1. Introdução
Este artigo tem como objetivo compreender as dinâmicas comunicativas que envolvem a produção informativa comunitária realizada por cidadãos não-jornalistas no interior de Portugal. A intenção deste trabalho é discutir em que medida a participação mobiliza as populações de territórios considerados desertificados e envelhecidos (Instituto Nacional de Estatística, 2021) e como a proximidade e interesses comuns incidem sobre a construção de confiança nos conteúdos produzidos e divulgados. Duas iniciativas de comunicação comunitária nas regiões Centro e Alentejo ajudam-nos na proposta deste trabalho: Vela Notícias e Jornal da Aldeia.
Ambas apresentam características que se assemelham com as dos jornais tradicionais, apesar de serem totalmente elaboradas por cidadãos, que não têm formação académica em jornalismo. O que os une é o vínculo à sua freguesia e à sua comunidade. Nestes territórios, em que a maioria da população é idosa (Instituto Nacional de Estatística, 2021), uma parte significativa das pessoas não acede à internet com frequência e não utiliza redes sociais. Admite-se, então, que “consumidores de media mais velhos tendem a optar pela estabilidade dos formatos tradicionais, muitas vezes como incapacidade de acompanhar inovação tecnológica e lógicas disruptivas e/ou evolutivas intrínsecas ao ecossistema dos media” (Quintanilha et al., 2019, p. 148). Por essa razão, a comunicação em formato impresso, como são o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia, tem ainda maior relevância.
Assuntos de interesse comum, dos mais variados temas, são divulgados nestas publicações, que são distribuídas de porta em porta. Como sugere Paiva, em entrevista, a comunicação comunitária tem-se reinventado, procurando, nos últimos anos, diferentes espaços e maneiras de fazer, mas na sua base está a capacidade de os indivíduos se envolverem, reivindicando novos espaços de poder (Bertol, 2017).
Apesar de estar caracterizado como um estudo exploratório, a importância deste trabalho consiste na contribuição para a literatura do campo da comunicação comunitária, um tema ainda pouco abordado e discutido em Portugal. Midões (2021) investiga essa temática com foco nas rádios comunitárias portuguesas. O autor sublinha que “historicamente, os factos demonstram que o debate público envolve um número limitado de cidadãos, com educação superior e com acesso mais fácil aos média” (Midões, 2021, p. 7), e que as iniciativas de comunicação comunitária incentivam “a participação cívica, reforçam a coesão da comunidade e exploram a identidade local” (p. 9).
Nos casos do Vela Notícias e do Jornal da Aldeia, essas características também parecem evidentes, sobretudo porque os cidadãos manifestam a vontade de se verem representados nas informações que leem e o interesse em partilhar conhecimento com os seus conterrâneos, de forma espontânea e participativa. A partir da perspetiva teórica da participação (Carpentier, 2012), percebeu-se que, em ambos os casos, os cidadãos decidem conjuntamente sobre o que escrever e a forma como devem fazê-lo, o que acaba por contribuir para a credibilidade das publicações e para a construção da confiança nas informações divulgadas.
Na perspetiva deste estudo exploratório, os casos apresentados oferecem pistas para investigações mais abrangentes relacionadas, inclusive, com os “desertos de notícias”, que tratam da identificação de municípios onde não existe qualquer meio de comunicação tradicional sediado (Jerónimo et al., 2022). Embora as freguesias da Vela e de Ciladas não se encontrem nos “desertos de notícias”, reconhece-se que existe uma correlação entre os territórios que não possuem qualquer meio de comunicação e os territórios que não são tão visíveis na cobertura jornalística, como os exemplificados neste estudo.
Assim, este artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, discute-se o sentido da participação relacionada com a comunicação comunitária. A partir daí, serão abordadas as correlações entre proximidade e confiança para, posteriormente, se detalharem os objetos e ampliar as discussões pretendidas. Em termos metodológicos, a revisão bibliográfica foi fundamental para o desenvolvimento desta investigação. Os resultados refletem ainda a análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas a cinco participantes das duas iniciativas, realizadas entre 11 e 14 de setembro de 2022.
2. Sobre Comunicação Comunitária
Em termos teóricos, compreende-se o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia como iniciativas de comunicação comunitária que, sem desconsiderar as particularidades dos contextos de cada local, representam, em termos globais, esforços por espaços de fala, por transformação social e por influência política. Mas, antes de detalhar a perspetiva de comunicação comunitária adotada neste trabalho, é importante tecer alguns apontamentos sobre o que se entende aqui por “comunidade”, ainda que sem a pretensão de aprofundar.
Seja na procura por melhores condições de vida, no desejo de conhecer novos lugares ou na intenção de promover trocas culturais, as pessoas - individual e coletivamente - estão, cada vez mais, em mobilidade. Ao mesmo tempo, as transformações tecnológicas têm contribuído para que os “laços de pertença” sejam preservados mesmo sem a presença física num determinado território, tornando o “estar em comum” algo movido mais por ideias e sentimentos partilhados e menos pela convivência num mesmo espaço físico (Saldanha et al., 2014).
Essas mudanças desafiam à superação da ideia de comunidade como um simples aglomerado de pessoas que partilham um espaço delimitado geograficamente, avançando para a noção de “comunidade gerativa” (Saldanha et al., 2014), entendida como a vinculação entre os sujeitos, com o objetivo da ampliação organizativa em harmonia com as realidades histórica e social, em que a cooperação e a solidariedade são fundamentais.
Por comunidade gerativa, queremos designar o conjunto de ações (norteadas pelo propósito do bem comum) passíveis de serem executadas por um grupo e/ou conjunto de cidadãos. A proposição parte da evidência de que o horizonte que carateriza a sociedade contemporânea - a falência da “política de projetos”, a descentralização do poder, a forte tónica individualista e cosmopolita - produz a busca de alternativas. (Saldanha et al., 2014, p. 7)
Neste sentido, a qualificação “gerativa” diz respeito à capacidade da comunidade de partilhar metas, propostas e ações em comum, sendo a comunicação comunitária o que engloba essa produção de experiências.
