Este artigo apresenta os resultados de parte de uma investigação desenvolvida sobre a trajetória social do compositor e intérprete de música popular brasileira João do Vale.1 Em termos gerais, a investigação dedicou-se ao problema da construção da cultura nacional-popular e aos seus reflexos sobre a carreira do artista. O objeto de investigação construído tomou a questão nacional brasileira como pano de fundo, as ambiguidades que cercam a noção de “popular”, no âmbito da cultura brasileira, a partir dos mecanismos de circulação da música popular ao longo da vida produtiva do artista, isto é, entre os anos de 1950 e 1980. Durante quase 30 anos de carreira, a construção da imagem do artista popular, pouco alfabetizado, negro, trabalhador rural, oriundo das classes populares, imigrante do Nordeste brasileiro, vencedor na concorrência nacional, incidiu diretamente sobre os seus sucessos e as suas tragédias pessoais e profissionais.
Em termos gerais, no Brasil, o tema da cultura brasileira e da identidade nacional está no centro do longo e profundo debate sobre as interpretações e reinterpretações do popular elaboradas e fixadas por grupos e por instituições sociais com íntimas relações com o Estado. Disputas em torno da autenticidade do popular, de uma definição uniforme da identidade nacional, dos seus níveis de legitimidade, aconteceram em diferentes momentos da história da cultura brasileira, sendo possível traçar uma história das construções desta identidade e desta memória que se queriam nacionais, dos grupos sociais que a ela se vincularam e dos interesses aos quais serviram (Ortiz, 1994a; 1994b, p. 139).
Para efeito de análise sobre as apropriações e as classificações das obras musicais de João do Vale detive-me sobre duas construções simbólicas hegemónicas relativas aos sentidos que a expressão “popular” adquiriu na história da música brasileira. A primeira delas, o “popular regional”, fixado no rescaldo das políticas de integração nacional empreendidas e estruturadas nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954), ganhou força com o advento e a consolidação da rádio no país. As origens nordestinas e camponesas do músico contribuíram para a identificação das suas composições com os géneros populares de grande difusão naquele período, como “baião” e “forró”, justificando a atribuição de uma originalidade popular excecional ao artista e à sua obra. A segunda, o “popular político”, cuja força se intensificou a partir de 1964, quando os seus sentidos se associaram às formas de resistência ao regime autoritário e às suas arbitrariedades e às críticas às desigualdades sociais e económicas brasileiras. A estreia de João do Vale, em fins de 1964, no espetáculo musical Show Opinião,2 produzido pelo Teatro de Arena, pelo Centro Popular de Cultura (CPC) e pela União Nacional do Estudantes (UNE), consagrou-o como “poeta do povo”. As suas composições foram incontestavelmente classificadas como “populares e nacionais” porque se consideraram a mais legítima expressão da arte política representada pelas “canções de protesto”.
Para estes artistas e intelectuais, vinculados aos grupos e/ou a partidos de esquerda e cujas ações culturais estavam afinadas com as disputas pela legitimidade em torno das construções do nacional, pela definição da cultura popular no seio do espaço nacional e fora dele, o “popular massivo”, despolitizado, produzido e distribuído em larga escala pelas companhias multinacionais não equivalia em nada à cultura nacional-popular produzida pelos seus grupos. Assim, edificavam certa tradição na história da música popular brasileira, cuja centralidade, naquele momento, recaía sobre as expressões da cultura brasileira por eles consideradas não alienadas, porque feitas pelo povo, cujo potencial revolucionário era capaz de se opor e de resistir ao regime, à repressão política e ideológica do Estado discricionário. Este era também, naquela altura, promotor do desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada, inaugurando até uma série de normatizações na esfera da cultura e consolidando uma indústria cultural no país (Ortiz, 1994a; 1994b, Ridenti, 2000).
Em 1980, uma parte significativa destes artistas nacionais-populares integrou uma caravana de músicos, produtores e técnicos brasileiros, reunidos em torno de uma digressão internacional intitulada Projeto Kalunga, com o objetivo protocolar de divulgar a música popular brasileira no exterior. A equipa partiu do Rio de Janeiro rumo à recém constituída República Popular de Angola, país africano que, desde o passado colonial, estruturou a nossa formação sociocultural. A digressão “político-artístico-musical” percorreu as cidades angolanas de Luanda, Benguela e Lobito. Na bagagem, os músicos levavam uma sofisticada tecnologia aliada a uma diversidade em termos de gosto musical. Do ponto de vista simbólico, a ideia do reencontro entre as duas culturas populares “irmãs” representou fortemente uma unidade de pensamento entre os envolvidos no Kalunga.3 Do ponto de vista material, a viagem abriu as vias de acesso à consagração, construiu reputações e consolidou notoriedades de boa parte deles, homens e mulheres, quase todos vinculados às grandes editoras discográficas (Barreto, 2020).
