1. INTRODUÇÃO
Com o fim da Guerra Fria, o modelo liberal se tornou dominante ao mesmo tempo em que os fluxos internacionais e os processos de interdependência se acirraram. Se nesse período as transformações nos meios de comunicação e transporte, bem como o surgimento de novos atores e canais de interação, permitiram o avanço da chamada globalização, simultaneamente também permitiram o avanço de ações de atores iliberais, tais como os grupos terroristas e o crime organizado transnacional. Assim, por um lado a globalização pode ser definida como um fenômeno ligado ao aumento da interdependência e de estreitamento das interações entre os povos, mas, por outro, também trouxe à tona novas fontes de vulnerabilidade diante das inúmeras e velozes mudanças globais. De fato, como destaca Miguel3, o período atual é caracterizado pelo surgimento de riscos disruptivos imprevisíveis, de caráter transnacional que podem ser explorados por atores ilícitos e com atributos variados e peculiares, “em que se destacam, para além do crime organizado e do terrorismo, o agravamento das assimetrias Norte-Sul, os movimentos migratórios descontrolados, os atentados ecológicos, e a proliferação de armas de destruição maciça”. Essa combinação de novos riscos e vulnerabilidades podem impactar as rotinas do comércio internacional afetando profundamente várias das práticas do mercado segurador, em especial naquilo a que se refere ao terrorismo.
Nesse contexto, o terrorismo é um fenômeno complexo e de difícil definição. Apesar de não caber aqui discorrer sobre o longo histórico da dificuldade em se encontrar uma definição para o fenômeno, do ponto de vista legal, podemos encontrar uma definição na legislação brasileira. O art. 2º da Lei 13.260 define terrorismo como sendo “a prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Entre os atos previstos nessa lei, podemos destacar ações como “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”4. Além desses, também se enquadram no conceito os atos de “sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte”5 e de inúmeros outros locais. A prática de atentar contra a vida ou integridade física de pessoa igualmente está tipificada, sendo que o art. 2º da Lei 13.260, de 16.03.2016, especifica as razões e as finalidades que precisam estar presentes para a configuração do crime.
Ponto comum das ações terroristas é a necessidade de recurso para as suas atividades e ataques. As fontes de financiamento do terrorismo podem ser derivadas de atividades ilícitas, como pirataria de contas, extorsão mediante sequestro, dentro outras, mas também podem derivar de fontes legítimas, tais como doações de instituições de caridade e autofinanciamento por indivíduos. Outra característica é que nem sempre o financiamento envolverá quantias vultosas. Essas características dificultam enormemente a detecção, prevenção e combate ao financiamento do terrorismo.
Tendo em vista a grande mobilidade e flexibilidade da criminalidade transnacional e do terrorismo na atualidade, há a necessidade de rápida e constante adaptação legislativa e criação de órgãos especializados no combate a esses crimes e seu financiamento. Dessa forma, como ocorreu a evolução das leis a fim de que se adaptassem e prevenissem efetivamente o crime? Quais órgão internacionais e nacionais são responsáveis por essa prevenção? Como atuam os terroristas, no mercado segurador, e o que dispõe o programa de prevenção à lavagem de dinheiro e ao combate ao financiamento do terrorismo?
Para responder a essas perguntas, primeiro serão abordados o surgimento da criminalização da lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, bem como as convenções e órgãos impulsionadores da prevenção existentes. Em seguida, serão abordados o mercado segurador e a Circular SUSEP nº 612/2020. Por fim, será exposta a conclusão com as respostas às indagações aqui apresentadas.
No presente artigo, foi utilizado o método histórico, abordando a evolução das convenções e legislações sobre o tema.