Analisando as transformações no cenário comunicacional nas últimas décadas, provocadas sobretudo pela ascensão das plataformas digitais e as possibilidades de interação e diálogo para além do espaço geográfico, Paiva (2023) propõe um alargamento das fronteiras da comunicação comunitária, defendendo que não há mais tempo para uma única plataforma, e afirma a importância de atuação das iniciativas de comunicação centradas em comunidades em diferentes ambientes.
A autora também lembra que o surgimento dos média comunitários tem uma relação direta - ainda que não unicamente - com a necessidade informacional, ou seja, a “urgência em produzir suas próprias narrativas, uma vez que a grande mídia não consegue abarcar, em suas produções, o cotidiano e os aspectos culturais das populações periféricas frente aos centros econômicos e de poder” (Paiva, 2023, p. 23). Ao traçar um panorama global da comunicação comunitária como “ação política periférica”, Custódio (2016, p. 139), em perspetiva semelhante à de Paiva, afirma que a criação de iniciativas comunitárias está pautada pela reivindicação por dois espaços centrais de poder: o espaço de fala nos média e as esferas institucionais de definição das políticas públicas. Neste sentido, a comunicação comunitária é uma expressão da luta política por se fazer incluir ou por criar as suas próprias esferas - ainda que informais - de poder.
A partir do estudo comparativo de jornais e de rádios em comunidades de diferentes partes do mundo, Custódio (2016) identifica três categorias de comunicação comunitária na Europa: uma como afirmação de resistência político-ideológica; outra que se constitui na busca por diversidade étnica; e a terceira que tem a ver com a busca por valorização de culturas e quotidianos locais.
Em Portugal, um importante contributo para a compreensão sobre a comunicação comunitária é desenvolvido por Midões (2020), que indica cinco conceitos nucleares para a definição deste tipo de comunicação: “comunidade”, “proximidade”, “fortalecimento”, “poder” e “participação”.
Para o autor, um traço essencial na comunicação comunitária é a existência de “uma relação de proximidade entre os indivíduos que a compõem, que pode ser geográfica ou afetiva, com ligações que surgem pela partilha de tradições e costumes, que podem ocorrer presencialmente ou através dos recursos digitais” (Midões, 2020, p. 11). A partir desta relação de proximidade, enfatiza o autor, são estabelecidos processos de participação e relações de poder com potencial de fortalecimento dos vínculos entre os membros das comunidades.
Ainda que o foco de Midões (2020) seja o mapeamento de rádios comunitárias, a sua discussão sobre objetivos, gestão e, sobretudo, participação colabora também para o entendimento mais amplo sobre comunicação comunitária e ajuda na análise das iniciativas que aqui serão abordadas.
Deste modo, e pelas características que serão apresentadas a seguir, entende-se que o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia se aproximam da perspetiva da comunicação comunitária de valorização de culturas e quotidianos locais, em que há a participação dos cidadãos nos processos comunicativos e o estabelecimento de relações de confiança para a produção de espaços de fala, questões que serão tratadas no tópico a seguir.
3. Participação e Confiança nos Média Comunitários
Se, como visto anteriormente, a ideia de “comunidade gerativa” pressupõe a partilha de objetivos e ações em comum, pode-se afirmar que não há comunicação comunitária sem participação dos seus integrantes.
Carpentier (2012) fundamenta a participação na teoria democrática e na inclusão das pessoas nos processos de tomada de decisão, que podem acontecer em menor grau, quando, por exemplo, a participação está associada ao direito dos cidadãos elegerem os seus representantes ou serem eleitos, mantendo a centralização na tomada de decisões, ou em maior grau, quando os cidadãos desempenham um papel mais substancial do que a simples eleição dos seus representantes e as relações de poder são mais equilibradas. Mas, o autor argumenta que, nas sociedades contemporâneas, o sentido de participação ultrapassa os domínios da teoria democrática, uma vez que diversos atores passaram a integrar as práticas políticas, ampliando, assim, o intuito da política para as esferas da representação, o que engloba a cultura e os média.
Nos processos de produção de conteúdo, Carpentier (2012) propõe três níveis da participação. O primeiro deles é o acesso, considerado como a presença das pessoas no interior das estruturas organizacionais dos média, seja fisicamente ou por meio de máquinas e tecnologias, com a finalidade de gerar oportunidades para que sejam ouvidas. O segundo nível é a interação, que consiste na articulação de relações sóciocomunicativas dentro da esfera mediática, possibilitando a coprodução de conteúdos em grupo ou comunidade. A principal diferença entre o acesso, a interação e o terceiro nível, a participação propriamente dita, é que neste último, as relações de poder estão mais igualadas, ou seja, os cidadãos não são somente interlocutores e coprodutores, mas sim codecisores e criadores do conteúdo.
Dito de outro modo, no nível do acesso, as pessoas até podem ser ouvidas, mas não possuem qualquer poder para decidir o quê e como será produzido; no nível da interação, as pessoas possuem um poder restrito, pois a decisão final do que será produzido e distribuído ainda é das organizações de média; finalmente, na participação, a decisão sobre o conteúdo é tomada em conjunto. A participação propriamente dita e as suas correlações com a comunidade são aspetos importantes neste estudo, pois dão pistas para compreendermos as dinâmicas da comunicação desenvolvidas nos casos do Vela Notícias e do Jornal da Aldeia.
