INTRODUÇÃO
As quedas ao mesmo nível são razoavelmente frequentes e se em alguns setores profissionais se encontra um número razoável de funcionários que tem acesso a calçado antiderrapante, noutros setores/empregadores tal não acontece.
Para além disso, nem todos os profissionais a exercer nas equipas de Saúde Ocupacional estarão à-vontade para fazer recomendações na escolha do modelo a utilizar. Pretendeu-se com esta revisão resumir o que de mais recente e relevante se publicou sobre este tema, de forma a tentar colmatar essa problemática.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): trabalhadores com fator de risco de queda ao mesmo nível.
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre as caraterísticas do calçado que atenuam e potenciam o risco de queda ao mesmo nível.
-C (context): saúde ocupacional nas empresas com postos de trabalho onde é possível ocorrer queda ao mesmo nível.
Assim, a pergunta protocolar será: Quais as caraterísticas do calçado laboral que ajudarão a evitar ou que agravarão o risco de queda ao mesmo nível?
Foi realizada uma pesquisa em agosto de 2021 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina e RCAAP”.
No quadro 1 podem ser consultadas as palavras-chave/expressões utilizadas nas bases de dados.
No quadro 2 estão resumidas as caraterísticas metodológicas dos artigos selecionados.
Artigo | Caraterização metodológica | Resumo |
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1 | Estudo original | Neste artigo do Canadá os autores avaliaram a capacidade antiderrapante de 40 modelos de calçado de inverno para uso no exterior. Concluíram que a maioria deles não é suficientemente eficaz em superfícies com gelo. |
2 | Neste trabalho do mesmo país, os autores investigaram 45 modelos de calçado de inverno e perceberam que apenas um cumpria os critérios pré-estabelecidos de segurança. | |
3 | Trata-se de um documento da mesma nacionalidade que teve como objetivo avaliar uma metodologia para testar o comportamento do calçado usado para caminhar em superfícies com gelo. Os autores concluíram que a técnica em causa necessitava de ser melhorada. | |
4 | Este artigo norte-americano pretendeu investigar as alterações exigidas ao calçado após escorregar e quantificar o coeficiente de fricção. Contudo, percebeu-se que indivíduos que o fazem várias vezes seguidas, por questões de investigação, poderão não produzir resultados válidos. | |
5 | Esta referência bibliográfica norte-americana pretendeu avaliar dois modelos de calçado de trabalho a nível de equilíbrio e queda, com exposição a carga; com olhos abertos e fechados, bem como em superfície estável e instável. Percebeu-se que alguns detalhes no design podem potenciar a eficácia e que o cansaço físico poderá fazer o oposto. | |
6 | Aqui está inserido um estudo de Taiwan, no qual se investigaram duas solas de calçado em três superfícies diferentes, com uma amostra de dez indivíduos saudáveis do sexo masculino. As conclusões obtidas permitiram compreender melhor a dinâmica do pé neste contexto. | |
7 | Trata-se de um trabalho iraniano que pretendeu investigar o efeito da profundidade dos sulcos das solas em diferentes superfícies, coeficientes de fricção, velocidades e humidade. Concluiu-se que quanto mais profundos os sulcos (sobretudo se superiores a 5 milímetros), maior a estabilidade a caminhar. | |
8 | Este artigo publicado numa revista norte-americana, mas com autores de Taiwan, Estados Unidos da américa e Holanda, selecionaram 40 indivíduos entre os 22 e os 36 anos e atribuíram um modelo de calçado com sola rígida e maleável. Concluíram que a diferença de quedas não foi estatisticamente significativa. | |
9 | Artigo de revisão | Trata-se de uma revisão bibliográfica narrativa, em que os autores descrevem alguns detalhes técnicos associados ao calçado, no sentido de prevenir a queda, ainda que mais focado na população idosa, versus população ativa. |
CONTEÚDO
Relevância e consequências das quedas a nível laboral
As quedas podem ocorrer em três contextos: de objetos, ao mesmo nível e em altura. Neste artigo apenas se abordarão as segundas.
