INTRODUÇÃO
O Brasil evoluiu consideravelmente nos últimos anos em termos de proteção jurídica contra crimes informáticos, destacando-se quatro setores principais: o surgimento de princípios e normas gerais informadores do direito eletrônico, a edição de tipos incriminadores especialmente voltados para a criminalidade informática, a adoção do marco regulatório que possibilitou identificar e imputar a autoria das condutas encetadas no meio virtual, e por fim, a padronização de protocolos de segurança digital e armazenamento dos dados de conexões.
Todo esse cenário é caudatário à crescente e diversificada criminalidade que atua na rede. O mundo depara-se com questões fundamentais e de difícil solução diante do rápido, ubíquo e irretrocedível avanço tecnológico em todas as áreas da vida. Como fixar, em âmbito internacional, regras aplicáveis de competência territorial para julgar os crimes informáticos? Quais medidas são suficientemente razoáveis e eficazes para obrigar os servidores ao cumprimento da lei e das decisões judiciais? Como proporcionar a potencial e prospectiva identificação dos usuários sem que se desnature o característico anonimato da web? Ainda não há no cenário atual respostas absolutas para estas perguntas.
Entretanto, os problemas delas advindos impactam diretamente a forma como o antissemitismo contemporâneo é formado na web. Um cenário contraditório no qual criminalização e impunidade, potencialização e supressão da da identidade judaica convivem juntos.
Apesar do racismo se constituir como um critério mundialmente aceito para a tipificação da hostilidade contra os judeus, a hipótese da pesquisa consiste na falibidade dos modelos atuais de proteção desta hostilidade. Demanda-se de um modelo mais adequado no combate a condutas deste jaez, implicando na superação conceitual das principais elementares utilizadas na incriminação. Pretende-se concluir que a generalidade do tema permite que os modelos propostos ao caso dos judeus sejam estendidos a todas as espécies de discriminação, suprindo, igualmente, as falhas apontadas.
A fim de atender a tais objetivos, utilizar-se-á a revisão crítica da bibliografia histórica e jurídica especializada, expondo os teóricos e práticos na interpretação dos delitos e discriminação odiosa para a construção de uma nova lógica para o tema.
1 ARQUÉTIPO LEGÍSTICO NA PROIBIÇÃO DO DISCURSO ANTISSEMITA
Todos os Estados democráticos, sem exceção, editam tipos penais que criminalizam o ódio, o racismo ou, ao menos, alguma forma de discriminação ou preconceito. Embora existam alguns padrões conceituais, nem sempre há convergência na interpretação destes crimes sobre a inclusão ou exclusão de minorias no rol de proteção ou acerca da licitude e limites de tolerância de fenômenos determinados como o revisionismo histórico, a exibição de símbolos controversos e o próprio discurso de ódio.
A identificação destes modelos e das justificativas e teorias que os subsidiam é fundamental para que o jurista possa oferecer um correto alinhamento entre direitos fundamentais em conflito e a proteção de minorias ou grupos sociais discriminados.
Determinadas construções legislativas tentam arrefecer a apologia ao ódio por meio de técnicas penais inadequadas ou ao arrepio de direitos fundamentais que deveriam ser respeitados em tal elucubração. O Direito Penal deve ser equilibrado, pontual e projectivo, especialmente quando tratar da restrição do discurso de ódio. O afã de criminalização quase sempre gera a concepção de um tautológico e malogrado tipo penal, em descompasso com a ordem constitucional vigente. Deixa-se como exemplo inicial para este capítulo, o Projeto de Lei 44-17 do Estado de Israel2.
Apresentado em 2014 e aprovado em primeiro turno no Knesset (Parlamento) em 2016, ele criminaliza o mero uso da palavra “nazismo” ou qualquer outra com fonética ou gramática semelhante, desde que tal utilização ocorra de forma descontextualizada ou leviana. A intenção do projeto é banir o vocábulo, salvo se utilizado para finalidades acadêmicas, históricas ou culturais. De tal sorte, aquele que, por exemplo, bradar a esmo ou inserir a palavra nazismo em uma publicação eletrônica fora de propósito, cometeria o crime em questão.
Ainda conforme o Projeto 44-17, criminalizar-se-iam todas as comparações inadequadas que fizessem uso do termo. Logo, a legislação proibiria afirmações como “hoje trabalhei muito, quase como um prisioneiro em um campo de concentração nazista” ou “você está me explorando como um nazista” (abarcando a comparação antissionista de que os iraelenses são os "novos nazistas" para os palestinos). Por fim, estariam vedadas, sob pena de sanção penal, o uso de roupas listradas ou outras indumentárias que se assemelhem aos uniformes trajados pelos prisioneiros nos campos de concentração.