Em Media e Participação, editado em 2017 para a língua portuguesa, Carpentier volta a apresentar uma ampla discussão interdisciplinar sobre a relação entre os média e o conceito de “participação”. São analisados, por exemplo, estudos de caso na área do cinema, da produção radiofónica e da televisão. Na sua recensão crítica da obra, Montargil (2017) acredita que, ao recorrer a cinco dimensões analíticas secundárias nestes estudos de caso, Carpentier consegue tecer um panorama sobre as discussões que envolvem conteúdos de qualidade e o conceito de “participação”.
Nos casos trabalhados neste artigo, a participação está na base da construção da confiança, uma vez que, na comunicação comunitária, as pessoas participam porque procuram espaços de fala e de partilha, porque conhecem os demais envolvidos, as suas histórias, sabem onde as pessoas vivem e, também, porque partilham os mesmos valores. Trata-se de uma relação diferente da que as pessoas têm com os média tradicionais, com o jornalismo nacional e, até, o regional.
No jornalismo tradicional, a confiança e a credibilidade são acionadas como expectativa. Isto é, o leitor/ouvinte/espectador deposita credibilidade na informação divulgada pelos média porque acredita na perícia e precisão aplicadas na produção da notícia (Aguiar & Rodrigues, 2021). A confiança no comprometimento com os factos (Lisboa & Benetti, 2017) torna as informações procedentes dos órgãos de comunicação credíveis porque estão apoiadas em “dispositivo[s] de credibilização” (Serra, 2006b, pp. 5-6) institucionalizados, tais como a objetividade, a factualidade e a veracidade. No caso da comunicação comunitária, mais especificamente nos casos estudados neste artigo, a confiança não está dada, não existe a priori. Trata-se de um predicado construído por meio da participação.
Entendemos, portanto, que na comunicação comunitária, a credibilidade é uma qualidade do que é confiável (Lisboa & Benetti, 2017). A compreensão da confiança e da credibilidade como qualidades percebidas pelas pessoas ajuda a explicar a confiança dos leitores em blogues (Serra, 2006a) feitos por não-jornalistas (Rosen, 2005) e em ferramentas comunicacionais elaboradas por cidadãos, por exemplo.
É claro que, ao falar de participação, não podemos desconsiderar as tensões e os desafios que vão aparecendo, especialmente na comunicação feita por meio das plataformas digitais. Empresas como Google, Apple, Facebook, Microsoft e Amazon fazem parte de um grupo poderoso de plataformas, cujo controlo e lucro orientam os fluxos informacionais, sem deixar de lado o desenvolvimento de sistemas de exploração laboral, que precarizam milhares de pessoas e jornalistas em todo o mundo (Figaro & Marques, 2020). Algumas vezes, os mecanismos de consumo de conteúdo dessas plataformas acabam por sedimentar o terreno para uma “participação escura” (Quandt, 2018, p. 40), em que o objetivo do participante é insultar, ameaçar, disseminar ódio ou, simplesmente, ferir outras pessoas. Trata-se, portanto, de uma participação oposta à prevista na comunicação comunitária.
Em modelos como a comunicação comunitária, as pessoas tendem a privilegiar informações locais e hiperlocais (Jenkins & Graves, 2019) de interesse comum. Zago (2009) observa uma tendência à hiperlocalidade informativa com a proliferação de dispositivos móveis e a possibilidade de produção jornalística em redes digitais. Nesse contexto, a especificidade das notícias procura atender à necessidade dos indivíduos em territórios circunscritos. Isto porque, no cenário promovido pelo desenvolvimento da rede mundial de computadores e dos dispositivos móveis, e pela globalização, em que as informações tendem a ser demasiado generalistas e focadas em acontecimentos de interesse nacional ou internacional, “saber o que acontece ali na esquina” é tão ou mais importante do que saber o que acontece no mundo. Sendo assim, notícias hiperlocais são aquelas que tendem a ser ainda mais específicas, contemplando “uma comunidade, um bairro, uma rua ou até mesmo um quarteirão específico” (Zago, 2009, p. 1).
Dessa maneira, tal como na comunicação comunitária, o vínculo e a aproximação entre as pessoas caraterizam as notícias e peças informativas, normalmente focadas na vivência de uma determinada comunidade, para ser consumida por indivíduos a ela pertencentes (Aranha & Miranda, 2015). Nesse sentido, o cidadão comum exerce um papel essencial na construção de redes informativas, atuando na produção e difusão de conteúdo (Holanda, 2008). Ao contrário da “desterritorialização” proposta pela ordem global na informação, capaz de separar o centro da ação e a sede da ação, com certa dependência de fatores externos, a ordem informativa local “reterritorializa” à medida que, a partir de uma lógica interna, reúne pessoas, empresas, instituições e formas sociais em prol de um interesse comum (Barbosa, 2002).
Na visão de López-Garcia (2017), essa proximidade condiciona o interesse pela informação e, a partir daí, conduz à consciencialização indispensável para a tomada de decisão por cada cidadão. Embora esteja direcionado para aspetos do jornalismo de proximidade, este raciocínio ajuda a refletir sobre os mecanismos de construção de confiança e credibilidade acionados na comunicação comunitária que são distintos do jornalismo convencional, como já discutimos.
Ao estudar a confiança em comunidades no universo online, Donath (1996) identificou que não apenas a identidade do orador, mas, especialmente, as suas alegações de experiência do mundo real e o seu histórico de contribuições precisas estão diretamente relacionados com a confiança depositada pelos participantes. Esse é um fator bastante importante para compreendermos a construção da confiança em modelos comunicativos geridos pelas pessoas, pois a correlação entre a precisão das informações, os factos e os relatos eleva a posição do participante, tornando-o cada vez mais credível e aceite pelos demais. Esse tipo de comunicação costuma ser motivada por um senso de responsabilidade, pelo desejo de partilha de conhecimento e ajuda mútua (Broncano, 2008; McMyler, 2011), uma vez que desvincula a competência da capacidade técnica.
