Introdução
O termo Antropoceno, cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, traduz o papel central da espécie humana na geologia e ecologia, particularmente desde o final do século XVIII - momento a partir do qual os efeitos das atividades humanas no sistema terrestre se tornaram por demais evidentes (Crutzen & Stoermer, 2000). O Antropoceno preconiza, por um lado, que a Terra está a transcender a sua atual época geológica - o Holoceno ; e, por outro, que as atividades humanas são responsáveis por este acontecimento - “a humanidade transformou-se numa força geológica global de pleno direito” (Steffen et al., 2011, p. 843).
Uma das principais propostas de datação do Antropoceno situa a sua emergência por volta de 1800, associado à Revolução Industrial e à invenção da máquina a vapor - que levou à exploração de combustíveis fósseis (Malm & Hornborg, 2014) -, e à emissão de gases com efeito de estufa (GEE) para a atmosfera (como o dióxido de carbono (CO2)). Subsequentemente, a “Grande Aceleração” (1945-2010) - como é designada por Steffen et al. (2007) - caracteriza-se por um aumento demográfico e de consumo em larga escala, em particular no Ocidente (Steffen et al., 2011), redundando na sua crescente carbonização. Atualmente, caracteriza-se por uma viragem reflexiva, traduzindo a preocupação com os impactos humanos no sistema terrestre (Steffen et al., 2007), transformando os humanos em “navegadores” deste sistema, responsáveis por evitar uma catástrofe planetária. Esta viragem manifesta-se em diversos dispositivos governamentais como o Pacto Ecológico Europeu e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, assim como em movimentos sociais que visam a descarbonização das sociedades, promovendo economias circulares, novos hábitos de consumo e formas de produção “verdes”. Muitas das respostas ao Antropoceno enquadram-se na crítica do paradigma do excecionalismo humano, visando a emergência de um novo paradigma ecológico que possa fazer face à crise climática.
Pese embora a relevância que adquiriu nos últimos anos, o Antropoceno não é uma unidade geológica formalmente definida na escala de tempo geológico. Em 2009, foi criado o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno por membros da Sociedade Geológica de Londres e outros especialistas, no âmbito da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, que integra a Comissão Internacional de Estratigrafia. Em 2016, o Grupo de Trabalho recomendou ao Congresso Internacional de Geologia a necessidade de declarar uma nova época geológica. Tal justifica-se, na ótica de Jan Zalasiewicz (Zalasiewicz et al., 2008, p. 7), - responsável pela criação deste grupo -, pela emergência de provas suficientes de uma mudança estratigráfica significativa que fundamentam o reconhecimento do Antropoceno. Esse Grupo de Trabalho propôs o final da década de 1940/início de 1950 como data de início desta época geológica. Contudo, registou-se a necessidade de recolher amostras de sedimentos indicativos de “Golden Spike”, uma marca geológica clara associada ao período da Grande Aceleração, nomeadamente aos combustíveis fósseis e às bombas nucleares (Voosen, 2016).
Apesar de oficialmente ainda nos encontrarmos no Holoceno, o termo Antropoceno tornou-se extremamente popular na academia, assumindo-se como uma metanarrativa que atravessa as ciências naturais e sociais (Blok & Jensen, 2019). À data da redação deste artigo, uma pesquisa pelo termo Anthropocene no Google Scholar gerava mais de 200 mil resultados.
Apesar da sua popularidade, este é um tema bastante controverso. Para além da polémica em torno da sua data de origem - com autores sugerindo que se devia recuar até ao advento da agricultura, há 9500 anos (Lewis & Maslin, 2015) -, uma das críticas mais contundentes prende-se com a forma como o coletivo humano é naturalizado, ignorando diferenças sociais, históricas, políticas e tecnológicas que desresponsabilizam o Norte Global pela crise climática. Malm e Hornborg (2014, p. 3) desenvolvem uma crítica pertinente ao Antropoceno, argumentando que a espécie humana não pode ser desvinculada de contextos históricos e económicos : a modernidade e a tecnologia não são características universais, e vastos segmentos da humanidade, nomeadamente no Sul Global, não beneficiam da economia fóssil.
