1. Introdução
Em 1994, mais de 800.000 pessoas foram massacradas em Ruanda, a maioria delas pertencente à minoria Tutsi. Em cem dias, centenas de milhares de pessoas perderam a vida diante da inação e da indiferença da comunidade internacional. O genocídio de Ruanda foi tema de uma infinidade de matérias na imprensa internacional, além de reportagens especiais e documentários. Anos depois do massacre, o jornalista Jean Hatzfeld publicou vários livros sobre o tema.
Existe ainda uma literatura ficcional africana sobre o genocídio de Ruanda, que foi também tema de várias bandas desenhadas, das quais se referem dois exemplos: La fantaisie des Dieux, de Patrick de Saint-Exupéry e Hippolyte (2014) e Le Grand Voyage d’Alice, de Gaspard Talmasse (2021). Na primeira BD, tem-se uma visão crítica da Operação Turquesa por um jornalista que esteve em Ruanda durante o genocídio; e, na segunda, o autor e desenhista belga inspira-se nas memórias de sua esposa, sobrevivente da guerra civil em Ruanda e refugiada no então Zaire (atual RDC), para abordar o drama de pessoas durante e após o genocídio de 1994. Trata-se da história de uma menina errante desde o início do genocídio até o seu retorno ao país natal três anos depois. Le Grand Voyage d’Alice ganhou um prêmio da organização internacional Médicos Sem Fronteiras. Baseada na vida real, esta BD é um dever de memória e uma homenagem àquelas crianças que não voltaram ou que nunca mais reencontraram seus pais ou alguém mais de suas famílias.
O genocídio foi ainda abordado em relatos de homens (Rurangwa 2005; Rutagarama 2013) e de mulheres (Mukagasana 2001; Mukasonga 2017a). Sobreviventes mulheres deram o seu testemunho a jornalistas como Jean Hatzfeld e Michaël Sztanke ou a médicos/as em missão humanitária como Annie Faure. Em Kigali, além do memorial do genocídio, tem-se o arquivo do genocídio de Ruanda que reúne milhares de fotografias. Como pontuou Sontag:
Entre esses arquivos do horror, as fotos de genocídio alcançaram o maior desenvolvimento institucional. O motivo para criar repositórios públicos para essas e outras relíquias é assegurar que os crimes retratados pelas fotos continuem presentes na consciência das pessoas. (Sontag 2003, 73-74)
O arquivo do genocídio em Ruanda tem ainda materiais de vídeos, áudios e documentos outros. Muito desse material está acessível online (Genocide Archive of Rwanda 2022). Destacam-se, entre outros depoimentos, os das testemunhas mulheres, uma vez que muitas delas foram vítimas de crimes conexos ao último genocídio do século XX.
Quase 30 anos depois do genocídio em Ruanda, alguns silêncios permanecem, notadamente de mulheres sobreviventes. O filme documentário Le silence des mots [O silêncio das palavras], do jornalista francês Michaël Sztanke e do escritor franco-ruandês Gaël Faye, em coprodução da ARTE TV, trata da violência sexual contra mulheres à sombra do genocídio em Ruanda entre abril e julho de 1994 (Sztanke e Faye 2022). Este filme documentário permite abordar o dever de memória das novas gerações sobre crimes como a violência sexual em contexto de guerra civil. A partir de um corpus documental heteróclito (matérias da imprensa internacional, entrevistas, novelas, memórias, bandas desenhadas, filmes, fotografias e relatórios), aborda-se o tema da violência sexual contra mulheres no continente africano numa perspectiva histórica a fim de fornecer elementos para uma compreensão das violências, da solidão e do silêncio das mulheres sobre esta questão.
Ainda à guisa de introdução, cabe um par de advertências. O presente artigo não teve nenhuma pretensão de teorizar a partir do sofrimento de mulheres violentadas. Assim como observou Susan Sontag (2003) sobre a obscenidade ou a indecência do olhar diante da dor dos outros, uma análise sobre o estupro com o fito de “teorizar” corre o risco de reificar as vítimas. O corpus documental é composto em sua maioria por relatos de testemunhas. Esses relatos se encontram na literatura africana, mas também em filmes documentários.