4. Vela Notícias e Jornal da Aldeia: Contextualização Geográfica e Demográfica
Este estudo exploratório engloba duas iniciativas comunitárias em Portugal: o jornal Vela Notícias, localizado na freguesia da Vela, no concelho e distrito da Guarda; e o Jornal da Aldeia, que fica na freguesia de Ciladas, no concelho de Vila Viçosa e distrito de Évora.
As regiões Centro e Alentejo têm características geográficas e demográficas similares. Ao nível geográfico, ambas estão localizadas no interior de Portugal, onde, nas últimas décadas, tem sido registada uma perda acentuada de população, em razão de dois fatores: o primeiro, a migração da população jovem para as zonas do litoral e a emigração para outros países; o segundo, o envelhecimento da população. Os fluxos migratórios são impulsionados por fatores económicos, relacionados com a procura de oportunidades de emprego e de melhores salários (Castro et al., 2020).
Como a população ativa migra, os negócios e os serviços nestes territórios tornam-se cada vez mais escassos, contribuindo para uma maior desertificação e isolamento dos mesmos. Os dados do último recenseamento ajudam a ilustrar esta situação (Instituto Nacional de Estatística, 2021). Os jovens saem destas zonas e os que permanecem são os mais velhos: na Vela, cerca de metade da população tem mais de 65 anos, enquanto há apenas 20 jovens, com idade até aos 14 anos. Já em Ciladas, há 46 jovens para uma proporção de 259 habitantes com mais de 65 anos (Tabela 1).
As duas freguesias têm atualmente menos de 1.000 habitantes. Importa referir que a área de Ciladas é de cerca de 108 km2; enquanto a Vela tem apenas 21 km2. Assim, a Vela tem uma média de 20 habitantes/km2; enquanto em Ciladas, esse valor é de apenas 8 habitantes/km2.
Os Censos 2021 (Instituto Nacional de Estatística, 2021) apontam ainda que, na última década, Ciladas registou uma perda de 23,8% e Vela teve uma perda de 13,7% de população. Essa alteração demográfica é “ao mesmo tempo uma causa e uma consequência da dinâmica social, económica e ambiental” (Castro et al., 2020, p. 10), que tem também consequências no panorama informativo.
4.1. Descrição do Objeto de Estudo
O Vela Notícias e o Jornal da Aldeia foram escolhidos como objeto deste estudo por serem publicações produzidas por cidadãos não-jornalistas e por estarem inseridos no interior de Portugal. Nas duas iniciativas, os cidadãos realizam, de forma voluntária, tarefas que vão desde a recolha de informações, seleção de temas, escrita e edição dos textos até à distribuição dos exemplares nas caixas de correio dos conterrâneos. As publicações procuram aproveitar o conhecimento, as especializações e a área de atuação dos participantes para a elaboração das peças.
Nos dois casos, a produção de conteúdo não segue as lógicas de seleção, filtragem e hierarquização empregues nos meios jornalísticos tradicionais. Mas, mesmo não sendo consideradas iniciativas de caráter profissional, apresentam-se com nomes e grafismos que procuram aproximá-las do jornalismo, de maneira geral, e dos jornais convencionais, de modo particular (Figura 1 e Figura 2).
O Vela Notícias tem mais de duas décadas de história e começou por ser dinamizado por um grupo de jovens da Vela e pelo padre da paróquia. Toda a comunidade é convidada a participar através de textos, sejam eles artigos de opinião, peças informativas, crónicas, poemas, entre outros. Os temas são distribuídos mediante a especialidade de cada colaborador. Por exemplo, o padre da paróquia tem uma página sobre “Religião”; o coletivo artístico Gambozinos e Peobardos (grupo de teatro da Vela) escreve sobre “Cultura”; os médicos que prestam serviço no posto médico da aldeia têm uma secção sobre “Medicina”, onde dão conselhos de saúde à população; a professora de línguas tem uma página onde escreve as rubricas “Pontapés na Gramática” e “Curiosidades da Língua Portuguesa”; o presidente da Junta de Freguesia redige “A Mensagem do Presidente”, onde expõe as suas preocupações com temas da atualidade, uns diretamente ligados à freguesia, outros de âmbito nacional ou mundial. Elementos da Junta de Freguesia escrevem a rubrica “Nós por Cá”, onde são destacadas as principais atividades e obras realizadas na freguesia; existe ainda o “Obituário” e “Os Novos Filhos da Terra”, secções que expõem os falecimentos e os nascimentos ocorridos naqueles dois meses (Tabela 2).
O Vela Notícias tem uma periodicidade bimensal e uma tiragem de 500 exemplares por edição. Os cidadãos distribuem os exemplares de porta em porta e enviam alguns exemplares para os conterrâneos que moram fora do país, através dos correios. A correção ortográfica é feita por uma das participantes, que é professora de Português aposentada. A organização dos textos e a paginação fica a cargo de um elemento da Junta de Freguesia.
Já o Jornal da Aldeia é uma iniciativa que teve início em agosto de 2022. O periódico resulta de uma parceria entre a Junta de Freguesia de Ciladas e o projeto Motor Social. O jornal tem o objetivo de contribuir para a formação dos jovens, estimulando a cidadania através da participação nos temas de interesse da comunidade. Os jovens entre os 12 e os 16 anos, com apoio de dois adultos, participam nas escolhas de temas, na escrita e edição dos textos, na impressão e na distribuição dos exemplares de porta em porta na aldeia. O Jornal da Aldeia tem uma periodicidade mensal e uma tiragem de cerca de 400 exemplares.