Essa crítica alude à naturalização da “humanidade” enquanto entidade homogénea. Nesse sentido, universalizar o modo de produção capitalista é ignorar as assimetrias globais geradas pela economia fóssil, levando a repensar o termo Antropoceno e a substituí-lo por Capitaloceno - a era geológica do capitalismo. De acordo com Moore (2016, p. 81), o Capitaloceno reforça a dimensão multiespécies do capitalismo ; ilustra a relação entre fontes de energia, poder e formas de produção capitalistas ; descentra o Antropoceno da humanidade como um todo, atendendo a aspetos como classe, capital, imperialismo e cultura.
O Capitaloceno procura, assim, enquadrar as desigualdades geradas pelo sistema capitalista global e pela emergência da Revolução Industrial do século XVIII, favorecendo uma reflexão crítica acerca das associações entre economia, tecnociência ocidental, alterações climáticas e crise ambiental. Ao contrário do que sucede com o Antropoceno, o termo evita a diluição das responsabilidades pelas alterações climáticas. Porém, ambos os termos têm sido criticados, na medida em que, na ótica dos seus detratores, constituem uma expressão da matriz cartesiana ocidental, que reproduz um dualismo artificial entre humanos e não humanos.
É nesse sentido que Donna Haraway (2016) avança com o termo Chthuluceno, noção relacionada com a Pimoa Cthulhu, uma aranha que vive nas florestas de Redwood de Sonoma e Mendocino, no centro da Califórnia, metaforizando a teia como expressão de uma visão interdependente do mundo. A proposta de Haraway reconhece que “os seres humanos não são os únicos atores importantes” (2016, p. 55), colocando em causa as narrativas humanistas do Antropoceno e Capitaloceno e argumentando que os relatos de catástrofe ambiental - como as alterações climáticas ou a sexta grande extinção - não devem ser dominados apenas pela figura dos humanos. Esta proposta articula-se com a “viragem ontológica” nos estudos de ciência e tecnologia e ciências sociais. A viragem ontológica confere uma maior atenção ao papel da agência não humana nos repertórios metodológicos das ciências sociais (Jensen et al., 2017) e articula-se com os atuais debates sobre o Antropoceno, considerado emblemático para questionar matrizes teóricas e metodológicas humanistas (Haraway, 2016 ; Latour, 2017).
De acordo com Latour, no Antropoceno “a Terra recuperou todas as características de um verdadeiro ator. De facto (…) tornou-se uma vez mais num agente da história, ou melhor, num agente daquilo que propus chamar a nossa Geo-história comum” (2014, p. 3). Segundo esta visão, a crise climática assume-se como um indicador da agência não humana, tornando a Terra num agente da História. Na perspetiva de Jensen e colegas, “temas como as alterações climáticas e o Antropoceno são terrenos de teste particularmente importantes para as ontologias orientadas para o objeto, dado que claramente ilustram o poder das forças não humanas” (2017, p. 534).
A relação entre Antropoceno e ontologia transcende a importância da agência não humana, incluindo a forma como diferentes intervenções - movimentos sociais, tecnologias, políticas públicas - respondem às alterações climáticas. Neste artigo argumentamos que a política ontológica (Mol, 1999) do Antropoceno é heterogénea, envolvendo uma diversidade de práticas, escalas e tecnologias. Nesse sentido, urge colocar as seguintes questões : como é que diferentes práticas, tecnologias, instituições, formas de organização social, escalas e estilos de vida são mobilizados para fazer face aos desafios do Antropoceno, em particular às alterações climáticas ? Quais as disparidades e pontos de contacto entre estes diferentes atores e as respostas ao Antropoceno ? Qual o leque de políticas ontológicas que constituem o Antropoceno ?
Partindo das questões anteriores, este artigo baseia-se em estudos de caso que ilustram múltiplas “respostas” - a nível político, social e tecnológico - para a crise climática. A análise recorre a uma metodologia comparativa, informada por debates teóricos recentes nos estudos de ciência e tecnologia sobre imaginários sociotécnicos, associados a formas coletivas de imaginar o futuro em relação a temas controversos influenciados por desenvolvimentos em ciência e tecnologia (Jasanoff & Kim, 2013). A crise climática suscita, assim, uma proliferação de imaginários que incluem políticas públicas, ligadas ao capitalismo verde, à alteração de padrões de consumo e comportamentos individuais, assim como movimentos sociais, iniciativas de sustentabilidade à escala comunitária e tecnologias emergentes. Os três estudos de caso desenvolvidos neste artigo permitem-nos compreender três respostas emblemáticas para fazer face ao Antropoceno : políticas públicas à escala europeia e nacional ; iniciativas comunitárias de transição para a sustentabilidade ; abordagens tecnológicas para gerir a crise climática.
