1. Introdução
Os avanços tecnológicos nas áreas da comunicação e da informação estão marcados por um cenário global que contribui para o fomento de um estado de crise democrática, com a expansão de atores políticos neopopulistas, o uso exacerbado das pós-verdades e a popularização exponencial das plataformas dos média sociais digitais na agenda pública. Esse contexto, chamado de “pós-democracia”, afeta diferentes países latino-americanos, o mundo árabe e, também, a Europa e os Estados Unidos. Para Ballestrin (2017), as principais características das pós-democracias são: os cenários político-institucionais instáveis e a emergência e participação de novos atores na agenda pública com discursos antidemocráticos. Esse movimento reforça o papel do jornalismo de referência como importante instituição na manutenção de experiências democráticas e na garantia dos direitos humanos.
Alguns investigadores da área da comunicação consideram os média um pilar fundamental da sociedade, uma vez que, por meio da construção informativa, é possível criar um discurso público que molda as realidades do nosso ambiente. O chamado “contrapoder” da ação pública é uma garantia de democracia, inserido num contexto de liberdades e valores das sociedades ocidentais (Romero-Rodríguez et al., 2016).
Para autores como Picard (2004), o jornalismo de qualidade é um elemento essencial e de grande influência nas questões culturais, sociais e políticas nos Estados democráticos. De acordo com Schulz (2000), independência, objetividade e diversidade de conteúdo e acesso são pilares básicos na garantia de qualidade informativa e no reforço dos valores democráticos. Com base nestes conceitos, é indispensável discutir a qualidade do jornalismo na defesa das democracias liberais.
Importantes teóricos da democracia liberal representativa contemporânea, como Giovanni Sartori e Robert Dahl, ressaltam o papel imprescindível da imprensa no processo de exercício e consolidação da democracia. Para Dahl (2006), o cidadão das sociedades democráticas liberais e representativas precisa de ter competência cívica - condição fomentada pelo livre fluxo de informações, que possibilitará a formação de uma opinião pública autónoma e independente.
No entanto, o acesso a diferentes ferramentas de comunicação tem alterado o papel dos jornais de referência, uma vez que os cidadãos dispõem de diferentes plataformas para se manterem informados. Em Espanha, 44% dos leitores têm acesso às notícias através do algoritmo das redes sociais e dos motores de busca, enquanto o acesso direto aos veículos como itinerário principal está em 39% (Amoedo et al., 2020), situação que pode ter reflexos no Estado democrático (Feenstra et al., 2016).
Esse contexto de acesso à informação de maneira passiva fomenta o que Pariser (2011) classificou como “filtro bolha”. Nessa estrutura, o internauta recebe informações baseadas nas suas previsões, coletadas por um algoritmo através do seu histórico de pesquisas e likes nas redes sociais. Nessa relação, os internautas podem facilmente afastar-se de informações que não correspondem às suas opiniões preestabelecidas, isolando-se efetivamente nas suas próprias bolhas ideológicas e culturais.
Entretanto, em momentos de crise, esse cenário pode sofrer algumas alterações. Durante a pandemia da COVID-19, a busca por informação na imprensa aumentou e, em geral, os cidadãos espanhóis recorreram mais às versões digitais dos jornais de referência (83%) e à televisão (71%) para ter acesso à informação, estando as redes sociais em terceira posição (63%). Em abril de 2020, período em que Espanha vivia em confinamento devido ao estado de emergência em saúde pública, as principais fontes de informação foram os veículos de comunicação (74%), o Governo nacional (39%), cientistas, médicos e especialistas (39%) e organizações globais de saúde (33%; Kleis-Nielsen et al., 2020).
Para além das discussões académicas sobre o impacto das redes sociais na cidadania, com teorias de “ciberotimistas” e “cibercéticos”, a sociedade vive uma profunda revolução tecnológica e o fomento do pensamento crítico torna-se cada vez mais indispensável. Dessa forma, a qualidade do jornalismo de referência é fundamental para a estabilidade democrática. De acordo com McQuail (2013), apesar de ter uma base prática mais do que filosófica ou normativa, a expectativa de que os média devem fornecer informações de qualidade é tão importante quanto os princípios de igualdade, liberdade e diversidade.