A partir de vários materiais de pesquisa, fez-se um bricolage com fragmentos de vidas. A autoria não se encontra numa teoria prêt-à-porter aplicada a um número de casos, mas na montagem textual de fragmentos de relatos de experiências de vida em torno da violência sexual. Espera-se que o material compartilhado e as reflexões muito preliminares possam inspirar uma reflexão mais densa sobre os pontos desenvolvidos adiante. Por fim, para evitar o risco da amálgama ou homogeneização das realidades africanas, preferiu-se elencar referências factuais em vez de remeter ao contexto geral de cada exemplo.
2. Imagens e reminiscências da violência sexual
Algumas mulheres africanas escreveram sobre a violência sexual a partir de suas próprias experiências ou de suas mães e irmãs ou companheiras de infortúnio. Vários relatos femininos apontam para o estupro como arma de guerra. Algumas memórias indicam outros usos políticos do sexo como a narrativa da liberiana Leymah Gbowee, prêmio Nobel da Paz (2011), que participou juntamente com outras Lisístratas africanas de protestos contra o governo do ditador Charles Taylor.
O estupro de mulheres em contexto de guerra civil também fez parte das memórias de Ayaan Hirsi Ali. Ela lograra deixar Mogadíscio antes da chegada dos milicianos hawiye que sitiaram o palácio de Siad Barré no início de 1991. “Havia estupros e assassinatos por toda parte”, relatou Mahamuud recém-chegado em Nairóbi (Ali 2012, 142). Anos depois, o genocídio em Ruanda duraria três meses, período em que os estupros individuais ou coletivos foram constantes. Adalbert Muzingura relatou o seguinte:
Havia duas categorias de estupradores. Os que pegavam as garotas e as usavam como mulheres até o fim, às vezes até na fuga para o Congo. Aproveitavam-se dessa situação para dormir com umas tutsis bonitonas, mas em troca demonstravam-lhes um pinguinho de consideração. E os que as agarravam para fazer sexo só para se divertir enquanto bebiam. Violentavam-nas por um tempinho e logo depois as entregavam para ser mortas. Não havia nenhuma recomendação das autoridades, as duas categorias tinham liberdade de fazer o que quisessem. (Hatzfeld 2005, 112)
Saquear e estuprar vieram de par durante o genocídio de Ruanda. Jean Hatzfeld (2005, 101) recolheu alguns relatos de homens como Alphonse Hitiyaremye, que informou que “havia matadores que se apropriavam das moças nos charcos; isso os contentava e os levava a esquecer as pilhagens”. Também Élie Mizinge informou que os jovens traziam moças dos pântanos para fazer sexo atrás de uma cerca ou atrás de um matagal. Mas quando já estavam saciados ou quando suspeitavam alguma coisa, davam cabo delas para evitar problemas e “os castigos graves”. Por seu turno, Léopord Twagirayezu afirmou que “havia sessões de estupro de moças nos matagais” (Hatzfeld 2005, 111-112).
Desde o início da década de 1990, tem-se registro de abusos sexuais cometidos pelas forças armadas ruandesas, segundo o relatório Duclert (2021, 227). A médica humanitarista Annie Faure (1995, 87) também relatou os primeiros estupros coletivos de mulheres tutsis por soldados portadores do vírus HIV desde 1990. Segundo as reminiscências do sobrevivente Eugène Rutagarama, as suas primeiras lembranças de estupro de mulheres tutsis por homens hutus remonta à sua infância na década de 1960, quando a sua mãe saia com seu bebê nas costas e acompanhada pelo seu filho primogênito de 14 anos para se proteger contra eventual violo.
Ela jamais falou disso. Mas ainda hoje, eu não tenho certeza de que esta precaução foi suficiente. Os estupros são um tema do qual a gente não fala. A gente pode apenas constatar que muitas mulheres cujos maridos foram mortos nos massacres de 1964 tiveram bebês logo depois1. (Rutagarama 2013, 44)
Uma das consequências dos estupros durante o genocídio em Ruanda foi um número expressivo de crianças rejeitadas pelas mães e/ou outros sobreviventes, sejam eles familiares ou vizinhos. As estimativas de crianças “não-desejadas” nascidas nos meses seguintes ao genocídio em Ruanda oscilam entre 2.000 e 5.000 (Nowrojee 2005, 11). O filme documentário Die Kinder des Genozids, de Ivo Brandau e Markus Schmidt (2009), aborda o destino de crianças nascidas dos estupros que ocorreram durante o genocídio. Para a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga (2017, 153), em 1994, “o estupro foi uma das armas usadas pelo genocídio”. Mas nem todos os estupros nesse período em Ruanda foram realizados como arma de guerra e tiveram como protagonistas homens da maioria Hutu.