A secção “Pacto Ecológico Europeu, RNC2050 e PNEC2030” debruça-se sobre mecanismos políticos para responder às alterações climáticas, com especial ênfase no contexto português. A secção “Movimento de Transição” analisa um movimento social de base constituído para combater as alterações climáticas, consistindo numa série de práticas ao nível local que visam a descarbonização da sociedade. Na secção “Geoengenharia” exploramos um conjunto de técnicas controversas de manipulação climática que procuram evitar os efeitos indesejados das alterações climáticas. Concluímos com uma reflexão acerca da heterogeneidade ontológica do Antropoceno e dos desafios que este coloca às ciências sociais.
Pacto Ecológico Europeu, RNC2050 e PNEC2030
Este estudo de caso diz respeito às principais políticas da União Europeia e de Portugal em matéria de ação climática : o Pacto Ecológico Europeu, apresentado pela Comissão Europeia em dezembro de 2019 ; e, à escala nacional, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050) e o Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC2030), aprovados em Conselho de Ministros em julho de 2019 e maio de 2020, respetivamente.
O Pacto Ecológico Europeu assume-se como uma das seis prioridades da Comissão Europeia para o período 2019-2024 e como instrumento fulcral para enfrentar os desafios da recuperação económica pós-COVID-19 e do combate às alterações climáticas. Trata-se de uma nova estratégia de crescimento para atingir a neutralidade climática em 2050, que visa “transformar a UE numa sociedade equitativa e próspera, dotada de uma economia moderna, eficiente na utilização dos recursos e competitiva” (Comissão Europeia, 2019, p. 2), acautelando uma transição “equitativa e inclusiva”. Os seus domínios de intervenção englobam a biodiversidade, os sistemas alimentares, a agricultura sustentável, a energia limpa, a indústria sustentável, a construção e renovação, a mobilidade sustentável, a eliminação da poluição e a ação climática. O Pacto Ecológico Europeu é acompanhado pelo Plano de Investimento para uma Europa Sustentável - que procurará mobilizar, ao longo da próxima década, pelo menos, um bilião de euros em investimentos sustentáveis, públicos e privados - e pelo Mecanismo para uma Transição Justa - cujo propósito passa por antecipar e atenuar as ramificações económicas e sociais desfavoráveis da transição para a neutralidade climática, assegurando um processo justo, inclusivo e socialmente aceite. Segundo Frans Timmermans, Vice-Presidente da Comissão Europeia, “a nossa ambição deve ajudar, não prejudicar, os mais vulneráveis na sociedade. A transição será justa, ou não ocorrerá” (Comissão Europeia, 2020).
O Pacto Ecológico Europeu será ainda enquadrado pela Lei Europeia do Clima - uma proposta de regulamento apresentada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho -, que consagra o objetivo vinculativo de alcançar a neutralidade climática na UE no horizonte 2050 (Artigo 1.º), elevando, assim, esta promessa política a obrigação jurídica. Em setembro de 2020, aquando da divulgação do Plano Meta Climática 2030, a Comissão Europeia introduziu uma emenda à Lei Europeia do Clima, de modo a acomodar a sua nova proposta de redução das emissões de GEE da UE em 55 % (em relação aos níveis de 1990). Tendo em vista alcançar a neutralidade climática até 2050, a Comissão encetará uma revisão de todos os instrumentos de política energética e climática, com o intuito de lançar novas propostas legislativas até junho de 2021.
No caso português, as alterações climáticas são um dos desafios estratégicos identificados pelo Governo para a XIV Legislatura. O Executivo propõe-se “enfrentar as alterações climáticas garantindo uma transição justa” (Governo Português, 2019, p. 56), privilegiando a transição energética, a mobilidade sustentável, a economia circular e a valorização do capital natural. Em 2016, o Governo Português comprometeu-se a alcançar a neutralidade carbónica até 2050, compromisso que se encontra patente nos dois principais dispositivos que nortearão a política energética e climática ao longo das próximas décadas : o RNC 2050, submetido à Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas enquanto Estratégia Nacional de Desenvolvimento a Longo Prazo com Baixas Emissões de GEE, tal como definido pelo Acordo de Paris, e o PNEC 2030, que se enquadra nas obrigações inerentes ao Regulamento da Governação da União da Energia e da Ação Climática.
