Cahio logo a tribuna da Capella da Senhora do Rosario, e a de S. Domingos, a torre do sino, fazendo precipitar tudo que achou por diante; grandes porções das paredes dos dormitorios, e Capella do Noviciado, e da grande casa da Livraria, e parte das paredes do domitorio de cima, que olhava para o Rocio.» O fogo, ateado a uma cortina da tribuna de uma capela da igreja, logo se propagou por todo o edifício «fazendo em cinzas tudo (…); escapando sómente do fogo o Noviciado, e o dormitorio junto a elle» (p. 312).
Segundo o mesmo autor, dois meses depois do cataclismo, os dominicanos «começaraõ a tirar o entulho, demolir as paredes arruinadas, e no dormitorio, que cahe para o Rocio, fizeraõ algumas accomodações» (Castro, 1763, p. 315). Na verdade, a documentação dá conta de, logo em dezembro de 1755, se terem iniciado os trabalhos de desentulho4, recuperando-se, em janeiro de 1756, as lâmpadas do Senhor Jesus5. Ainda nesse ano pagava-se «a huns galegos que levarão a Snr.a do R.o e Casticaes de prata pa o Conv.to»6. Também do entulho se retirou a lâmpada que Frei Manuel da Anunciação «mandou fazer p.a a Capella de S.to Thomas da Igr.a queimada», a qual foi reparada pelo ourives José Alvares Correia, em 1758, «e serve de prez.te na Capella mor». Ao citado ourives foi igualmente confiada, no mesmo ano, a execução de «duas Alampadas de prata a Romana p.a o SS.mo Sacram.to da Capella mor»7.
Na ausência de outras informações sobre o decurso da obra, cabe destacar que, entre julho de 1760 e abril de 1761, ainda se dá conta do gasto com oficiais «no desmancho» ou no «entulho» da igreja, assim como com «polvora p.a deitar abaixo o arco»8, o que não só indicia a sobrevivência de partes do templo, além da capela-mor, como também retrata a demorada preparação do futuro estaleiro da igreja. Entretanto, as cerimónias da Semana Santa de 1756 decorreram numa das galerias do claustro conventual, sendo a celebração do ofício divino posteriormente transferida para a Sala do Capítulo (Castro, 1763, p. 316), situação que se mantinha em 1778 (Sacramento, 1929, p. 44).
Foi seguramente nos anos imediatos ao cataclismo que os conselhos da comunidade e provincial decidiram incumbir Carlos Mardel (c. 1695-1763) do projeto de reconstrução do convento, sendo o «Risco da Planta q̄ fez o S.r Carlos Mardel, e hè a q̄. de prez.te se executa» contabilizado no «Gasto do P.e Syndico» e pago na última semana de abril de 17619. Todavia, o projeto estaria então já em fase de execução, dado que recuam, pelo menos, a fevereiro de 1761 os gastos com obra de cantaria. As peças então produzidas eram armazenadas na igreja, o que subentende, primeiro, que o grosso do trabalho de desentulho e demolição do arruinado templo estaria concluído por essa altura; segundo, que a sua reedificação fora então secundarizada em favor da do restante complexo10.
De facto, recuam a maio de 1761 os primeiros registos de despesa com a reconstrução do dormitório11, empatada em abril de 1762 por erro da planta12. Talvez em consequência disto mesmo, entre 1762 e 1767, os gastos se tivessem alastrado a outras partes do edifício conventual, sendo o reduzido detalhe destas saídas entrave a considerações de fundo sobre este período13. Saliente-se, contudo, o registo das esmolas recolhidas para o retábulo de São Gonçalo, em 1763, cuja localização no contexto do cenóbio se desconhece14. Semelhantemente, a década de 1770 documenta variados gastos na torre, botica e igreja, sem que uma compreensão concertada destas despesas seja possível15.