3. O silêncio das palavras
O filme documentário Le silence des mots (Sztanke e Faye 2022) logrou liberar a palavra de Concessa Musabyimana, Marie-Jeanne Muraketete e Prisca Mushimiyimana diante de uma câmera. Essas três mulheres teriam sido estupradas por soldados franceses da Operação Turquesa. Nota-se que o oportunismo desses casos de abuso sexual por soldados estrangeiros é similar àquele dos soldados congoleses e tanzanianos da ONU, em missão respectivamente na República Centro-Africana e na República Democrática do Congo. Geralmente, o contexto de guerra civil rompe com a rede tradicional de proteção social às mulheres. Sem proteção dos membros da família ou do clã ou da aldeia, elas se tornam vulneráveis à coação e à coerção de milicianos ou soldados. Reproduz-se tal situação favorável aos crimes sexuais em diferentes partes do continente africano em contexto de guerra civil.
Em janeiro de 1991, durante o fim do governo de Siad Barré, na fronteira entre a Somália e o Quênia, estupros de jovens somalis ocorria no campo de refugiados. Segundo relata Ayaan Hirsi Ali,
Certa manhã em que fui buscar água com um bando de mulheres, comentaram que uma delas havia sido assaltada durante a noite. Além de ter chegado sozinha, sem homem que a protegesse, pertencia a um clã pequeno. Os soldados quenianos a arrebataram do abrigo, de madrugada, e a estupraram. [...] Dois dias depois, falou-se em um novo caso de estupro. Aquilo começou a acontecer com muita frequência: os soldados quenianos chegavam de madrugada e violentavam as somalis que estavam sozinhas, sem protetor. (Ali 2012, 149-150)
Logo depois da guerra civil na Libéria, algumas mulheres conseguiram liberar a palavra conforme as memórias de Leymah Gbowee (2012, 133-136). Ela reconheceu, todavia, a dificuldade delas de falar dos seus traumas pela própria construção de gênero na cultura africana. “Na África, poucas mães falam com as filhas sobre sexo. Muitas mulheres estupradas nunca contam isso para a família; o estigma faria com que elas fossem vistas de outro modo” (Gbowee 2012, 136).
A autocensura de mulheres em relação à violência, à vergonha e à humilhação que sofreram quando vítimas de abuso sexual tem a ver, em certa medida, com o fato da tríade violência, vergonha e humilhação atingir socialmente a sua família. Não se trata de uma humilhação percebida individualmente, mas como um estigma sobre toda a família. Nessa chave de leitura, pode-se compreender a indignação de Ayaan Hirsi Ali quando certas pessoas lhe disseram: “Não convém ser vista com essa mulher. Ela é impura. Vão começar a dizer que você também é”. Para ela, tratava-se de um ser humano “que tinha sido vítima de violência e estava à beira da morte”. Mas para aquela gente, a vítima de um estupro “não passava de uma pária”. “Os somalis iam deixá-la morrer”. Outras mulheres somalis foram estupradas naquele campo de refugiados e “todas essas mulheres acabavam marginalizadas e abandonadas até morrer” (Ali 2012, 130). Não havia compaixão com aquelas pobres vítimas. Ayaan Hirsi Ali lembrara do que a sua avó lhe dissera: se tal coisa acontecesse com ela, a culpa seria exclusivamente sua.
Durante o genocídio em Ruanda, muitos dos estupradores eram portadores do vírus HIV, o que dava azo aos rumores de que as suas vítimas eram “portadoras da morte” e ao aumento da rejeição das mulheres pela comunidade, pelos vizinhos e mesmo pelas suas famílias (Mukasonga 2017, 153-154).
