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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.40 Lisboa dez. 2020  Epub 14-Mar-2022

https://doi.org/10.4000/cea.5463 

Artigos Originais

Por uma Política com “Respeito”: A institucionalização da homossexualidade no programa radiofônico moçambicano Café Púrpura

For a policy with “respect”: The institutionalization of homosexuality in the Mozambican radio program Café Púrpura

Francisco Paolo Vieira Migueli 
http://orcid.org/0000-0003-1173-9727

1i Departamento de Saúde Coletiva, Grupo de Etnologia em Contextos Africanos (ECOA/UnB), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, 70910-900, Brasil, fpvmiguel@gmail.com


Resumo

O presente artigo busca compreender o processo de “institucionalização” (Douglas, 2007) da homossexualidade em Moçambique, a partir do caso etnográfico do programa radiofônico Café Púrpura, patrocinado pela LambdaMoz - a maior organização LGBT do país - e transmitido em cadeia nacional no segundo semestre de 2018. Ao analisar cinco de seus episódios, chegamos à conclusão que o movimento LGBT moçambicano busca não somente institucionalizar a homossexualidade através de discursos, símbolos e valores, mas o faz a partir de uma perspectiva política específica, qual seja, uma política de “base” de não confrontação violenta contra a sociedade mais ampla. Nesse sentido, os dados conduzem à reflexão sobre uma importante categoria nativa na semântica homossexual local, a “tolerância”.

Palavras-chave: África; Moçambique; LGBT; movimento social; política; mídia

Abstract

This article aims to understand the process of “institutionalization” (Douglas, 2007) of homosexuality in Mozambique, based on the ethnographic case of the Café Púrpura radio program sponsored by LambdaMoz - the largest LGBT organization in the country - and broadcast nationally in 2018. Analyzing five of its episodes, we concluded that the Mozambican LGBT movement seeks not only to institutionalize homosexuality through discourses, symbols and values, but also from a specific political perspective, namely, a politics of “base” of non-violent confrontation against the wider society. In this sense, the data lead to reflection on an important native category in local homosexual semantics, “tolerance”.

Keywords: Africa; Mozambique; LGBT; social movement; politics; media

A ideia de “homossexualidade”, tal como fora construída na Europa, é uma categoria do pensamento que não está dada na natureza e, portanto, não é nem universal, nem estática, tampouco atemporal (Bleys, 1995; Foucault, 1988; Henning & Ferreira, 2018). Em outras palavras, uma subjetivação homossexual - ou seja, como contraposta à heterossexual, alguém que frequentemente narre seu desejo ou identidade como inato e imutável, que frequentemente conduza suas práticas homoeróticas ao longo da vida; que direcione seu afeto primordial ou exclusivamente ao mesmo sexo, e/ou que carregue consigo a tendência de aderir, mais ou menos, em sua corporeidade aos signos do gênero oposto - não é universal, ainda que as práticas sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo possam virtualmente ser (Murray & Roscoe, 1998, p. 271; Neill, 2009, p. 11; Padgug, 1990, p. 60).

Assim, para que a “homossexualidade” ou o “sujeito homossexual” (moderno) ganhe existência social é preciso um esforço político-epistemológico ou um processo de “institucionalização” (Douglas, 2007)1. Um fenômeno que historicamente ocorrera em determinados momentos e locais da experiência humana, sem que necessariamente coincidissem em seus significados2. Por “instituição”, Mary Douglas queria se referir às convenções sociais fortes, que partem da analogia com o corpo e com a divisão (sexual) do trabalho, que se baseiam na natureza e na razão, que são os resultados contínuos de uma disputa de classificações desenvolvidas por grupos sociais, que precisam “esquecer-se” do que não lhes convém e que, para serem estáveis, precisam camuflar seu caráter socialmente construído (Douglas, 2007, pp. 58-65).

Em minha mais recente pesquisa (F. Miguel, 2019) procurei demonstrar não apenas vários processos de institucionalização da homossexualidade na história de Moçambique (no governo, na mídia, na religião, nas famílias e no senso comum de meus interlocutores), como também reconstruir historicamente a origem da Lambda, a maior e mais atuante organização LGBT do país, e algumas de suas pautas atuais e históricas. O objetivo era perceber como a Lambda, em seu ativismo, atuaria como um desses agentes de “institucionalização” da homossexualidade em Moçambique3.