2. Estado da Arte
São cada vez mais frequentes na imprensa espanhola notícias que retratam a ameaça à democracia, com manchetes como: “La Democracia Amenazada” (A Democracia Ameaçada) - El País; “Cómo Internet Se Convirtió en una Amenaza Para la Democracia” (Como a Internet Se Transformou Numa Ameaça à Democracia) - El Mundo; “Las Fake News, una Amenaza Para la Democracia” (As Notícias Falsas, uma Ameaça à Democracia) - La Vanguardia; “El Futuro de la Democracia Española: Cara o Cruz” (O Futuro da Democracia Espanhola: Cara ou Coroa) - La Voz de Galicia.
No entanto, o relatório Democracy Index 2019 - A Year of Democratic Setbacks and Popular Protest (Índice de Democracia 2019 - Um Ano de Retrocessos Democráticos e Protestos Populares), realizado pela The Economist Intelligence Unit (2019), identifica a Espanha como um dos 22 países que goza de um Estado democrático pleno, considerando os índices alcançados em cinco categorias: “processo eleitoral e pluralismo”; “operação do Governo”; “participação política”; “cultura política”; e “liberdades civis”.
Se o país é classificado como uma das melhores democracias do mundo, o que justifica as manchetes sobre a ameaça ao sistema democrático? Os aspetos que mantêm a Espanha em 17.º lugar entre 22 países que gozam de plena democracia podem apontar algumas razões. Ditos fatores revelam que o país pode melhorar o funcionamento do Governo e a participação política da cidadania.
Os fundamentos da democracia recompilados por Adam Przeworski (2019) no livro Crises of Democracy (Crises da Democracia) contribuem para entender esse contexto. Para o autor, o assédio à democracia não está ligado apenas ao aspeto político, mas tem raízes profundas nas esferas económica e social. O autor também destaca a polarização, exacerbada pelo neopopulismo, como um dos grandes males para a saúde da democracia.
2.1. Breve Análise das Ameaças à Democracia
Para compreender a correlação entre a polarização e escalada crescente de lideranças políticas com perfis totalitários com a estabilidade democrática, é fundamental entender os conceitos da filósofa alemã Hannah Arendt, que defende a construção do espaço político democrático como um lugar de manifestação de opiniões em liberdade e de questionamento das verdades estabelecidas, possibilitando assim o jogo do dissenso e consenso baseado em estratégias de persuasão e dissuasão. No livro As Origens do Totalitarismo, Arendt (1951/1989) enfatiza que “o sujeito ideal de um regime totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, são as pessoas para quem a distinção entre fatos e realidade deixou de existir” (p. 312).
Para Arendt (2003), o cinema e a rádio foram os facilitadores da propagação do totalitarismo na primeira metade do século XX. Embora os ditadores também tenham recorrido à violência para destruir as verdades que resistiam à manipulação, a filósofa alemã destaca o poder da comunicação e a necessidade de uma imprensa livre e responsável para a manutenção do sistema democrático. Neste ponto cabe destacar que o nosso modelo de vida superconetado tem potencializado exponencialmente as possibilidades de manipulação.
Para o filósofo Óscar Barroso Fernández (2020), vivemos num mundo em que a destruição da verdade já não exige o silêncio da testemunha, bastando-lhe afogar a voz num mar de mentiras ou embustes. Segundo o autor, estamos perante uma “dinâmica perversa baseada na mentira e em nome de uma falsa liberdade de opinião, verdades factuais incómodas transformam-se em opiniões com as quais se pode ou não concordar” (Barroso Fernández, 2020, para. 6).
Seguindo os conceitos de Arendt (1967), que determina que “a liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não for assegurada e se os próprios factos não forem o objeto de debate” (p. 49), pode-se compreender a importância do jornalismo de qualidade na luta contra a desinformação e no combate às ameaças à democracia.
2.2. Confiança da Cidadania nas Instituições Democráticas
Nas sociedades democráticas, o jornalismo pode ser entendido como uma peça-chave na articulação da esfera pública (Habermas, 2006), atuando como intermediário entre o Estado e a sociedade, garantindo à população o acesso às informações de interesse público. Como aponta Casero-Ripollés (2020), o acesso à informação tem impacto não apenas no conhecimento da realidade imediata dos cidadãos e no seu compromisso com a coisa pública, mas também no próprio conceito de “democracia”, devido aos estreitos vínculos entre informação e Estado democrático.