Percebe-se que a violência sexual sofrida gera ainda na vítima uma violência simbólica, uma vez que ela é considerada pelos outros e, às vezes, por si mesma como impura, culpada etc. Essa violência simbólica explica o silêncio de muitas mulheres africanas vítimas de violência sexual em contexto de guerra civil. O tabu em torno da violência sexual contra as mulheres também é mencionado por Scholastique Mukasonga (2017, 149-150) ao afirmar o seguinte sobre os estupros:
Ninguém queria falar sobre esse assunto. Ninguém podia falar sobre esse assunto. Não existia nenhuma brecha nos costumes que permitisse enfrentar essa catástrofe que perturbava as famílias. [...] Mas o que fazer com esses costumes quando suas filhas são vítimas dos jovens do partido único que aprenderam que o estupro de moças tutsis é um ato revolucionário, um direito adquirido pelo povo majoritário? Quem suportará o peso esmagador da desgraça que, em vão, se tenta esconder: a menina-mãe, que se torna uma maldição viva, de quem todos querem fugir e que afunda na solidão do desespero? A família que fica remoendo o remorso de não ter podido proteger os seus e que se vê posta de lado, por prudência, por todo o vilarejo? E quais desgraças trará esse filho, filho nascido de tanto ódio?
O documentário Le silence des mots trata deste tema sensível da cultura africana, notadamente os preconceitos e eventuais desdobramentos sociais para as vítimas de abuso sexual. Ao mesmo tempo, o documentário leva em conta o silêncio das palavras que permanece no pós-trauma dessas mulheres vítimas da violência sexual em contexto de guerra civil e, por conseguinte, na “pós-memória” de suas filhas sobre o genocídio em Ruanda.
As mulheres protagonistas do referido documentário chegaram a entrar com uma denúncia no polo especializado sobre os crimes contra a humanidade no tribunal de grande instância da justiça francesa. Segundo o jornalista Michaël Sztanke, os seus depoimentos foram recolhidos em 2004 e uma instrução foi aberta em 2010 (Arte TV 2022). Mais de dez anos passados, a instrução não chegou a nenhum desfecho e nenhum processo foi aberto.
Em 2022, a advogada Laure Heinich Luijer, representante legal das três mulheres ruandesas, decidiu pela inserção do filme documentário de Michaël Sztanke e Gaël Faye como pièce à conviction ao dossier que tramita na justiça francesa. Cabe ainda lembrar que várias matérias foram publicadas na imprensa francesa sobre os casos de Prisca Mushimiyimana, Marie-Jeanne Muraketete e Concessa Musabyimana e outras mais nos últimos dez anos. No entanto, quase trinta anos passados do genocídio em Ruanda, os supostos crimes cometidos por soldados franceses contra mulheres tutsis nos campos de Murambi e Nyarushishi restam sem julgamento.
Cabe lembrar que muitas mulheres estupradas durante o genocídio em Ruanda passaram anos em silêncio e em solidão devido à vergonha que sentiam de si mesmas. No relatório da Human Rights Watch sobre crimes de violência sexual durante o genocídio em Ruanda, essa questão da vergonha (shame) foi apontada como uma dificuldade para documentar os crimes sexuais ocorridos (Nowrojee 2005, 8).
No filme documentário Le silence des mots, a narrativa é polifônica, já que as vozes de vítimas de estupro e as vozes das suas filhas se liberam diante da câmera. As vozes das vítimas revelam um ponto de intersecção entre o abuso sexual por soldados estrangeiros com a cultura do estupro na África. Esta última se caracteriza por um comportamento violento socialmente normalizado e com tendência à banalização em áreas de conflito onde os estupros são usados como arma de guerra. Segundo a Human Rights Watch (Nowrojee 2005), a definição da cultura do estupro tem um duplo agravante, ou seja, nega a violência sexual e fomenta a violência simbólica na medida em que as vítimas interiorizam os estigmas sociais em torno daquela que foi estuprada. Nessa cultura do estupro, a vítima acaba se culpando. Ao culpar-se, tem vergonha. Por ter vergonha, cala-se. O silêncio, então, é um sintoma.
Como informou o jornalista Michaël Sztanke, as três protagonistas do filme documentário prestaram depoimentos em 2004. A palavra liberada desde então favoreceu a decisão delas em falar e mostrar seus rostos diante da câmara. Foi uma forma de sair de um anonimato que fazia dessas mulheres sombras delas mesmas, segundo Sztanke (Arte TV 2022). Apesar da indecisão inicial de uma delas em se deixar filmar, o efeito de grupo contribuiu para o seu acordo em dar o seu testemunho. Cabe o adendo que as três mulheres foram juntas com a equipe de filmagem para certos locais em Ruanda, inclusive acompanhadas de suas filhas ou de outras pessoas próximas a elas, o que favoreceu a liberação da palavra durante as filmagens que duraram algumas semanas.