2. LAVAGEM DE DINHEIRO E FINANCIAMENTO DO TERRORISMO
A lavagem de dinheiro é o processo por meio do qual o agente criminoso age para que recursos, bens e valores auferidos em atividades ilegais ganhem uma roupagem de ativos oriundos de fonte lícita. A luta constante contra o financiamento do terrorismo está atrelada ao combate ao crime de lavagem de dinheiro, pois os terroristas se valem de técnicas análogas às empregadas por aqueles que cometem lavagem de dinheiro. Nesse contexto, a Itália, em 1978, foi o primeiro país a criminalizar a lavagem de dinheiro, como resposta às Brigadas Vermelhas, grupo armado terrorista que sequestrou e assassinou o influente político Aldo Moro. Essa quadrilha cometeu inúmeras ações com o escopo de desarticular o poder político estatal italiano6. Já nos Estados Unidos da América, a segunda nação a tipificar o crime, editaram em 1986 a Lei de Controle de Lavagem de Dinheiro. Outras normas foram editadas posteriormente, a exemplo da Money Laundering Suppression Act (1994) e da Money Laundering and Financial Crimes Strategy Act (1998).
No plano internacional, o financiamento do terrorismo recebeu maior importância após os ataques de 11 de setembro de 2001. Contudo, ainda antes de 11 de Setembro alguns tratados e organizações internacionais já incentivavam à criação de normas e mecanismos de prevenção do crime de lavagem de dinheiro e da luta contra o financiamento transnacional do terrorismo. A Convenção de Viena de 1988, por exemplo, é considerada a primeira convenção a promover a colaboração entre os Estados no combate ao tráfico ilícito de entorpecentes. Os países signatários se comprometeram a criar uma tipificação penal para a lavagem de dinheiro que tivesse origem no tráfico de drogas. Após a Convenção de Viena, foram assinados outros tratados, os quais tiveram o escopo de prevenir a lavagem de dinheiro e combater o terrorismo. Como exemplo, citam-se a Convenção de Estrasburgo (1993), a Convenção Interamericana contra a Corrupção (1996), a Convenção da OCDE (1997), a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (1999), a Convenção de Palermo (2000). Essa foi uma tendência que continuou após 2001 sendo objeto de várias resoluções de organizações internacionais e em tratados como a Convenção Interamericana contra o Terrorismo (2002) e a Convenção de Mérida (2003).
Nesse histórico de evolução, as leis que tipificaram a lavagem de dinheiro são normalmente classificadas em três gerações, seguindo um processo evolutivo que foi gradativamente aumentando o rol de delitos passíveis de anteceder o crime de lavagem. Na primeira geração, apenas a lavagem de dinheiro, oriunda do narcotráfico, era criminalizada. Já na segunda geração, um conjunto de infrações antecedentes era apto para caracterizar o crime. Porém, para a terceira geração, não mais importa a natureza do ato ilícito que gerou os recursos7. No Brasil, a Lei 9.613, de 03.03.1998, elencava, na sua redação originária, os seguintes delitos como precedentes: o tráfico ilícito, o terrorismo, o contrabando ou tráfego de armas, a extorsão mediante sequestro, o crime contra a Administração Pública, contra o sistema financeiro nacional, o praticado por organização criminosa e o praticado por particular contra a administração pública estrangeira. Seguindo-se a tendência da terceira geração, a Lei 13.863, de 24.09.2013, prevê que qualquer infração penal antecedente pode originar a lavagem de dinheiro8.
Em termos de órgãos dedicados à prevenção à lavagem de dinheiro e no combate ao terrorismo, esses ganharam cada vez mais importância. Dentre eles, estão o Fundo Monetário Internacional, que incluiu a prevenção a esta prática criminosa dentre os seus objetivos desde 2000, o Banco Mundial, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, o International Organization of Securities Comissions (IOSCO), o Committe of Sponsoring Organizations of the Treadway Commissiom (COSO), o United Nations International Drug Control Programme (UNIDCP), o Egmont Group of Financial Intelligence Units (grupo formado por 164 unidades de inteligência), o Wolfsberg Group, o Grupo de Ação Financeira (GAFI), o Grupo de Acción Financiera de Latinoamérica (GAFILAT). Em termos nacionais podemos citar o Office for Foreign Assets Control (OFAC) nos EUA e o órgão de Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) no Brasil como exemplos.