O arquétipo deste projeto reflete a adoção de técnicas absolutamente inadequadas para reprimir o discurso de ódio, técnicas estas que vêm ganhando fôlego no cenário jurídico internacional. Não obstante, sobretudo, o Projeto 44-17 consubstancia uma indevida restrição da liberdade de expressão (chegando-se ao cúmulo de extirpar uma palavra do idioma hebraico) e revela uma exacerbada sensibilidade que, em um ambiente democrático, não se justifica, nem por razões históricas extremamente latentes - como o antissemitismo no cerne de Israel.
Por outro prisma, em muitos casos, o maior problema não ocorre no momento da construção dos elementares que formam os tipos penais, mas sim na interpretação que é dada a tais crimes, de modo a não considerar a máxima proteção do ser humano, especialmente no campo da higidez de sua identidade e sentimentos.
O problema da tolerância surge principalmente nas questões de opinião. Os pontos de vista podem ser demonstrados ou refutados existem tópicos onde a prevalência de um argumento sobre outro é meramente opinativo.
Se dentro de um complexo social no qual gravitam uma miríade infindável de opiniões distintas, como diferenciar aquelas que devem ser juridicamente toleráveis daquelas em que o estado pode tomar providências para restringir? Partindo desta premissa Comte-Sponville3 questiona: “Se devemos tolerar a Bíblia, por que não Mein Kampf4? E, se toleramos Mein Kampf, por que não o racismo, a tortura, os campos de concentração?”
Schauer5 menciona que sempre foram aceitas limitações excepcionais, com variações em sua intensidade, em decorrência da necessidade de estabelecer balizas para viabilizar a convivência em sociedade. Não se cogita que todos possam falar o que quiserem em quaisquer circunstâncias e através de qualquer meio ou conotação.
As restrições à liberdade de expressão são classificadas em duas categorias: aquelas ligadas ao contexto (time, place and manner)6 da manifestação e neutras no que se refere ao teor - sendo aceitas com maior facilidade, e as limitações vinculadas ao conteúdo da expressão, baseadas no dissenso ao ponto de vista do interlocutor - sob as quais incide um controle mais intenso. A limitação baseada em ponto de vista significa uma discriminação relativa à posição adotada pelo autor - como no caso do antissemitismo, no qual as vítimas discordam parcial ou integralmente da perspectiva adotada pelo odiador.
No ano de 2016, o juízo da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro proferiu medida cautelar7 proibindo a comercialização da obra Mein Kampf que à época havia ingressado em domínio público. O núcleo argumentativo da referida decisão consiste na ideia de que o conteúdo ideológico do livro não poderia ser tolerado por afrontar a dignidade da pessoa humana em escala constitucional sendo, em tese, a venda caracterizada como o delito previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89.
Argumenta-se também que condutas e evocações aéticas acabam por se revestir de intolerância, ou seja, a apresentação objetiva de ideias repulsivas merece e implica necessariamente na repulsiva ação estatal. Nesta linha de raciocínio a intolerância é objetiva, já que a afronta ao ordenamento constitucional ocorre na mera análise do teor, diluindo-se elementos subjacentes ao discurso como o “estilo da apresentação” e sua finalidade.
Proibições deste jaez professam uma abordagem bastante específica, homiziando o fato de que os receptores do conteúdo podem ter aproximações valorativas distintas sobre o objeto e seu interlocutor. Não há um determinismo de valorações, a significação da obra pode traduzir sinais de prevalência de sentido aos quais podem ser atribuídos inúmeras valorações, sejam elas positivas ou negativas.
Delfino, Silveira e Castro e Silva8 relacionam as possíveis valorações na publicação da obra antissemita:
a) positiva, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada para que haja a alteração na tábua axiológica predominante (objetivo de grupos neonazistas, por exemplo) com a realização do programa ali proposto; b) negativa, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, não deve ser divulgada ou comercializada por contrariar a tábua axiológica predominante, evitando-se a realização do programa ali proposto; e c) positiva, relacionada não ao seu conteúdo, mas ao seu impacto na História da humanidade (significado historiográfico) e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada a fim de produzir e adquirir conhecimento filosófico e científico - realização de outro valor positivo - e, também, evitar a realização do programa ali proposto depois de conhecê-lo - fundada na valoração negativa sobre o conteúdo mencionada anteriormente9.