Devemos a ampliação da campanha reconstrutiva, no início da década de 1760, a Frei José de Santa Helena. Este prior tomou «por diviza, e empresa do Seu governo aobra (sic) da Igra, a q̄ deo gloriozo principio, mandando apiar todas as paredes, e desentulhar todo aquelle pavimento», mas deixou esta obra «p.a dar principio aobra do novo Conv.o, Sem Se lembrar, nem advertir q̄. quem Segue duas lebres, ao mesmo tempo perde ambas»16. A crítica deixada no Livro das Obras deste Conve. o de S. Dom. os de Lix. a atribui ao prelado o impasse nesse estaleiro, contudo, certamente que a campanha construtiva foi também afetada pela morte de Mardel, ocorrida em 1763.
As fontes consultadas fazem de Caetano Tomás (1700-1766) o mais provável sucessor do arquiteto húngaro na obra, dirigindo-a, pelo menos, desde dezembro de 1764, e até maio de 1766, isto é, no período em que a área reconstrutiva se expande além da igreja17. Durante a sua atividade, sabemos que, em dezembro de 1765, estavam acabadas as paredes do «Dormitorio do Rocio», tendo o convento então despendido 5$640 réis com uma merenda para os oficiais envolvidos na empreitada18.
Falecido Tomás a 26 de setembro de 1766, sucede-lhe na mesma incumbência, em junho de 1768, Antonio Stoppani, artista de provável origem italiana do qual pouco se conhece e cujo término da atividade em São Domingos não foi possível apurar19. A informação colhida das fontes não é de si suficiente para aclarar o seu contributo para o obra, contudo, informando-nos Frei António do Sacramento (1929) que, em 1778, os «dormitórios inda se não acabarão para a parte do Castello» e que a igreja «inda está com sinais da devoração do fogo, e só tem alguã cousa feito no frontespicio e no cruzeiro» (p. 44), presumimos que a sua atividade não tenha ultrapassado estes dois estaleiros.
Sendo desconhecida a presença de Tomás e Stoppani na obra dominicana, os estudiosos que até ao momento trataram da reconstrução da igreja de São Domingos procuraram distinguir a obra de Mardel da de Manuel Caetano de Sousa (1742-1802), cuja presença na campanha as fontes asseguram desde janeiro de 1786, significativamente o mesmo ano em que é nomeado arquiteto da Casa do Infantado e da Patriarcal (Ferrão, 1989, p. 463)20. Todavia, ampliado o leque dos arquitetos envolvidos, a problemática autoral deve também ser revista.
Sobre Mardel, os dados colhidos até ao momento são insuficientes para compreender com clareza a extensão do seu papel na empresa. Sabemos que a ele se deve o risco do convento, sendo, quanto a nós, difícil apurar traços da sua linguagem na igreja dominicana dada a perda das obras congéneres do arquiteto. Usar de tal exercício para aclarar o contributo de Tomás e Stoppani na campanha é igualmente inglório, com a agravante, no último caso, da inexistência de termos de comparação.
Na verdade, da intervenção dos quatro nomes supramencionados, apenas reconhecemos com clareza a mão de Caetano de Sousa, nomeadamente no desenho dos retábulos pétreos, nas tribunas da nave, na planta do cruzeiro e no traço das respetivas capelas, e no remate da fachada. De facto, é a este último arquiteto que Volkmar Machado (1823) atribui a nova igreja dominicana, apontado Mardel como o autor do projeto do convento (pp. 194, 223), circunstância, quanto a nós, bem reveladora do papel preponderante de Caetano de Sousa na reedificação do templo.
A composição dos alçados da nave, contudo, denota uma outra linguagem que não a deste arquiteto. Tomando a igreja de Nossa Senhora da Encarnação e a capela do Palácio da Bemposta, ambas em Lisboa, como referência, notamos que Caetano de Sousa usa longas pilastras na composição dos seus alçados, estabelecendo um diminuto jogo de planos, embelezado por uma decoração profusa que Ayres de Carvalho (1979, p. 47-48) compara à da ourivesaria e da talha.
Pelo contrário, a nave de São Domingos usa de robustas duplas-colunas na demarcação dos seus tramos, ampliando assim o jogo de avanço e recuo dos panos do entablamento, com evidentes efeitos no lançamento da abóbada. Maia Ataíde (1970, p. 13 e ss.) tomou esta característica, bem como a diversidade de materiais empregues no alçado, como indícios da integração de reminiscências da estrutura pré-existente, nomeadamente das oito colunas que pautavam o corpo do templo primitivo21; enquanto Pinheiro (1989, p. 74) teve o uso de colunas pétreas como vestígio do projeto original de Mardel.