O GAFI é considerado um importante órgão internacional na propagação de políticas e padrões mínimos que buscam a prevenção e combate ao crime de lavagem de dinheiro, financiamento terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa. Ele criado em 1898, em Paris, “pelos líderes do G7, da Comissão Europeia e de outros oito países, no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)”9. Essa entidade intergovernamental tem como escopo definir padrões e promover a prática efetiva de medidas legais, operacionais e de regulação para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, dentre outras. O Brasil tornou-se País-membro do órgão internacional em junho de 2000.
No ano de 1990, o FATF/GAFI publicou relatório contendo 40 recomendações que deveriam ser seguidas pelos Estados com o intuito de prevenir a utilização de seus sistemas financeiro e não financeiro em processos de lavagem de capitais. Essas recomendações foram revisadas nos anos de 1996, 2002 e 2003. Em 2001, após o atentado de 11 de setembro, foram publicadas 8 recomendações especiais para o combate ao financiamento do terrorismo, e em 2004 foi publicada a 9ª recomendação especial10.
Dentre as medidas basilares indicadas estão a criminalização da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo, a implementação de uma abordagem baseada em riscos para o due diligence e comunicação de operações suspeitas, a criação de unidades de inteligência financeira, a troca de informações entre unidades de inteligência de outros países e a cooperação judiciária internacional, dentre outras11. As Unidades de Inteligência Financeiras, ou Financial Inteligency Units (FIUs), foram idealizadas com o intuito de consolidar as informações provenientes das instituições financeiras, a fim de utilizá-las no desenvolvimento de políticas de prevenção e combate aos crimes de lavagem de dinheiro e terrorismo12.
No Brasil, o Conselho de Controle de Operações Financeiras (COAF) é a sua unidade de inteligência financeira. O COAF foi criado pela Lei 9.613, de 03.03.1998, e passou a fazer parte das FIUs em 1999. Em virtude da recente Lei 13.974, de 07.01.2020, o COAF foi reestruturado, atrelando-o, na seara administrativa, ao Banco Central do Brasil. As competências permanecem inalteradas13.
O Plenário do COAF, visando reforçar seu caráter multidisciplinar, é composto pelo seu Presidente e por doze servidores integrantes do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, da Agência Brasileira de Inteligência, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, da Polícia Federa, da Superintendência Nacional de Previdência Complementar, da Controladoria-Geral da União e da Advocacia-Geral da União. Todos são dotados de conhecimentos em matéria de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, conforme dispõe o art. 4º da Lei 13.974/202014.
De acordo com a cartilha “Lavagem de dinheiro: um problema mundial”, publicada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras15, os setores mais visados no processo de lavagem de dinheiro são: a) instituições financeiras, que, no Brasil, são controladas pelo Banco Central (BACEN); b) paraísos fiscais e centros off-shore; c) bolsas de valores, que são controladas e fiscalizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM); d) companhias seguradoras, que são fiscalizadas pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP); e) mercado imobiliário; e f) jogos e sorteios. A Lei 9.613, de 03.03.1998, com as alterações decorrentes da Lei 12.683, de 2012, elenca, em seus arts. 10 e 11, as obrigações que os setores descritos no art. 9º devem se ater para prevenirem o crime de lavagem de dinheiro e combater o financiamento do terrorismo. Dentre as várias pessoas físicas e jurídicas descritas na Lei como obrigadas a participar do sistema de comunicações para a prevenção à lavagem de dinheiro estão as “seguradoras, as corretoras de seguros e as entidades de previdência complementar ou de capitalização”16.