Esta espécie de intolerância é inadequada com o sistema constitucional democrático atual, nem mesmo por razões históricas relevantes como o antissemitismo. É imposto um desfecho único a todos os jurisdicionados: todo historiador, por exemplo, necessariamente estaria disseminando ao ódio ao adotar o livro como objeto de pesquisa; qualquer tese de doutorado envolvendo Mein Kampf seria necessariamente censurada já que a tese giraria em torno de um objeto estático e invariavelmente discriminatório10.
Os mecanismos jurídicos para a proteção dos judeus contra a discriminação odiosa devem compreender, na esfera penal, a correta criminalização do antissemitismo digital com ênfase nas mídias eletrônicas e Internet, equilibrando a defesa das liberdades fundamentais com a proteção das minorias11.
Nenhum símbolo deverá ser absolutamente permitido ou proibido, de tal modo que ícones como a imagem de Adolf Hitler e os pavilhões nazistas precisam ser conhecidos e continuar a integrar a narrativa histórica. Não obstante, isto não legitima que estes sejam exibidos em todo lugar e diante de qualquer contexto. Há um tempo, lugar e modo para o emprego destas representações, de maneira que a análise jurídica deverá basear-se muito mais na conveniência do uso do símbolo do que no raciocínio sobre sua licitude ou ilegalidade.
2 CONDICIONAMENTO DE RESULTADOS ANTISSEMITAS EM FERRAMENTAS DE BUSCA DIGITAL
Ante à mingua de previsões legais sobre como determinar se as sugestões automatizadas no contexto de uma ferramenta de pesquisa on-line podem determinar a responsabilidade do servidor, algumas questões inevitavelmente surgem: podem tais sugestões adquirir um significado ofensivo, difamatório ou prejudicial à reputação de terceiros? (...) Neste caso, qual a extensão da responsabilidade de seus responsáveis? No caso dos judeus, alega-se que tais associações perpetuam estereótipos e dão corpo a ideias racistas sobre conspirações judaicas12.
As ferramentas de busca hoje representam a principal via de acesso ao conteúdo publicado na rede mundial de computadores. A multiplicação do número de páginas e endereços eletrônicos disponíveis, causados pela democratização do acesso à Internet, mostrou ser imprescindível à organização da informação virtual de modo a torná-la acessível e útil. Ao longo dos anos, inúmeras ferramentas de busca de páginas e aplicativos de Internet foram criadas e algumas tiveram seu ocaso poucos anos após seu surgimento. Pode-se citar como exemplo destes mecanismos o AltaVista, Bing, Yahoo, Ask, Click RBS, sendo, no entanto, o mais popular de todos o Google, que contemporaneamente representa um conglomerado multifuncional com inúmeros empreendimentos informáticos.
Nos últimos anos, o Google tem registrado mundialmente mais de 3 bilhões de pesquisas em um único dia e, aproximadamente, 1.3 trilhões por ano, ocupando a primeira posição como o site mais visitado do mundo13. Tais dados o qualificam como o principal meio de visualização e acesso ao conteúdo de discriminação odiosa antissemita na web.
Em uma única busca são apontados milhares de endereços eletrônicos distintos que, de acordo o parâmetro escolhido para a pesquisa, podem guardar maior ou menor relação com o resultado esperado pelo usuário. É bastante comum que, ao pesquisar um determinado termo, seja exibida pela ferramenta de pesquisa uma ampla gama de resultados que não correspondem exatamente aos termos da busca.
Não à toa que os sites de busca estão colocados no topo das listas de empreendimentos no bussines computacional, pois as páginas eletrônicas que aparecem como primeira opção ao usuário são resultado de uma combinação dos signos-chave (construção da linguagem de programação virtual dos sites) com os parâmetros definidos na busca e endereços virtuais patrocinados, ou seja, indicações enxertadas como prioritárias ao usuário em razão de um contrato de anúncio publicitário com o provedor das buscas.
De igual forma, os resultados obtidos nas ferramentas eletrônicas de busca não possuem um filtro ou critério de conteúdo14, sendo possível que uma das informações disponibilizada de primeira mão ao internauta seja justamente uma página com conteúdo explícito de ódio ou revisionista.
Por tais razões, faz-se necessária a análise específica dos mecanismos jurídicos que possam influir nesta seara, a fim de aprimorar a proteção aos judeus e a toda a sociedade no meio ambiente da Internet.