Como entidade viva e mutável, a democracia transforma-se à medida que evoluem as bases sociais, culturais e políticas da sociedade. E dentro desse quadro evolutivo, os média e a participação cidadã são os motores desse desenvolvimento. Para Dahl (2006), em um país onde existe o direito de voto, mas onde os seus governantes reprimem a oposição, pode gerar uma fragilidade na representação e na participação, eixos essenciais nas sociedades democráticas. Desse aspeto decorre a importância de uma das principais finalidades do jornalismo: oferecer ao cidadão informação de relevância social que lhe permita formar uma opinião sobre o assunto, gerando competências cívicas para a participação social e política (Kovach & Rosenstiel, 2007).
O conceito de “cidadania democrática”, estabelecido por Hannah Arendt (2005/2008), considera que os cidadãos devem ter uma competência cívica gerada por um espaço público livre e igualitário. Um lugar que lhes dê voz e lhes permita desenvolver uma cultura política baseada no diálogo para criar acordos e resolver conflitos de forma pacífica na esfera pública. Estabelecer tais características de civilidade requer esforço e comprometimento dos cidadãos, bem como de instituições públicas transparentes e confiáveis.
Segundo o relatório La Calidad de las Instituciones en España (A Qualidade das Instituições em Espanha; Lapuente et al., 2018), é notável a confiança da população nas administrações que prestam serviços públicos, mas, por outro lado, no que diz respeito ao sistema político, a taxa de confiabilidade é a mais baixa da Europa. Apenas 13% confiam em políticos e 20% confiam em partidos. Alberola (2018) afirma que, em “Espanha, os escândalos políticos corroeram a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e a satisfação com o funcionamento da democracia” (para. 2).
O índice de confiança dos espanhóis nos políticos também se evidenciou na crise provocada pela COVID-19. Numa pesquisa realizada no país, apenas 31% dos participantes dizem acreditar nas informações sobre o coronavírus fornecidas pelos políticos e 45% acreditam nas informações fornecidas pelo Governo (Kleis-Nielsen et al., 2020).
A desconfiança nas instituições públicas e nos políticos também se manifesta nos dados sobre as fake news (notícias falsas). Uma pesquisa realizada com internautas indica que 49% dos espanhóis apontam o Governo, os políticos e os partidos nacionais como os principais responsáveis pela desinformação, seguidos por jornalistas (15%), cidadãos (11%) e outros atores políticos ou grupos de ativistas estrangeiros (8%; Amoedo et al., 2020).
Em casos de crise, como a gerada pela pandemia do coronavírus, é fundamental que os governos sejam transparentes e confiáveis para contar com o apoio e a participação cidadã na resposta ao alerta social. Nesse cenário, a imprensa tem o papel de explicar ao público o que está a acontecer e de envolvê-lo na solução, sendo um importante aliado da gestão política, institucional e sanitária dos governos (Costa-Sánchez & López-García, 2020).
2.3. O Conceito de “Qualidade no Jornalismo”
Como ponto de partida, baseamo-nos em estudos internacionais que indicam a carência de um conceito que defina o jornalismo de qualidade, ainda que haja um consenso sobre a existência de requisitos básicos para essa prática. As principais pesquisas sobre essa temática centram-se em análises académicas e na opinião de profissionais para elencarem categorias que indiquem o “jornalismo de qualidade”, também identificado com o termo “jornais de referência”.
Investigadores como Shapiro et al. (2006) indicam que a literatura atual tem medido a qualidade no jornalismo com critérios baseados em valores como precisão, imparcialidade, perfil da empresa jornalística, fontes de informação e conteúdo das histórias relatadas. Já para Lacy e Rosenstiel (2015), cada pessoa tem uma interpretação sobre “qualidade no jornalismo”, mas que, provavelmente, é partilhada por um grupo de pessoas que possuem experiências em comum.
Grande parte dos estudos atuais analisa a qualidade sob a ótica da demanda ou da produção. Seguindo essa linha, a demanda prioriza a interação entre as necessidades da cidadania e o conteúdo das notícias. Já a metodologia que analisa a produção centra-se nas características do conteúdo (Lacy & Rosenstiel, 2015). Com base nos conceitos defendidos pelos citados investigadores, é possível inferir que na abordagem por conteúdo, o público avalia as notícias com base nos seus próprios padrões e, dessa forma, determina se há qualidade ou não. Para McQuail (2011/2012), a qualidade medida pela procura está associada à perceção de como o jornalismo supre as necessidades e os desejos do cidadão, considerando uma abordagem relativista, o que poderia reafirmar alguns argumentos de que a qualidade não pode ser medida devido à sua subjetividade.