3. O MERCADO DE SEGUROS, CAPITALIZAÇÃO E PREVIDÊNCIA PRIVADA ABERTA E A CIRCULAR SUSEP Nº. 612/2020
O mercado de seguros, capitalização e previdência privada aberta possui produtos passíveis de serem explorados com a finalidade de lavar dinheiro. Conforme o relatório anual de atividades da Confederação Nacional das empresas de Seguros Gerais, os produtos mais visados são aqueles em que há a acumulação de recursos pelo cliente (segurado), e podem ser resgatados após solicitação do contratante, como o seguro de vida resgatável e os benefícios de cunho previdenciário, tais como os VGBLs e PGBLs. Diante disso, esse setor passou a ser o foco das autoridades responsáveis pela prevenção do crime17. Conforme cartilha publicada em 2015 e atualizada, em 2018, pelo COAF, há várias formas de fraudes que podem ser cometidas no mercado de seguros, capitalização e previdência privada com a finalidade de lavar dinheiro ou financiar o terrorismo. São exemplos avisos de sinistros falsos podem ser realizados pelos segurados. Já os subscritores e participantes podem transferir a propriedade de títulos de capitalização sorteados e realizar a inscrição de pessoas fictícias ou já falecidas em planos de previdência.
Diante de todos esses riscos, o mercado segurador se submete a um conjunto de regras e princípios que visam prevenir a lavagem de dinheiro e combater o terrorismo, tendo a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, órgão regulador e supervisor desse seguimento, editado recentemente a Circular nº 612/2020, publicada em 02.09.2020, e com vigência no dia 01.03.2021. Essa circular dispõe sobre regras e princípios que o mercado de seguros deverá observar, alinhando-se ao modelo que ganhou relevo atualmente, qual seja, o da abordagem baseada no risco - ABR. Essa norma está em consonância com a revisão das 40 recomendações feitas pelo GAFI no ano de 2012.
Na análise baseada em risco, que é o novo paradigma de prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro, um conjunto de deveres e obrigações estão “associados à natureza do negócio da instituição obrigada, seu porte, área de atuação, carteira de clientes, produtos comercializados e outras características aptas a impactar no risco e vulnerabilidade da empresa no caso de lavagem”18. Para que a instituição obrigada desempenhe bem o seu papel de gatekeeper é necessário compreender tais deveres e, a partir disso, implementar um programa de compliance de prevenção com atributos singulares e mais eficazes.
Nóbrega19 discorre sobre esse alinhamento da abordagem do risco em outros mercados regulados e cita, como exemplos, a Instrução Normativa nº 617/2019, da Comissão de Valores Imobiliários - CVM, e a Circular nº 3.978/2020, do Banco Central do Brasil - BACEN. Essas normas estão em vigor e revogaram aquelas precedentes que tratavam da matéria, a fim de adequá-las à abordagem atual. Questões relativas ao julgamento e à análise dos riscos no mercado de seguros, que já eram abordadas pela Circular nº 445/2012, foram revisitadas pela atual Circular SUSEP nº 612/2020.
A nova Circular SUSEP dispõe em seu art. 13 que as sociedades seguradoras e de capitalização, dentre outras elencadas no art. 2º, devem identificar o risco de utilização dos seus produtos e serviços na prática da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo, avaliando os perfis de risco: I - dos clientes; II - dos beneficiários de produtos de acumulação; III - da pessoa mencionada no art. 2º ; incluindo o modelo de negócio e a área geográfica de atuação; IV - das operações, transações, produtos e serviços, abrangendo todos os canais de distribuição e a utilização de novas tecnologias; e V - das atividades exercidas pelos funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados20.