O RNC2050 identifica trajetórias possíveis para atingir a neutralidade carbónica em 2050, estimando o potencial de redução de emissões dos diversos setores económicos em diferentes cenários socioeconómicos. São perspetivadas reduções de emissões de GEE entre -45 % e -55 % em 2030, entre -65 % e -75 % em 2040 e, finalmente, entre 85 % e 90 % até 2050 (tendo 2005 como ano de referência). O objetivo da neutralidade carbónica, tal como é preconizado pelo RNC2050, deverá ser concretizado
mediante uma transição socialmente justa e eficiente em termos de custos, reforçando a competitividade da economia nacional, promovendo a criação de postos de trabalho e potenciando cobenefícios associados em particular à qualidade do ar e saúde humana. Esta transição deve ser também um fator de valorização do território e um contributo para a coesão nacional (Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050), 2019, p. 12).
O RNC2050 coloca particular ênfase na transição energética, que assentará, em boa medida, na descarbonização do setor electroprodutor - substituindo os combustíveis fósseis por recursos endógenos renováveis -, na eletrificação da economia, na eficiência energética e na progressiva descentralização e democratização da produção de energia.
O PNEC2030, por seu turno, abarca a primeira etapa do processo de transição para a neutralidade carbónica, a década 2021-2030, que será, segundo o Governo, a mais exigente e decisiva. Contrariamente ao que sucede com o RNC2050, este documento estabelece objetivos, políticas e medidas concretas e vinculativas. O PNEC 2030 determina os contributos nacionais para a execução das metas europeias em matéria de redução das emissões de GEE, energias renováveis, eficiência energética, segurança energética, mercado interno e investigação, inovação e competitividade. A visão estratégica consiste em
promover a descarbonização da economia e a transição energética visando a neutralidade carbónica em 2050, enquanto oportunidade para o país, assente num modelo democrático e justo de coesão territorial que potencie a geração de riqueza e uso eficiente de recursos (Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030), 2019, p. 9).
Esta visão traduz-se em oito objetivos gerais para o horizonte 2030 : 1) descarbonizar a economia nacional ; 2) priorizar a eficiência energética ; 3) reforçar a aposta nas energias renováveis e reduzir a dependência energética do país ; 4) garantir a segurança do abastecimento energético ; 5) promover a mobilidade sustentável ; 6) promover uma agricultura e uma floresta sustentáveis e potenciar o sequestro de carbono ; 7) desenvolver uma indústria inovadora e competitiva ; 8) garantir uma transição justa, democrática e coesa.
Todavia, é imperativo assinalar que estes instrumentos políticos top-down surgem na sequência de 30 anos de negociações internacionais falhadas e de acordos e compromissos (não vinculativos) sucessivamente esvaziados pelos Estados do Norte Global - desde a Conferência do Rio, em 1992, culminando no Acordo de Paris e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, adotados em 2015. Assim, perante este adiamento de três décadas no combate às alterações climáticas, as metas assumidas no seio da UE não só pecam por tardias, como poderão revelar-se insuficientes num cenário de emergência climática. Ademais, a Comissão Europeia, ao procurar inscrever a aliança entre crescimento económico e ação climática no Pacto Ecológico - numa conjugação de otimismo tecnológico e economia circular -, não questiona os princípios do sistema económico capitalista, contribuindo, porventura, para a sua reconfiguração e reprodução, sob a forma de capitalismo verde.
Retomando a crítica de Moore (2016) e a proposta de Capitaloceno, é nesta contradição do sistema capitalista - a acumulação infinita de riqueza num planeta com recursos limitados - que radica a crise climática. Verifica-se, pois, que a estratégia de longo prazo da União Europeia, bem como as políticas portuguesas sobre ação climática, não podem ser dissociadas do modelo socioeconómico hegemónico em que se enquadram.
Movimento de Transição
O Movimento de Transição (MT) é um movimento social que visa enfrentar os desafios das alterações climáticas através da transição para sociedades de baixo carbono. O MT foi fundado por Rob Hopkins (2005) e teve início em Kinsale, Irlanda, através da criação de um plano para reduzir a dependência de combustíveis fósseis daquela cidade. Em 2006, procedeu-se ao lançamento oficial do Transition Town Totnes (com mais de 400 participantes na Câmara Municipal de Totnes, Reino Unido). Em 2007 foi organizado o primeiro curso de Transição em Totnes e, desde então, estas iniciativas têm-se disseminado um pouco por todo o mundo, principalmente na Europa e na América do Norte. O principal foco do MT é criar um modelo de sociedade não dependente de combustíveis fósseis, almejando a transição para comunidades de baixo carbono que respondam aos desafios das alterações climáticas (e também, inicialmente, do pico petrolífero).
