1. Introdução
Não é uma tradição na psicologia social usar desenhos feitos pelas investigadoras como parte do processo de produção de conhecimento (Lima, 2023). Embora, encontramos rastros do uso de desenho, em estudos experimentais da psicologia social clássica (Milgram, 1973; Festing, et al, 2018; Sherif et. al, 1988; Sherif, 1965). Em tais estudos os desenhos parecem estar bem distantes das raízes performáticas (Gergen & Gergen, 2011; Gergen & Gergen, 2012) ou das tendências contemporâneas das pesquisas baseadas em artes (Boydell et. al., 2012, Nguyen, 2018). Esses usos limitaram-se a ilustrações de procedimentos, marcação da disposição espacial entre experimentador e participantes da pesquisa (Lima, 2023). Analiso informações produzidas no projeto que teve entre os seus objetivos compreender os sentidos do uso Profilaxia Pré-Exposição para HIV nas relações afetivo-sexuais e nas práticas de cuidado usuários (Silva, et. al, 2022). A PrEP é uma das estratégias biomédicas de prevenção combinada do HIV que envolve o conjunto de programas comunitários baseados em direitos e evidências com vista a uma combinação de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais oferecidas com o propósito de satisfazer as necessidades de prevenção do HIV. PrEP é a junção de duas substâncias (tenofovir + entricitabina) e bloqueia alguns caminhos que o HIV usa para infectar o organismo negativo de outro com HIV detectável. Desde 2019 é ofertada pelo Sistema Nacional de Saúde de Catalunha/Espanha (SisPrEP, 2022).
Parti do meu encontro com Plutón de 59 anos, usuário de PrEP diariamente, mas que se infectou com HIV. A PrEP tem 99% de eficácia no controle da soroconversão para HIV entre homens que fazem sexo com homens-HSH (Grov, et. al. 2021), mesmo em práticas sexuais com troca direta de fluídos, como sêmen de pessoa que vive com HIV-detectável. Bersani (1995, p. 113 tradução-livre) sentenciou que a HIV/aids “desencadeia e 'legitima' representações criminosas de homossexuais" produzidas pela cultura homofóbica” Por isso, é necessário manter visão crítica dos avanços dessa epidemia (Santoro, 2019), quando mais biotecnologias são introduzidas na prevenção combinada.
Este artigo está organizado em três momentos não estanques. No primeiro situei o recorte do artigo em relação a pesquisa mais ampla, destacando a noção de desfamiliarização e as decisões teórico-metodológicas (Spink, 2000). No segundo explicito o uso do desenho como recurso em todo o processo de produção de conhecimento (Nguyen, 2018) e a reflexividade (Linday, 2002). No terceiro, tive como objetivo analisar que a infecção por HIV de Plutón não pode ser qualificada como um “exemplo negativo” (Becker, 1993) na leitura psicossocial que o desenho me auxiliou a entender, porque os sentidos produzidos por ele não contradizem o modelo explicativo emergente (Lima, et. al, 2023).
2. Método
Adotei a abordagem das práticas discursivas e produção de sentidos (PDePS). As práticas discursivas remetem-se “aos momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de sentidos, ou seja, corresponde[m] aos momentos ativos da linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como diversidade (Spink & Medrado, 2000, p. 45). PDePS é operacionalizada no ato de pesquisar como processo de desfamiliarização, ou seja, um movimento de idas e vindas, de problematização e ressignificação contínua de construções sócio-históricas sobre diversos temas, conceitos e teorias (Spink & Frezza, 2000). Nesta direção, a pesquisa aqui rotulada como pós-construcionista explicita as hierarquias de poder e a complexidade das interações sociais, que inclui problematizar o próprio ato de pesquisar.
Em Barcelona-Espanha, entre os meses de março a agosto de 2022, entrevistei 10 homens gays (que diferenciei nomeando-os por nomes de planetas e nano-planetas), que usavam PrEP.
Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Êtica da Escola de Enfermagem /UFBA (CCAE: 57856022.5.000.5531). Utilizamos a estratégia bola de neve (Vinuto, 2014), que permitiu construir uma rede de contatos, o que significa que cada interlocutor entrevistado recomendava outro usuário de PrEP. As entrevistas foram gravadas em mp3, transcritas no software Transkriptor e revisadas para análise categorial temática - ACT (Vasquez, 1996). Fiz 11 desenhos durante o processo de produção e análise das informações.
Adotei a premissa de explicitar os passos de interpretação, oferecer rigor e visibilidade (Spink & Lima, 2000) às etapas de produção da pesquisa. Utilizei o desenho inspirado na entrevista com Plutón, considerando que o uso da arte balizada por um referencial teórico consistente é uma oportunidade de “fortalecer o rigor e a reflexividade e enriquecer a análise, porque as artes envolvem uma forma diferente de conhecer” (Nguyen, 2018, p. 3-4 tradução-livre). Descrevo o processo de construção do desenho “Sexualidad Atenta”, nas duas secções seguintes, me valho das noções de desenho Berger (2021), de reflexividade (Linday, 2002) e de “exemplo negativo” (Bercker, 1993). No capítulo “Problemas de inferência e prova”, Becker (1993) nos convida a refletir sobre essa noção, ou seja, a importância de analisar supostas “evidências que entram em contradição com as relações hipotéticas do modelo” (p. 60).
3. “Sexualidade Atenta”: desenho, reflexividade e produção de sentidos
O desenho com o título “Sexualidade Atenta” é de um “corpo vivo”. Plutón, usuário de PrEP, depois de um ano de uso do medicamento, passou por sucessivas anamneses dentro do serviço público de saúde de Catalunha, porque infectou-se pelo HIV. Assim, ele me contou que todos estavam interessados por ele, porque ele supostamente não seria o perfil de paciente que entraria na lista de usuários que poderiam ser infectados por HIV. Há apenas poucas notificações de soroconversão de HIV entre usuários de PrEP no mundo. Entre 1398 usuários de PrEP, na Espanha, identificou-se 0, 2% de soroconversão por HIV, que correspondem a três casos, que são relacionadas às práticas sexuais com uso de substâncias psicoativas - “chemsex” - adesão insatisfatória ao medicamento e certa recenticidade do diagnóstico de HIV logo no início do uso de PrEP (SisPrEP, 2022). Não era o caso de Plutón.
Ao compreender a entrevista (Aragaki et, al. 2014) e o próprio ato de pesquisar como práticas discursivas (Spink & Menegon, 2000), como pesquisadora-desenhista, não submeti Plutón a mais uma anamnese, embora eu soubesse da excepcionalidade do seu caso. Falamos sobre a sua infecção por HIV e vários âmbitos da sua vida sexo-afetiva, como fiz com os demais participantes.
Eu fui provocada pelo questionamento de duas audiências (espanhola e brasileira) sobre as primeiras reflexões sobre o caso de Plutón. Qual é o questionamento? A de que eu, como investigadora, não duvidei do fato de Plutón estar infectado por HIV por suas próprias falhas de uso de PrEP. Alguém chegou a sugerir que eu deveria fazer uma nova entrevista com ele para superar essa dúvida, quando contei e usei como argumento como ele via por si próprio, a infecção por HIV. Um procedimento comum e até justificável nas pesquisas ditas qualitativas. Ele não sabia explicar para além de afirmar que havia tomado o medicamento todos os dias e disciplinadamente. O que justificaria que eu duvidasse mais de Plutón do que dos demais que entrevistei, que usavam PrEP e que não se soroconverteram por HIV? Inclusive, alguns deles me disseram que podem ter esquecido uma ou outra vez de tomá-la, além de não terem usado preservativos em todas as relações afetivo-sexuais ou serem adeptos do “bareback” (não uso de preservativo como uma decisão pessoal-política) muito antes de tomarem a PrEP.