Sobreviventes do genocídio e vítimas de estupro, as três mulheres falam para justamente indicar que nenhuma palavra pode expressar o indizível. No silêncio das palavras há somente o intraduzível ululante. No filme documentário, o predomínio do recurso visual do plano fechado ressaltou as expressões faciais das mulheres e suas falas. O enquadramento dos planos e os vários ângulos dos rostos dessas mulheres demonstram o senso narrativo e estético dos realizadores para atingir o objetivo do filme, ou seja, “dar voz a essas mulheres”. Como bem ressaltou Sztanke, o filme Le silence des mots não tinha finalidade investigativa, muito menos procurava chegar a uma verdade. Trata-se de um “filme de testemunho”, de “recolha de palavras” (recueil des paroles) (Arte TV 2022).
4. O dever de memória
Na apresentação do livro de relatos do genocídio em Ruanda de Jean Hatzfeld, Susan Sontag (2005, 8) afirma que “nossa obrigação - e é realmente uma obrigação - [...] [é] de compreensão. Esforçar-se para entender o que aconteceu em Ruanda é uma tarefa dolorosa da qual não temos o direito de nos esquivar - faz parte de ser um adulto moral”. Para a filósofa e ensaísta nova-iorquina, o dever de memória tem um complemento moral, ou seja, a obrigação de compreender o acontecimento. Em seu ensaio Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003, 61) observou que, na consciência das pessoas do “mundo rico”, a África pós-colonial existe como “uma sucessão de fotos inesquecíveis de vítimas com olhos esbugalhados, desde as imagens da fome em Biafra, no fim da década de 1960, até os sobreviventes do genocídio de quase um milhão de Tutsis em Ruanda, em 1994”.
Em 1994, outros crimes ocorreram durante o genocídio. Entre eles, o estupro de mulheres sobreviventes dos massacres (Nowrojee 1996). O dever de memória evoca a lembrança do extermínio de centenas de milhares de pessoas sem, contudo, suscitar uma visão de outros crimes conexos como a espoliação dos bens das vítimas, abigeato, violência sexual, etc. Desse modo, o dever de memória em torno do genocídio de Ruanda não é apenas um apelo à lembrança de um evento histórico trágico e de suas vítimas, mas é também uma obrigação moral para compreender o que aconteceu. A compreensão do genocídio de Ruanda permite reconhecer as responsabilidades das partes, suscitar o debate e elaborar políticas de reconciliação para fomentar às novas gerações mais chances de paz no futuro.
Desde o primeiro livro de Scholastique Mukasonga (2006) até o livro de contos de Beata Umubyeyi Mairesse (2021) segue o dever de memória na literatura em torno do genocídio em Ruanda, mas também de outros crimes conexos. A literatura africana tem declinado no feminino o pós-trauma e o pós-memória de muitos casos de violência sexual que acusam uma cultura do estupro. Outros contextos de guerra no continente africano ensejam memórias em conflito e dão azo a novas abordagens literárias, mas também nas ciências sociais e humanas.
No caso de Guiné e Angola, a historiadora Filipa Lowndes Vicente (2017) e a antropóloga Maria José Lobo Antunes (2020) analisaram imagens da violência contra mulheres em contexto de guerra. Em certas fotografias, a prática comum de abuso, coerção e violência sexual contra mulheres parece banal o suficiente para ser encenada em uma performance para a câmera (Vicente 2017, 32). Em entrevistas com ex-soldados portugueses, as fotografias foram gatilhos de memória que fizeram disparar relatos num enredo de imagem, biografia e história (Antunes, 2020). Algumas dessas fotografias de soldados portugueses na África revelam assédio sexual e importunação sexual. Subjaz uma cultura do estupro nessas fotografias.2 Essas imagens do “isso foi” - para usar um termo de Roland Barthes - tem correlação com um imaginário colonial que se manifestou, outrossim, em outros suportes materiais. Em charges do hebdomadário Miau!, de Luanda, dos anos 1965 e 1966, a personagem do soldado Zé da Fisga, do desenhista Nando, está sempre a assediar ou importunar sexualmente jovens mulheres africanas. Curiosamente, a diretora do jornal humorístico era a portuguesa Maria Purificação. Parece que o sexismo e o racismo do desenhista não a perturbavam, uma vez que os “objetos” dos cartoons de Nando eram mulheres negras. O livro intitulado Furriel não é nome de pai, da jornalista Catarina Gomes (2018), conta a história dos filhos que os militares portugueses deixaram na Guiné. Não raro, a criança “resto de tuga” traz nela o estigma do estupro. Elas vivem o drama dos renegados como os gémeos Celestina e Celestino, que guardam uma fotografia já desbotada pelo tempo de um jovem militar que nunca quis conhecê-los.