Na verdade, as fontes dadas a lume apontam para a multiplicidade de intervenientes no projeto como a mais provável origem deste confronto de linguagens, sem permitirem uma resposta cabal sobre o problema. Neste quadro, podem servir de pistas a investigações futuras as semelhanças dos alçados da nave dominicana com os da Basílica de Mafra, ainda que a substituição das pilastras por colunas remeta para a obra de Giovanni Carlo Bibiena (1717-1760) na capela da Real Barraca da Ajuda, tanto quanto a planta desse edifício no-lo mostra22.
Em todo o caso, o contributo de Caetano de Sousa decerto não se restringiu a aspetos meramente decorativos. Com efeito, detetamos a sua provável intervenção também ao nível da planta da igreja de São Domingos, nomeadamente, no recurso aos ângulos curvos para harmonizar a difícil articulação entre o cruzeiro, a nave, as capelas do transepto, a capela-mor de João Frederico Ludovice e as demais dependências conventuais, dificuldade também percetível nas alturas das abóbadas do edifício (Figura 1)23.
Semelhantemente, a fachada dominicana revela o confronto de poéticas diversas, que a integração do portal proveniente das dependências da Patriarcal não é suficiente para justificar. Porém, relegando considerações de fundo sobre este assunto para fase posterior do nosso texto, importa por ora notar que, sendo inegável o papel de relevo exercido por Caetano de Sousa na reconstrução da igreja do Convento de São Domingos, este arquiteto aparenta operar sobre um projeto que lhe é anterior e ao qual se tem de conformar. Sendo o plano de reedificação do convento inicialmente traçado por Mardel, conforme as fontes atestam, nela participaram Tomás e Stopani, desconhecendo-se se estes alteraram o projeto inicial, à semelhança do que Caetano de Sousa parece ter feito mais tarde. Em suma, a igreja de São Domingos denota um confronto de linguagens distintas: uma primeira de autor incerto, patente na nave da igreja, e tendo a Basílica de Mafra e a Patriarcal da Ajuda como principais referentes; a segunda facilmente integrável na linguagem de Caetano de Sousa.
A reconstrução da igreja sob a égide de Manuel Caetano de Sousa (1786-1791)
Se é difícil aproximarmo-nos da configuração do estaleiro dominicano das décadas de 1760 e 1770, seja ao nível do arquiteto que coordena as obras, seja das áreas de intervenção abrangidas, tal cenário altera-se a partir de 1786. De facto, o detalhe dos registos exarados após este ano permite identificar os múltiplos intervenientes na reedificação da igreja, bem como distinguir quatro importantes áreas de atuação, sobre as quais nos debruçaremos de seguida. Os trabalhos são, então, indiscutivelmente, acompanhados por Caetano de Sousa, sendo o avultado número de oficiais envolvido na campanha, cuidadosamente identificado nos livros de despesa, evidente testemunho do empenho do cenóbio na conclusão da obra.
Fachada da igreja
Como vimos, em 1778, os dominicanos já tinham «alguã cousa feito no frontespicio» (Sacramento, 1929, p. 44), o qual foi concluído nos finais da década de 80. Atente-se, pois, ao pagamento de 195$600 réis a António Machado (1738-1810), em abril de 1788, «em varios pagamentos com q̄. se lhe completou o ajuste porq̄. fes as Armas da front’espicio»24, mas também aos gastos com pedras «p.a a frontaria da Igr.a», entre maio e agosto de 1788,25 e aos mais significativos custos, registados entre outubro e novembro desse ano, com a colocação do escudo e outros elementos decorativos da fachada26. A cruz do remate, certamente a mesma que ainda hoje aí se encontra, é paga em abril de 1789 ao serralheiro Francisco José27, possivelmente o mesmo autor dos gradeamentos que protegiam os janelões da fachada, datados de 1790 e reconhecíveis no desenho de Luís Gonzaga Pereira, bem como em algumas fotografias do templo datáveis das primeiras décadas do século XX (Figuras 2 e 3)28. Já os balaústres da porta da igreja foram aí colocados apenas em setembro de 179129.