O MT assenta em três princípios : localização, resiliência e permacultura. A localização está relacionada com a capacidade de produzir localmente produtos como fruta, vegetais, madeira, materiais de construção, etc. No que diz respeito à resiliência, esta engloba vários níveis, como sociedades, ecossistemas, comunidades e indivíduos, e o objetivo é dotar os/as participantes de ferramentas necessárias para se adaptarem à transição para sociedades de baixo carbono (Hopkins, 2011, p. 44). O terceiro princípio consiste na permacultura, a base ética e filosófica do MT :
A permacultura é o desenho e manutenção consciente dos sistemas de produção agrícola que têm a diversidade, estabilidade e resiliência dos ecossistemas naturais. É a integração harmoniosa da paisagem com as pessoas, providenciando-lhes comida, energia, abrigo e outras necessidades materiais e não materiais de uma forma sustentável (Mollison, 1990, p. ix).
O MT recorre a várias práticas de sustentabilidade à escala local para favorecer a transição para sociedades resilientes e de baixo carbono, enfatizando a importância da comunidade, sobretudo ao nível da alteração de estilos de vida (Aiken, 2017). As iniciativas implementadas abarcam um conjunto de práticas e eventos, nomeadamente : hortas urbanas e comunitárias ; partilha de sementes, de transportes e de alimentos ; diretório de alimentos produzidos localmente ; caminhadas ecológicas ; ligação com governos locais ; palestras para consciencialização sobre alterações climáticas e pico petrolífero ; atividades de “transição interior”.
A iniciativa mais emblemática do MT realizou-se na vila de Totnes, que serviu de incubadora das experiências de Transição. Uma das ações consistiu na auditoria de vulnerabilidade de petróleo e traduziu-se na monitorização do modo como as empresas utilizam o petróleo (combustível, lubrificantes, transportes), permitindo identificar onde é utilizado, assim como o conjunto de debilidades caso o preço deste combustível suba. Outras iniciativas incluíram a plantação de árvores na vila, a criação de um diretório de alimentos locais, a implementação de uma moeda local - a libra de Totnes -, a partilha de estórias de transição (envolvendo a imaginação e contos voltados para o futuro), bem como a constituição de grupos domésticos (para apoio mútuo a ambientalistas), no âmbito do que se designa “transição interior”.
O MT desenvolveu uma visão para 2030 que cristaliza os seus imaginários futuros, envolvendo uma série de transformações em setores como alimentação e agricultura, medicina e saúde, educação, economia, transportes, energia e habitação. Ao nível da alimentação e agricultura, regista-se a reintrodução de cavalos e de maquinaria a biodiesel produzido localmente, assim como a prioridade concedida à agricultura urbana. No que diz respeito à economia, há um enfoque na criação de moedas locais ; já na energia, apresenta-se um programa robusto de eficiência energética para reduzir o consumo doméstico em 60 %, graças à introdução de painéis solares e turbinas eólicas.
O MT é um exemplo emblemático de “participação material” (Marres, 2012), já que determinadas práticas e artefactos contribuem para a resolução de problemas de ordem ambiental, “incorporando” visões éticas e políticas sobre o tipo de sociedade ambicionada. Este movimento é também caracterizado por uma forte dimensão micropolítica, valorizando a agência individual e comunitária (incluindo o papel da alimentação, do corpo e das escolhas de consumo) e promovendo uma localização - e internalização - das respostas às alterações climáticas.
Se, por um lado, o MT tem sido criticado por mobilizar a participação de indivíduos brancos, com elevada escolaridade, oriundos da classe média, que incorporam as práticas de transição enquanto dispositivos de virtude ética, por outro, também se tem reconhecido o seu contributo para atingir os objetivos de descarbonização através do envolvimento público.