Quando se fala em antissemitismo virtual, uma das formas em que ideias preconceituosas são eficazmente difundidas na Internet diz respeito justamente a posição de destaque que as páginas eletrônicas de conteúdo odioso vêm ganhando nas ferramentas de busca. Neste contexto, um usuário pode ser surpreendido ao procurar uma temática ou resposta para determinada pergunta com inúmeras indicações destes sites exibidos em relevo, possivelmente transmitindo uma distorção sobre o tema.
Neste caso não há que se cogitar censura, já que não se defende a consolidação de uma posição oficial ou a exibição restrita a páginas selecionadas. Mesmo o conteúdo enviesado deve ter espaço para divulgação nos mecanismos de busca. Na era moderna, uma concepção adequada da vedação constitucional à censura deverá compreender tanto a proibição da indisponibilização prévia e arbitrária de determinado conteúdo, quanto a moderação, nos mesmos termos, dos meios de pesquisa e acesso a este conteúdo. Essa compreensão, inevitavelmente, reflete, de maneira especial, na moderação das ferramentas de busca na rede mundial de computadores.
O problema surge quando este conteúdo discriminatório ganha destaque, criando associações impróprias entre os termos buscados e velhos estigmas que se perpetuam na sociedade (indexação discriminatória). Ilustrando: ao inserir o termo “judeu” no site Google, se, logo nas primeiras páginas, for exibida uma quantidade relevante de sites indicando ideias preconceituosas como o “inimigo universal” e o “grande explorador da mídia e do sistema financeiro” estar-se-á, com certeza, perpetuando a divulgação de um prisma específico e controverso sobre os judeus. Ao mesmo tempo, não é necessário censura absoluta das páginas eletrônicas que abordem tal proposição, mas que sua projeção seja realizada com ressalvas e conjuntamente com sites que abordem outras temáticas relacionadas à busca do termo “judeu”.
Até o ano de 2014 a ferramenta de busca Google continha o seguinte entrave: ao procurar a resposta para a pergunta “who runs Hollywood?” (quem comanda Hollywood?) as diretivas de resultados automáticos indicavam as respostas “Judeus” e “Judeus Gays”, exibindo como primeira opção um portal eletrônico neonazista que sustentava a hegemonia maléfica dos judeus na indústria cinematográfica americana. Logo em seguida também eram mostradas páginas que confirmariam as informações da antecessora, com destaque para a reprodução de uma matéria intitulada “Is Hollywood run by Jews? You bet!” (Hollywood é dominada pelos judeus? Pode apostar que sim!)15.
Segundo o Google, a indexação equivocada envolve uma série de fatores como a linguagem informática de fabricação do site (java, html, css, php etc.) e a alta taxa de indicações de outros sites para o endereço citado, fazendo com que a resposta discriminatória apareça como primeira opção devido ao ranqueamento percebido pelos algoritmos de programação. Em síntese, as respostas automáticas nem sempre são intencionalmente atribuídas, contudo Hern16 ressalta que esta se trata de ocorrência relativamente comum, o que faz levantar a hipótese da intervenção humana intencional na atribuição de resultados preconceituosos contra os judeus. O autor assinala, portanto, a necessidade de providências jurídicas para minimizar os episódios desta natureza. Nem todas as minorias sofrem com este mesmo enviesamento, reforçando que esta nova modalidade de discriminação corresponde a uma característica preponderante do antissemitismo.
Este tipo de expediente é conhecido como Googlebombing. Em síntese, a prática consiste na modificação deliberada do código computacional de construção de páginas ou aplicativos de Internet, visando ao acréscimo de pontos algoritmicos na categoria à qual a página ou aplicativo é indexado de maneira fraudulenta. Como resultado, o site tem maiores chances de ser classificado entre os primeiros resultados de determinadas pesquisas17. Bar-Ilan18 explica, com detalhamento, a viabilização técnica do Googlebombing e suas implicações no ranqueamento das ferramentas de busca, oportunizando que resultados antissemitas sejam listados com preferência nestes mecanismos.
A obtenção de resultados discriminatórios para termos nominalmente neutros, relacionando-os com induções ou páginas antissemitas, se tornou tão endêmica que o fenômeno foi analisado pelo judiciário argentino em 2011. A 46ª Câmara de Juzgado Civil de Buenos Aires, sob a relatoria do juiz Carlos Molina Portela, julgou favoravelmente a ação coletiva ajuizada em maio de 2010 pela DAIA (Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas) que pleiteava a desvinculação de 76 resultados ou buscas sugeridas que ligavam a comunidade judaica a expressões de cunho antissemita19.