Os riscos devem ser avaliados segundo a perspectiva de ocorrência e pelo tamanho do impacto nos âmbitos jurídico, financeiro, socioambiental e da reputação para as pessoas descritas no art. 2º da Circular SUSEP nº 612/2020. Dessa forma, poderão definir as categorias de risco e, a partir de então, adotar medidas simplificadas nas operações de menor risco, e controles mais reforçados nas de maior risco. O risco é aumentado quando o país de origem está “rotulado” como não cooperante pelo GAFI, assim como nos casos em que a pessoa física ou jurídica está inserida em lista de restrições pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O art. 12 da Circular SUSEP nº 612/2020 dispõe sobre a indicação do diretor responsável pelo tratamento das medidas de prevenção, garantindo a ele completo acesso aos dados de “identificação dos clientes, beneficiários, terceiros, outras partes relacionadas e beneficiários finais”21. A análise do risco concede maior autonomia aos diretores, mas, em contrapartida, o grau de reponsabilidade por sua parte é elevado.
Outro ponto que merece ser analisado refere-se às regras de cadastro, identificação e qualificação de clientes, conforme discorre Nóbrega:
As regras de know your costumer - KYC assumem igualmente um papel de evidência na nova circular da SUSEP, de modo a permitir a devida aplicação dos ditames da Lei 9.613/98, notadamente do art. 10, inc. I, daquele diploma legal. Nos arts. 16 a 30 da Circular SUSEP nº 612/20 são consignadas regras e princípios norteadores da Política de PLDFT, especificamente para as medidas de identificação, qualificação e classificação do cliente, sem olvidar mandamentos relativos ao armazenamento e disponibilização de tais informações. A abordagem baseada em risco evidencia-se nos incisos do § 1º do art. 16, que destaca a necessária compatibilidade dos procedimentos de KYC com o perfil de risco do cliente e do beneficiário em produtos de acumulação - justamente aqueles que reconhecidamente apresentam maior atratividade para a prática de casos de lavagem de dinheiro -, bem como com a Política de Prevenção da empresa e com a avaliação de risco já realizada22.
De acordo com o art. 27 da nova Circular SUSEP, para a prevenção do crime de lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo, as sociedade e entidades descritas no seu art. 2º poderão celebrar contratos ou convênios com “instituições financeiras, estipulantes, representantes de seguros, correspondentes de microsseguro, distribuidores de títulos de capitalização, instituidores, averbadores ou empresas que façam a administração de banco de dados”23, devendo observar a Lei Geral de Proteção de Dados, com vigência a partir de agosto de 202024.
Conforme leciona Pinheiro25, a liderança do debate sobre a proteção de dados surgiu na União Europeia e foi consolidada na promulgação do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais Europeu n. 679, aprovado em 2016. Essa medida já estava prevista na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, entretanto, a padronização dos atributos da proteção e das penalidades cabíveis ocorreram com a atual LGPD. No Brasil, os dados das pessoas físicas é um direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa, já encontrando previsão no marco civil da internet, bem como na Lei do Cadastro Positivo, entretanto, os critérios relativos à guarda de informações não possuía objetividade antes da atual LGPD26.
Conforme dito anteriormente, o monitoramento de pessoas e dados é imprescindível para que o programa de prevenção e combate aos crimes obtenha êxito. A Recomendação 12 do GAFI determina que as instituições financeiras devem adotar medidas possíveis para decidir se os beneficiários de uma apólice de seguro de vida são pessoas politicamente expostas. É salutar o controle mais detalhado de indivíduos que possuem uma posição de poder, com possibilidade de influenciar, de forma significativa, decisões relevantes relacionadas à receita e despesa públicas. Nóbrega27 discorre que o COAF, em 2017, editou a Resolução nº 29/2017 para realizar uma alteração e adequação no modo como tratar as “Pessoas Expostas Politicamente”. A abordagem passou a dar maior ênfase no risco da operação que na situação pessoal do agente. No que tange ao mercado de seguros, a Circular nº 612/2020 da SUSEP elencou as “Pessoas Politicamente Expostas” - PEPs, em seu art. 4º, a saber: “Consideram-se expostas politicamente as pessoas naturais que ocupem ou tenham ocupado, nos 5 (cinco) anos anteriores, empregos ou funções públicas relevantes, assim como funções relevantes em organizações internacionais”28. O rol de indivíduos politicamente expostos foi estendido, abarcando um maior número de pessoas. Cite-se, como exemplo, os deputados estaduais e distritais, vereadores, secretários municipais, dentre vários outros.