Um estudo realizado por McQuail (2013) indica alguns requisitos fundamentais para a qualidade da informação: oferta abrangente de notícias relevantes e de informações gerais sobre eventos na sociedade local e no âmbito internacional; informações objetivas, factuais, precisas, condizentes com a realidade e confiáveis; informação equilibrada e justa, relatando perspetivas e interpretações alternativas de forma não sensacionalista e imparcial.
De acordo com Vehkoo (2010), não há critérios universais que determinem a qualidade do jornalismo, estando esta vinculada a contextos como os socioeconómicos e educacionais. No entanto, considerando os padrões e os códigos de conduta partilhados pelos profissionais ao redor do mundo, a investigadora corrobora o entendimento de que o funcionamento adequado da democracia exige um público informado.
De maneira geral, as discussões teóricas demonstram que a qualidade jornalística pode ser diretamente influenciada pelo contexto social e cultural da comunidade que circunda a sua produção, devendo, assim, ser observada dentro do espaço-tempo no qual está inserida (Santos & Guazina, 2019).
2.4. Consumo de Jornais de Referência na Atualidade
Nos últimos anos, os jornais de referência sofreram uma queda na audiência e na credibilidade, pondo em xeque a sua relevância social (Carlson, 2017). Além disso, passaram a dividir o protagonismo com outros atores sociais (Casero-Ripollés, 2020). No entanto, o surto de coronavírus destacou a importância dos meios tradicionais em situações de crise. No mês de abril de 2020, 56% dos espanhóis disseram que os média os ajudaram a entender a pandemia e 64% que os meios de comunicação tradicionais explicaram o que poderiam fazer em resposta ao coronavírus (Negredo, 2020).
O aumento do interesse nas notícias, causado pela pandemia do coronavírus, impulsionou um incremento no número de reportagens sobre o assunto. Segundo Lázaro-Rodríguez e Herrera-Viedma (2020), o número de publicações de notícias em jornais online em Espanha aumentou quase 50% nos primeiros 30 dias após o decreto da restrição de mobilidade ocorrido em março de 2020.
Embora o uso das redes sociais no acesso à informação esteja a crescer (Newman et al., 2019), é necessário considerar as suas limitações para gerar uma cidadania bem informada e engajada civicamente (Zúñiga et al., 2017). Além do fomento do “filtro bolha”, a possibilidade de consultar múltiplas plataformas digitais impulsiona um ambiente impregnado de informações que podem confundir o leitor sobre a veracidade ou não de cada uma delas. Este ambiente saturado contribui para a desinformação (Bennett & Livingston, 2018) e diminui a confiança nos meios tradicionais, além de estimular a polarização política (Van Aelst et al., 2017).
Apesar do aumento no consumo de jornais de referência durante a pandemia de coronavírus, a tendência é de baixa confiança na imprensa. Apenas 36% dos internautas espanhóis dizem confiar regularmente nas notícias. Este é o nível de credibilidade informativa mais baixo desde 2015, reflexo de eventos políticos e sociais que polarizam a cidadania (Amoedo et al., 2020). Dados de uma pesquisa realizada em Espanha, em 2020, revelam que 48% dos participantes preferem obter informações de fontes imparciais, 30% optam por fazê-lo através de meios relacionados com os seus ideais e 10% afirmam seguir canais que oferecem diferentes pontos de vista. Entre os leitores que se situam nas extremidades do espectro político (tanto à esquerda como à direita), mais de 40% declaram a preferência por informar-se através de meios de comunicação que partilham o mesmo ponto de vista (Amoedo et al., 2020).
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Reuters (Kleis-Nielsen et al., 2020) revela outros dados importantes: 60% dos usuários que buscam informações nos jornais de referência (online ou offline) dizem valorizar a função social do jornalismo. Entre os que se mantêm informados por meio das redes sociais, esse número cai para 45%. Nesse contexto, os meios estão obrigados a investir em modelos de negócio economicamente viáveis e que, ao mesmo tempo, permitam cumprir o seu papel social, recuperando a confiança dos cidadãos.