Todos entrevistados se consideraram adaptados à rotina diária ou por demanda do medicamento. Qual deveria ser minha posição em relação à compreensão dos sentidos que o meu encontro com Plutón e entrevistados proporcionou para ser validada no referencial teórico-metodológico adotado? Poderia eu reproduzir as hierarquias de poder e a complexidade das interações sociais, que acompanham a classicamente “posição de pesquisadora”? Deveria eu assumir uma posição de pesquisadora que exerce “necrópsia” e/ou “autópsia”? Haveria uma alternativa além dessas? Estaria eu deixando de ser objetiva e me rendendo a subjetividade inoperante? Onde estava o meu deslize metodológico em torno do que eu e Plutón produzimos em sua casa, em uma tarde calorenta de verão em relação aos demais? Além disso, e mais significativo para a proposta desse artigo: em que o desenho me auxiliou na produção e análise das informações?
Quando decidi desenhar para produzir conhecimento em psicologia social parti da noção de que a subjetividade deixa de ser um problema/dificultador/obstáculo para ser uma oportunidade autoconsciente (Finlay, 2002). Partimos dos conceitos de reflexão e reflexividade como um “continuum”: reflexão - “pensar sobre” um objeto - e reflexividade como o processo de “explorar uma autoconsciência mais imediata, contínua, dinâmica e subjetiva. Finlay, (2002, p. 533) concluiu que “Não é um caminho fácil e muito menos confortável de seguir e que tampouco pode tornar-se uma regressão infinita e improdutiva”. Com o desenho eu ofereço a minha energia, ao desenhar, e recebo a energia da marca que deixo no papel (Berger, 2021), que me auxilia no processo de reflexividade. O que estou chamando precariamente de reflexividade por desenho feito pela investigadora-desenhista (Lima, 2023).
Recorri ao Berger (2021, p. 55) que diz “a imagem desenhada contém a experiência de olhar”, mas eu precisava avançar na compreensão psicossocial do desenho e considerar a reflexividade (Finday, 2002) que a decisão de desenhar o que vi, escutei e senti no encontro com os participantes entrevistados poderia expressar. Em “Dibujado para ese momento” Berger (2021) conta que, com a morte do seu pai, fez vários desenhos do seu rosto/cabeça, e se remete à uma anedota sobre Oskar Koloschka. Em uma aula de desenho, ele pede para que o “modelo vivo” (uma pessoa) no meio da aula finja um desmaio e diz para os seus alunos que ele está morto. Pouco tempo depois, o modelo se põe de pé e retoma sua pose. Koloschka instrui os estudantes: “Agora o desenhe […] sabendo que ele está vivo e não morto” (p. 51).
Numa leitura psicossocial o que importa é a obviedade de que há diferença em desenhá-la (ou tomá-la) como uma pessoa morta ou viva. Para tanto, estamos atentas a descrição de como esse evento nos afeta como pesquisadora-desenhista e repercute na produção de conhecimento, que se pretende conhecimento válido:
Um desenho questiona lentamente a aparência de um acontecimento e, ao fazê-lo, lembra-nos que as aparências são sempre uma construção com uma história. (Nossa aspiração à objetividade só pode ser derivada de admitir a subjetividade) (Berger, 2021, p. 55 tradução-livre).
Há muita subjetividade no meu encontro com Plutón, como houve com os demais entrevistados. Subjetividade na psicologia social pós-construcionista é sempre relacional, gestada e negociada nas interações sociais (Gergen, 2011). O desenho expressa também esta dimensão subjetiva da produção de sentidos através das linhas, formas e cores. Do ponto de vista da teoria do desenho:
No desenho se desdobra toda uma complexa filosofia de marcas, signos e traços. O desenho é o lugar onde a cegueira, o tato e a semelhança se tornam visíveis, e é também o ponto da mais delicada das negociações entre mão, olho e mente. (Berger, 2021, p. 92 tradução-livre).
Deveria eu assumir uma posição de pesquisadora-desenhista que exerce “necrópsia” e/ou “autópsia”? Minha tarefa, como pesquisadora-desenhista, não é desacreditar nem acreditar no que produzimos a priori, eu e os entrevistados, senão refletir sobre tais efeitos. Não posso lidar com um evento, uma metáfora, um argumento, uma explicação de um entrevistado como se meu interlocutor estivesse morto e eu viva a abrir suas entranhas para saber a verdade mais verdadeira de todas as verdades- a medicina legal pode fazer isso, e o faz muito bem. A leitura psicossocial aqui proposta é conduzida pelo caminho das PD&PS (Spink, 2000), pela reflexividade (Finday, 2002) e pela aposta do desenho como processo de produção de conhecimento (Azevedo, 2014, Nguyen, 2018).