A digressão realizou-se entre os dias 6 e 18 de maio de 1980, concretizando o convite que havia sido feito a Chico Buarque de Holanda anos antes. Promovida pela Secretaria de Estado da Cultura de Angola e pela União Nacional do Trabalhadores Angolanos (UNTA), a digressão do grupo de artistas brasileiros compôs o calendário comemorativo das festas angolanas pelo Dia Mundial do Trabalhador. Ao aceitar o convite, Chico Buarque sugeriu Fernando Faro4 para a produção e a montagem dos espetáculos (Castro, 2012; Rêgo, 2014; Tupy, 1980, p. 42; Caymmi, 2014, p. 467). Faro, além de consagrado produtor de trabalhos inovadores para a televisão e para a indústria fonográfica, havia dirigido um ano antes e naquele também, os shows do “Primeiro de Maio” na cidade do Rio de Janeiro, nos pavilhões do centro de eventos Riocentro. Promovidos pelo Centro Brasil Democrático (CEBRADE), fundado em 1978 pelo arquiteto e membro do Partido Comunista Brasileiro Oscar Niemeyer, os shows, na realidade “protestos políticos musicais”, além de homenagearem os trabalhadores, arrecadavam fundos para os sindicatos, para o movimento dos operários grevistas de São Paulo e para as campanhas pela redemocratização (Faro, 2007; Niemeyer, 1981).5
Os dois campos musicais nacionais possuíam estruturas dissemelhantes. Angola, recém saída de um conflituoso processo de independência e vivendo uma guerra civil, atribuía à cultura popular o papel político de unificação nacional. Segundo a visão hegemónica vigente, a estatal, as políticas para a cultura deveriam orientar-se para formas de recriação da música popular, de modo a negar o que os agentes do Estado entendiam por “música folclórica”, diretamente identificada com a construção colonial portuguesa. Os projetos precisavam de insistir, como acreditavam os membros do Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), numa música popular, feita pelo povo, de modo a recuperar, numa perspetiva essencialista, comum aos processos de construção das identidades nacionais, as suas raízes mais genuínas. O que o MPLA pretendia com esta recomposição da música popular angolana era, simultaneamente, criar uma tradição nacional e popular e fazer funcionar o seu projeto de modernização cultural. A música popular era trabalhada para ser a um só tempo emblema da nova e moderna nação, elemento aglutinador, expressão de uma unidade populacional, reunida na totalidade definida como “povo angolano”. Em 1980, os compassos entre os dois processos de modernização, brasileiro e angolano, encontraram-se em cadências distintas que não eram, porém, dissonantes.
Este artigo apresenta como se deu a relação entre os dois campos musicais periféricos, assim definidos porque marcados por relações de heteronomia. Explica como estas realidades se relacionaram num espaço em escala transnacional da produção musical. A digressão empreendida pelo Projeto Kalunga é emblemática enquanto expressão das diferentes formas como os processos de nacionalização das culturas populares se realizam e reforça uma hipótese cara a seu estudo, isto é, a de que coisas, muito longe, no espaço geográfico, podem estar muito próximas, no espaço pertinente a um campo (Bourdieu, 1973, p. 73 apudSapiro, 2013, p. 71-72). O que implica dizer que os fenómenos de nacionalização das culturas se fazem através de eventos de circulação, trocas, empréstimos e transferências, muitas vezes ocultados pelos processos de criação de identidades nacionais. O objetivo da discussão proposta é, portanto, examinar a outra face do Projeto Kalunga, o seu lado angolano e confrontar outra vez as situações nacionais nos seus movimentos de circulação.6 Para isso, o artigo divide-se em dois tópicos que abordam, de início, as disputas em torno do restabelecimento da tradição na cultura popular angolana. De seguida, aborda os seus usos para dar sentido à diplomacia cultural socialista a partir da sua inserção num espaço transnacional de circulação dos bens culturais e simbólicos, onde as fronteiras entre os blocos, monoliticamente bipolarizados pela Guerra Fria cultural, tiveram os seus perímetros muitas vezes reconstituídos e/ou alargados pelo intenso movimento intra e extrablocos.
As disputas pela tradição no espaço da música popular em Angola
Entre o fim do colonialismo e a transição para a independência angolana, reinventaram-se três movimentos de libertação como partidos políticos: a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). A independência por si só foi declarada de forma controversa pelo MPLA, agravando o fracasso da transição pacífica e das posteriores eleições. Precipitou-se uma onda de violência por todo o país, que piorou devido aos confrontos, e que estava centrada no início nos bairros mais populosos de Luanda, os musseques, territórios rivalizados pelo MPLA e pela FNLA e redutos musicais populares da capital, concentrando clubes de dança, residências de músicos e intérpretes e outros ambientes e agremiações que acolhiam as festas populares.7 Esta proximidade fazia com que muitos artistas e intelectuais partidários do MPLA realizassem trabalhos de base importantes pelos musseques onde residiam e/ou frequentavam. No entanto, em 1977, quando músicos populares partidários do MPLA foram assassinados, num confronto entre duas lideranças no seio do Partido, num “ato de violência política”, como defende Moorman (2008, p. 169), a produção, distribuição e consumo de música popular dali advindas deterioraram-se frente ao recrudescimento das hostilidades e às reações políticas aos atos em si.8
O estopim que deu início aos incidentes ocorreu em maio daquele ano, após expulsão do dissidente Nito Alves do Comité Central do MPLA, desencadeando confrontos entre os seus apoiantes e os de Agostinho Neto. As reações populares foram reprimidas com a ajuda das forças cubanas já estabelecidas em Angola. Segundo Figueiredo (2019, pp. 99-100), “a repressão brutal que se seguiu durou dois meses, fez um número jamais confirmado de vítimas - a maior parte das quais jovens - e consolidou o aparato de segurança interna do novo regime como uma de suas características estruturantes”. Houve assassinatos, prisões e perseguições durante longos períodos em toda cidade, ainda que a tentativa de golpe no interior do Partido tenha malogrado.
O campo cultural foi, portanto, alcançado em frentes distintas. Foram assassinados músicos importantes, tanto dentro do Partido quanto para a história da música angolana, como Urbano de Castro, David Zé e Artur Nunes, para além do diretor da rádio Nacional de Angola, José Santos Matoso. O encerramento dos clubes de música e de dança intensificou o intervalo das produções ao vivo, além de pôr fim aos processos de formação de novos talentos levados a cabo por artistas experientes e consagrados (Moorman, 2008, pp. 174-176; 2019).
O episódio marcou uma mudança na forma como o MPLA passou a relacionar-se com a música, centralizando forças e projetos para a transformar em artífice na construção da identidade nacional a partir do seu projeto de modernização nacional. A interpretação dos artistas e intelectuais implicados diretamente na produção musical a respeito da música popular produzida no pós-independência é controversa. Para uns, o período representou um hiato, se comparado ao que havia antes, um decurso de suspensão onde a música popular esteve orientada por valores “não alinhados às práticas musicais locais”. Para outros, justapôs-se uma visão melancólica, ressentida por um tempo em que a música popular foi efetivamente apoiada e incentivada pelo Estado (Moorman, 2008, p. 169).