2.5. Redes Sociais e Desinformação
Teóricos, como Loader e Mercea (2012), destacam que, apesar do seu potencial, o uso da internet nem sempre é tão positivo quanto deveria ser. Como exemplo do uso negativo da tecnologia, podemos citar a avalanche de desinformação causada pela disseminação de boatos nas redes sociais, que pode levar à instabilidade política e social, prejudicando a democracia. No âmbito político, vivenciamos a disseminação de fake news na votação do Brexit (2016), nas eleições presidenciais dos Estados Unidos (2016) e nas eleições presidenciais brasileiras (2018). Já no campo da saúde, o surto do zika vírus em 2015 é um exemplo de desinformação, assim como a pandemia do coronavírus.
As redes sociais fomentam um alto tráfego informativo, em que é possível encontrar notícias verdadeiras, contrastadas e escritas seguindo as técnicas básicas do jornalístico, assim como navegar entre boatos e informações tendenciosas, carregadas de mensagens ideológicas, que dizem a verdade sob determinados pontos de vista (Wood, 2018). No caso específico da pandemia do coronavírus, a disseminação de notícias foi tão ampla que levou a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization, 2020) a declarar a situação como “infodémica”, ou seja, existia um excesso de informação que dificultava a identificação de fontes confiáveis e as orientações verdadeiras.
À medida que a doença progredia globalmente, a desinformação também se espalhava rapidamente, apesar dos esforços do Facebook, WhatsApp e Google para mitigar a sua propagação. Do mesmo modo, muitos usuários das redes sociais passaram a sinalizar conteúdos suspeitos, colaborando para combater a desinformação (Pérez-Dasilva et al., 2020). Nos primeiros dois meses da pandemia, a empresa espanhola de checagem de factos, Maldita.es, verificou e desmentiu 586 boatos sobre a COVID-19.
Segundo uma notícia publicada no jornal El País (Blanco, 2020), em apenas um dia a Polícia Nacional atendeu mais de 7.000 pessoas que questionaram a veracidade das mensagens que receberam pelas redes sociais. Um nível de desinformação com risco acrescido por se tratar de uma questão de saúde pública, onde não bastava que as pessoas estivessem bem informadas, mas era também fundamental que cooperassem para atenuar a propagação da doença.
As fake news aumentam a desconfiança nas instituições, gerando instabilidade social e causando confusão e ansiedade na população (Waisbord, 2018). Tal situação afeta governos e políticos, já que a desinformação pode influenciar a crença até mesmo das pessoas que apoiam o Governo de situação (Casero-Ripollés, 2020), criando um ambiente prejudicial à democracia. Segundo alguns estudos, a profusão de boatos baseia-se na diversidade de fontes alternativas de informação e está relacionada com o populismo e com o radicalismo que usam essa estratégia para conquistar adeptos (Bennett & Livingston, 2018).
A “infodemia” provocada pela pandemia da COVID-19 revelou situações contraditórias em que atores sociais que deveriam travar a propagação das fake news se tornaram protagonistas da desinformação. Um porta-voz do Governo chinês espalhou o boato de que o vírus foi trazido para a China pelos Estados Unidos, informação veiculada pelos média estatais chineses. Os meios de comunicação russos sugeriram que a COVID-19 foi criada num laboratório na Geórgia, Estados Unidos. Por sua vez, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, disse que o vírus era uma possível arma biológica apontada para a China, além de recomendar receitas naturais para curar o vírus num tweet denunciado pelo Twitter (Pérez-Dasilva et al., 2020).
2.6. A Luta Contra a Desinformação
Existem diferentes maneiras de lutar contra a desinformação e o seu impacto numa sociedade democrática. A partir de diferentes disciplinas é possível atuar para amenizar a situação. No livro The People Vs Tech (Pessoas vs Tecnologia), o escritor e jornalista Jamie Bartlett (2018) afirma que os governos devem criar uma forma de regular efetivamente as redes sociais, combatendo os oligopólios, e também de controlar os algoritmos.
Plataformas de busca online, empresas de mensagens instantâneas e algumas redes sociais também trabalham no desenvolvimento de ferramentas para controlar a disseminação de informações falsas. A Google fechou acordos com empresas de verificação e está a aprimorar o seu sistema de filtro de resultados feito pelos seus algoritmos. Em resposta à “infodemia” do coronavírus, o WhatsApp introduziu uma nova medida para limitar o número de vezes que as mensagens podem ser reencaminhadas. Por outro lado, o Facebook começou a enviar um pop-up aos usuários que tiveram algum tipo de interação com conteúdo nocivo à saúde relacionado com o coronavírus (García, 2020).