Não submeti Plutón à anamnese, muito menos a uma necrópsia, não o tomei por morto, matando seu discurso para construir outra prática discursiva mais verdadeira do que a que ele me apresentou. Construímos sentidos juntos: eu, como pesquisadora, tinha uma intencionalidade nesse dialogismo não necessariamente igual ao de Plutón, quando aceitou participar da pesquisa.
O termo autópsia significa “ver por si próprio” e, modernamente, necrópsia é sua sinonímia para evitar confusão não de que a pessoa escrutinada está morta (porque parece que isso quando acontece é um consenso) senão do significado de “si mesmo”, que o prefixo alude para o que é possivelmente “subjetivo”, portanto, emprenhado de desconfiança. O prefixo de necrópsia (nekrós igual a “morto") garante que a “visão” sobre um estado, ou sobre o que causou a morte de alguém, seja dita por outras pessoas autorizadas, sempre mais fiáveis que ela mesma.
A minha palavra não é mais fiável do que a palavra de Plutón, nosso dialogismo responsabiliza os dois e nossas específicas posições e condições de possibilidades na produção de sentidos. Ele toma PrEP, eu não. Ele vive com HIV (no momento da entrevista indetectável-intransmissível) eu não. Ele é um homem gay, branco, europeu. Eu sou uma mulher, branca-mestiça, latino-americana que, até o momento, só me relacionei com homens.
Encontrei a noção de “exemplo negativo” de Becker (1993) e questionei a evidência (infecção de Plutón por HIV com uso de PreP), se ela poderia contradizer o modelo explicativo que estava se delineando nas entrevistas anteriores a dele. Ele foi o nono entrevistado por mim no trabalho de campo. Não me ocorreu encontrar Plutón, como alguém que tomava PrEP e se infectou com HIV. Mas foi um encontro anunciado, porque eu soube da sua história de infecção por HIV previamente, quando já havia começado o trabalho de campo. Mas levei dois meses para entrar em contato com ele, enquanto fazia as outras entrevistas, porque ele tinha que cuidar do inesperado e/ou poderia se negar a participar de mais uma investigação. Para Plutón, o HIV foi inesperado, surpreendente e, até aquele momento, raivoso. Para a equipe de profissionais de saúde que cuida dele muito bem, ele é um caso surpreendente - me disse. Nessa direção, Plutón é uma exceção do ponto de vista biomédico, isso significa que ele faz parte de 1% de usuários de PrEP, que pode vir a ser infectado por esse vírus (Grov, et, al., 2021).
Ao decidir usar a noção de Becker (1993) “exemplo negativo”, ter encontrado Plutón passou a ser uma oportunidade dentro do grupo de entrevistados, em um espaço-tempo delimitado de ser o contraponto na produção de conhecimento na perspectiva da produção de sentidos. Mas não era tão simples assim. Plutón reivindicou algo que não foi demanda de nenhum deles e que só o acontecimento materializado na soroconversão para HIV teria performado. Ao final da entrevista, ele relatou algumas vezes que era preciso dizer para os usuários de PrEP que a soroconversão para HIV poderia acontecer, mesmo a pessoa usando regularmente, e que isso nunca foi enfatizado para ele nas consultas. Podemos supor que os/as médicos/as confiam na ciência e frente aos estudos da eficácia da PrEP não teriam por que “desconfiar” dos resultados de estudos clínicos e de metanálise (Grov, et. al 2021), que evidenciam a eficácia de PrEP, sob certas circunstâncias, muito menos eu, como sinalizei nas linhas precedentes, e sim do “comportamento” do paciente. Não duvidei do comportamento dele, eu busquei entender os sentidos que ele construiu ao usar a PrEP, sendo quem ele é no cotidiano.
