A pandemia da COVID-19, doença causada pelo Sars-CoV-2, nos anos de 2020 e 2021, registou mais de 760 milhões de casos e produziu um excesso de mortalidade ao atingir 14,9 milhões de pessoas globalmente (intervalo de 13,3 a 16,6 milhões). Por excesso de mortalidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a diferença entre o número de mortes que ocorreram por causas diretas ou indiretas, e o número esperado na ausência da pandemia com base em dados anteriores. A queda, nos casos de hospitalizações e morte, só foi possível com o aumento nos índices de pessoas imunizadas globalmente, o que levou a OMS a encerrar o período pandémico em 05 de maio de 2023 (WHO, 2023a).
Entre os 4,4 milhões de mortes por COVID-19 notificadas na base de dados Max Planck Institute for Demographic Research (MPIDR) COVerAGE, 0,4% (> 17.400) ocorreram em pessoas com idade inferior a 20 anos; 53% entre adolescentes dos 10 aos 19 anos e 47% entre crianças de 0 aos 9 anos. Estes dados indicam que o impacto direto da COVID-19 na mortalidade infanto-juvenil foi limitado. No entanto, há uma preocupação com os efeitos substanciais que a pandemia causou indiretamente sobre a mortalidade. Estes efeitos devem-se especialmente, à sobrecarga dos sistemas de saúde, à queda na rendimento familiar causada pelo desemprego e às dificuldades de acesso aos cuidados de saúde e vacinação (UNICEF, 2023).
A OMS usa a vacina contra difteria, tétano e coqueluche (DTP) como indicador global de cobertura vacinal. Dos 20,5 milhões de crianças que perderam uma ou mais doses da DTP em 2022, 14,3 milhões não receberam nenhuma dose, conhecidas como crianças zero-dose. Trata-se de um número melhor quando comparado aos 18,1 milhões de crianças zero-dose em 2021, e os 12,9 milhões em 2019 (WHO, 2023b).
Segundo o Diretor-geral da OMS Doutor Tedros Ghebreyesus “esses dados são encorajadores e um tributo àqueles que trabalharam tão arduamente para restaurar os serviços de imunização que salvam vidas após dois anos de declínio na cobertura de imunização” (WHO, 2023b)
As palavras do Doutor Tedros permitem-nos refletir sobre o papel da enfermagem na vacinação infantil no período pós-pandemia da COVID-19, uma das categorias profissionais com maior atuação nesta estratégia de promoção da saúde, para o combate de doenças, em todo o mundo.
Contudo, os efeitos do período pós-pandémico impactaram muitas áreas, entre elas a cobertura vacinal na infância. Destaca-se que no ano de 2019, anterior às interrupções provocadas pela pandemia, 18,4 milhões de crianças deixaram de receber imunizantes; em 2021, 24,4 milhões e 2022 mais de 20,5 milhões de crianças ficaram sem proteção vacinal para as imunizações rotineiras. (WHO, 2023a, UNICEF, 2023, WHO, 2023b). A recuperação lenta desta cobertura anuncia a necessidade contínua de aumentar todos os esforços possíveis na recuperação, atualização e fortalecimento do sistema de saúde para melhorar o acesso das crianças aos serviços de saúde.
Dados da Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), de 2022, apontam uma cobertura vacinal infantil para sarampo de 80,7% e para DTP, de 77,2%, no Brasil. Um país com sistema universal de saúde cujo Programa Nacional de Imunização fornece imunizantes sem nenhum custo adicional e com uma ampla rede de oferta de serviços em todo território nacional. Portugal, com o sistema de saúde também universal, apresenta, respetivamente, uma cobertura de 98% e 99% (OECD, 2023).
Entre os que trabalharam e têm trabalhado na linha de frente, destacam-se os profissionais de enfermagem no desenvolvimento de ações ancoradas em conhecimentos gerados pelo avanço da ciência e da melhoria progressiva da formação de enfermagem, impactando a adesão à vacinação. Os profissionais de enfermagem têm ampliado a sua participação nos serviços de vacinação, para além da dimensão técnica da aplicação de imunizantes.
A análise do International Council of Nursing (Bajnok et al., & International Council of Nurse, 2018), baseado em dados da OECD, sobre o grau de preparação da enfermagem na vacinação em 15 países, revelou: a) o engajamento desses profissionais na disponibilização de informações baseadas em evidências científicas; b) na educação em saúde e no aconselhamento sobre vacinação, podendo aumentar a consciência pública sobre os benefícios, riscos, e mitos comuns sobre as vacinas; c) que participam de comissões consultivas de imunização; d) que atuam no levantamento da cobertura vacinal por meio da vigilância e lembretes sobre a vacinação e a validade dos imunizantes; d) que realizam a busca ativa de pessoas; e) atuam na administração de vacinas; e, f) na prescrição de vacinas.
Neste sentido, a esse conjunto de ações realizadas para a população em geral, somam-se aqueles adicionais, direcionados a população infantil, com destaque para a busca ativa de crianças faltosas e com zero doses; a visita domiciliar para a vacinação em loco daquelas em internamento domiciliar; a vigilância epidemiológica restrita; a educação em saúde no combate à desinformação, a hesitação vacinal; nas campanhas públicas de esclarecimentos a população sobre falsas notícias que circulam em mídias sociais; e o desenvolvimento de novos estudos e pesquisas científicas (Garett &Young, 2021; Peters, 2022; Russell, 2021).
Por exemplo, a problemática da recusa ou hesitação vacinal levou à proposição de um novo diagnóstico de enfermagem (Puche-Louzán & Cantero-González, 2023), baseado na taxonomia da North America Diagnoses Association - a NANDA II, sob a denominação de Risk of refusal of vaccination or Riesgo de negativa a la vacunación. O desenvolvimento de validação de infografia animada sobre o processo de enfermagem aplicado no levantamento de temas direcionam para a educação em saúde. (Ferreira et al., 2023; Puche-Louzán & Cantero-González, 2023,)
Todavia, existem alertas sobre profissionais de enfermagem que optaram pelo lado errado da história da vacinação, pelo ceticismo ou por participar em práticas antiéticas e negacionistas da ciência, como por exemplo, ao minimizar o risco da COVID-19 e incentivar a recusa da vacina. (Leung et al., 2022, Kelly & Jackson, 2022).
Os profissionais de enfermagem convivem com a necessidade de manter o equilíbrio ético entre o respeito, as crenças e os direitos das famílias em decidir sobre os cuidados de saúde das suas crianças e a garantia da saúde da comunidade. Por conseguinte, os familiares das crianças esforçam-se em compreender as informações, por vezes falsas e contraditórias que circulam nos meios de comunicação sobre a segurança das vacinas para os seus filhos. Os enfermeiros podem ajudar na promoção do agenciamento moral, fornecendo informações sólidas, explicando a fonte da desinformação e criando um diálogo que considere a importância da autonomia individual e da saúde da comunidade (Dinkins, Sorrell, 2021).
Neste sentido, a superação de posturas profissionais antiéticas em tempos de pós-verdade, de notícias falsas sobre a vacinação, exige dos profissionais de enfermagem o desenvolvimento de competências políticas e não somente competências técnicas. É preciso advogar em favor da equidade e da justiça social, contribuindo com a capacitação da comunidade para recuperar indicadores de vacinação infantil e a confiança na enfermagem como profissão que exerce um papel fundamental na linha de frente da cobertura vacinal.