As quedas ao mesmo nível são uma das principais causas de sinistralidade laboral (1), não só mas sobretudo em indivíduos que trabalham no exterior, em áreas geográficas onde os invernos são rigorosos (com gelo) (1) (2) (3).
As quedas globais constituem o segundo maior problema de saúde pública, em contexto de sinistralidade, a seguir aos acidentes de viação. Estimam-se 646.000 mortes e 17 milhões de anos-vida perdidos (2). As quedas ao mesmo nível nos Estados Unidos da América justificam 20% das idas às urgências hospitalares por acidente; sendo também a segunda causa de morte no domicílio. Quando ocorrem em contexto laboral, o total de indemnizações atribuído é igualmente avultado (3) (4). Neste país, o Bureau of Labor Statistics quantificou mais de 5.000 quedas globais fatais em 2017, acrescidas de quase 223.000 não fatais; sobretudo nos setores da construção e da indústria (5). No Reino Unido, por exemplo, as quedas são uma das principais causas de morbilidade e mortalidade laborais, ou seja, está publicada uma taxa de fatalidade de 0,5 por 100.000 trabalhadores (6).
A sinistralidade associa-se a diminuição da produtividade, mais indemnizações por incapacidade, aumento do número de dias perdidos e mais dor/sofrimento para o trabalhador (1) e, eventualmente, alguma incapacidade permanente para os casos mais graves.
Fatores que influenciam o risco de queda
A queda dependerá de fatores extrínsecos (2) (5) ou ambientais (5) [como clima, luz, obstáculos, distrações (2); bem como calçado, tarefas em si (5) e caraterísticas do chão (6)] e intrínsecos (2) (5) ou humanos (5) [questões articulares, musculares e reflexos (2), ou seja, da estabilidade postural, fadiga muscular/ exercício intenso- ainda que o efeito seja de curta duração, ou seja, eventualmente eliminado com uma pausa de cerca de dez minutos (5)].
A estabilidade postural diminui com o aumento da carga laboral e com a postura de pé mantida por períodos prolongados (5). Quando ocorre deslizamento do pé, poderá ocorrer ou não queda. A capacidade de dar um passo após o deslize atenua o risco de queda (2). O angulo de pé também tem capacidade para influenciar a probabilidade de queda e os indivíduos têm alguma capacidade para o ajustar parcialmente, em função das necessidades do momento, sobretudo quando detetam risco razoável de deslizar/cair (6). Recomenda-se um angulo inferior a 7º (2).
Se o chão tiver ranhuras perpendiculares o atrito produzido é superior. Inversamente, as paralelas à direção em que se caminha devem ser evitadas. Por sua vez, chãos molhados ou contaminados também potenciam o risco de queda (6).
Quando o indivíduo percebe que vai andar numa superfície escorregadia passa a caminhar de forma alterada, para atenuar o risco de queda, mesmo que tenha instruções para caminhar normalmente, como em contexto de investigação, sendo a perceção visual um grande influenciador nessa modificação (6). A generalidade dos indivíduos, ao caminhar numa superfície escorregadia, diminui as forças horizontais (antero-posteriores e medio-laterais) e mantém as verticais; contudo, a capacidade para o fazer nesse tipo de solo fica prejudicada (7).
A velocidade com que um indivíduo se desloca é também relevante; acredita-se que se pode colocar o ponto de corte ao nível dos 0,5 metros por segundo de pico de velocidade (6).
Caraterísticas do calçado laboral que poderão modular o risco de queda
O calçado antiderrapante diminui o risco de queda ao mesmo nível, ainda que seja difícil perceber a eficácia real de determinado modelo, ao comprar, antes de usar. O teste “maximum achievable angle” (MAA) poderá ajudar- um valor superior significa que o calçado é mais seguro em todas as superfícies; recomenda-se um angulo superior a 7º (como já se mencionou). Existem métodos equivalentes para modelos usados no interior dos edifícios. Num dos estudos selecionados que usou estas metodologias, concluiu-se que a maioria dos modelos de calçado de inverno têm baixa eficácia no gelo (1). Independentemente da metodologia, outros investigadores concluíram o mesmo (2). Outra técnica para investigar este assunto é o KITE (Knowledge, Innovation, Talent, Everywhere), do Instituto de Reabilitação de Toronto, que avalia a resistência em situações de gelo (3).