O Projeto Kalunga fez parte justamente das políticas culturais empreendidas pelo MPLA, das suas “batalhas, pela cultura, para criação do homem novo, de mente descolonizada e dedicado integralmente à causa revolucionária” (Figueiredo, 2019, p. 96). A digressão dos músicos brasileiros representou, para a diplomacia cultural angolana, o reencontro entre as culturas populares historicamente muito próximas, tanto pela identificação de raízes comuns, quanto pelo que inspiraram os artistas brasileiros, enquanto compositores populares, atualizados com os debates culturais vigentes em termos da realização crítica da canção popular.
Desde os primórdios do desenvolvimento da rádio no Brasil, circularam por Angola, enquanto política diplomática de divulgação da cultura brasileira, artistas de diferentes formações, além de discos, livros, filmes, jornais, revistas e, posteriormente, produções televisivas como as telenovelas e os programas de auditório. Todavia, será apenas nos anos de 19609 e 1970 que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil intensificará as suas ações de diplomacia cultural no continente africano. Precisamente em 1961, quando a “política estrangeira independente” de Jânio Quadros desenvolveu e intensificou as relações bilaterais com os novos Estados da África Ocidental e Austral, colocando relevo sobre as afinidades étnicas e históricas que uniam o Brasil e o continente africano. Suspensa após o golpe, esta política foi restabelecida pelos governos militares ditatoriais no início dos anos de 1970, a fim de assegurar os interesses económicos do país em África. Será o momento em que a diplomacia brasileira irá pôr em prática diversos projetos com o propósito de fortalecer as “solidariedades naturais” entre os dois países.10
Para a diplomacia angolana, a receção dos artistas brasileiros constituiu uma forma de apresentar aos seus cidadãos como a canção popular se deveria realizar política e artisticamente numa cena cultural “cosmopolita orientada pela paz e pela liberdade” (R. N./H. F. M., 1980, p. 3). Todavia, o crítico angolano que realizou extensa matéria sobre um dos shows do Kalunga reclamou uma postura de alinhamento do público com o gosto popular, politicamente engajado, expresso pelos artistas e pela música brasileiros,
[…] [refere-se aos músicos brasileiros] de cuja experiência na elaboração da arte musical muito necessitam os cantores angolanos, a fim de enriquecerem as suas obras musicais, para a realização da tarefa em que estão empenhados. […] num país onde a população está a lutar com mais firmeza contra a exploração do homem pelo homem, os artistas brasileiros estão a buscar na arte uma forma de participar e cantam o desabafo contido e consciente do seu povo nos seus variados momentos, em que está tomado por uma emoção de alegria, de tristeza, de crendice, indo até o desespero. Mas não cantam alienação […] [Costa, 1980, pp. 24-27].
A hegemonia que o MPLA procurava na construção de uma cultura nacional teria um caminho a percorrer; engajamentos políticos e atores públicos tinham o desafio de atribuir unidade a uma cultura variada, pertencente a povos diversos situados num mesmo território. Não por acaso, houve todo um esforço, como política de modernização cultural levada a cabo pelo Estado, de normatização das esferas culturais, de reinstitucionalização de segmentos específicos, como a radiodifusão, a televisão, o cinema, a música, a literatura, etc.11 Uma diversidade de tradições culturais linguísticas e religiosas, as tensões entre as populações do campo e da cidade, os conflitos raciais, a exclusão feminina e as ameaças neocolonialistas à FNLA e à UNITA diretamente identificadas atravessava ainda esse projeto que tinha sido idealizado pelo MPLA (Figueiredo, 2012).
O projeto nacionalista do MPLA para a cultura, se examinado à luz do Projeto Kalunga, ampliou-se em duas frentes: refundou uma tradição num passado pré-colonial e aumentou-a com elementos situados para além das suas fronteiras nacionais, pelo reconhecimento, na cultura brasileira, mas não só nela, dos elementos de suas tradições culturais, exprimindo as “intimidades diaspóricas” (Gilroy, 1993) como marca da sua heterogeneidade.12 O aumento foi reiterado durante a passagem das digressões internacionais socialistas pelo país, no mesmo período, como discutiremos adiante.
No caso específico da música popular, o movimento pendular de longa duração entre tradição e modernidade perpetuado nas culturas ocidentais não parece útil. Situações, indivíduos e grupos moveram-se num continuum, de um extremo a outro, isto é, incorporou-se uma tradição no mesmo instante em que foi colocado em marcha um processo de modernização. A moderna nação independente, procurando modernizar-se no âmbito da Guerra Fria cultural, acionava seletivamente elementos da sua cultura pré-colonial para os situar no âmbito da nova nação, tal como compreendida pelos dirigentes culturais do MPLA (Weza, 2007, p. 56; Moorman, 2008).
A tradição, nada inerte e tomada como força ativamente modeladora, intencionalmente seletiva e capaz de ser historicizada, como observa Williams (1979, p. 118), delineou do ponto de vista da produção da cultura um passado de originalidade e autenticidade para as expressões artísticas angolanas pré-colonialistas.13 Operou com ela no presente, via um processo de definição e de identificação social e cultural que quis amalgamar toda uma heterogeneidade de manifestações culturais nas categorias “povo” e “popular”, identificadas ideologicamente com o movimento revolucionário.