5. Pós-trauma e pós-memória
O filme documentário Die Kinder des Genozids [As crianças do genocídio], de Ivo Brandau e Markus Schmidt (2009), inicia com cenas de uma atividade teatral com mulheres vítimas de estupro. O trabalho foi coordenado pela psicoterapeuta alemã Kathrin Groninger em projeto apoiado pelo Serviço Alemão para o Desenvolvimento (Deutschen Entwicklungsdienst). O trabalho psicoterapêutico dessas mulheres no pós-trauma tem impacto na pós-memória do genocídio, notadamente de uma progenitura decorrente do estupro em massa durante os meses macabros em Ruanda. Afinal, a ressignificação do trauma dessas mulheres pode auxiliar na melhor aceitação dos filhos.
A crítica de Beatriz Sarlo sobre a inflação memorial na Argentina nas últimas décadas pode auxiliar a compreender alguns impasses da sociedade ruandesa, pois os crimes de uma ditadura militar ou de um regime genocida devem ser matéria de uma reflexão filosófica, historiográfica, moral e estética (Sarlo 2001, 43). Para a ensaísta portenha, a memória como representação do passado não deve dispensar a reflexão crítica sobre o mesmo. Nesse sentido, algumas comemorações em Ruanda podem dar azo a uma mobilização política da memória que busca o apaziguamento sem justiça, o direito ao esquecimento em detrimento do dever de memória.
Por outro lado, o conceito de “pós-memória” de Marianne Hirsch pode ser um eufemismo para uma memória intergeracional marcada por traumas e ressentimentos. Se, no filme As crianças do genocídio, aquelas jovens não viveram a experiência violenta e traumática de suas mães, elas compartilham e prolongam as memórias doloridas de quem as pôs no mundo. Essas jovens tiveram uma infância estigmatizada por serem “filhas de assassinos”. Marginalizadas socialmente, elas são identificadas com a vergonha que emana do sentimento de culpa. Esta eventual consciência pesada é decorrência da violência simbólica de uma tradição que inculpa as mulheres pelo seu infortúnio.
Nos últimos minutos do filme documentário Le silence des mots, as filhas de duas mulheres violentadas supostamente por soldados franceses presentes em Ruanda no quadro das atividades da Operação Turquesa acabam por falar dessa memória intergeracional. Tem-se o registro audiovisual da primeira vez que essas jovens se encontram no local onde suas mães teriam sido estupradas por soldados franceses. A filha de Marie-Jeanne Muraketete relatou que a viagem para o local onde a sua mãe teria sido violentada sexualmente lhe permitiu visualizar tudo que ela lhe contava. Acrescentou que, naquele sítio, ficara tão emocionada a ponto de compreender finalmente todo o seu sofrimento. Ao retornar para a casa, a filha escreve para a sua mãe uma carta de reconhecimento e gratidão. Nota-se que a propalada pós-memória tem relação com o pós-trauma. Ela prolonga a memória daquelas que sobreviveram ao genocídio como Marie-Jeanne Muraketete.
A filha de Concessa Musabyimana avaliou como positivo o fato de sua mãe ter aceitado lhe mostrar o lugar de seu calvário, pois reconheceu que Concessa não era uma pessoa com quem se pudesse falar facilmente do passado. Os relatos pungentes de Prisca Mushimiyimana, Marie-Jeanne Muraketete e Concessa Musabyimana sobre os estupros que sofreram restam sem apuração dos fatos. No entanto, essas memórias individuais já fazem parte da memória coletiva e intergeracional em Ruanda.