A ferramenta Google possui um recurso de preenchimento automático dos parâmetros de busca chamado de “Google Autocomplete” ou “Google Suggest” tendo como função principal a fluidez e dinamização das buscas20. Tal recurso oferece ao usuário do serviço um menu suspenso de sugestões de pesquisas a partir da introdução de um ou mais termos iniciais que possam indicar uma busca completa. Esta ferramenta livra o usuário da tarefa de digitar tudo o que deseja procurar em cada uma das pesquisas que realize. A seleção de tais proposições corresponde a um algoritmo complexo determinado pelo ranqueamento de acessos, direcionamentos ou construção computacional da página eletrônica, podendo ou não ser indexado de forma randômica pelo servidor Google21.
Foi assinalado na decisão da corte argentina, no problema do Google Suggest, que a vedação do antissemitismo deve ter um destaque maior do que apenas a escusa de um algoritmo desafortunado. Segundo os autos, ficou provado no processo que ao se digitar a palavra “judeu” em servidores de conexões oriundas da Argentina, a ferramenta sugeria associações como “judeu sabão” (em referência às execuções dissimuladas em banhos coletivos nos campos de concentração nazistas), avarento, tacanho, usura, exploração. E, ao introduzir a busca do termo “holocausto”, a ferramenta sugeria principalmente associações como mito, mentira, farsa judaica, Protocolo dos Sábios de Sião22.
No caso da ação civil coletiva SOS Racisme v. Google23, julgada pelo Tribunal de Grande Instância e, posteriormente, pela Corte de Apelação de Paris, a empresa Google foi condenada solidariamente por difamação e obrigada a remover sugestões de pesquisas originárias da ferramenta Google Autocomplete dos servidores franceses que vinculavam nomes de conhecidas personalidades, como o empresário Rupert Murdoch, o ator Jon Hamm e o político François Hollande, com termos depreciativos relacionados a estereótipos judaicos. O acórdão ratificou que este fenômeno está consolidando uma nova forma de antissemitismo na Internet e que, por trás desta imprópria associação, há o desejo de perpetuar de maneira pictórica a fantasia de poder ou onipresença da influência dos judeus na França24. Tal percepção vem, sistematicamente, amplificando a discriminação odiosa contra a minoria, o que acaba por violar os preceitos constitucionais vigentes25.
Muito embora a correta apreensão dos argumentos técnicos do provedor no sentido da impessoalidade das sugestões, que são geradas estritamente com base em algoritmos matemáticos que levam em conta os acessos, a proteção de vanguarda dos direitos fundamentais no âmbito virtual deve considerar a obrigação em evitar este tipo de fenômeno (desindexação). Isto eleva a hierarquia da sugestão, produzindo um efeito progressivo com o fenômeno, na medida em que um resultado sugerido aumenta exponencialmente o número de acessos às páginas antissemitas, ao passo que o acréscimo de acessos torna a sugestão mais visível.
Assinalou ainda a Corte que, embora a ferramenta em si seja lícita, deve-se evitar associações que particularmente ofendam um grande número de usuários ou promovam a intolerância contra minorias. Este raciocínio implica a necessidade de fixar uma pré-triagem nas consultas salvas nos bancos de dados do servidor. Portanto, a Corte de Apelação concluiu ser possível a intervenção humana específica para a correção de tais desvios e que a responsabilidade do provedor do serviço na Internet é aferida nas seguintes hipóteses: a) quando não há a devida cautela para evitar e moderar os vínculos tendentes à discriminação ou; b) uma vez solicitada sua remoção, este não realiza com máximo empenho a tarefa de suprimir as associações.
Por fim, mencionou-se ainda não haver violação à liberdade de informação ou expressão, pois é facultado ao usuário realizar pesquisas contendo formulações específicas que possibilitem a obtenção dos resultados de conteúdo antissemita. Não obstante, a indexação do mecanismo de buscas acaba por gerar incitações e apologia ao ódio contra a comunidade judaica26.
O judiciário francês já admite, com certa uniformidade, a ilegalidade das vinculações de termos fornecidas pelas ferramentas de pesquisa on-line que realizem associações discriminatórias ou no caso de inércia na remoção do conteúdo. Neste sentido, destaca-se a Corte de Apelações de Paris que confirmou a condenação cível de dez empresas no caso AAARGH (Associação dos Veterados e Aficcionados da História da Guerra e Holocausto)27, bem como o Tribunal de Grande Instância de Paris seguindo o mesmo entendimento nos casos Martinez v. Google (2010)28 e Diana Z. v. Google (2012)29, nos quais a empresa Google foi obrigada a remover sugestões de pesquisa que vinculavam determinadas pessoas com conteúdo depreciativo30.