No Jornal da Aldeia, embora haja menos páginas e a publicação seja esteticamente menos elaborada, os participantes costumam privilegiar histórias locais, curiosidades da aldeia, crenças populares, entrevistas, eventos organizados na localidade e produções culturais (ver Figura 2). Os jovens sugerem assuntos e produzem os conteúdos, que depois são aperfeiçoados em conjunto com os adultos que participam na iniciativa. Já a tarefa de corrigir, organizar os textos e paginar fica a cargo de um elemento do projeto Motor Social. Este tipo de participação reforça a ideia de cidadania, de comunidade e de identidade local (Midões, 2021).
Nos dois casos, a Junta de Freguesia funciona como a estrutura onde se realiza a impressão dos jornais. Tanto o Vela Notícias quanto o Jornal da Aldeia distinguem-se de boletins autárquicos, porque, à exceção das duas rubricas mencionadas (“A Mensagem do Presidente” e “Nós por Cá”), as informações ali transmitidas são da autoria de elementos distintos da comunidade, independentes do poder político local. Camilo (1998) entende a comunicação municipal como sendo um “conjunto global, coerente e contínuo de ações comunicacionais concretizadas pela estrutura institucional do município” (p. 15), o que inclui a Câmara Municipal, a Assembleia Municipal e o presidente da Câmara Municipal. Esse tipo de comunicação é um recurso que o município utiliza para a solução de problemas concretos. A natureza informativa da comunicação municipal é corporativa, no sentido de dar notoriedade às deliberações e decisões do município. O edital e o boletim municipal cumprem essas funções assim como o Diário da República, ao nível da Administração Central.
Sendo assim, embora apenas um dos objetos estudados neste artigo contenha secções com mensagens de caráter institucional, as suas características globais não permitem incluir o Jornal da Aldeia e o Vela Notícias no âmbito da comunicação municipal/autárquica. Por tudo isso, as duas iniciativas aproximam-se dos pressupostos da comunicação comunitária.
5. Metodologia
Este estudo privilegiou uma abordagem metodológica qualitativa, tendo sido selecionadas duas ferramentas de comunicação comunitária: o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia. A fim de compreender as dinâmicas comunicacionais, de produção informativa e de participação da população nas duas publicações, utilizamos procedimentos metodológicos complementares. Primeiro, fizemos a recolha e a análise qualitativa dos jornais. Nesta parte, procuramos perceber que tipo de conteúdos eram publicados, quem os escrevia, como os artigos eram graficamente apresentados, e se havia chamadas à participação nas edições. Em seguida, contactámos os responsáveis e realizámos entrevista em profundidade semiestruturada (Duarte, 2005) com participantes. Ao todo, foram ouvidos cinco colaboradores, entre os dias 11 e 14 de setembro de 2022, através de videochamada, pela plataforma Zoom, e de chamada telefónica (Tabela 3). Apesar de não representar um número expressivo, acreditamos que os entrevistados contribuíram para o desenvolvimento deste estudo exploratório, oferecendo novas questões e possíveis caminhos para uma futura ampliação.
Todos os entrevistados autorizaram a gravação das entrevistas para uso científico. Mesmo assim, optou-se por não referir os seus nomes. Foi realizada a análise qualitativa e interpretativa das respostas sem recurso a software. Foram abordadas três dimensões analíticas: (a) processo de participação; (b) perceções sobre a confiança nos veículos; e (c) transmissão de valores e sentimento de pertença. As entrevistas abordaram 11 questões relacionadas com a fundação destes média comunitários e os seus objetivos. Os participantes também responderam a questões como: “o que significa para si participar e de que forma contribui para esta iniciativa?”; “saber que outras pessoas da comunidade participam no jornal aumenta a confiança nos conteúdos?”; “a ausência de jornalistas interfere nessa confiança/credibilidade?”; “em que medida esta iniciativa consegue transmitir os valores, a cultura e o modo de vida das pessoas da freguesia?”, entre outras.
Duarte (2005) ressalta que a entrevista individual em profundidade se tornou a forma clássica de explorar um assunto a partir da busca de informações, perceções e experiência dos entrevistados/informantes, para analisá-las e apresentá-las de maneira estruturada. Uma das principais qualidades desta abordagem está na flexibilidade, pois permite ao entrevistador ajustar as suas perguntas ao passo que deixa o entrevistado livre para definir o tempo das respostas.
Na visão de Stokes e Bergin (2006), essa liberdade oferece as condições para o entrevistado expressar as suas crenças e sentimentos sobre determinado assunto, por isso as entrevistas levam a uma maior contextualização e aprofundamento da investigação. Para Boyce e Neale (2006), a técnica é adequada quando o interesse do investigador é alcançar informações detalhadas sobre o comportamento das pessoas, obter um panorama mais completo de um fenómeno ou situação e entender porque eles acontecem. Desse modo, “as narrativas permitem ir além da transmissão de informações ou conteúdo, fazendo com que a experiência seja revelada, o que envolve aspetos fundamentais para compreensão tanto do sujeito entrevistado individualmente, como do contexto no qual ele está inserido” (Muylaert et al., 2014, p. 188).
6. Resultados
A análise das entrevistas permitiu compreender a forma como os participantes se relacionam com a comunidade e com as publicações e, ainda, o modo como a confiança é construída neste modelo comunitário de comunicação. No Vela Notícias, os participantes sugerem determinados temas e contribuem com conteúdos diversos, apresentados sob a forma de crónicas, entrevistas, contos ou poemas. Já no Jornal da Aldeia, em que participam sobretudo jovens dos 12 aos 16 anos, os trabalhos são desenvolvidos pelos jovens e acompanhados por dois adultos. Nesse sentido, um dos coordenadores da iniciativa vê na sua participação uma forma de “contribuir para a formação dos jovens, favorecendo a aquisição de competências na área da leitura e escrita” (Entrevistado 4). Por outro lado, embora possam encarar a produção do jornal como um “passatempo de férias”, na visão dos jovens, trata-se de uma oportunidade para aprender “mais sobre o mundo do jornalismo” e para conhecer “melhor a aldeia e a população” (Entrevistado 5).