Tal como sucede no interior do templo, também ao nível da fachada se deteta uma difícil articulação entre os seus diferentes elementos compositivos, particularmente clara ao nível da articulação dos registos do alçado, o que levou França (1987) a apelidar o frontispício dominicano de «conjunto ou “colagem” infeliz» (p. 190). Desde logo, o primeiro é marcado pela robustez do portal proveniente da Patriarcal (Machado, 1823, p. 177), ladeado por outras duas entradas, de dimensões mais modestas, mas que nas proporções das ombreiras e frontões curvos procuram aproximar-se da obra de Ludovice. Dois panos recortados, em cantaria, elevam-se sobre os portais laterais.
Um pequeno friso separa o primeiro e o segundo registo. É neste último que se abrem três vãos, correspondentes a cada uma das entradas, os laterais de frontão triangular, o central de frontão curvo. Das aberturas laterias arrancam os aventais que se prolongam pelo primeiro registo, sobre os portais correspondentes. Esta solução, se sublinha a diferença de escala entre os elementos dos dois níveis compositivos, cria também um claro contraste ao nível dos materiais neles empregues, sendo o registo inferior dominado pela obra de cantaria e o superior pela superfície rebocada. Talvez por isso, na tentativa de harmonizar a frente da igreja, Luís Gonzaga Pereira (ou um oficial de pintura) tenha completado o registo central com duas pilastras (Figura 2).
A marca de Caetano de Sousa na fachada evidencia-se, plenamente, apenas no remate, de forte cunho ornamental, o qual concede ao edifício uma leveza que lhe falta nas suas restantes partes. Dominantemente em cantaria, o remate apresenta um pano central com um vão em elipse, enquadrado por pilastras sobrepostas e frontão triangular. No tímpano do frontão tomam lugar os escudos português e da Ordem dos Pregadores, cujas dimensões impõem uma suave curvatura ao entablamento, de onde partem algumas das rocalhas e volutas que envolvem estes elementos heráldicos. As armas assumem, assim, inegável relevo na composição. O pano central é ladeado por duas aletas de cantaria, encimadas por segmentos de frontão curvo, as quais procuram conferir um remate elegante ao alçado e, simultaneamente, ocultar a dupla cobertura de duas águas da nave.
Sem elementos documentais que nos permitam compreender, detalhadamente, a evolução dos trabalhos na fachada desde o início da obra, torna-se difícil responder ao motivo do diálogo pouco coerente entre os seus três registos. Todavia, a composição do alçado interno do muro parece voltar a sugerir que Caetano de Sousa reinterpretou um projeto já iniciado. Nesse sentido, atente-se, primeiro, à difícil conjugação da posição dos vãos laterais com a altura e o jogo de avanço e recuo do entablamento, que se interrompe para dar espaço à fenestração; segundo, à colocação do vão em elipse a uma altura inferior à da abertura homóloga na fachada. A propósito desta última solução, devemos salientar que a colocação mais elevada do óculo na frente do templo, ao permitir o prolongamento do alçado exterior, contribui também para a plena afirmação do edifício na malha urbana em que se insere, impondo-se a sua altura tanto sobre a dos demais edifícios circundantes, como sobre o exíguo adro de que os dominicanos dispunham.
Altares da nave e altar-mor
Debruçando-nos já sobre os altares da nave, começamos por ressaltar a atenção concedida nos documentos de despesa aos materiais neles empregues, desde logo expressa no gasto de 870 réis, em fevereiro de 1789, «qd.o foráo pelas Pedreiras escolher pedras p.a as Capp.as»30 Frei Luís da Conceição e o padre síndico. As pedreiras em causa seriam certamente as da região de Sintra, nomeadamente as de Pero Pinheiro, de onde foram transportadas diversas pedras para a obra31, mas talvez não exclusivamente. Com efeito, as fontes contabilizam despesas em lioz; «pedra preta», esta por vezes dita de Sintra; e «pedra vermelha», ou «pedra de vermelho», ou simplesmente «vermelho», sendo a maioria dos registos clara quanto ao emprego destes materiais nos retábulos32. Residualmente, adquiriu-se também «pedra de Salema p.a as quatro Capp.as»33 e pedra de muar «p.a o 2º arco daparede q̄. faz encontro afrontr.a da Igreja», «p.a doiz arcos das Capp.as do Corpo da Igreja» e «para os arcos das tribunas das Capp.as»34, datando de fevereiro de 1791 a última referência a uma despesa em pedraria para estes espaços35.