Outras cortes estrangeiras também decidiram pela remoção de sugestões de pesquisas discriminatórias como no caso do Japão e da Alemanha31.
No Brasil não existem julgados específicos versando sobre a associação entre os termos da pesquisa e resultados discriminatórios no âmbito coletivo. Contudo, é possível encontrar decisões judiciais que ratificam ou exoneram a obrigatoriedade dos servidores responsáveis pelos mecanismos de busca on-line em removerem ou filtrarem os resultados na esfera individual. Tal obrigatoriedade ocorre notadamente com base na proteção de direitos individuais como a imagem ou a honra, relacionando-os como um aspecto da autodeterminação informativa ou nuança do direito ao esquecimento32.
A responsabilidade pelos servidores de busca on-line em relação ao conteúdo antissemita exibido nos resultados ou nas sugestões de pesquisas que criam associações preconceituosas com relação aos membros da comunidade judaica deve ser aferida nos termos do Marco Civil da Internet. Na esfera principiológica, para a manutenção da neutralidade da rede no uso da Internet (art. 3º, IV), invocando a necessidade da tutela jurídica na preservação de um conteúdo não enviesado, deve-se equacionar, de um lado, a garantia da liberdade de expressão, comunicação, informação e manifestação do pensamento (art. 3º, I), enquanto, de outro, a responsabilização civil e criminal dos usuários e provedores de acordo com suas atividades (art. 3º, VI).
Considerando os termos da atual legislação regulamentadora da questão, o provedor de aplicações de Internet (definição que inclui os serviços de pesquisa de conteúdo virtual) somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por usuários caso, após ordem judicial específica, continue em inércia. Isto implica na seguinte omissão: o servidor deliberadamente não toma as providências necessárias para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente no âmbito e limites técnicos de seu serviço (art. 19).
No campo técnico, solicitar a remoção indireta das publicações, por meio da indisponibilização do endereço eletrônico nas ferramentas de buscas, mostra-se um esforço impróprio. A busca realiza-se via indexadores e parâmetros automáticos, diretamente ligados à linguagem técnica de desenvolvimento das páginas, como java ou html. Não há garantias que a ferramenta de busca consiga ignorar completamente o resultado indesejado, uma vez que tais parâmetros podem ser modificados sem a alteração do conteúdo ou do endereço eletrônico (domínio) em si, pelo próprio desenvolvedor da página na qual se publica o conteúdo que se pleiteia retirar da rede mundial de computadores. Em tal oportunidade, o artigo 19 do Marco Regulatório33 exime os servidores de busca, uma vez que o esforço para remoção do conteúdo deverá ser realizado “no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço”, e a adulteração dos códigos informáticos extrapolaria a responsabilidade das ferramentas de busca34.
Entretanto, é fundamental admitir a responsabilidade dos provedores das ferramentas de busca na medida em se verifique omissão dolosa no controle e moderação de tais funções de resultados ou sugestões de pesquisa antissemitas.
Assim, a supressão de páginas referente à lista de resultados exibidos por uma ferramenta de pesquisa dependerá de ordem judicial específica. Contudo, o Direito ainda não oferece nenhuma alternativa adequada para a diminuição dos casos de indicação excessiva de páginas antissemitas em pesquisas de termos neutros ou sugestões de pesquisas perniciosas que ainda não sejam objetos de ordem judicial específica.
Diante deste panorama, deve-se ponderar que, embora pela legislação brasileira o provedor da ferramenta de buscas na Internet não tenha reconhecida sua responsabilidade cível pelo conteúdo veiculado por terceiros, ele deverá adequar a exposição dos resultados de modo a não violar a dignidade35 e o direito à não discriminação dos grupos minoritários.
Todavia, ainda que executada a remoção dos resultados ilícitos em um dado momento, os endereços eletrônicos poderão ser reativados nos sistemas de busca, em virtude da modificação do código fonte que os constituem - o que não acarretaria a desobediência à decisão por parte do servidor.
Por fim, torna-se necessário enfrentar a seguinte questão: é possível a subsunção penal das novas modalidades de antissemitismo praticadas no âmbito das ferramentas de pesquisa na web?