A música folclórica, identificada com a matriz portuguesa, foi contraposta aos géneros alçados à tradição, o semba14 ou a trova, inspirada pela nova trova cubana, por exemplo, formas que caracterizaram a produção musical nos anos de 1980, apropriadas e hierarquizadas como os géneros mais legítimos produzidos pelo cancioneiro popular. O caso do grupo originalmente crioulo criado em 1947, N’gola Ritmos, é emblemático das hierarquizações culturais operadas (Moorman, 2008). O grupo passou a integrar uma das formações mais persuasivas da música popular urbana em Luanda. O seu lugar privilegiado na tradição da música popular angolana justificou-se da seguinte maneira:
O N’gola Ritmos deixou formas interpretativas inéditas. Ele recolheu músicas que nada diziam e transformou-as em canções urbanas. Músicas das zonas de Luanda, Caxito; músicas de rebita que converteram em canções de palco, de baile, etc. Pegava na marimba e no kissange e procurava encontrar um acompanhamento uniforme com o violão [Weza, 2007, pp. 52-53].
Arregimentados para dar unidade ao projeto nacional, os músicos precisaram de organizar as pretensas características de originalidade e de autenticidade das suas composições e interpretações, na reformulação do popular enquanto categoria. O caráter de transformação atribuído às manifestações e expressões artísticas populares tinha duas faces, uma popular e outra nacional, que eram propriedades que se contrapunham à essência conservadora atribuída à cultura folclórica colonial. Ação política e práticas artísticas precisavam de convergir em níveis distintos, “[os conflitos do pós-independência] situação que infundia nos músicos sentimentos patrióticos, conquanto tiveram que assumir um papel de sensibilizadores, interpretando canções de cariz político que, de alguma forma, ajudaram a despertar a consciência do povo” (Weza, 2007, p. 135).15
Como parte desta política de nacionalização da cultura, a soberania cultural do Partido foi reativada em várias junções, os clubes foram reabertos como centros de recreação, reativaram-se festivais de música e dança e Angola foi inserida no circuito de festivais culturais nacionais e internacionais dos países socialistas. Inclusive, a notoriedade dos músicos populares foi usada para aumentar o envolvimento das populações urbanas, sobretudo as dos musseques, nas produções e no consumo de bens simbólicos. A título de exemplo, o próprio Estado manteve, para sua disposição, grupos musicais específicos. As iniciativas estabilizaram-se com a criação da Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola (JMPLA) e as suas políticas de inclusão cultural da população jovem, dando musculatura às estratégias de construção da unidade nacional pela mobilização das massas populares urbanas. Ações específicas, como a promoção de competições artísticas para este segmento populacional, proporcionaram encontros entre os jovens talentos oriundos das províncias e das zonas rurais e aqueles residentes nas zonas urbanas centrais, revigorando, paralela e constantemente, as perspetivas de novas filiações e/ou adesões ao Partido e institucionalizando a formação de artistas e público (Moorman, 2008, p. 185).16
A centralidade do uso político da cultura para a realização do projeto político do MPLA era incontestado. As iniciativas descritas estavam dispostas em estreita relação com a sua institucionalização efetiva levada a cabo pelos agentes públicos. A restruturação do Ministério da Cultura foi decisiva para a reorganização da Rádio Nacional de Angola (RNA), responsável pelas gravações dos shows da digressão brasileira, para a reativação da Companhia de Discos de Angola, para a criação do Instituto Nacional do Livro e do Disco (INALD) e, mais tarde, da Empresa Nacional de Disco e Publicação (ENDIPU), além de atribuir ao Departamento de Informação e Propaganda (DIP) a produção de música gravada (s/a, 1980, pp. 42-45).
O Projeto Kalunga pode ser apreendido como um dos efeitos destas medidas de institucionalização das práticas culturais. Como já foi dito, tradição e modernidade reinventaram-se simultaneamente na conformação da identidade nacional angolana pelo MPLA. Selecionados os elementos que lhe atribuíram uma tradição, a sua modernidade também derivou de um processo de internacionalização. A produção e circulação da cultura nacional, marcadas pela dependência do campo político, realizaram certo tipo “internacionalismo instrumentalizado (comunista)” (Sapiro, 2013, p. 77).
Para as ideologias internacionalistas, as expressões culturais nacionais, a sua pertença nacional, não perdem importância. As estratégias de internacionalização, mediadas pelo Kalunga, ganham em termos explicativos e interpretativos, se atentarmos para as relações de força, internas e externas, que engendraram. Sapiro (2013, p. 78) coloca-as nos seguintes termos:
[…] Quanto mais um campo nacional ocupa uma posição dominada no espaço internacional, mais os seus dominantes tenderão a ocupar posições voltadas para o internacional […], e consequentemente, serão capazes de impor em seus países, os modelos importados (em razão do prestígio vinculado ao internacional). Inversamente, quanto mais um campo nacional ocupa uma posição dominante no espaço internacional […] mais seus dominantes se concentrarão na acumulação de capital simbólico no nível nacional - suficiente, ou quase, para lhes assegurar uma visibilidade internacional, em razão da capacidade dos campos dominantes atuarem para além de suas fronteiras.
Contudo, apesar das marcas de heteronomia comuns aos dois campos nacionais, em termos comparativos a forma valorativa de polarização entre centros e periferias é inviabilizada pelo viés internacionalista do Projeto Kalunga. Este manifesta um deslocamento nos padrões de dependência dos dois campos nacionais. Na relação entre eles, para o Brasil, campo nacional dominante no espaço internacional, a travessia transatlântica representou o aumento interno e externo do valor e da excelência dos artistas e da música brasileira. Para Angola, que ocupava a posição dominada no espaço internacional, a internacionalização funcionou como “recurso contra os poderes temporais nacionais, tais como defasagens, estratégias de marginalização e eventuais censuras ligadas aos limites de um campo nacional” (Casanova, 2004, p. 415).