Também foi possível averiguar as motivações para a participação e a maneira como influenciam a confiabilidade das informações divulgadas. No geral, nos depoimentos, além de “participação”, identificam-se termos como “representação”, “pertença”, “responsabilidade social”, “proximidade” e “confiança”, normalmente utilizados para justificar o envolvimento na elaboração das publicações.
Nesse sentido, as duas iniciativas estudadas traduzem uma vontade comum da população daquelas freguesias de se verem representadas e informadas sobre questões de âmbito local e hiperlocal. Estas últimas nem sempre têm espaço nos orgãos de comunicação convencionais. Num estudo com os jornalistas da região Centro de Portugal, os inquiridos destacaram algumas dificuldades na recolha de informações, tais como: “encontrar fontes credíveis”, “definir o que é importante, devido à grande quantidade de informações” e ter “tempo para pesquisar fora dos temas de agenda” (Morais et al., 2020, p. 73). Isso é significativo, pois, apesar de existirem meios de comunicação regionais nos dois municípios (Vila Viçosa e Guarda), os informantes indicam a necessidade de uma comunicação específica que possa refletir os problemas e as virtudes das localidades, a fim de “divulgar o que se passa na freguesia e chegar a toda a comunidade” (Entrevistado 1).
De certa maneira, os depoimentos evidenciam que a participação dos moradores, ou seja, a tomada conjunta de decisões sobre quais assuntos e temas de interesse local devem ser comunicados, aumenta a crença naqueles veículos e nas informações neles contidas. Isso pode ser inferido na seguinte fala: “as notícias são exclusivamente sobre a aldeia e sobre assuntos que têm interesse para os residentes” (Entrevistado 4).
Esta declaração traz ainda um aspeto interessante que diz respeito à compreensão daquilo que é divulgado, o que também se relaciona com o formato e a estrutura dos textos. Quer dizer, o facto de não haver jornalistas envolvidos parece não afetar a perceção de qualidade das informações e de estruturação das histórias. Daí o uso do termo “notícias” para designar o conteúdo produzido pelos cidadãos.
A partir deste raciocínio, as entrevistas indicam que os participantes consideram as duas iniciativas “jornais locais” pela característica de proximidade, pela mediação que fazem entre a população e o poder político, e pelo caráter informativo com que se apresentam: “há aqui um caráter informativo na relação com a freguesia e na relação de proximidade entre a população e os políticos e o jornal também faz essa ponte” (Entrevistado 2); “é um meio de comunicação dedicado ao quotidiano da aldeia, da sua história e gentes” (Entrevistado 4). Percebemos também que os conceitos basilares da comunicação comunitária estão presentes nessas falas, ainda que não intencionalmente.
O sentido das falas acima destacadas pode ser percebido mais claramente noutros testemunhos: “considero um jornal, sem dúvida, porque dá informação sobre assuntos relacionados com a freguesia” (Entrevistado 3), “eu acho que o jornal é feito por jornalistas (ainda que amadores) e é um jornal, não tenho dúvida nenhuma sobre isso” (Entrevistado 2), mas também: “é um meio de comunicação impresso, com a publicação de notícias e opiniões nas mais diversas áreas com interesse para os habitantes e dos jovens” (Entrevistado 4).
Não descartamos o valor e os ganhos que a participação de jornalistas traria para as duas iniciativas, mas é curioso perceber que o aspeto não profissional das publicações foi destacado apenas por um dos entrevistados, para quem o jornal é o resultado da atividade laboral dos jornalistas: “não considero um jornal, na medida em que nós não somos jornalistas” (Entrevistado 1). Em contrapartida, o não envolvimento de jornalistas profissionais nas publicações parece ser compensado por uma dinâmica de verificação bastante específica, possibilitada pela proximidade entre as pessoas envolvidas. Ao que tudo indica, o facto de os participantes e leitores se conhecerem e manterem vínculos sociais, culturais e afetivos facilita os processos de verificação das informações divulgadas. Isso é evidente na seguinte declaração do Entrevistado 2: “a informação tem de ser verificada em qualquer um dos casos, e aqui eu consigo verificar essa informação porque vou ao meu vizinho e pergunto se é verdade ou não. Faço um fact-checking quase imediato”.
Assim sendo, de forma unânime, os entrevistados realçam que o facto de as publicações não serem produzidas por jornalistas não afeta a confiança da comunidade. Isso porque, além da relevância e da importância atribuídas às informações divulgadas, os entrevistados explicam que conhecer as pessoas que escrevem aumenta o interesse e a credibilidade. Podemos depreender tais noções a partir das seguintes falas: “se conheço a pessoa, tenho mais interesse em ler, ou tenho um interesse especial porque sei que estou a ouvir uma pessoa da minha comunidade” (Entrevistado 2).
O jornal é realizado por membros da comunidade e pensamos que isso oferece às pessoas confiança nas notícias e informações que são passadas. Acreditamos que o facto de as pessoas conhecerem quem está a escrever lhes confere alguma credibilidade e empatia. (Entrevistado 4)
Isso leva-nos a acreditar que a horizontalidade da comunicação, somada à proximidade e à partilha de interesses comuns, são consideradas um benefício pelos participantes. Essa característica aparece nas declarações dos cinco entrevistados: “o jornal é do povo para o povo, tanto para os residentes, como para os que estão fora” (Entrevistado 1) ou “o facto de dar voz às pessoas e de o jornal não ser feito por uma única pessoa ou apenas pela Junta de Freguesia, é mais representativo de toda a comunidade” (Entrevistado 2).