Por que a infecção por HIV de Plutón não é a “evidência que entra em contradição”, segundo a definição proposta pelo metodologista Becker (1993)? Antes de seguirmos, é preciso explicitar o modelo explicativo sobre os efeitos da PrEP no cotidiano dessa população-chave, em estudos recentes e convergentes com os resultados da nossa própria pesquisa (Lima et. al., 2023). Curley et al. (2019) apontam o uso da PrEP como fator de liberação das relações sexuais, maior grau de satisfação sexual e obtenção de mais prazer. Nesta linha, os autores chamam a atenção para o facto de o direito humano ao prazer e à intimidade não ser ignorado nas comunicações e estratégias de prevenção do HIV. Aspecto semelhante é apoiado por Mabire et al., (2022), alertando que a noção de busca de prazer deve ser integrada a este campo de estudos, considerando que o uso da PrEP melhorou a qualidade de vida sexual e explica por que muitos dos repertórios de HSH aludem à liberdade. Como desenhar me auxiliou na leitura psicossocial?
3.1 “Sexualidade Atenta”: a ausência presente do invisível e PrEP
O HIV sempre foi uma ausência presente na vida afetivo-sexual de Plutón (como na vida dos demais entrevistados) pelo simples fato de ser gay e viver numa pandemia de HIV, desde 1980, marcado por especificas circunstâncias. Esta ausência presente é o que ele denominou “sexualidad atenta”, o que significa que ele esteve sempre vigilante à possibilidade de ter HIV e usou preservativo de modo regular ao longo dos seus 59 anos. Do pondo de vista analítico, trato “sexualidade atenta” como uma figura de linguagem, corporificada por mim em desenho, que sinaliza um repertório, que “demarca um rol de possibilidade de sentidos” (Spink, & Medrado, 2000, p. 47).
O preservativo foi sempre usado nos encontros que eles (Plutón e seu companheiro), nos 17 anos de convivência, tinham com outros homens, estando os dois juntos. No entanto, quando sozinhos não usavam preservativos, e manteriam exames periódicos para controlar a sorologia para HIV. Em 2019, o Sistema Nacional de Saúde de Catalunha começou a distribuir uma nova biotecnologia (PrEP) para compor a prevenção combinada de HIV/aids. Em 2022, quando entrevistei Pluton, ele já usava PrEP por um ano, e tinha uns seis meses que descobriu a infecção por HIV, em uma das consultas periódicas realizadas a cada três meses em um hospital de Barcelona, que já frequentava há muitos anos. Ambos começaram a usar PrEP no mesmo momento, apenas Plutón se infectou por HIV e seu companheiro seguia fazendo uso de PrEP. Suponho que não desacreditaram da PrEP.
Não estava previsto entre as estratégias de produção de informações, desenhos, ele foi incluído ao longo da investigação. Quando fiz a entrevista com Plutón, pensei: como vou desenhar o HIV? Posso aludir a algum órgão em especial como fiz com a PrEP (fígado e rins, considerando que usuários de PrEP devem acompanhar possíveis desvios nas variações reversíveis de enzimas produzidas por esses órgãos no uso de PrEP)? Haveria uma marca que significa HIV que eu pudesse incorporar no meu trabalho de campo (o laço vermelho).
? Como diferenciar seu estado sorológico para HIV da presença anterior do organismo protegido pela PrEP?
Então, uma ação de Plutón durante a entrevista, que observei tanto pelo movimento ativo no seu corpo quanto pela repetição, foi a inspiração. Todas as vezes que ele relatava algo sobre o que sentia com a infecção por HIV, a “falha da PrEP” e os anos de sexualidade atenta, ele colocava a mão no peito e rodava em torno do osso esterno. Este movimento ficou registrado em minha cabeça mais do que eu tinha consciência disso ao logo do nosso encontro. Quando, em casa, comecei a desenhar foi por aí que comecei (Figura 2).