Os materiais pétreos empregues definiram o cromatismo quente do interior do templo, onde dominava o negro, o ocre, o amarelo e o vermelho, como a tela do casamento de D. Luís e D. Maria Pia bem demonstra (Figura 4)36. A paleta é partilhada com outros projetos de Caetano de Sousa, nomeadamente com a igreja da Encarnação, mas note-se que outros arquitetos também optaram por esta conjugação de cores, como exemplifica o interior da igreja de Santo António da Sé, cuja construção se deve a Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785).
Podemos agrupar os retábulos de São Domingos em três soluções distintas, atendendo, por um lado, à sua morfologia, por outro, aos materiais neles empregues. A primeira tipologia retabular, aplicada nas duas capelas do cruzeiro, deriva do retábulo-mor, compondo-se de longa tribuna, ladeada por quatro colunas, sobre os respetivos pedestais, coroada por entablamento e dois segmentos de frontão curvo, onde dois anjos adoradores se apoiavam, voltados para um vão recortado, com moldura de forte pendor decorativo, preenchido por vitrais em 1927 e cuja função original desconhecemos. Evidenciando o gosto verticalizado de Manuel Caetano de Sousa, estes altares denotam também alguma depuração formal, apenas contrariada pelos painéis sitos sobre a tribuna.
Datam de abril de 1786 os primeiros registos especificamente relacionados com a execução dos altares do cruzeiro, sendo então pagas duas impostas «p.a os tardozos dos Remates das d.as Capellas»37. Em outubro e novembro de 1789, e janeiro e fevereiro seguintes, procedeu-se ao transporte dos anjos adoradores38, pagos a Joaquim José de Barros Laborão (1762-1820) apenas em março de 179039. A colaboração deste escultor com Caetano de Sousa recua, pelo menos, a 1781, quando realiza as esculturas da fachada da Capela da Bemposta, porém, já em 1786, Joaquim José de Barros Laborarão executara uma imagem de São Domingos para os dominicanos olissiponenses, a pedido de D. Frei Vicente Ferrer da Costa40.
Quanto ao segundo tipo de composição, este é preconizado pelos dois altares da nave imediatos ao transepto, também eles em materiais pétreos, como que prolongando, deste modo, o espaço do cruzeiro. Da arquitetura destas estruturas distinguimos o embasamento, duas pilastras e aletas, e frontão triangular, elementos obliterados pela sinuosidade de dois pares de volutas que, ladeando a tribuna central, se conjugam com vocábulos rococó, evocando soluções de gravuras de Jacob Gottlieb Thelot (1708-1760) e Carl Pier (atv. Augsburgo, c. 1750).
Por último, os retábulos da terceira tipologia substituem a tribuna central por um painel pintado, ladeado por estípites que suportam segmentos de entablamento e os limites de um frontão curvilíneo adornado no tímpano por grinaldas e resplendor, tudo em talha e apoiado em altar pétreo (Figura 1). Aspetos económicos podem ter determinado a diferença dos materiais empregues nesta solução em relação às duas anteriores, porém, não possuímos elementos suficientes para sustentar esta hipótese.
No que respeita ao programa iconográfico das palas, seguindo a descrição de Guimarães, notamos o predomínio dos santos dominicanos. Assim, sucedem-se, do lado da Epístola, desde o cruzeiro até à entrada, as palas de São Pedro Mártir, São Gonçalo de Amarante e São Vicente Ferrer, às quais correspondem, do lado do Evangelho, as de São Tomás de Aquino, ressurreição de Lázaro e Santa Catarina (Guimarães, 1874, p. 161)41.