Os cadastros de clientes devem ser atualizados e verificados com frequência, pois um sujeito não politicamente exposto hoje pode, em questão de dias ou meses, tomar posse em um cargo público relevante, passando a se enquadrar nas hipóteses elencadas no art. 4º da Circular nº 612/2020. As ferramentas de inteligência artificial podem ser utilizadas no monitoramento de dados para a prevenção e combate ao terrorismo, pois ajudam a identificar transações suspeitas de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo além de comportamentos anômalos de forma mais célere e mais precisa do que a forma tradicional. Depósitos em fundos de previdência em valores desproporcionais às informações contidas em registros de clientes podem ser detectados através do uso de megadados. O Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau publicou em seu sítio eletrônico institucional:
Nos últimos anos, com o desenvolvimento de tecnologias como a análise de áudio e o reconhecimento facial, baseada em megadados, e sua aplicação efectiva em casos de terrorismo, os terroristas já não se conseguem esconder. A tecnologia Palantir Technologies, desenvolvida pela empresa americana de inteligência artificial Palantier, desempenhou um papel enorme no caso mais famoso do processo de busca do líder Bin Laden da organização al-Qaeda. O essencial desta tecnologia é baseado na análise de inteligência artificial em megadados.
Por fim, os megadados também produzem grande efeito na repressão do terrorismo na internet. Segundo relatos, o uso de “redes sociais”, tais como Twitter, Facebook, YouTube, Instagram, entre outros, para recrutar possíveis apoiantes de terrorismo tornou-se um meio importante para a expansão da influência de organizações terroristas extremistas, como o Estado Islâmico (ISIS). Em resposta a essa tendência árdua de antiterrorismo, essas empresas de “redes sociais” começaram a criar em conjunto um fórum de Internet da União Europeia e uma base de dados compartilhadora deste sector, usando a tecnologia de detecção e classificação de conteúdo de megadados para identificar e remover os conteúdos relacionados com o terrorismo. Com a ajuda da nova tecnologia de cálculo de megadados, só na primeira metade do ano 2017, o Twitter apagou quase 300.000 contas dos terroristas, um aumento de cerca de 20% da eficiência de limpeza e o Facebook apagou 99% de matérias sobre a organização da Al Qaeda e do Estado Islâmico29.
Dessa forma, conclui-se que o uso de ferramentas de inteligência artificial é eficaz no controle de operações suspeitas de risco de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo.
Uma outra preocupação é a de verificar se os segurados ou beneficiários podem estar em alguma lista internacional de designação de terroristas. Essa é uma exigência ligada à recomendação seis do GAFI. Essas listas visam proibir, restringir ou constranger transações financeiras, comerciais, de serviço ou de tecnologia envolvendo os setores ou pessoas alvo podendo incluir o congelamento de bens e ativos de um indivíduo ou entidade. Existem diversas listas restritivas como as internacionais (exemplo, listas consolidada e do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou as listas da União Europeia) e as nacionais (exemplo a lista da OFAC, nos Estados Unidos; HM Treasury Sanctions no Reino Unido, DFAT na Austrália). As diferentes listas restritivas podem conter nomes de pessoas e entidades sancionadas por supostamente terem ligação com o terrorismo ou proliferação nuclear; a designação de setores, atividades e tipos de transação que são proibidos, ou; ou listar países que se encontram sob sanções.