Ayres et. al (2003, p. 125) discutem vulnerabilidades para HIV “como o virtual e incorpóreo”. Naquele momento, minha tarefa era justamente expressar o incorpóreo/virtual no corpo do desenho. Materializar no desenho algo (sentimentos e coisas abstratas, por exemplo), que a presença do HIV causava em Plutón. O ato de materializar uma prática discursiva ou um discurso em desenhos tem me auxiliado a lidar sobre outro ângulo em relação à crítica de que as investigações em psicologia social de base pós-construcionista levam tão ao pé da letra- que toda realidade é uma construção social, que alguns supõem que nós somos antimaterialistas, que negamos a existência do aparato biológico ou natural, em nome exclusivamente da linguagem falada. Qualquer leitura mais apurada demonstra que não é questão de negação e sim de ênfase no processo de produção de conhecimento, após o “giro linguístico”, a ênfase na linguagem falada (Iñiguez-Rueda, 2003). Por isso, é tão vital para a própria existência do movimento construcionista as abordagens rotuladas como pós-construcionistas (Iñiquez-Rueda, 2008) que, como a perspectiva da teoria ator rede (TAR), coloca o não humano (medicamento PrEP) no mesmo nível de importância do humano (a linguagem falada e corporal) e as contribuições de Mol (2002) sobre a ação dos objetos/materiais (medicamento PrEP) nas nossas relações sociais.
No encontro com Plutón, a materialidade do uso do comprimido diariamente e logo a sua ausência pós-infecção HIV naquele movimento circular no osso esterno pode se dar em ato comunicativo e logo na própria feitura do desenho. Porque o movimento da mão esquerda de Plutón circulando o osso esterno era uma parte significativa do dialogismo que produzimos juntos, naquela breve, mas intensa interação social, de 1h:45 minutos, tempo total da entrevista, somado à meia hora, já com o gravador desligado, quando trocamos outras confidências. Desde modo, o desenho pode materializar algo do dialogismo, um repertório linguístico materializado.
Como desenhar o “virtual e incorpóreo HIV”, já que ele apareceu na entrevista com usuários de PrEP, quando se espera que todos não tivessem justamente HIV?
Eu transformei o movimento da mão de Plutón e do que me foi dito com minha mão, mas do que com a minha cabeça. Não foi uma reflexão antecipada, no meio do processo, frente ao papel em branco, como disse, não comecei sabendo como ia expressar graficamente o HIV, fiz o “HIV: o invisível”.
No ato de desenhar tornei o invisível mais do que visível, plausível, na sua acepção de ser algo que se pode aceitar como verdadeiro, porque causa efeitos. Aproximei-me da sensação que descreve Berger (2021/2005, p. 92) sobre a marca no papel: “o senso de abundância de significado encerrado nessa marca”. Plutón tomou PrEP por um ano apenas e, nesse período, se sentiu seguro, deixou em suspenso a “sexualidade atenta”, que incluía se preocupar com o HIV e usar preservativos nas suas relações afetivo-sexuais externas ao casamento e fazer exames periodicamente. Essa é a realidade dos rotulados HSH, não esquecer do HIV. Ele disse que não era um “problema usar o preservativo”, tornou-se um hábito, algo que já fazia protocolarmente, porque sempre se cuidou para não se infectar com HIV. Com a PrEP, disse que pensou que “merecia” desfrutar da sexualidade com mais “liberdade”. Plutón tem 59 anos e toda uma vida de vigilância e controle, principalmente porque passou por várias etapas da pandemia de HIV. No entanto, também disse que deixou de usar preservativo, porque nos ambientes gay que frequentava, com o surgimento da PrEP, os demais participantes “rejeitavam” aqueles que queriam usá-lo. Além disso, relatou que onde circula, o envelhecimento é um obstáculo a mais para a oferta de relações afetivo-sexuais, o que pode intensificar a rejeição. Embora, Plutón expresse sentidos que não apareceriam caso não tivesse a infecção por HIV, os significados e efeitos positivos do uso da PrEP é similar aos demais entrevistados. Por isso, ele não é a evidência que contradiz o modelo explicativo.