Seguindo o seu papel social de agentes na consolidação da democracia, as empresas jornalísticas também são responsáveis por implementar ferramentas para combater a proliferação de notícias erróneas, com ferramentas de verificação e maior vigilância e averiguação das notícias (González-Fernández-Villavicencio, 2014). Entretanto, o maior desafio é, primeiro, recuperar e consolidar a sua credibilidade junto do público, oferecendo um conteúdo de qualidade. A maioria dos internautas espanhóis (64%) acredita que os média fazem o seu trabalho de informar prontamente, mas apenas metade (56%) acredita que os jornais de referência oferecem profundidade e compreensão (Newman et al., 2019, p. 24).
Num esforço por restaurar a credibilidade do setor e estabelecer padrões de confiança, um consórcio internacional de média, The Trust Project(https://thetrustproject.org/), trabalha com plataformas de tecnologia para reafirmar o compromisso do jornalismo com a transparência, precisão, inclusão e justiça, para que os leitores possam tomar decisões informadas. Participam no projeto 121 meios de comunicação de todo o mundo, como The Economist, The Washington Post, La Repubblica, Corriere Della Sera, Deutsche PresseAgentur, e os jornais espanhóis El País e El Mundo. Por sua vez, os buscadores e diversas redes sociais participam no projeto como parceiros externos, já que se tornaram importantes distribuidores de notícias.
Os princípios do The Trust Project são uma adaptação daqueles apresentados pela Comissão Hutchins, em 1947, em relação a uma imprensa livre e socialmente responsável. Para estabelecer os indicadores de confiança assumem o compromisso de:
justiça e precisão: publicação de correções ou esclarecimentos o mais rapidamente possível
explicação da missão, fontes de financiamento e organização que apoia os veículos de comunicação
acesso aos métodos e aos dados de como/onde a informação é obtida
diversidade de vozes e perspetivas
espaços para estimular o diálogo com os leitores
A luta contra a desinformação também conta com plataformas de checagem de factos, dedicadas a detetar informações falsas e publicar os dados corretos. Em Espanha, as empresas mais destacadas são: Maldita.es, B de Bulo e Newtral. O objetivo é dotar os cidadãos de ferramentas para discernir entre notícias falsas e notícias verdadeiras. Para isso, monitoram o discurso político, as informações que circulam nas redes e analisam a mensagem aplicando técnicas de jornalismo de dados. Por outro lado, incentivam a participação cidadã, que através do WhatsApp lhes enviam mensagens com conteúdo suspeito para verificação, oferecendo, assim, um serviço útil ao cidadão (Palomo & Sedano, 2018).
3. Metodologia
Considerando a função do jornalismo no combate à desinformação e, consequentemente, a sua contribuição para a estabilidade democrática (Casero-Ripollés, 2020), e, por sua vez, ponderando a relevância da rede social Facebook no acesso à informação por parte da cidadania (Amoedo et al., 2020), este trabalho pretende analisar a qualidade do conteúdo oferecido aos cidadãos, com uma abordagem centrada na produção, considerando a tendência das publicações dos jornais de referência no cenário nacional e regional nos seus perfis do Facebook de boatos sobre o coronavírus. Desse modo, busca-se respostas para as seguintes questões (Q):
Q1: o viés ideológico dos jornais impacta a sua abordagem às fake news sobre o coronavírus?
Q2: o conteúdo dos boatos sobre o coronavírus segue um mesmo padrão?
Q3: os conteúdos geram interatividade com o público?
Para responder a estas questões, intimamente relacionadas com as ideias desenvolvidas no quadro teórico em que se baseia este estudo, estabelecemos uma hipótese (H):
H1: o viés ideológico dos jornais de referência pode influenciar na perceção da qualidade das publicações desde a abordagem da produção, onde deve primar a diversidade, a diversidade de opiniões e a imparcialidade.
Para dar resposta à hipótese apresentada foi elaborada uma pesquisa com base nos paradigmas qualitativo e quantitativo, centrados no quadro epistemológico em que estão circunscritos (Arellano, 2013), num estudo que analisa o conteúdo, focado na sua tendência e viés político, sobre os boatos do coronavírus publicados pelos jornais de referência no cenário nacional e regional nos seus perfis do Facebook.