As oposições entre o nacional e o internacional são condições estruturantes das relações intra e extracampo. As assimetrias geradas pelas disputas em torno da acumulação de poder simbólico variam, a depender não só da força económica, mas igualmente da posição do país, do campo nacional, no jogo das relações de força internacionais, muitas vezes para além das suas condições periféricas ou centrais. Ainda que os angolanos tivessem estimulado as condições sociais para o desenvolvimento da produção e da distribuição de bens simbólicos e culturais, as circunstâncias, internas e externas, aprisionavam as iniciativas num regime de escassez que ia desde a inexistência de profissionais especializados até à privação de recursos. A produção de música gravada e ao vivo exprimia as limitações, constatadas durante a recomposição técnica da Companhia de Discos de
Angola é, talvez, dos países africanos cuja música figura entre as menos conhecidas. Durante o tempo de ocupação estrangeira, jogada como ela era para salvaguardar os interesses da política colonial, a canção angolana primava pela alienação em detrimento da qualidade, além de que era fechada entre as fronteiras do país, então ocupado. Hoje, a situação é sobremaneira diferente. Por isso, impõem-se uma alteração especial ao desenvolvimento da nossa música, por conseguinte, à criação de toda infra-estrutura ligada à sua qualidade.[…] a única empresa gravadora atualmente a funcionar é a CDA, [está com atividades paralisadas porque seu maquinário necessita de reparos] os seus responsáveis já providenciaram no sentido de ultrapassar a situação, contratando um técnico italiano (a aparelhagem é italiana) para elaborar um relatório sobre a situação geral da empresa. O técnico veio, o relatório foi feito mas … “está a espera da tradução”! [s/a,, 1980, pp. 42-43].
E acentuava-se o impacto das privações sobre a formação de novos talentos:
[…] A situação dos músicos em Angola como se sabe não é famosa… [sic] […]. Muitos não dispõem, sequer, de uma viola de caixa e os felizes que conseguem adquirir, por outros meios, vêem-se aflitos para encontrar cordas de viola. Segundo informações da Secretaria de Estado de Cultura, estava incluído, nos planos de importação de material de 1978, o pedido de 60 violas de caixa, assim como uma série de instrumentos de sopro, tecla e percussão. Até aqui não temos mais notícias… […] urge cuidar e dinamizar o desenvolvimento da capacidade de criação dos compositores e artistas musicais angolanos, para bem da nossa cultura, da personalidade do Homem Angolano e da recuperação dos valores mais positivos do patrimônio artístico da nossa terra, legado precioso que convém conservar e transmitir com toda fidelidade às gerações vindouras, continuados da Revolução [s/a, 1980, p. 45].
Assim como sobre a efemeridade das condições de realização dos shows ao vivo:
[I Festival Internacional da canção revolucionária] Esta primeira experiência teve de fato algumas falhas. Das mais importantes terá sido a pequena lotação da sala onde decorreu o Festival. No entanto, a experiência colhida foi muito proveitosa. Antonio Cardoso assegurou que no próximo ano “organizaremos um outro espetáculo do gênero devidamente preparado e estudado e com uma maior participação de artistas”. “A inexistência (adiantou) no Conselho Nacional de Cultura de um técnico profissional de som e luz, fez com que se verificassem algumas falhas na montagem da aparelhagem e sonorização da sala de espetáculos. Isto originou que, de vez em quando, surgissem alguns ruídos na aparelhagem assim que abafava a voz do artista. Mas isso são problemas técnicos que nós, neste momento, não temos capacidade de resposta. [s/a, 1978, p. 3].
Ainda assim, forjou-se um tipo de dominação que não se mediu pelo determinismo tantas vezes identificado em relação a centros e a periferias. A dependência simbólica17 de uns relativamente aos outros desfaz qualquer tipo de dualismo valorativo. Há, pelo Estado angolano, uma dependência simbólica no âmbito da formação de sua música popular, quer seja do Brasil (raízes comuns), quer seja dos países socialistas (arte revolucionária). Contudo, esta também existe do Brasil em relação a Angola (raízes comuns e fator de prestígio) e aos países socialistas em relação a Angola (estratégia geopolítica). A discussão seguinte esclarecerá este ponto de vista.
Cultura nacional e cena cosmopolita socialista.
No contexto da Guerra Fria (1947-1989), as digressões internacionais constituíram uma das formas mais elementares de funcionamento das relações internacionais entre os países dos dois blocos, capitalista e socialista. Alguns trabalhos irão mostrar como, por meio das políticas diplomáticas intrablocos, a circulação dos bens simbólicos escapou às perspetivas oficiais e analíticas que aprisionaram os processos de construção dos “panteões culturais nacionais”, onde a música ocupou um lugar de destaque em blocos cerrados.
Francfort (2013), por exemplo, deixa ver como a bipolarização, para pensar as digressões internacionais de música de concerto, não resume os jogos políticos e culturais envolvidos nos atos desta diplomacia cultural, frequentemente associada, direta e exclusivamente, ao risco de deserções de músicos e de artistas. O caso da música de orquestra, dos concursos para definir que virtuoses acederiam ou não às carreiras internacionais, das seleções de programas de concertos, representativos do país e/ou do bloco, a serem executados nas apresentações, constituem exemplos que complexificam a dualidade do dispositivo diplomático global das digressões internacionais. Os exemplos citados pelo autor são variados, menciono apenas dois, mais diretos, que podem auxiliar-me no uso elementar que faço de suas ideias: o triunfo da Orquestra de Leningrado, em 1962, em Nova Iorque, sob a regência do maestro russo Evgeni Mravinski, ou ainda aquele do primeiro concurso Tchaikovsky, em Moscovo, em 1958, cujo prémio foi para o pianista americano Van Cliburn, formado na Julliard School pela pianista bósnia emigrada, Rosina Lhévinne (Francfort, 2013, p. 77).18
O autor avalia que, embora sendo reais os perigos das deserções assimétricas, os músicos eruditos apresentavam uma singularidade frente aos demais trânsfugas. Dizia respeito ao lugar de notoriedade da música nos fenómenos de identificação das culturas nacionais.