Dado o grande volume de dados que poderiam ser extraídos das mais variadas frentes de ativismo que a Lambda empreende (desde programas de saúde comunitária, passando pela produção de estudos e cartilhas para a população em geral; formações nas mais diversas instituições públicas, como polícias, hospitais, governo, etc.; atendimentos psicológicos aos LGBT e suas famílias; e até participações em eventos locais e internacionais), escolho para analisar neste artigo apenas o programa de rádio Café Púrpura. Entre outras razões, porque o rádio é um dos mais poderosos meios de comunicação hoje em Moçambique e, por isso, teria virtualmente maior abrangência social.4

Analisarei aqui, no entanto, apenas uma das temporadas do Café Púrpura, um programa semanal de rádio5, de aproximadamente uma hora de duração e de abrangência nacional, em que três dos integrantes da Lambda - La Santa, Sue e Machachito - são convidados a partilhar suas ideias e opiniões sobre temas semanais. Para tanto, o artigo se estrutura pela apresentação dos cinco episódios em ordem cronológica, e os temas a cada um deles relacionados. Os objetivos são: 1) perceber como temas específicos sobre a questão homossexual aparecem atualmente na sociedade moçambicana; 2) perceber os conteúdos dos discursos que o movimento LGBT pretende institucionalizar não só sobre o que é homossexualidade e o que é ser LGBT, mas como a sociedade deve lidar com essa população. As conclusões apontam para dois temas centrais: a especificidade da estratégia de luta política desse movimento (uma política com “respeito”) e como ela contribui para o debate local sobre a dita “tolerância” moçambicana em relação aos LGBT (Dulani et al., 2016; F. Miguel, 2019).

Episódio 1 - Domesticação da cultura e combate à visão hipersexualizadora dos LGBT

O primeiro programa da quinta temporada começou com o apresentador anunciando em um tom respeitoso, mas divertido, que o programa é “oferecido pela Lambda - A associação moçambicana para a defesa das minorias sexuais”. Em seguida, nós ficamos sabendo por sua voz que o objetivo do programa é “criar um espaço saudável e divertido, de discussão aberta sobre homossexualidade e suas expressões em Moçambique”. E, mais uma vez demonstrando a estratégia de não confrontação explícita do movimento com a sociedade geral, acrescenta que “o objetivo do programa não é chocar ou provocar, mas sim partilhar informação correta, importante e contribuir para que todos os cidadãos se sintam incluídos, valorizados e respeitados”.

Dessa forma, a reestreia do Café Púrpura aconteceu no dia 22 de novembro de 2018, com o tema “Você seria amigo de uma pessoa homossexual?” Antes de adentrar especificamente no tema daquele dia, porém, o locutor e os convidados fizeram questão de explicar que em cada programa haveria uma música-tema e que a daquele dia seria “I will survive”, reproduzida na abertura. A respeito do trabalho contínuo de institucionalização da homossexualidade (ou seja, de construção e manutenção não só de uma categoria do pensamento e de um sujeito, mas também de uma identidade homossexual e de uma cultura gay pelo movimento LGBT em Moçambique), locutor e convidados explicam a importância desta música em suas vidas e no próprio movimento, elevando-a à condição de “hino”. De suas bocas é possível ouvir as seguintes expressões: “música icônica que marca o movimento LGBT a nível mundial”, “hino gay”, “ícone da cultura gay”. De certa forma, tal tentativa de captura e estabilização do que seria o movimento LGBT, no singular, é, em si, uma conformação cultural e historicamente dada.

La Santa, talvez a mais famosa mulher trans e drag queen de Moçambique e uma das convidadas do programa diz, emocionada, como aquela música é representativa para ela, porque é a música que mais é reproduzida em seus shows e a que a fez ficar no “alto”. La Santa diz ainda que as pessoas nem sempre entendem o que significa essa música. Então é a vez da outra convidada, a jovem lésbica Sue, explicar: “a música fala de sobrevivência, como é que os LGBT sobrevivem, mostra que nós temos que ter um amor próprio, a vida própria para seguir em frente. Só isso. É um hino”.