No Brasil essa exigência foi incorporada através da Lei 13.810/2019 que dispõe “sobre o cumprimento de sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluída a indisponibilidade de ativos de pessoas naturais e jurídicas e de entidades”. A nova legislação também trouxe a criação de uma “lista nacional” através da “designação nacional de pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo, de seu financiamento ou de atos a ele correlacionados”30 bem como da possibilidade da aplicação de listas nacionais estrangeiras, como as listas da OFAC. Assim, o processo de conferência das listas não deve ocorrer apenas nos procedimentos de onboarding: as transações e terceiros relacionados (tais como fornecedores, destinatários, representantes, intermediários, fontes pagadoras, etc) também devem ser constantemente monitorados. Essa complexidade tem criado um verdadeiro labirinto de normas e procedimentos que devem ser adotados por um número crescente de instituições financeiras e não financeiras. Cada vez mais, exige-se a adoção de procedimentos dinâmicos de compliance integrando pessoas, processos e tecnologias para se evitar os riscos legais e, principalmente, reputacionais relacionados.
4. CONCLUSÃO
As céleres mudanças perpetradas pelos criminosos na forma de praticarem os crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo levaram à necessidade de os países se unirem para a prevenção e o combate à crescente criminalidade. Essa adesão ocorreu por meio das convenções internacionais celebradas e dos organismos internacionais criados para estabelecerem esforços conjugados no tratamento do tema.
As leis que tipificaram a lavagem de dinheiro sofreram modificações ao longo do tempo para acompanhar as diversas formas de operacionalização do crime pelos seus agentes, podendo ser classificadas em três gerações, seguindo um processo evolutivo que foi gradativamente incrementando o rol de delitos passíveis de anteceder o crime de lavagem. Na primeira geração, apenas a lavagem de dinheiro, oriunda do narcotráfico, era criminalizada. Já na segunda geração, um conjunto de infrações antecedentes era apto para caracterizar o crime. Porém, para a terceira e atual geração, não mais importa a natureza do ato ilícito que gerou os recursos.
Dentre os órgãos dedicados à prevenção à lavagem de dinheiro e ao combate ao terrorismo podemos elencar o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, o International Organization of Securities Comissions (IOSCO), o Committe of Sponsoring Organizations of the Treadway Commissiom (COSO), o United Nations International Drug Control Programme (UNIDCP), o Egmont Group of Financial Intelligence Units, o Wolfsberg Group, o Grupo de Ação Financeira (GAFI), o Grupo de Acción Financiera de Latinoamérica (GAFILAT). Além desses, há o Office for Foreign Assets Control (OFAC) nos EUA e o órgão de Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) no Brasil.
O terrorismo necessita de fundos para que possa se perpetrar. Estes podem ser derivados de atividades ilícitas, mas também podem derivar de fontes legítimas, tais como doações de instituições de caridade e autofinanciamento por indivíduos. Quando o financiamento não envolve quantias vultosas, a detecção é dificultada, sendo bastante útil e eficaz a utilização de ferramentas de inteligência artificial para ajudar no monitoramento dos dados, facilitando a prevenção e o combate das práticas criminosas.
Recentemente, o setor de seguros passou a ser alvo dos crimes de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, cabendo à SUSEP, aqui, no Brasil, emitir normas e regulamentos, bem como aplicar penalidades. A Circular SUSEP nº 445/2012 possuía um caráter mais prescritivo do que a Circular SUSEP nº 612/2020, que entrou em vigor em março de 2021. Esta é dotada de uma feição mais principiológica, demonstrando estar em consonância com as atuais políticas da PLDFT, que determinam que as instituições devem analisar de forma mais individualizada seus procedimentos de controle em conformidade com os riscos identificados. Dessa maneira, a baixa probabilidade de ocorrência de risco enseja um controle simplificado, ao passo que, casos de alto risco de dano clamam pela implantação de controle de gerenciamento e de mitigação robustos, sendo imprescindível o controle constante das operações devido às chances de mudanças nas classificações dos riscos atuais.