Não se trata de negar o peso afetivo da dança ou do xporte, mas trata-se de considerar que a música teve, na cultura do bloco soviético, um lugar particular, em parte fundado sobre a ideia das escolas nacionais. […] a herança de um repertório e de um estilo, as linhas dos compositores e virtuoses vinculadas, de geração à geração, à uma era de ouro, são tanto métodos de identificação, à uma sociedade ou regime, quanto à música [Francfort, 2013, p. 75].
Em síntese, Francfort (2013, p. 86) deseja acentuar a dimensão não redutora da música, o seu papel como instrumento de confrontação entre os blocos, mas igualmente a posição dos músicos, homens e mulheres, mesmo os trânsfugas, na defesa das suas músicas nacionais, muitas vezes recusando, em ambos os blocos, fazer delas um argumento a serviço de um regime político ou de um país.
Sob um prisma semelhante, Popa (2011) argumenta que o exame das circulações transnacionais dos bens simbólicos aponta para novas perspetivas a respeito dos confrontos políticos entre os dois blocos, na medida em que enfrenta empiricamente a crença no encerramento hermético das fronteiras entre os dois campos adversários. Popa detém-se, por exemplo, na categoria geopolítica homogénea e monolítica, “Leste Europeu”, forjada no período. Ratifica a sua tese constatando que a impenetrabilidade das fronteiras não resiste ao exame das conexões, vínculos, autorizados ou não, entre os países socialistas e o mundo ocidental, quando se investiga a circulação de livros e de impressos.
A Guerra Fria cultural, no entanto, não é travada apenas por estratégias frontais. A circulação internacional da escrita, que é um de seus instrumentos, está associada à ideia de confronto, mas também de expansão ou infiltração do campo adversário. Cada um dos dois “blocos” tenta assim não só preservar o seu perímetro, mas também jogar no espaço (inclusive geográfico) de seu adversário. As políticas de tradução postas em prática pelos estados socialistas, por exemplo, promovem a exportação de livros para a Europa Ocidental, que pode ser apoiada por infraestruturas culturais comunistas ocidentais. Atuando desta vez a favor da oposição política, os passeurs divulgam textos proibidos para que possam ser traduzidos no Ocidente. Por outro lado, as remessas de livros também viajam em direção geográfica inversa [Popa, 2011, p. 2].
A inserção de Angola nos circuitos das digressões internacionais terá variações dos casos aludidos, tanto relativas às diferenças temporais, quanto aos estágios de desenvolvimento do seu mercado de bens simbólicos. Todavia, realizará, de modo semelhante, políticas de diplomacia cultural para além do enfrentamento entre adversários situados em campos culturais aparentemente monolíticos. As instituições angolanas que promoveram o desenvolvimento da cultura empenharam-se na inserção da produção cultural, sobretudo da música e do cinema angolanos, num circuito internacional de produção dos países socialistas, como aponta Moorman (2008, p. 177) :“[…] os artistas atuavam num circuito de festivais culturais de esquerda representando uma cultura nacional revolucionária na cena cosmopolita socialista”, cumprindo agendas da diplomacia cultural intrabloco e aumentando as suas redes de trocas, de empréstimos e de colaborações extrabloco, com o Brasil, por exemplo.
As trocas e as transferências entre as culturas renovavam os talentos musicais, quer fosse pelos festivais regionais de música, quer pelas digressões nacionais e internacionais. Ambos animavam o espaço da música popular rural e urbana, além de promoverem as cidades angolanas nos mapas das digressões artísticas internacionais, fortalecendo, de certa forma, a posição do próprio país no âmbito da geopolítica cultural da Guerra Fria.
As digressões acentuavam, pelas artes, nomeadamente pela música, a questão nacional na perspetiva do internacionalismo comunista. A instrumentalização das missões diplomáticas culturais colocava os artistas soviéticos, e aqueles alinhados com o bloco, como propagandistas de uma cultura nacional “aspirando a paz e a liberdade, unindo os povos irmãos” pela virtuosidade dos seus músicos, dançarinos, acrobatas, atletas, etc. Os artistas recebidos eram apresentados da seguinte maneira,
Decorreu em Luanda no cine Karl Marx de 9 à 19 de Dezembro, o I Festival Internacional da Canção Revolucionária, iniciativa do Conselho Nacional de Cultura integrada as celebrações do vigésimo segundo aniversário de fundação do MPLA e primeiro da sua constituição em Partido do Trabalho. O festival trouxe até nosso País dezenas de artistas de países socialistas, da Europa, de África e de movimentos de libertação ainda em luta, como é o caso da SWAPO e FRETILIN. Cançonetistas da URSS, RDA, de Cuba, da Hungria, da Espanha, de Portugal, de S. Tomé e Príncipe, Malgache, de Timor-Leste e da SWAPO em conjunto com alguns artistas angolanos, todos unidos com um só objectivo, apresentaram para todo o Povo de Luanda música de combate, de luta, de apoio solidário e firme aos povos que ainda lutam contra a opressão e a dominação. Mostraram um pouco da cultura dos seus povos, enriquecendo, desta forma, com mais calor e alegria as comemorações do 10 de Dezembro [s/a, 1978, p. 3].
Regina Thoss, por exemplo, segundo a opinião de seu professor de música, a sua voz predestinou-a para a ópera. Ainda mesmo muito jovem ela apresentou-se pela primeira vez em 1966 perante um júri internacional por ocasião do Festival da Canção Ligeira dos países que fazem fronteira com o Mar Báltico em Rostock e ganhou o primeiro lugar. Numerosos prêmios seguiram-se ao seu primeiro êxito. Ela é uma das cantoras da RDA com maior êxito, que ganhou o maior número de prêmios internacionais. Regina Thoss canta música popular e rock, seu repertório é extenso e variado, faz shows para televisão, gravações para rádios e discos. Viajou muito pelo estrangeiro. Ela esteve em todos os países socialistas, no Próximo Oriente, nos Países Baixos, na Áustria, na RFA, em Berlim (Ocidental), na Irlanda e no Japão. Regina Thoss participou do Parlamento Mundial para a Paz em Sófia e desde 1984 é membro do Conselho de Paz da RDA [s/a, 1985, p. 10].