Nesse sentido é possível perceber como o movimento LGBT moçambicano em 2018, por vezes, aplica a estratégia de fazer traduzir para a população local símbolos globais do movimento LGBT, produzindo traduções que permitem congregar através do entretenimento um potencial conjunto da população. Trata-se de um processo doméstico de produção de identidade a partir de símbolos globais. Algo já demonstrado em outros contextos sociais (Boellstorff, 2005). Mas não só globais. Assim, logo em seguida, ouvimos na sessão “Notícias” do programa, narrada pelo jornalista da Lambda Francelino Zeúte, que Coréon Dú, filho do ex-presidente de Angola, teria se assumido homossexual recentemente.6 O que quero demonstrar é o jogo promovido pelo movimento LGBT moçambicano de aderir a uma cultura LGBT global e ao mesmo tempo mesclar suas especificidades regionais/locais, quando recorta a questão para o contexto “africano” e, mais particularmente, “moçambicano”, como veremos mais para a frente.

No mesmo episódio, gostaria ainda de analisar seu tema central sobre a possibilidade colocada para os convidados e ouvintes de que homossexuais e heterossexuais podem ser amigos entre si. A pergunta, que pode parecer banal em outros contextos sociais, é de extrema relevância em Moçambique, porque é através dela que podemos acessar, entre outras, as perspectivas de hipersexualização dos LGBT no país. Por exemplo, entre as várias respostas positivas de transeuntes entrevistados previamente sobre a questão - o que validaria o levantamento de Dulani et al. (2016) e outros, que sugerem que Moçambique é um dos países africanos mais tolerantes à homossexualidade7 - algumas poucas pessoas se mostram reativas. Vejamos o que diz um desses entrevistados reativos:

Não, [eu] não seria [amigo de uma pessoa homossexual].8 [...] Não que eu tenha problemas com homens homossexuais, né? Mas eu me sentiria incomodado. Aquilo incomoda. De certa forma incomoda porque sempre quando tás com um homossexual, ele sempre quer te bajular, te apreciar. Eles praticamente não têm preferência, tudo que é homem pra eles, tudo vai. Então pra mim, eu não me sentiria bem. Incomoda. Yeah.

A resposta deste homem levanta uma grande discussão entre os convidados do programa que, de uma forma pedagógica, pretendem “informar” melhor seus ouvintes. Sue diz que “alguns dos comentários dos ouvintes é de se entender, é só que, na verdade, [eles] não têm informação” e conclui: “É pra isso que estamos aqui [em um programa de rádio]: pra informar!” Por fim, brinca em tom simuladamente revoltado que pretende fazer uma correção: “os gays têm gosto sim! Não queremos todo mundo não!”. La Santa, por sua vez, concorda que os gays não querem todo mundo e que os LGBT, de maneira geral, têm escolhas e preferências. Enfim, o que os convidados tentam fazer é retirar o apelo sexual que os LGBT teriam na percepção da sociedade mais ampla, desconstruindo estereótipos frequentes de que seriam promíscuos.

Deparei-me diversas vezes ao longo do meu trabalho de campo com o “problema” de hipersexualização dos homossexuais em Moçambique ou dessa percepção sobre eles. Seja quando alguns superiores da Lambda solicitaram, em reuniões fechadas, que agentes comunitários não assediassem sexualmente os parceiros internacionais que vinham de visita, seja quando um dos líderes do movimento reclamou sobre a ênfase dos parceiros internacionais em só doar para projetos de combate à epidemia de HIV/AIDS, o que acabaria por dar a impressão de que suas vidas se resumiam ao sexo (F. Miguel, 2019).9

Por ora, é interessante observar como essa dinâmica, tanto interna quanto externa ao mundo LGBT moçambicano, de que os homossexuais são hipersexualizados, reproduz-se no cotidiano, ora lido como preconceito, ora admitido como prática - como quando os próprios agentes comunitários com quem convivi admitiam a hipersexualização de pessoas da “comunidade”. Caetano, um agente comunitário bissexual que conheci, em uma entrevista sobre sua experiência em formações da Lambda para a sensibilização das polícias para a questão LGBT, conta-me sobre essa visão da sociedade mais ampla - a qual ele, de certa forma, corrobora - de que os homossexuais assediavam de forma insistente homens heterossexuais quando deles gostassem, ainda que estes homens afirmassem e reafirmassem não estar interessados na relação:

Sim, que os homossexuais não respeitam. Essa foi uma abordagem que não foi trazida assim muito em plenário, mas foi discutida fora da formação, fora da sala da formação. Eles estavam conversando... Porque eles não, acho que não perceberam muito no primeiro dia que eu era da Lambda ou que eu também era homossexual. Eles não perceberam muito. Então sentaram em um grupinho, ali no mata-bicho10, e começaram a falar “Ah, esses homossexuais são assim... Não têm respeito. Eles quando cismam contigo, começam a andar ali atrás de si. Não querem ouvir se tu queres ou não queres, porque quer, porque quer”. (Entrevista Caetano, Maputo, 21/06/2018)

Não me parece absurdo - ainda que nem sempre verdadeiro - que a sociedade moçambicana mais ampla atribua aos homossexuais uma vida hipersexualizada se reivindicam eles mesmos a centralidade da sexualidade em suas subjetividades. Ora, apresentar-se à sociedade moçambicana como sujeitos sexualizados - ainda que evidentemente sejam muito mais do que isso - faz entender às pessoas comuns, cujas vidas sexuais foram ensinadas ser do âmbito do privado e que vivem sob a hegemonia do “dispositivo da aliança” (Foucault, 1988), especialmente àquelas não socializadas nessas novas gramáticas identitárias, que a especificidade daqueles corpos seria o sexo que trazem “às vistas” e sobre o qual, como estratégia política, buscam dar visibilidade. Percebendo esse feedback social negativo, a ativista Sue explica aos ouvintes que homossexualidade não se trata só de sexo, mas de amor: “Homossexualidade não tem nada a ver com sexo, homossexualidade é amor, é sentimento. Práticas sexuais não são orientação sexual. Ouvinte tem que ver a diferença entre isso” (grifo meu)11.

O programa termina ainda com o locutor informando a comunidade LGBT sobre as unidades de saúde que seriam “sensíveis”, ou seja, que estariam treinadas a receber os LGBT e seus problemas de saúde de forma não preconceituosa. Assim, o movimento LGBT - através do programa de rádio - pretende informar potenciais interessados sobre os serviços de saúde disponíveis especialmente pare eles. Tal informação fecharia todos os demais programas. Os efeitos são vários: além do objetivo explícito de oferecer um serviço de saúde especializado, o anúncio ao mesmo tempo que instaura (ou atualiza) as doenças sexuais como questões relevantes para esta população, faz congregar todos aqueles que - a priori indivíduos dispersos - se conectariam entre si pela exclusão informal no sistema público de saúde, da possibilidade de resolução de seus problemas de saúde sexual devido ao tipo de sexo que praticam. A saúde (homo)sexual é mais uma via de institucionalização da homossexualidade em Moçambique e, em um claro “duplo vínculo” (Bateson, 1972), pode contribuir para a hipersexualização dos LGBT.12

Encerrado o primeiro programa, gostaria de continuar analisando os demais para não apenas ver de que forma certos discursos aqui analisados se reforçam, como para compreender que novas ideias sobre a homossexualidade o movimento pretende institucionalizar.

Episódio 2 - Política LGBT com “respeito” ou de não confrontação violenta

Assim, o segundo programa, que vai ao ar no dia 29 de novembro de 2018, tem como tema: “Namoro entre LGBT”. Sua estrutura, de forma geral, se repete, mudando apenas os conteúdos. Temos novamente uma música-tema - desta vez Rise like a Phoenix, da drag queen austríaca Conchita Wurst - que é reproduzida e contextualizada pelos ativistas. Baseado no tema do programa, o locutor então pergunta aos ouvintes e convidados: “Até que ponto é credível o namoro entre duas pessoas do mesmo sexo?”.13 Depois de vários ouvintes do programa ligarem e darem opiniões positivas, acreditando na possibilidade do amor entre pessoas do mesmo sexo, um ouvinte entra na linha e contesta:

Em relação ao tema, eu acho que não é credível. Aliás, eu respeito. Eu preciso respeitar as decisões de cada indivíduo. Mas no aspecto religioso, no aspecto da religião, não concordo. Porque a palavra de Deus, quando trata da multiplicação, é a da reprodução. [...] Aliás, indivíduos do mesmo sexo podem reproduzir? Se a palavra de Deus disse “é preciso que o homem e a mulher juntem-se e [?]”. Então como é possível essa reprodução? [...] No aspecto sociológico, como é que a sociedade olha... Não estou a falar, portanto não tem a ver com preconceitos, mas olhamos... Que tipo de sociedade nós vamos criar? Vamos ter mais homens a juntarem-se, as mulheres, portanto... Nós sabemos que as mulheres são muitas. Então há muitas limitações. Eu penso é de se respeitar as decisões de cada um, mas há certos aspectos que nós temos que reparar antes de dizer que sempre é credível. Ouvi comentários a dizer “é credível, é credível”. Mas é preciso repararmos daqui a algum tempo, que tipo de sociedade nós estaremos a criar ou a incentivar?

Assim como em outros contextos africanos e ocidentais (Kaoma, 2009), argumentos religiosos e mesmo “socio-lógicos” para deslegitimar a homossexualidade são frequentes no Moçambique atual. Argumentos tais como a necessidade de reprodução da espécie14 e do tipo de sociedade moderna que se quer construir aparecerão com vigor nas intervenções daqueles que, de maneira convicta e desde já contrária à prática e ou à identidade homossexual ou que, genuinamente, desejam saber que outro mundo possível seria o proposto pelo movimento LGBT, se propõem a discutir a questão publicamente (F. Miguel, 2019).

Todavia, o que quero neste momento demonstrar é a forma como o movimento LGBT, encarnado aqui pela Lambda, se coloca publicamente, utilizando uma estratégia de não confrontação direta com a sociedade mais ampla. Ao ouvir o comentário, Sue, a convidada lésbica da Lambda, responde de forma conciliadora: “Eu achei interessante a contribuição dele. Gosto sempre... Gostamos todos de ouvir todo tipo de opinião. [La Santa concorda]. Mais para saber o que as pessoas pensam. E é bom saber que há pessoas que não acham credível. Tentando ajudar o ouvinte nesse caso...” - continua. Em seguida, Sue relativiza o dogmatismo da religião cristã - alegando que nem todos estão obrigados a crer na Bíblia e desacredita da heterossexualidade como imponderável para a reprodução humana: “Eu não vou amar um homem porque eu tenho que encher o mundo”.

Para Miguel, que foi radialista e um dos principais fundadores do movimento LGBT moçambicano, o movimento LGBT local não tem uma atitude demasiado confrontadora com o Estado moçambicano. Quando digo a Miguel que o diretor nacional de direitos humanos e cidadania (da secretaria ligada ao Ministério da Justiça moçambicano) certa vez afirmou que era melhor não tocar no assunto LGBT para que Moçambique não corresse o risco de “virar Uganda” (ou seja, o tal diretor supunha que a interrupção do silêncio quanto ao tema pudesse acarretar a transformação de um suposto atual cenário pacífico com a homossexualidade no país para um de perseguição estatal, social e violência generalizada), Miguel me responde não negando tal possibilidade aventada por aquele político e comparando a política do movimento social a uma dança:

E é interessante essa nossa maneira de ser aqui em Moçambique. Há a noção de que nós vivemos numa sociedade que é bastante relaxada e permissiva, mas que também é muito conservadora. Porque é uma sociedade que, quando confrontada com uma certa agressividade, pode reagir com agressividade. E o que nós somos hoje, podemos deixar de ser e ser Uganda amanhã. Um pouco como nós deste lado [do movimento LGBT] também puxamos o assunto. Não é que Uganda seja como é porque haja um... o movimento lá é forte porque a repressão é forte. Inicialmente. Mas há um pouco esta noção de que se puxarmos forte demais, a reação também vai ser muito forte. Então é... [...] Não é um tango, é uma valsa. Não tem agressividade... É uma dança, né? Que não tem a agressividade do tango, é mais... “Tu deixas vir até aqui, eu vou”, “Se experimentar um bocadinho, se deixares, pronto.” “Se eu sentir um pouco de resistência, ok, também vou parar.” Mas a verdade é que a linha está cada vez... [...] Tá avançando. É uma maneira de fazer as coisas. Funciona em Moçambique. (Entrevista com Miguel, Maputo, 07/09/2018)