Nota-se ainda que os entrevistados atribuem às publicações uma índole representativa, capaz de corresponder ao sentimento de pertença aos territórios e à cultura dessas regiões. Essa característica atrai a atenção tanto dos moradores, como daqueles que já não moram nas localidades, mas mantêm com elas uma relação de afetividade. Isso fica evidente em testemunhos como este: “este jornal está realmente escrito para as pessoas que habitam na Vela ou para aqueles que sendo da Vela, não residem cá, vivem noutras zonas de Portugal ou no estrangeiro” (Entrevistado 3); ou este: “essa divulgação para o exterior é muito importante, porque as pessoas sentem-se mais próximas de casa. Sentem as suas raízes ao receber a informação do que acontece na sua localidade” (Entrevistado 1); e também este: “o jornal tem muito impacto no sentido em que quem está fora pode acompanhar as notícias da Vela, a partir de um órgão de informação que chega a casa” (Entrevistado 2).
Em suma, as informações divulgadas são importantes para os residentes das duas freguesias uma vez que conjugam a representação e a pertença com o interesse local. “O jornal reflete a vontade de ter um lugar que pudesse reunir as informações das pessoas da aldeia” (Entrevistado 2). “Numa aldeia envelhecida, neste caso, a mais envelhecida e isolada geograficamente do concelho, este jornal consegue ser um meio de informação, com importância para a comunidade, a sua maioria sem redes sociais” (Entrevistado 4).
Por fim, o desejo de contribuir para o desenvolvimento da comunidade e o sentido de responsabilidade social que se reflete no intuito de partilhar conhecimento parecem estar entre as principais motivações apontadas pelos entrevistados.
Se temos coisas para partilhar e consideramos que o resto das pessoas terá interesse nisso, acho que é uma responsabilidade. E sobretudo, como membro de uma associação, acho que uma associação de uma aldeia tem a obrigação de participar e apoiar o jornal. (Entrevistado 2)
“O meu contributo neste jornal é ajudar as pessoas a falar melhor e a conhecer a proveniência de diversas expressões que são do uso comum” (Entrevistado 3).
Além do mais, alguns entrevistados expressam um sentimento de satisfação por poderem contribuir e partilhar informações. Isso estimula-os a continuar a participar e a ler estas publicações. Expressões como “acho que as pessoas se sentem úteis e felizes ao escreverem sobre assuntos de que gostam” (Entrevistado 1); “fico feliz quando me perguntam se já sei o que vou escrever na próxima edição” (Entrevistado 3); e “sinto uma grande alegria, porque estamos a dar fama à aldeia e estamos a contribuir para que mais pessoas a conheçam” (Entrevistado 5) deixam essa ideia bastante clara.
7. Discussão
Seja pela participação dos cidadãos das freguesias no processo de produção de conteúdos, decisões editoriais e distribuição dos periódicos, seja pelo reforço de relações de afeto e confiança entre os membros das comunidades, ou ainda pela valorização das culturas locais, o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia são duas iniciativas que traduzem a relevância da comunicação comunitária em locais de baixa densidade populacional no interior de Portugal. Vale lembrar também que nas duas aldeias, Vela e Ciladas, a população é maioritariamente idosa e não acede com frequência à internet, por isso, a informação chega essencialmente através de meios tradicionais, como a televisão e a imprensa escrita.
As entrevistas aos envolvidos permitem ter uma compreensão mais ampla dos sentimentos e significados ligados à participação no processo produtivo coletivo de conteúdos. Estes média, feitos por não-jornalistas, podem ser enquadrados na definição de “comunicação comunitária” por demonstrarem uma vontade comum de (re)afirmar a cultura e os valores que compõem a identidade local (Midões, 2021), ao mesmo tempo que manifestam a necessidade de partilhar e receber informação local, que os média nacionais e regionais não abarcam (Paiva, 2023).
As entrevistas sugerem que os habitantes veem nestas iniciativas uma forma de preservar os valores da sua comunidade e de divulgar os principais acontecimentos da sua freguesia, tanto para os restantes moradores, como para aqueles que se encontram emigrados.
De forma geral, todos os entrevistados demonstraram que se sentem gratificados por contribuir com os seus conhecimentos e talentos. Além disso, eles também evidenciaram sentimentos de pertença à aldeia, de responsabilidade e de compromisso social, bem como uma afetividade com a comunidade que os une. Estas podem ser elencadas como as principais motivações para a participação no Vela Notícias e no Jornal da Aldeia.
É de salientar que os dois veículos procuram associar-se aos meios jornalísticos tradicionais não somente pelo formato, mas também pelos nomes que apresentam. Através das entrevistas, percebe-se ainda que os participantes tentam fazer esta associação através do uso frequente de termos como “jornal”, “notícias” e “informação”. Apesar disso, nestes exemplos, a confiança nas informações divulgadas não está previamente estabelecida, como ocorre nos média tradicionais, mas é um constructo. A confiança vai sendo construída através das relações de proximidade, do vínculo e da partilha por interesses comuns. Para além disso, a verificação das informações acontece quase simultaneamente aos factos, pois decorre da proximidade entre quem lê e quem escreve, que é muitas vezes o vizinho, o familiar ou o amigo. A facilidade de apurar as informações transmitidas por este meio reforça também o elo de confiança.
As duas regiões onde surgem os veículos estudados neste trabalho têm características territoriais e demográficas semelhantes entre si, mas que são um elemento distanciador dos centros de poder, onde se instalam os principais média. Embora Portugal conte com uma longa história de jornalismo regional, os últimos anos têm sido marcados pelo encerramento de muitas redações, escassez de recursos financeiros e humanos, e precarização da mão de obra dos jornalistas (Jerónimo, 2015). De certo modo, isso contribui para o destaque dado aos eventos de interesse jornalístico ocorridos nos centros urbanos e áreas mais populosas, o que produz um certo distanciamento do jornalismo e dos jornalistas das vilas e aldeias, como nos casos aqui em questão.