Foi desafiador expressar o HIV, mas era preciso também expressar o HIV indetectável, já que esta é a condição em que se encontra Plutón, de ter o vírus, mas não o transmitir. Expressar o HIV indetectável-intransmissível (I=I) é uma decisão ético-política, uma dimensão fundamental do processo de produção de conhecimento, que não poderei desenvolver nesse artigo. Este processo presumiu um breve retorno a importância das células mais atingidas (os linfócitos T e da CD4+) nas infecções por HIV e construí o desenho “HIV: o indetectável” (Figura 3).
Volte ao desenho “Sexualidad Atenta”: a ausência presente do invisível e PrEP.
O HIV indetectável povoa o lado direito do papel para sinalizar que Plutón é I=I. O modo como coloquei os pulmões no desenho também se remete às células T. Cabe dizer que pulmões são recorrentes nos meus desenhos, de modo geral, eles aqui associados à perenidade da vida, da vida que segue, embora haja tantos desafios. Alusão aos linfócitos T aparece também entre os pulmões, ao mesmo tempo, sugere uma balança. Esta fusão gráfica (linfócitos T/balança) expressa a polifonia característica das práticas discursivas. Plutón desconfia da ciência (ou seja, da eficácia do remédio) em relação a si mesmo. A desconfiança de si mesmo parece estar mais alicerçada em algo em seu organismo - estou me referindo ao biológico, e não ao comportamental. Algo nele que não funcionou e fez a PrEP falhar. Coloca na balança a eficácia do medicamento e logo a “sua própria eficácia”, ou seja, coloca em xeque a capacidade do seu organismo de fazer a tarefa certa, alcançar a meta de processar o medicamento e não se infectar por HIV. Esta fusão gráfica se remete às exigências que a presença confirmada do HIV no corpo de Plutón produz no seu organismo e nas suas práticas discursivas, fluindo ora pela perplexidade ora pelo equilíbrio, que tal condição parece reclamar.
Há também no desenho “Sexualidad Atenta” mais repertórios (Aragaki, et al., 2014) visualizados. Trata-se da falha da PrEP (casulo), onde há os rins e o fígado, e uma flor murcha, uma tentativa de materializar a falha do medicamento. Esse casulo está ligando à experiência da infecção por HIV com uso de PrEP, expressa no círculo colorido, no esterno, com uma alusão à coluna vertebral humana, canal onde se metamorfoseia em uma borboleta, que se remete ao estado sorológico I=I. Plutón, certamente, preferiria não viver com HIV, mas esta condição proporcionará outra que é a de ser indetectável, por uso contínuo de outro antirretroviral. Passar por esta transformação exige de Plutón equilíbrio para lidar com as emoções e os conhecimentos que têm sobre HIV/aids e as repercussões ao longo da sua vida, respectivamente expressos em coração e cérebro em suas mãos.
Eu poderia explicar tudo que narrei até o momento sem desenhar ou fazer desenhos para mim no meu caderno de campo e não os apresentar nunca, como relembra Azevedo (2016) sobre o uso do desenho na antropologia clássica e o revigora para ver, para dizer e para sentir (Azevedo, 2014). No entanto, aceitei o convite da perspectiva performática da ciência social:
somos convidados a uma investigação que carrega nossas visões e nos dá total liberdade de expressão. A questão não é se isso é ciência ou arte, mas se nosso trabalho profissional pode ajudar a construir futuros valiosos. É difícil saber o que isso pode significar para qualquer cientista. (Gergen & Gergen, 2012, p. 49 tradução-livre).
4. Considerações Finais
O processo de desenhar me ajudou a compreender se Plutón era ou não um “exemplo negativo” em uma leitura psicossocial. Plutón, mesmo com soroconversão para HIV, usando PrEP, em suas práticas discursivas não diferem dos sentidos produzidos pelos demais entrevistados em relação a expressar a liberdade sexual que sentiu em anos de “sexualidade atenta”. Trabalhei com a hipótese de que o caso de Plutón pode até ser um exemplo negativo do ponto de vista biomédico, mas não do ponto de vista psicossocial.
Neste particular, eu proponho que o desenho pode auxiliar no processo de desfamiliarização, reflexividade e ser considerado uma das estratégias de visibilidade e rigor do processo de produção e de análises das informações na pesquisa em psicologia social construcionista/pós-construcionista.