Para atender aos objetivos, optámos por analisar o conteúdo das publicações nas redes sociais de cinco jornais espanhóis, no período compreendido entre 30 de janeiro e 30 de abril de 2020. Especificamente, o objeto de estudo centra-se nas publicações no Facebook, por ser esta a rede social mais utilizada pelos espanhóis para informações gerais e, especialmente, para informações sobre o coronavírus (Kleis-Nielsen et al., 2020).
Foram selecionados jornais nacionais e regionais a partir de uma correlação entre a liderança em audiência online, o número de seguidores no Facebook e a identificação ideológica dos meios. Na Figura 1 é possível identificar os jornais líderes em audiência online em Espanha e na Figura 2 o número de fãs/seguidores nos perfis do Facebook dos citados jornais.
Com base nestes dados, foram selecionados os seguintes jornais: El País, La Vanguardia, El Mundo, El Periódico e La Voz de Galicia. Para analisar os dados compilados, utilizou-se um formulário ad hoc (Fontecoba et al., 2020), onde foram coletadas as principais características das publicações relevantes para o estudo.
Para a análise da interação dos usuários com as publicações, usámos como referência a teoria dos usos e gratificações, que estabelece a diferença entre cliques e comentários nas publicações. Os cliques estão mais ligados ao entretenimento, enquanto os comentários estão mais presentes nos conteúdos que provocam a participação cidadã em assuntos de interesse público (Bengoa et al., 2020).
O levantamento das publicações foi realizado por meio do buscador disponível em cada um dos perfis do Facebook estudados, utilizando dois grupos de palavras. O primeiro grupo (“sars-cov-2”, “covid-19”, “coronavírus”, “pandemia” e “estado de emergência”) para identificar o número de publicações sobre o assunto e o segundo grupo (“boatos”, “fake news”, “desinformação” e “fact-checking”) para análise do conteúdo. Neste ponto, cabe ressaltar que o motor de busca não distingue entre maiúsculas e minúsculas. A partir dos dados extraídos das publicações, foram obtidos resultados para cada jornal e extrapoladas conclusões comparativas entre eles.
4. Resultados
Na análise quantitativa das publicações realizadas entre 30 de janeiro de 2020 (data em que a Organização Mundial de Saúde declarou o coronavírus uma emergência de saúde pública internacional) até 30 de abril (período em que se iniciou a flexibilização do confinamento, onde já era permitido que crianças saíssem às ruas) foram encontradas 395 publicações sobre o coronavírus e 112 publicações sobre fake news sobre o vírus. Entre os dias 30 de janeiro e 4 de fevereiro de 2020, foram publicadas apenas seis notícias relativas aos boatos sobre a COVID-19 em todos os jornais estudados. Porém, ao ser decretado o estado de emergência, a 14 de março, o número de publicações sobre o tema teve um aumento de 85%.
O número de publicações encontradas por meio do buscador do Facebook segue uma média semelhante nos cinco jornais analisados, mas há diferenças entre os temas abordados. Em relação à independência, objetividade e diversidade de conteúdo e acesso, foi possível observar que os jornais nacionais dedicaram mais publicações com viés político/ideológico do que os jornais regionais, que, por sua vez, publicaram poucas notícias sobre orientações e prevenção de contágio ou mensagens de tranquilidade à população. As mensagens com viés político/ideológico foram divididas em três subtemas e constatou-se que apenas os jornais catalães publicaram notícias sobre fraudes com temas de interesse mais regional.
De maneira geral, a análise qualitativa do conteúdo revela uma baixa interação da audiência com as publicações, com uma taxa de envolvimento inferior a 0,58% - percentagem considerada com bom rendimento pelo mercado publicitário. No entanto, todos os jornais tiveram pelo menos duas publicações com resultados superiores a esse número. O El País foi o jornal que apresentou a publicação com melhor taxa, com 1,67%, seguido de La Voz de Galicia (1,40%). Os demais jornais não chegaram a 1%, como pode ser observado na Figura 3.
No que diz respeito à precisão e à imparcialidade, as publicações com melhores índices de interação com os leitores (reações, comentários e partilhas) estão relacionadas com as mensagens com viés político/ideológico em quase todos os jornais analisados, com exceção do jornal El Periódico, que conseguiu boas interações com os seus leitores numa publicação sobre iranianos intoxicados pela ingestão de álcool industrial após lerem nas redes sociais que curava o vírus, como podemos verificar na Figura 4.