Nenhum sistema penal na atualidade comporta a criminalização da modificação dolosa de parâmetros ou algoritmos computacionais para que associações preconceituosas sejam exibidas aos usuários de ferramentas de pesquisa (Googlebombing). Ademais, não há previsão penal na hipótese de omissão, ou seja, o provedor do serviço que não empenhe os esforços no limite técnico de sua competência a fim de moderar ou remover o conteúdo, quando instado para tanto.
Embora não exista qualquer punição penal para a discriminação por omissão, pode-se entender que algum executivo ou funcionário da empresa responda pelos tipos penais vigentes na modalidade omissão imprópria (crime comissivo por omissão). Isso ocorrerá quando ele tiver como responsabilidade a correta exibição dos resultados das pesquisas, hipótese em que figurará como garante da relação jurídica. Uma vez comprovado que os funcionários encarregados das ferramentas de pesquisa são responsáveis pela prevenção do dano (discriminação odiosa), exige-se diligência no sentido de resguardar os bens jurídicos amparados pelas normas proibitivas - Lei 7.716/89 e Código Penal36.
A título meramente exemplificativo, Citron (2014) menciona que, caso as práticas descritas sejam voltadas para uma pessoa em específico e não para uma minoria, poder-se-ia tipificar a conduta de Googlebombing nos termos da Seção 18 §2261A dos Estatutos Federais dos Estados Unidos, que prevê o delito de perseguição (stalking) na modalidade virtual (cyber stalking). Contudo, em tal hipótese, deveria ser demonstrado, além de qualquer dúvida razoável, o liame subjetivo específico, a saber, o dolo de participar em uma campanha de hostilização e perseguição na Internet. No caso do cyber stalking, a legislação penal é ineficaz para combater e punir os abusos praticados contra minorias no direito americano.
O único precedente que encontramos neste sentido diz respeito ao processo criminal instaurado em 2007 pelo Estado da Polônia contra o programador de informática Marek Witoszek. O réu foi incurso no delito de injúria presidencial por ter utilizado um software específico para a adulteração das sugestões de pesquisas dos servidores poloneses do Google, com a finalidade de associar o nome do presidente Lech Kaczynskis com o termo “kutas” (pênis). Witoszek, condenado em primeira instância a uma pena de três anos pelo Tribunal Distrital de Bielsko-Biała, recorreu à Corte Constitucional da Polônia alegando a inconstitucionalidade do delito por violar a livre expressão na forma de censura. Em sua argumentação, Witoszek mencionou um pleito semelhante (originário do Tribunal Distrinal de Gdańsk) também arguido perante a Suprema Corte37. Atualmente o processo está suspenso, aguardando a decisão da Corte Constitucional sobre a adequação da criminalização com base nos preceitos da Lei Fundamental polonesa38.
No caso da legislação brasileira, criminalizam-se as condutas relacionadas em duas órbitas distintas: a ofensa injuriosa direcionada à determinada pessoa (art. 140 CP) e a prática, induzimento ou incitação à discriminação ou preconceito em face de determinada minoria (art. 20 da Lei 7.716/1989).
Também, na hipótese dos buscadores, percebe-se o antissemitismo por via indireta. Esta distinção deve ser levantada, pois a autoria do conteúdo odioso é de terceiros, de modo que não se verifica a existência da requerida conduta nuclear contida nos tipos penais (praticar, induzir ou incitar). O sujeito ativo não pratica propriamente o antissemitismo, apenas facilita sua divulgação, oportunizando mera sugestão de acesso a algo que pode ou não ser interpretado como odioso e penalmente relevante.
Tomando como referência as modalidades do crime em seu aspecto formal, cujo envolvimento comissivo ou omissivo no delito é subdividido em autoria e participação (induzir, instigar e auxiliar), embora não seja possível cogitar a subsunção da conduta do agente na função de autor, pode-se teorizar sua atuação na forma de partícipe - ainda que tais situações demandem uma improvável comprovação subjetiva.
Portanto, dois requisitos são necessários: a evidência do animus específico de discriminar via adulteração dos códigos informáticos e consequente sugestão imprópria, bem como a prova do efetivo auxílio material ou da instigação na divulgação do conteúdo antissemita.