Geoengenharia
O terceiro estudo de caso diz respeito à geoengenharia, entendida como a “manipulação deliberada em larga escala do ambiente planetário”, visando “combater as alterações climáticas antropogénicas” (Royal Society, 2009, p. 1) e “separar o clima das emissões cumulativas de dióxido de carbono emitidas pelas atividades humanas” (Morton, 2015, p. 24). Trata-se de uma solução de tipo futurista, que tem sido alvo de críticas e avisos provenientes de diversos quadrantes. Mesmo os defensores da investigação sobre geoengenharia são cautelosos (por exemplo, Keith (2000) e MacMartin et al. (2018)), encarando-a sobretudo como um plano de contingência e uma opção de último recurso, em virtude dos riscos, dilemas éticos e desafios sociais e políticos associados. Nas ciências sociais e nas humanidades, a geoengenharia é frequentemente apontada como solução a evitar não só devido a potenciais impactos ao nível da saúde, mas também por promover uma comodificação da atmosfera.
Ao invés de se focar nos processos de mitigação - levando a cabo alterações socioeconómicas para evitar a emissão de CO2 -, a geoengenharia é uma resposta tecnológica para resolver os problemas climáticos. O objetivo é “limitar o impacto climático de emissões industriais de CO2 através de medidas como a construção de escudos solares no espaço” (Keith, 2001, p. 420). De acordo com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sua sigla em inglês), existem duas formas emblemáticas de geoengenharia : a Gestão da Radiação Solar (SRM, na sua sigla em inglês) e a Remoção de Dióxido de Carbono (CDR, na sua sigla em inglês). A SRM procura atenuar as alterações climáticas através da injeção artificial de aerossóis estratosféricos, ou do embranquecimento de nuvens. No que diz respeito à CDR, o objetivo é remover diretamente o CO2 da atmosfera, aumentando a capacidade natural de armazenamento de carbono do oceano - e da terra -, ou recorrendo à engenharia química, reduzindo a sua concentração (IPCC, 2011).
Num controverso editorial publicado em 2006, Paul Crutzen afirmava que o incremento artificial do albedo da Terra (provocando um arrefecimento do clima), através da injeção de aerossóis na estratosfera, poderia ser uma solução viável, embora não ideal, para superar a incapacidade de reduzir as emissões de GEE a nível mundial (Crutzen, 2006, p. 212). Como as tentativas para reduzir as emissões de CO2 têm falhado, poderia considerar-se a possibilidade de introduzir estes aerossóis de dióxido de enxofre na estratosfera através de balões ou de artilharia. De acordo com Crutzen, este processo seria relativamente barato (entre 25 e 50 mil milhões de USD), mas com potenciais efeitos (ambientais, de saúde) indesejados. Longe de gerar consenso na comunidade científica, o polémico artigo do Nobel da Química instigou, tal como era sua intenção, a discussão em torno da geoengenharia (Crutzen, 2006, p. 217).
O impacto institucional e político das propostas de geoengenharia não deve ser descurado. A título de exemplo, em 2009, a Royal Society, do Reino Unido, produziu um relatório onde se ponderam possibilidades e eventuais implicações do recurso à geoengenharia. Do ponto de vista técnico, o documento admite ser este um recurso exequível, reconhecendo o fracasso global na mitigação das alterações climáticas, dada a inexistência de uma ação social e política robusta. De acordo com o relatório, “os métodos de geoengenharia podem providenciar um complemento útil à mitigação e adaptação caso se demonstre que são seguros e economicamente viáveis” (Royal Society, 2009, p. 57).
Para o IPCC, no entanto, existem critérios que devem ser acautelados na avaliação de opções de geoengenharia : eficiência ; exequibilidade ; escala ; sustentabilidade ; riscos ambientais ; custos ; deteção ; desafios para a governação ; aspetos éticos ; aceitação social ; e incerteza em relação aos critérios anteriores (Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), 2011). De acordo com um relatório especial publicado em 2018 (IPCC, 2018), a maioria das opções de CDR registam muitas limitações de execução, embora variáveis, condicionando o potencial recurso a uma única opção para se atingir o objetivo de redução da temperatura média global em 1,5 ºC. Também as incertezas em torno da SRM colocam em causa a sua eventual utilização. Alguns dos possíveis efeitos nefastos da geoengenharia incluem : impactos no clima regional ; redução da camada de ozono ; acidificação dos oceanos ; eventualidade de erro humano ; e uso militar da tecnologia (Robock, 2008). Em relação à sua aplicação, desde 2018 que existe um projeto, desenvolvido pela universidade de Harvard, intitulado Stratospheric Controlled Perturbation Experience (SCoPEx), dedicado a preparar experiências de tecnologias de gestão de radiação solar com recurso a carbonato de cálcio disperso na estratosfera (Grieger et al., 2019).