Como já abordado neste estudo, existem alguns requisitos fundamentais para a qualidade da informação, como a oferta abrangente de notícias relevantes e de informações gerais sobre eventos na sociedade local e no âmbito internacional; informações objetivas, imparciais, factuais, precisas, condizentes com a realidade e confiáveis; informações equilibradas e justas. Neste aspeto, ainda que o fator “imparcialidade” seja um fator imprescindível para a qualidade jornalística, as notícias sobre a pandemia relacionadas com temas políticos/ideológicos foram as que apresentaram as melhores interações com a audiência nos cinco jornais analisados, com exceção do jornal El Periódico, que obteve o seu melhor envolvimento por meio da publicação de um vídeo com desmentidos sobre o coronavírus. Neste sentido, também constatámos as diferenças de abordagem sobre uma mesma notícia veiculada por jornais de diferentes vertentes ideológicas. A notícia referia-se à investigação da Procuradoria Geral do Estado sobre a disseminação de boatos sobre o coronavírus, que foi abordada de forma diferenciada pelos jornais El País e El Mundo.
Em relação aos textos, verificou-se que não há um padrão de redação entre os jornais analisados. Em geral, os jornais nacionais publicam publicações com textos mais amplos e explicativos. Já os meios de comunicação regionais são mais concisos nas suas publicações, principalmente o jornal catalão El Periódico.
5. Conclusões
Para finalizar o estudo, podemos afirmar que as publicações dos jornais com um viés mais próximo ao Governo tendem a destacar mais os possíveis erros da oposição na propagação dos boatos, enquanto os veículos mais relacionados com a oposição tendem a ressaltar mais as possíveis falhas ou erros do Governo na gestão da crise. Movimentos que não ajudam na análise objetiva da qualidade do conteúdo com uma abordagem na produção, tal qual o conceito apresentado nesta investigação. Também constatamos que a redação de notícias relacionadas às fake news sobre a COVID-19 não seguiu um padrão que pudesse gerar uma identificação imediata desse tipo de publicação por parte da audiência.
Seguindo a abordagem da procura, que estabelece a qualidade do jornalismo com base na interação, ainda que a temática fosse de interesse público, as publicações não foram interessantes o suficiente para captar a atenção do público, uma vez que a interação, em muitos casos, foi pouco representativa. Entretanto, não se pode afirmar que os cidadãos não têm interesse na notícia; o estudo apenas relata a falta de interação com as publicações analisadas neste estudo.
As reflexões empíricas fomentadas neste trabalho indicam que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que se estabeleçam critérios mensuráveis de análise da qualidade jornalística. Do mesmo modo, as empresas de comunicação ainda não encontraram um caminho para restabelecer a confiança da audiência e melhorar a interação com o público. A evidência teórica da importância da qualidade do jornalismo na estabilidade democrática em momentos de crise foi corroborada na prática durante a pandemia do coronavírus e ressaltou a necessidade dos jornais de referência de encontrarem um equilíbrio entre a viabilidade económica e o papel social de fomentar o pensamento crítico na cidadania.
Os jornais cumpriram a sua função de informar a população sobre as fake news, ajudando a amenizar os efeitos causados pelos boatos no público. No entanto, o conteúdo com viés ideológico contraria uma das orientações do The Trust Project, que aponta a imparcialidade como uma das chaves para o jornalismo contribuir para a educação cívica dos cidadãos. Nesse sentido, a cobertura de um tema tão relevante como uma emergência sanitária poderia estar dissociada de alinhamentos políticos expressos nos editoriais, explorando maior diversidade e pluralidade de pontos de vista.
Outros estudos, com a aplicação de diferentes critérios para avaliar a qualidade, como, por exemplo, a metodologia que considera o valor agregado periodístico, que centra a importância e contribuição jornalística para analisar a confiabilidade das fontes e a hierarquização e relevância dos factos relatados, podem ajudar a ter um panorama mais completo da cobertura realizada no citado período do ponto de vista da qualidade do jornalismo. Além disso, vislumbra-se a importância de entender como fomentar a qualidade jornalística, estimulando, assim, o pensamento crítico nesta nova era digital, em que a audiência perde a confiança nos jornais de referência e que o filtro bolha fomenta a busca por conteúdo ideologizado.