O atrito entre o calçado e o chão definirá o risco de queda (4); ou seja, um maior risco de queda está associado à diminuição do atrito (3). Um modelo que apresente menos atrito aumenta a distância e velocidade da queda. O calçado utilizado não apenas define o atrito gerado, como também condiciona a própria forma como se caminha. A interação entre o calçado, chão e eventuais contaminantes poderá ser complexa (8). A parte mais superficial da sola pode providenciar atrito adequado para atenuar a possibilidade de cair (9). O conceito de coeficiente de fricção entre a sola do calçado e o chão foi adotado para caraterizar a probabilidade de queda (6) (7), ou seja, quanto mais baixo o coeficiente, maior o risco. Nos Estados Unidos da América usa-se o ponto de corte de 0,5 como limiar de segurança. Os fatores que podem influenciar esse coeficiente são os materiais e superfície da sola e do chão, eventuais contaminantes (como já se mencionou) e a inclinação (6). Quanto mais profundas as ranhuras na sola, maior a estabilidade ao caminhar. Quando o chão está molhado ou lubrificado com algum agente químico, a sola não consegue tocar diretamente no chão, atenuando o atrito. Aliás, a profundidade das ranhuras do calçado poderá acomodar parte do contaminante e atenuar o risco de queda, por aumentar a área de contato e o coeficiente de fricção. O deslizar ocorre quando se supera o atrito entre o calçado e o chão (7).
Encontram-se na literatura dados relativos ao facto de o calçado com sola mais rígida potenciar o risco de queda devido, geralmente, a apresentar um atrito de intensidade inferior. Contudo, outros concluíram que o risco de queda não foi estatisticamente diferente entre calçado com sola rígida e maleável (8). Outros ainda defendem que solas mais rígidas, por sua vez, poderão potenciar a capacidade de reação e, assim, favorecer o equilíbrio (9).
As caraterísticas do calçado que podem influenciar o risco de queda são a altura do tacão, flexibilidade, espessura e material da sola (antiderrapante). Contribuem para a estabilidade o modelo ficar acima do tornozelo (5) (9), os materiais serem globalmente leves (5); bem como o uso de substâncias com baixa resiliência para amortizar impactos no calcanhar, potenciar o tempo de reação através de estimuladores cutâneos e controlar a pressão exercida no pé. Existe tecnologia que permite quantificar a pressão que o pé está a sentir no momento e perceber as alterações que isso implica na dinâmica global. Tacões com alguma dimensão potenciam a instabilidade lateral e o risco de queda. De realçar que modelos que cheguem até o tornozelo potenciam a estimulação tátil e assim atenuam o risco de queda (9).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Ainda que os artigos selecionados não tenham produzido uma síntese de informação que permita abordar o tema com evidência robusta, constaram-se dados que poderão orientar minimamente a atividade dos profissionais a exercer em empregadores com este fator de risco, nomeadamente: providenciar uma iluminância e temperatura adequadas (se aplicável), eliminar ou diminuir obstáculos, elaborar chão com ranhuras perpendiculares ao sentido do deslocamento, atenuar ou eliminar água ou outros contaminantes; bem como evitar ou atenuar a postura de pé mantida, exercício vigoroso imediatamente antes/fadiga, velocidade de deslocamento elevada e promover o desenvolvimento de uma robustez articular e muscular da parte do indivíduo. Quanto às caraterísticas em si do calçado, estas podem ser resumidas na existência de ranhuras profundas na sola, tacão não elevado, modelos que fiquem acima do tornozelo e uso de materiais flexíveis, leves e com solas que causem um atrito adequado.
Seria pertinente que alguns profissionais a exercer em empregadores com estas condições, investigassem melhor o tema (interação entre modelos, materiais, tarefas executadas e adesão, conforto do trabalhador), publicando as conclusões obtidas em revistas da área.