A geoengenharia tem sido criticada enquanto solução tecnológica, já que suscita sérias preocupações éticas e políticas (Szerszynski et al., 2013) por mascarar as contradições da ecomodernização capitalista (Swyngedouw & Ernstson, 2018), tendo, por isso, gerado vários exercícios de envolvimento público. Estes exercícios, levados a cabo maioritariamente no Norte Global, indicam que, para além do desconhecimento público em relação a estas técnicas, a geoengenharia está associada a imaginários de risco e é frequentemente apontada como último recurso para gerir a crise climática ; segundo estes críticos, deverá ser dada preferência à implementação de outras soluções, como a alteração de comportamentos individuais ou do paradigma socioeconómico (Bellamy et al., 2016 ; Buck, 2018 ; Cox et al., 2020). Neste sentido, a partir das ciências sociais, a geoengenharia tem sido criticada pelo seu cariz hipermoderno, que reforça o excecionalismo humano. Já os exercícios de envolvimento público sugerem que a sua aceitação é bastante reduzida.
Modelo de resposta à crise climática | Instrumentos | Características |
---|---|---|
Políticas Públicas | Pacto Ecológico Europeu ; Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC 2050) ; Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030). | Políticas top-down; Neutralidade carbónica ; Capitalismo verde. |
Movimento de Transição | Permacultura ; Moedas locais ; Auditorias de vulnerabilidade petrolífera ; Hortas urbanas e comunitárias ; Consciencialização sobre alterações climáticas ; Transição interior. | Resposta comunitária ; “Faça-você-mesmo” ; Pequenas ações à escala local ; Democracia direta. |
Geoengenharia | Gestão de Radiação Solar (SRM) ; Remoção de Dióxido de Carbono (CDR). | Hipermodernidade ; Reforço do excecionalismo humano ; Incertezas, riscos e potenciais efeitos indesejáveis. |
Conclusão
Os estudos de caso analisados neste artigo indicam que as respostas ao Antropoceno se caracterizam por uma heterogeneidade ontológica. O Antropoceno é diverso e sujeito a controvérsias, confrontando-nos com múltiplos atores, práticas e tecnologias. A política ontológica destas intervenções inclui : respostas tecnocráticas e políticas do tipo top-down (como o Pacto Ecológico Europeu, ou o RNC 2050 a nível nacional) ; a tecnociência Prometeica (com práticas de geoengenharia) ; abordagens filosóficas associadas à permacultura ; movimentos sociais de base comunitária como o MT (e, mais recentemente, movimentos de protesto como o Fridays for Future e o Extinction Rebellion).
Estes exemplos revelam que o Antropoceno opera a diversas escalas - globais, continentais, nacionais, locais - e também ao nível da própria atmosfera. O Antropoceno coloca-nos perante uma série de temporalidades e visões do futuro, implicando visões da história - e do tempo geológico -, e assumindo-se como motor para a produção de imaginários sobre como as sociedades vindouras se devem (re)organizar face às alterações climáticas. Esta heterogeneidade de imaginários está presente no caso do RNC2050, do MT e da geoengenharia.
A heterogeneidade de respostas ao Antropoceno sugere, assim, que esta narrativa não implica um consenso político em relação às práticas e ações necessárias para responder à crise climática. Uma vez que nos encontramos perante uma miríade de intervenções e de opções políticas, o argumento de que as alterações climáticas favorecem uma transição “pós-política” (Aiken, 2017), associada a consensos técnicos e científicos, pode ser questionado através da multiplicidade ontológica subjacente aos estudos de caso explorados neste artigo.
Finalmente, um dos desafios a que as ciências sociais terão de responder prende-se com a dificuldade em identificar - e envolver - os stakeholders no combate às alterações climáticas. Entre cientistas, líderes políticos e sociedade civil, é crescente a preocupação em expandir os procedimentos de deliberação para além do humano (Latour, 2017), o que exige uma reconfiguração do repertório metodológico das ciências sociais. Este processo requer uma articulação mais robusta com a arte e a subjetividade, permitindo às ciências sociais adaptarem-se aos desafios políticos e ontológicos do Antropoceno, recorrendo a novas metodologias que tenham em consideração a diversidade de públicos desta potencial época geológica, incluindo os não humanos.