Ainda em termos de pós-trauma e pós-memória, uma iconosfera global segue reproduzindo imagens do genocídio e dos crimes conexos sem muita deontologia. Para mencionar um exemplo, mais de 6.000 imagens do genocídio se encontram à venda na Getty Images, uma das principais agências de mídia digital no mundo.3 A mesma agência vende quatro imagens de mulheres vítimas de estupro durante o genocídio em Ruanda. Fotografadas por Benoît Gysembergh em abril de 2004, ou seja, dez anos após o genocídio, essas mulheres aparecem diante da câmera com as suas respectivas crianças nascidas do abuso sexual de que foram vítimas durante a guerra civil em Ruanda. Num retrato de grupo, a legenda indica os nomes de Jacqueline, Landrade e Jeanine e suas respectivas filhas Josianne, Umutesi-Pacifique e Françoise (Gysembergh 2004a). Essas três mulheres tutsis teriam sido sequestradas e violentadas por homens hutus e levadas com eles para campos de refugiados na Tanzânia. Um outro retrato de grupo, mostra Christine Mirata com seu filho Mugiraneza nascido depois do estupro sofrido em Kigali em 1994. Na fotografia, vê-se ainda mais 4 crianças da mesma mãe (Gysembergh 2004b). Uma outra fotografia revela Alphonsine e o filho Gervais que ela rejeita (Gysembergh 2004c). Há ainda a fotografia de Monique com a sua filha Assumpta, nascida do estupro de que foi vítima a mãe em 1994. A filha foi criada pela avó, já que a mãe ficou sem condições psicológicas para cuidar da miúda (Gysembergh 2004d). Como observou Susan Sontag (2003, 62) ao se referir a fotografias da guerra civil no Biafra, em Ruanda e na Serra Leoa, essas imagens trazem uma mensagem dupla. Ao mostrar um sofrimento ultrajante, injusto e que deveria ser remediado, elas confirmam que esse é o tipo de coisa que acontece naqueles locais. A ubiquidade dessas fotos reforça estereótipos e uma ideologia do fatalismo que naturaliza o sofrimento dos outros.
6. Considerações finais
O contexto de guerra civil tem propiciado violência sexual contra as mulheres em diversos países africanos. Com base nos relatos de vítimas, uma análise mais metódica permite distinguir o estupro como arma de guerra pelas partes beligerantes e a violência sexual cometida de forma oportunista por soldados estrangeiros que pode, em certos casos, caracterizar-se por uma prostituição forçada de jovens e mulheres locais ou de campos de refugiados. Cabe ainda lembrar que muitas mulheres sobreviventes do genocídio em Ruanda foram “escravas sexuais”. Muitas foram levadas pelos seus “senhores” para os campos de refugiados dos países vizinhos (Nowrojee 2005, 14).
A escolha temática dessas formas de violência sexual em contexto de guerra civil não deve anular o interesse dos estudos de gênero por outras formas de violência feita às mulheres, como a violência doméstica e mesmo o estupro marital. Nas memórias de Leymah Gbowee (2012), tanto a violência doméstica quanto o estupro marital fizeram parte da experiência conjugal da Prêmio Nobel da Paz (2011). Também Ayaan Hirsi Ali (2012) relatou sobre ambas as formas de violência no seu próprio clã. O estupro marital se inscreve numa cultura do estupro. O estupro coletivo também tem sido um fenômeno preocupante, não apenas em regiões africanas em contexto de guerra civil, como a região oriental da RDC, mas em cidades de países africanos sem guerra como a África do Sul.
Contudo, falar diante das câmeras pode ser uma forma de reaver a dignidade perdida, como disseram Concessa Musabyimana, Marie-Jeanne Muraketete e Prisca Mushimiyimana, segundo Michaël Sztanke, um dos realizadores do filme O silêncio das palavras. Os casos abordados pelo filme documentário apontam para crimes cujos supostos autores não apenas aproveitaram a situação de guerra civil, como também souberam agir impunemente nas brechas da estrutura patriarcal africana e do código penal militar francês. O dever de memória segue a reclamar justiça. Em termos de economia da herança, pode-se inferir que as futuras gerações devem seguir a reclamar por justiça contanto que a memória dos sobreviventes seja compartilhada e prolongada por elas.