Atualmente, a pesquisa mais completa sobre o tema da responsabilidade jurídica em razão do condicionamento de pesquisas e resultados é o texto dos pesquisadores de Oxford Karapapa e Borghi39. Discutindo o tema em sua generalidade e mencionando o caso da discriminação odiosa contra os judeus, os autores colacionam elementos como a personalidade, a identidade, a privacidade e a influência do algoritmo para determinar a responsabilidade do servidor. Seguindo a mesma linha teórica que a desenvolvida na presente tese, os autores reafirmam a possibilidade de incriminação quando a ferramenta de busca servir como "instrumento facilitador" do preconceito, destacando que o direito à inexistência de associações ofensivas e difamatórias integra um novo aspecto do direito à personalidade no âmbito da era da informação (direito à desindexação).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A característica mais notável do antissemitismo é sua capacidade de fornecer uma série de subsídios ideológicos que, combinados entre si, apresentam uma visão de mundo aparentemente coerente. Como um processo repetitivo que responde a necessidades ou conflitos semelhantes em períodos bastante diferentes, a discriminação odiosa contra judeus corresponde a uma distorção na assimilação normal de uma cultura. Ela pode se assemelhar a outras formas de animosidade em sua estrutura e atributos, mas é única em seu alcance, virulência e repetitividade.
O grande óbice do uso do termo racismo no Direito Penal é que ele se refere muito mais a um conceito abstrato do que uma definição aplicável de criminalização de condutas. Uma vez reconhecidas referências recorrentes nas expressões de ódio, torna-se mais viável a formação de tipos incriminadores que projetem essa assistência para o futuro, como no caso da discriminação odiosa na Internet.
Estudos existentes sobre o tema ainda se debruçam preponderantemente sobre questões como a edição de livros discriminatórios, declarações públicas de ódio e a distribuição de objetos como bandeiras, panfletos e imagens de cunho antissemita, esquecendo-se que hoje a Internet propicia um veículo exponencialmente mais eficaz para a disseminação do discurso de ódio.
Registros linguísticos acabam por descrever uma categoria de crime, ao invés de apontar uma conduta específica na legislação criminal. O emprego das descrições normativas é inconsistente, permitindo que um crime de discriminação odiosa seja cometido em uma nação na qual inexiste sanção criminal própria para o fator ou meio discriminatório utilizado
A explicação da participação dos discursos e manifestações antissemitas na idealização da figura dos “judeus” no âmbito individual e coletivo representa um processo igualmente crítico no desenvolvimento de meios de combate e criminalização daquilo que se pode denominar de núcleo central do antissemitismo. Constitui o núcleo da discriminação odiosa contra judeus: a formação de um conceito negativo sobre os judeus, a ideologia que o sustenta e as condutas que refletem essas atitudes. Este conceito pode ser articulado em relação a judeus individualmente, instituições judaicas e o povo judeu.
O problema na criminalização do antissemitismo converge em três fatores principais: I) a carência na identificação adequada de suas mais diversas formas, principalmente no que tange as novas linguagens providas pela Internet; II) o elastecimento da identidade judaica moderna para outros elementos da personalidade humana; III) o método de criminalização que vale-se de registros linguísticos inadequados para a composição das elementares delitivas (racismo ao invés de criminalização odiosa), limitando o rol de enquadramentos possíveis.
Essa ressignificação hermenêutica e legislativa consubstancia passo fundamental e depende da (re)construção de conceitos juridicamente aplicáveis de forma que as descrições típicas do mandado constitucional de criminalização do racismo e das leis penais de combate à discriminação consigam transportam para a linguagem normativa uma vasta gama de variáveis da expressão de ódio.
Existem muitas percepções distintas para definir uma determinada linguagem como discriminação odiosa, não obstante, algumas são menos úteis do que outras devido a problemas conceituais que limitam sua eficácia no campo do Direito. Neste ponto, indicou-se ao longo da pesquisa critérios importantes, dos quais destacam-se o estilo da mensagem e a finalidade do emissor, a fim de ressignificar a proteção jurídica em face do antissemitismo suas descontinuidades e conexões com fenômenos análogos, como o discurso de ódio na internet.
Para além dos casos de cunho evidentemente odioso, há uma pletora de situações limítrofes que perturbam a sensibilidade da comunidade judaica, como, por exemplo a responsabilização, nos termos do Marco Civil da Internet, de servidores de busca on-line pela exibição de conteúdo antissemita nos resultados de pesquisas que criem relações preconceituosas. A limitação ao discurso de ódio deve ser concebida não apenas por seu conteúdo, mas pela maneira que ele é exposto e, não obstante existam tentativas de criminalização dessa malversação dos dados informáticos, ela ainda é incipiente em todos os sistemas penais no mundo.