As digressões artísticas soviéticas que passaram por Angola não eram as mesmas “turnês de prestígio”, das orquestras nacionais, trabalhadas por Francfort (2013), mas resistiam nelas a ideia do cosmopolitismo como ideal político e cultural, reforçando os nacionalismos já consolidados e aqueles em formação. O seu internacionalismo era nacional e cosmopolita; as músicas brasileiras e cubanas, por exemplo, acentuavam as raízes comuns, também diaspóricas, que sustentavam a tradição no seu nacionalismo musical; a música apresentada pela notável intérprete alemã referenciava o cosmopolitismo musical, partilhado pela arte política, revolucionária, que unia os povos, de acordo a retórica do Estado angolano.
Cuba teve um papel destacado na realização deste cosmopolitismo, isso em razão da forma encontrada para a realização da dimensão universal da sua cultura. Os movimentos e os deslocamentos transcontinentais dos artistas para Angola, e dos artistas angolanos para fora do país, foram fortemente encorajados pela diplomacia cubana. A ilha, já nos anos de 1960, aparecia como um agente maior no processo de “globalização musical transatlântica”, ao executar uma política de formação de orquestras nacionais pela África Ocidental ( Djebbari, 2015, p. 34). As digressões e as participações, o cooperativismo cubano, em festivais musicais, engendraram uma intensa circulação internacional dos seus artistas e envolveram países direta e indiretamente alinhados com o bloco socialista.19 Aquando da passagem por Luanda de uma das suas mais célebres orquestras, a Sierra Maestra, a virtuosidade dos músicos integrantes deixou o sentimento de que “o contexto cultural cubano está a altura de influir de forma enriquecedora no universal” (s/a, 1986, s/p.).
Em termos comparativos, o exame das digressões musicais permite observar como as estruturas dos dois campos musicais nacionais foram inseridas num espaço transnacional de circulação musical, estruturado por relações de força desiguais que modelaram as formas das trocas e dos empréstimos entre instituições, indivíduos e objetos. Como espaços dinâmicos, cada tradição nacional, mesmo vivendo temporalidades e atuações extraterritoriais distintas, teve as suas estruturas alteradas quando confrontadas com as suas condições de importadores ou exportadores de repertórios culturais (Bourdieu, 1989, pp. 27-28; Sapiro, 2012, p. 217).
As digressões recebidas pelos angolanos, a brasileira ou as dos países socialistas, denotam as dimensões dinâmica e processual das comparações interculturais, implicando uma reelaboração dos padrões, naturalizados, unos, que explicam a existência dos campos musicais circunscrita aos seus perímetros nacionais. Tais dimensões questionam ainda o modelo que as encerra em polarizações do tipo centro e periferias. Vimos que, como periferias, os dois campos nacionais metamorfosearam as suas relações de domínio e de dependência. Pelo Projeto Kalunga, dois espaços nacionais periféricos, marcados pela heteronomia - quer seja das grandes editoras discográficas, como no caso brasileiro, ou pela fragilidade de uma tradição musical recomposta após uma luta anticolonial, quer seja pelo calor das homologias de interesses e de estilos, entendidas como alianças políticas entre os países do bloco socialista - fizeram funcionar “estruturas intermediárias”, “passarelas institucionais” (Popa, 2011), por meio das suas redes de contactos, formais e informais, planeadas e não planeadas, autorizadas e não autorizadas.
Considerações finais
As lembranças fragmentadas de um angolano que assistiu aos shows do Projeto Kalunga em Luanda, revelam os registos da tradição preservada,
Eu não lembro exatamente do Kalunga como um todo, lembro de personagens, Martinho da Vila, Chico Buarque, geralmente figuras que já conhecíamos de muito tempo. Sempre tivemos a música brasileira como uma referência importante. Meus pais, em casa, ouviam música brasileira. Então, ela vindo aqui, por todas as razões históricas que conhecemos, nos trazia a ideia de que somos todos universais, nossa música é universal. Chico cantava a Revolução dos Cravos, Caymmi o mar, nossas afinidades culturais não se resumem ao nosso passado histórico, a língua que falamos. Creio, não sei, era isso que queríamos mostrar naquele momento de construção de uma nova sociedade: queríamos falar juntos de trabalhadores, mulheres, transformação, união. E não foi por acaso que a música de encerramento dos shows do Kalunga foi “[O] Cio da terra”[…] [Entrevista com António Afonso, então Secretário de Estado da Cultura em 02/05/2018, Luanda, Angola].
A música de Milton Nascimento e Chico Buarque, lançada em 1977, fazia menção aos ciclos do trabalho agrário e, metaforicamente, aos da própria reprodução da vida, às propriedades de renovação e dádiva intrínsecas ao cultivo da terra, cuja abundância, objetivamente, é distribuída assimetricamente entre proprietários e lavradores. A relação de desigualdade que marcava a sociedade brasileira e o que vivia Angola em 1980 - as dificuldades de integração da população camponesa, a fragilidade das políticas de desenvolvimento agrário, impostas tanto pelas limitações da guerra civil, quanto pelas políticas para o campo articuladas pela modernização autoritária - expressava-se no encerramento do encontro entre as duas músicas populares, mantendo a coerência com os valores da cultura nacional-popular que as aproximou. A memória guardou as representações de um Brasil que, pela emergência de uma cultura nacional (e popular), “desalienada”, não só negou o lusotropicalismo, como pôs em xeque o mito da democracia racial, tendo em vista que, pelos seus artistas populares e pela poesia crítica das suas canções, materializava-se a forma de resistência às estruturas arcaicas, e persistentes, de exploração do seu povo: encarnadas quer fosse no autoritarismo vigente, nas condições de classe ou racial, quer nas “intervenções estrangeiras” na política, na economia ou na cultura brasileira.20
O país colocou-se como um intermediário no espaço socialista “cosmopolita” de circulação artística. A construção da tradição musical angolana no momento da sua modernização pós-independência evidenciou como, ela mesma, foi produto dos intercâmbios interiores e exteriores ao bloco socialista. Sobre as homologias de interesses e as homologias de estilos que estiveram na base daquilo que deu sentido às receções das obras estrangeiras no campo onde foram acolhidas, agiram infraestruturas de mediações oficiais (pelo partido, pelos agentes do Estado, pelo enfrentamento político entre os blocos ou pelo mercado) e não oficiais (redes clandestinas, afinidades partidárias e/ou alianças ideológicas).