A ficção de Scholastique Mukasonga, as entrevistas de Jean Hatzfeld, as fotografias de Gilles Peress, o documentário de Michaël Sztanke e Gaël Faye são diferentes caminhos para cumprir com a obrigação moral de compreender o genocídio em Ruanda e o dever de memória em relação a todos os crimes conexos, notadamente a violência sexual. Além dessa obrigação moral de compreensão do genocídio (Sontag 2005), tem-se o dever de memória de outros crimes correlatos e que ocorrem ainda na atualidade em conflitos nos quais a etnia segue sendo um álibi para atrocidades cometidas por soldados e milicianos na parte oriental da República Democrática do Congo.4
Como bem lembrou Michaël Sztanke, a história de um genocídio não cessa de ser escrita. A história das três mulheres do filme O silêncio das palavras é um exemplo de que novas histórias podem se aproximar de um passado e, por conseguinte, auxiliar na compreensão do que aconteceu (Arte TV 2022). Contudo, o silêncio tem a sua própria história (Corbin 2021). O silêncio pode ser discurso. Pode ter diferentes atributivos. Alguns paradoxais como silêncio ensurdecedor. Entre outros, o genocídio evoca o silêncio da catástrofe e o mutismo agoniante dos silêncios em torno da morte.
Não é anódino o título The Silence atribuído à série de fotografias de Gilles Peress (1995) sobre o genocídio em Ruanda. O genocídio impõe o silêncio de uma multidão sem vida. Paisagens que foram outrora sonorizadas pelas atividades diárias das pessoas foram substituídas por um silêncio sepulcral. Na banda desenhada La fantaisie des Dieux, os silêncios são recorrentes.
Nós atravessamos uma ponte... e rodamos por horas, dias, em estradas poeirentas. Num mundo imóvel. Sob um céu azul. Puro. Sem nuvens. Nada se movimentava. Salvo a folhagem das árvores. Agitadas por uma brisa leve. Silêncio. Somente silêncio. E mortos. Os mortos não falam. Não havia mais palavras. Somente silêncio. Espesso, pesado. Como contar? A marca do genocídio não é a fúria. É o silêncio. (Saint-Exupéry 2014, 8-12)5
Ainda do testemunho de Patrick de Saint-Exupéry (2014, 82-83), tem-se a constatação de que “um genocídio ... é, antes de tudo, silêncio. Um silêncio atordoante”6. Já O silêncio das palavras, título do filme documentário de Michaël Sztanke e Gaël Faye, sugere um outro silêncio, não aquele dos mortos e sim dos vivos.
A liberação da palavra de mulheres como Concessa Musabyimana, Marie-Jeanne Muraketete e Prisca Mushimiyimana não significa que a memória compartilhada ou prolongada seja o suficiente para romper o silêncio em torno de crimes que seguem impunes. Por outro lado, o silêncio atordoante nas pausas dos relatos e das memórias dessas mulheres vítimas de violência sexual em contexto de guerra civil interpela os ouvintes a buscar compreender como foi possível tudo aquilo acontecer. Apesar da copiosa literatura e produção cinematográfica sobre o genocídio em Ruanda (Brinker 2014), os crimes conexos precisam ser, igualmente, contemplados pela história do genocídio, mas também pela memória intergeracional.
Em termos didáticos, Joël Hubrecht e Assumpta Mugiraneza (2009) seguiram a pista aberta por Theodor Adorno para buscar subsídios à prevenção de novos genocídios. Somente a educação e o esclarecimento dos fatos podem ser eficazes nas políticas preventivas do risco de reaparecimento de novas Nyamirambos, Murambis e Nyarushishis. Como afirmou Theodor Adorno (1970: 107), “o silêncio frente ao terror foi apenas a sua consequência”7. Procurar omitir-se da confrontação com o terror é dar margem para que ele volte pela porta dos fundos. Nos relatos do genocídio em Ruanda, reunidos por Jean Hatzfeld (2005), o jornalista logrou elucidar muitos pontos obscuros dos massacres ocorridos naquele país quando adotou uma perspectiva de história comparativa.8 Nesse sentido, as advertências de Adorno (1970) em “Educação após Auschwitz” podem servir na atualidade para tratar “a raiva contra a civilização”, pois “a revolta contra ela é brutal e irracional”. O estupro como arma de guerra ou como delito oportunista sobre pessoas em situação vulnerável em contexto de guerra civil é o horror que não pode ser silenciado e muito menos esquecido.