Recua a dezembro de 1790 o primeiro registo de despesa com entalhadores, ocupados no resplendor do remate do altar-mor42. Porém, mesmo após o dito resplendor ser dourado, em fevereiro de 179143, continuam-se a contabilizar gastos com oficiais deste tipo, que supomos relacionarem-se com as empreitadas dos altares da nave e do trono da capela-mor. Sobre a primeira obra, verificamos que, em outubro de 1791, são pagos vários trabalhos de pintura a José António Narciso (1731-1811), entre os quais consta a pintura dos retábulos, o que mostra que estes estariam então concluídos44. Todavia, saliente-se que, a 19 de fevereiro de 1800, os dominicanos pagavam a Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810) 86$000 réis pela obra das palas dos altares da nave, decerto parte da soma a que ascendeu a encomenda, visto que então os painéis ainda estavam a ser pintados45.
Quanto à execução do trono do altar-mor, esta foi encarregue a Ricardo António Xavier, cuja empreitada é paga em março de 1791, a 120$000 réis46. Note-se, contudo, que já antes desse mês encontrávamos este entalhador listado entre os vários oficiais desse mester ativos na obra, recebendo uma jorna de 600 réis47. Os degraus do trono seriam ainda forrados com «folhas de flandes», por um mestre funileiro anónimo, e pintados por Manuel dos Santos Lima, em abril de 179148.
Paralelamente, desenvolvem-se os trabalhos de restauro do altar-mor, a crer na lista dos gastos, sobretudo afetado no remate, sacrário e trono. Neste âmbito, devemos começar por destacar a despesa de 24$800 réis com «5 pedras d’estremos q̄. vieraó p.a concerto do Retabulo da Capp.a Mor», em novembro de 178749. Coube depois a António Machado (que como vimos foi também encarregue das armas do frontispício da igreja) o «concerto do Retalo (sic) da Capp.a mor da Semalha p.a Sima», trabalho pelo qual é pago em junho de 178850. Ao mesmo escultor foi confiada a execução da «Imagem do S.to Christo e Crus da maó de S. Fran.co» e o conserto das «figuras de pedra do Sacrario», obras pagas em março de 179051. As fontes, porém, não fornecem maiores detalhes quanto à extensão da sua intervenção, que hoje apenas podemos conhecer através das fotografias da igreja anteriores ao incêndio (Figura 5).
Órgão
As primeiras despesas relacionadas com o órgão respeitam ao transporte do seu mecanismo, vindo do convento dominicano do Porto em setembro de 178852. Em fevereiro do ano seguinte comprava-se estanho53, talvez para proceder a alguma reparação dos tubos, e, se em meados de agosto de 1789 se compravam nove vigas para as varandas dos órgãos, em finais de novembro iniciava-se o entalhe da caixa, com mais provável fim em agosto de 1790, quando se procediam aos últimos pagamentos aos entalhadores que dela se ocuparam54. Saliente-se, contudo, que em fevereiro desse ano de 1790 já se pagavam ferragens várias destinadas a suportar os elementos escultóricos do órgão, como a «gloria», «anjos» e «serafins», usando dos termos empregues na documentação55.
José António Lisboa emerge como o mestre da obra, sendo coadjuvado por vários outros intervenientes, entre os quais os escultores Nicolau José Vilela, pago a 700 réis dia, e João José, cuja menor prática ou talento se reflete na sua jorna de 500 réis. Ambos iniciam a sua participação na obra em novembro de 1789, porém, enquanto o primeiro a abandona em dezembro desse ano, o segundo prolonga a sua atividade até fevereiro do ano seguinte56.
De Nicolau José Vilela sabemos ter sido «procurado pelos Escultores para inventar attitudes, e fazer em barro os modêlos dellas», nomeadamente por António Machado (1823, pp. 255-256), servindo de paradigma desta colaboração entre os dois artistas a alegoria à Natureza executada para o frontão da fachada do atual Museu de História Natural da Universidade de Coimbra57. Quanto a João José nada conseguimos apurar.