Em iniciativas como o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia o envolvimento dos cidadãos pode ser localizado no nível mais profundo da participação, ou a participação propriamente dita (Carpentier, 2012). Isso porque as pessoas não são chamadas apenas para estar presentes no interior das estruturas organizacionais desses meios, não figuram, portanto, como meros espetadores, aguardando a oportunidade para serem ouvidas, para expor seus anseios e demandas. O propósito da participação dos cidadãos no Vela Notícias e no Jornal da Aldeia também está para além da interação, com foco numa coprodução, como normalmente ocorre nos meios jornalísticos tradicionais.
Ao pensar, organizar, escrever os conteúdos, contribuir na estruturação gráfica, distribuir e, até, mobilizar outros participantes, os cidadãos estabelecem um nível mais profundo de vínculo com os “jornais” e com as suas comunidades. Mais do que agentes interativos, eles são participantes com algum grau de poder decisório. Com base nas escalas identificadas por Carpentier (2012), significa dizer que participam de facto, uma vez que o “elemento definidor da participação é o poder” (p. 170), seja na produção ou receção. Nos “jornais” estudados neste artigo, as pessoas definem os conteúdos que irão trabalhar, escolhem conjuntamente sobre quais pessoas, problemas e ações irão falar, e, por fim, decidem conjuntamente sobre as políticas organizacionais mais adequadas para o êxito das duas iniciativas.
Investigações desta natureza são importantes, pois, de um lado, mostram os constrangimentos do modo vertical, hierarquizado e, até certa medida, distante do jornalismo tradicional, o que pode ter algum reflexo no desejo e empenho dos cidadãos em produzirem e distribuírem a sua própria comunicação. De outro lado, podem indicar caminhos possíveis para uma produção conjunta entre cidadãos e jornalistas, especialmente nas regiões consideradas “desertos de notícias” (Jerónimo et al., 2022). Exemplos como o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia demonstram que a comunicação comunitária pode preencher uma lacuna e contribuir com informações relevantes, especialmente em temas que atraem pouca atenção dos média tradicionais, mas que são importantes para os habitantes locais.
Nesse cenário, a lógica da verticalidade, caracterizada pela transmissão de um para muitos, própria dos meios de comunicação tradicionais, cede espaço à lógica da horizontalidade, onde a informação circula continuamente e em múltiplas direções. Nesse contexto, as práticas comunicacionais contemporâneas veem surgir um novo tipo de indivíduo: o pro-am (profissional-amador), destacado por Ramonet (2011/2012) como o agente que desenvolve atividades amadoras segundo padrões profissionais. Os cidadãos deixam de ser apenas leitores, ouvintes, telespectadores passivos para passarem a escrever, falar, fotografar, filmar e, até, analisar as produções jornalísticas convencionais.
Por isso, a produção cidadã tensiona, em certos aspetos, o jornalismo profissional na medida em que é capaz de gerar credibilidade e confiança ao desenvolver dinâmicas comunicacionais descentralizadas. O estudo de iniciativas de comunicação comunitária como o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia permite aprofundar esse tipo de debate, especialmente por serem oriundas de territórios pouco representados nos meios de comunicação e mostrarem o vigor da produção informativa cidadã em regiões de baixa densidade populacional, no interior de Portugal. Como pudemos abordar na secção anterior, a ausência de jornalistas parece não diminuir o compromisso, o desejo de participação, o senso de responsabilidade e a confiança das pessoas nas informações divulgadas por estas ferramentas.
Todas as etapas do processo informativo, que vão desde a recolha de informação até à distribuição dos impressos, são executadas por cidadãos sem formação académica em jornalismo, nem experiência no setor dos média. O que une estes participantes é a vontade conjunta de partilhar informação relevante com os seus conterrâneos, mas também receber informação detalhada sobre o que acontece na sua comunidade e na sua freguesia.
8. Considerações Finais
Num mundo em que cada vez mais cidadãos comunicam através das plataformas digitais, o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia ainda fazem chegar as informações em formato impresso. Nestes “jornais” são retratados os problemas, a cultura, as atividades, e as virtudes de populações do interior do país, de territórios maioritariamente envelhecidos e com pouca cultura digital. Dois dos entrevistados sublinham a importância de divulgar informação em papel para aqueles que não têm redes sociais, que no caso de Ciladas representam a maioria da população. Além disso, a informação veiculada nestes meios é distinta daquela que o jornalismo regional transmite por ser mais detalhada e focada numa determinada comunidade, o que tende a aumentar o interesse na leitura.
Neste sentido, os cidadãos utilizam o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia como mecanismos de autorrepresentação, encontrando neles uma ferramenta de partilha de conhecimentos e de responsabilidade social para a localidade como um todo. Por isso, este estudo pode ser considerado um indicador de uma realidade comunicacional ainda por ser desvelada e que merece um olhar contínuo dos investigadores. Num país em que 166 dos 308 concelhos (53,9%) se encontram total ou parcialmente sem cobertura jornalística tradicional, ou estão em risco de ficar sem cobertura noticiosa, importa lembrar que as regiões Centro e Alentejo são duas das mais afetadas, concentrando 80% dessa desertificação de notícias (Jerónimo et al., 2022).
Se olharmos para esses números, podemos questionar em que medida iniciativas de comunicação comunitária como o Vela Notícias e o Jornal da Aldeia contribuem para diminuir o impacto desse deserto? O trabalho conjunto entre jornalistas e cidadãos pode suprir o lapso noticioso nestes territórios, promovendo uma maior integração entre os profissionais e os moradores locais? Que respostas a comunicação comunitária tem a oferecer a estas questões?
Neste trabalho, deixamos perguntas em aberto, mas também pistas sobre o desenvolvimento de dinâmicas comunicativas e participativas, que contrariam os múltiplos fenómenos de desertificação nas aldeias do interior de Portugal.