No caso brasileiro, a perspetiva apontada por Ridenti (2010; 2019) contribui de forma original para o exame destas estruturas intermediárias, ajuda a entender a operação social de seleção que deu sentido ao interesse angolano pela música e a artistas populares brasileiros. O Partido Comunista, num primeiro momento, e a indústria cultural, noutro, constituíram duas passarelas institucionais relevantes para o estabelecimento dos intercâmbios culturais. Segundo o autor, em toda América Latina, desde a década de 1930 até aos anos 1970, é significativa a participação de artistas nos partidos comunistas (Ridenti, 2019, p. 205). No Brasil, a inserção partidária deu ao trabalho artístico e intelectual uma importância social privilegiada, graças às redes de sociabilidades comunistas que possibilitavam não só publicar, mas também distribuir as obras de vários autores e artistas, homens e mulheres, oferecendo inclusive uma receção assegurada, por um público cativo consolidado pela influência do Partido.21
Desta maneira, a ação cultural dos comunistas foi fundamental para a consolidação de um campo intelectual e de uma indústria cultural no Brasil, tendo em vista que abriu frentes de trabalho onde muitos deles
[exerceram a] sua influência com o propósito de romper com o subdesenvolvimento e de popularizar a cultura e as artes, expressando a vida das pessoas simples do povo, que deveriam ter acesso a esta produção e colaborar com ela, sempre valorizando as supostas raízes nacionais e populares, em contraposição ao imperialismo cultural dos Estados Unidos [Ridenti, 2019, p. 207].
As análises sobre os vínculos e as conexões entre os dois campos opostos são irredutíveis às suas formas de classificações internas e nacionais. Se os Estados-nação contribuíram para a formação da autonomia relativa destes campos musicais, brasileiro e angolano, organizando minimamente as políticas de produção, distribuição e consumo dos produtos, o Projeto Kalunga deixa ver que as fronteiras geográficas de cada um deles não são fixas, são objetos disputados, por agentes ativos, cujos deslocamentos operaram ampliações e reduções dentro e fora dos espaços nacionais.
A rigor, o nacionalismo pós-colonialista angolano sempre foi internacional, aproximando-se da perspetiva internacionalista comunista, daí também a dificuldade em criar referências que designassem uma identidade nacional, que não poderia ser uma língua, tampouco uma etnia ou uma religião. Ao passo que as referências coloniais foram rechaçadas, recalcadas, tentou-se uma reconstrução da cultura nacional. Neste sentido, a crítica de Sayad (2002) ao nacionalismo argelino pode inspirar uma ponderação ao angolano. Segundo este, em alguma medida, os nacionalistas apagaram o passado colonial do ponto de vista da identidade nacional, mas, ao fazerem isso, mantiveram a presença colonial pela permanência do “mito da nação”, herdado da França, que esteve presente mesmo quando já não havia mais a presença do colonizador (Sayad, 2002, pp. 74-75). Isto ajuda a compreender a relação entre a fragilidade da produção cultural “nacional” angolana como projeto político do MPLA, frente à força “cosmopolita” que movimentou os empreendimentos da sua construção, transformando o seu território num espaço de receção e aclimatação de outros projetos identitários.
Por todas estas razões, o Projeto Kalunga, do ponto de vista heurístico, faz avançar as análises sobre as formações nacionais das músicas populares. Primeiro, porque não admite que o definamos a partir de uma única instância nacional e, depois, porque reuniu marcas de construções identitárias claramente transnacionais, autorizadas pela colonização, pelas lutas de independência e pela alianças políticas internacionais. Sob qualquer ângulo de análise, rompe com um certo “nacionalismo metodológico” que tende a encerrar as escalas e os níveis de observação nos espaços nacionais (Sapiro, Leperlier e Brahimi, 2018, p. 5).
Jornais
REBELO, F. B. (1980), “‘Batendo-o-papo’ com Chico Buarque”. Jornal de Angola, 24 de maio, s/p.
R.N./H.F.M. (1980), “Cinema angolano no Festival de Tshkent”. Jornal de Angola, 24 de maio, p. 3.
s/a. (1978), “I Festival Internacional da Canção Revolucionária”. Jornal de Angola, 27 de dezembro, p. 3.
s/a. (1985), “Novo ‘show’ artístico da caravana dos países socialistas”. Jornal de Angola, 15 de fevereiro, p. 10.
s/a. (1986), “Espetáculo de variedades no Karl Marx com ‘Sierra Maestra’ em evidência”. Jornal de Angola, 18 de abril, s/p.
Entrevistas
Entrevista com António Afonso, Secretário de Estado da Cultura em 02 de maio, Luanda, Angola, 2018.
Entrevista com António Ole, Artista plástico, via Correio-Eletrônico em 03 de julho, 2020.
Filmes
BARTLETT, H. (1971), The Sandpit Generals, EUA.
LARA, F. e LARA, K. (2012), Angola - Nos Trilhos da Independência, Angola.