É de salientar, ainda, a colaboração de José Lázaro que, se começa por ser contabilizado entre os carpinteiros ativos no órgão, vemo-lo a partir de fevereiro de 1790, listado entre os entalhadores, auferindo a mesma jorna de 450 réis58. Este oficial seria ainda pago por outros trabalhos de entalhe, nomeadamente, pelo conserto dos capitéis das colunas da nave, executados por Manuel Antunes, e por vários balaústres para as tribunas da igreja59. Idêntico interesse assume o caso de José de Abreu que, começando também no ofício de carpintaria, vemo-lo depois registado como aprendiz de entalhador, também a partir de fevereiro de 1790. Contudo, neste caso, a mudança de ofício implicou uma redução da jorna, de 300 réis para apenas 20060.
Segundo Guimarães (1874), os órgãos eram de «boa fabrica» e «vozes harmoniosas», ainda que «só um é verdadeiro, o outro é fingido, e é o que está do lado do Evangelho» (p. 138). De facto, o corte longitudinal do templo, conservado na Academia Nacional de Belas Artes, torna-se a fonte mais elucidativa das características das caixas destes instrumentos, dividida em cinco tramos, dos quais os laterais e central eram ornados com remates escultóricos (Figura 1).
Pintura do teto
Desde junho de 1788 que se registam várias despesas com a construção do telhado e teto da igreja61, sendo a pintura deste último ajustada com José António Narciso em maio de 178962. Ainda nesse mês começaram a aportar ao estaleiro os primeiros materiais para a obra63, verificando-se, em junho desse ano, a colocação do «pano p.a a Capp.a Mor no tecto da Igr.a» e, em julho, a do painel do cruzeiro64. As cenas figurativas concentrar-se-iam nesses dois medalhões, dos quais o do cruzeiro estaria terminado em dezembro de 178965, sendo as restantes superfícies embelezadas por frisos e querubins, à semelhança dos tetos da nave da igreja de Nossa Senhora do Loreto e da Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, mas usando uma linguagem mais depurada.
Volkmar Machado (1823) havia já identificado o autor da pintura, podendo a sua presença na obra dominicana explicar-se pelo facto de que, «sendo compadre, e muito amigo de Manoel Caetano de Souza imaginava, e desenhava a maior parte dos ornamentos, e quadraturas que elle fez executar nas suas obras (…)» (pp. 220-221). Contudo, a minúcia dos registos de despesa parece sugerir a colaboração de outros pintores na empreitada.
Com efeito, mesmo antes da escritura do teto, em meados de fevereiro de 1789, já se contabilizavam os primeiros gastos com «pintores», termo de âmbito assaz vasto, pagos a 350 réis a jorna, valor igual àquele auferido pelos canteiros, mas superior aos 200 réis dos «trabalhadores»66. Efetivamente, apenas após setembro desse ano é que verificamos pagamentos de jornas mais avultadas a um número estrito de «pintores», concretamente a Félix José e Polinário José, os mais ativos, e, pontualmente, a António de Sousa e António Soares, os quais se organizam em pares nas sucessivas semanas de duração da obra. A valorização destes oficiais fica bem patente nos 800 réis de jorna com que são remunerados (valor que ultrapassa significativamente a jorna de 600 réis do mestre entalhador José António Lisboa, por exemplo), prolongando-se a sua atividade até outubro de 179067.
Tal soma parece-nos sintomática da minúcia do trabalho pedido a estes oficiais, mais facilmente relacionável com a pintura do teto do que com as escaiolas que ornam os muros do templo. Porém, assim sendo, estranhamos a omissão do nome de Narciso, que, como mestre, seria expectável que também fosse pago à jorna, à semelhança do que sucede com José António Lisboa na qualidade de mestre da obra do órgão.
A relação entre o pintor supramencionado e Alexandrino de Carvalho, já conhecida, faz-se sentir a vários níveis nesta empreitada. Desde logo, no pagamento de 10$800 réis ao último por comprar 36 varas de brim para os painéis do teto, despesa registada em maio de 178968. Porém, a colaboração de Alexandrino de Carvalho com Narciso está também patente ao nível da composição dos medalhões do teto da capela-mor e cruzeiro, representando, respetivamente, a entrega do rosário a São Domingos, e a visão, de São Domingos e São Francisco, da Virgem a interceder junto de Cristo por misericórdia, com evidentes afinidades compositivas com obras de Alexandrino de Carvalho69. Vítor dos Reis (2006), sem conhecer as fontes que aqui trabalhamos, atribui, inclusivamente, a este último pintor a obra do teto de São Domingos (p. 154).
Considerações finais
Como tivemos ocasião de referir, o presente estudo tem como limite cronológico o momento em que o Santíssimo Sacramento é trasladado para a nova igreja de São Domingos, isto é, maio de 1791. O grosso do esforço reconstrutivo estava, então, próximo de concluído, o que permitiria aos dominicanos estenderem a sua ação a outras dependências do complexo conventual.
De qualquer modo, a documentação analisada, referente aos anos compreendidos entre 1755 e 1791, permitiu identificar diversos aspetos de interesse, que investigação futura virá decerto aclarar. Desde logo, o célere início dos trabalhos de desentulho, com a recuperação de várias obras, com especial destaque para as lâmpadas de prata. O gasto no frete de uma escultura mariana e de castiçais de prata não é, contudo, de si menos importante, ou não sugerisse que também cedo se trabalhou no sentido de recuperar o património móvel dominicano.
Todavia, foi ao nível da reconstrução arquitetónica da igreja que apurámos elementos de maior relevo. Nesse sentido, o primeiro e principal contributo deste estudo prende-se com a discussão autoral do projeto e com o desenvolvimento de uma primeira abordagem ao papel dos seus múltiplos intervenientes, a saber, Carlos Mardel, Caetano Tomás, António Stoppani e, por fim, Manuel Caetano de Sousa.
A falta de obras congéneres dos três primeiros artistas, bem como os parcos elementos colhidos referentes à sua ação, impede uma compreensão clara do seu contributo no estaleiro, ao contrário do que sucede com Caetano de Sousa. De facto, ainda que sem ser possível indicar a data do início da sua presença em São Domingos, o detalhe dos registos de despesa conventuais torna clara a colaboração do arquiteto num momento de particular fulgor reconstrutivo, ao mesmo tempo que recorda redes artísticas das quais Volkmar Machado já dava nota. Assim, a título de exemplo, note-se que tanto em São Domingos de Lisboa, como na capela do Palácio da Bemposta, ou no Palácio da Ajuda, obras a cargo de Caetano de Sousa, operaram Joaquim José de Barros Laborão e José António Narciso.
O edificado, malgrado os resultados nefastos do incêndio de 1959, corrobora a forte influência de Caetano de Sousa no projeto, nomeadamente na composição dos retábulos e no remate da fachada. Contudo, não deixa de pressupor os contributos de um projeto inicial, posteriormente reformulado, seja na organização da frente, seja na dos alçados internos. Os dados coligidos até ao momento impedem uma resposta cabal sobre o autor deste primeiro projeto, mesmo que Volkmar Machado, ao omitir a presença de Tomás e Stoppani na obra, torne Carlos Mardel a resposta mais provável.
Por último, verificámos a colaboração de um número amplo de artistas na obra, apesar de nem sempre ser claro o seu ofício, lembremos o caso de José Lázaro ou o dos oficiais aglomerados sob a genérica designação de pintores. Entre os artistas presentes nas diferentes empreitadas destacam-se, além do escultor e pintor atrás mencionados, António Machado e o mais discreto Nicolau José Vilela, como vimos, colaboradores que se encontram presentes no estaleiro dominicano, ainda que em frentes distintas. Do mesmo modo, podemos ainda destacar a participação de Pedro Alexandrino de Carvalho na obra, seja na pintura das palas do altar, seja numa hipotética colaboração com José António Narciso na pintura do teto.
A reconstrução da igreja de São Domingos serve, assim, de palco à colaboração de alguns dos mais operosos artistas no quadro da reconstrução pombalina, plasmando as redes de contacto enunciadas por Volkmar Machado na sua obra e, talvez, servindo de paradigma ao que foi a recuperação dos templos olisiponenses na sequência do Terramoto de 1755: estaleiros fervilhantes e potenciadores da atividade artística.