Avanços e recuos estratégicos não são exclusividade dos movimentos sociais moçambicanos. O mesmo pode ser visto, por exemplo, para o movimento LGBT brasileiro (Bulgarelli, 2018; Irineu, 2018). Mas aos olhos de parte hegemônica do movimento LGBT em países com tradições liberais como a África do Sul, o Brasil ou os EUA, tal estratégia moçambicana poderia parecer hoje não gramatical, conservadora, submissa, etc., mas em Moçambique é assim que o movimento LGBT - e eventualmente outros movimentos sociais - parece lutar publicamente por seus direitos.15 Nas falas de ativistas moçambicanos, fica clara a sua contraposição, por exemplo, à estratégia do movimento LGBT sul-africano de imposição de direitos de “cima para baixo”, como aqueles introduzidos pela Constituição do pós-apartheid que, entre outras coisas, criminaliza a discriminação por orientação sexual. A estratégia política de inclusão, via Estado, de direitos jurídicos antes de um convencimento orgânico e amplo da sociedade, aos olhos dos ativistas moçambicanos, teria desencadeado naquele país vizinho uma violência homo e transfóbica muito mais grave do que aquela que ocorreria em Moçambique (neste último, onde há menos garantias legais e ausência das prides LGBT, haveria também menos assassinatos, espancamentos, estupros corretivos, etc.). Essa também parece ser a perspectiva de outros intelectuais africanos preocupados com a vida dos LGBT, mas também com a imposição, em seus respectivos países, de uma exógena “epistemologia do armário” e a deflagração de violência aos LGBT que dela decorreria (Ndashe, 2013; Tushabe, 2013).

No segundo episódio de Café Púrpura é possível perceber como, mais do que não confrontador, o discurso político dos movimentos sociais tenta ser conciliatório com a sociedade. É um tipo de ativismo, como disse o jornalista, que pretende “construir das bases”, que quer “informar”. Isso fica ainda mais manifesto na fala de Sue, em relação à questão de “sair da gaveta” (assumir-se homossexual) na família:

Outra dificuldade dos homossexuais é impor aceitação. Eu to em casa. Meu pai não está preparado [para] isso. Minha mãe não está preparada pra isso. Eu não posso chegar e impor isso. “Mas, não, porque... Eles TÊM que...” Não, com calma. Explicas a teu pai: “Olha, pai, eu percebi que sou assim, não sei o quê, eu, pai, tentei mudar. Mas eu sou assim, pai. Por mais que o pai diga pra não ser. Eu não vou conseguir. Mas, pai, tem que me amar como eu sou”. Não é pra impormos. Meu pai disse que não quer, tá bem, casa dele, eu respeito. Não vou chegar em casa, no meu pai também, com minha namorada aos beijos, porque ele não quer. Isso não se faz. Isso não é respeito. Meu pai disse que não quer, eu vou respeitar. É casa dele. Eu vou namorar, talvez, com ela fora, em casa dela. A minha sogra, ah, ela me ama. Me chama de filha, é tudo bem. Mas porque ela percebeu que eu respeitava ela. Eu chegava lá conversava com ela. É assim, é assim que tem que ser.

A categoria “respeito”, tal como fora colocada no depoimento de Sue, faz parte de uma dinâmica social mais ampla, que em várias sociedades africanas - e Moçambique nisso não se distingue - há os sêniores, os mais velhos, como dignos de admiração e respeito (Moodie & Ndatshe, 1990, p. 418). A transexual La Santa, que também estava no estúdio, complementa concordando com Sue e contando a sua própria experiência familiar:

Pra dizer que, falando no respeito, no que a Sue tava a dizer. Eu nunca peguei o meu parceiro e dizer pra meu pai ou pros meus irmãos mais velhos, “este é meu marido”. Porque aquilo, pra mim, era um pouco constrangedor, até pra mim, eu dizer “Papá, este aqui é meu marido”. Yeah. Porque eu tenho em mente que, apesar de meu pai saber qual é a minha orientação sexual, na mente dele, ele diz “é meu filho”. [...] Meu pai nunca disse “É minha filha”. Meus irmãos nunca disseram “É minha irmã”. É “meu irmão”, é “meu filho, é nosso filho”. Então, eu sempre deixei bem claro que eu só quero ser feliz, não importa se vocês me chamam de “filho” ou “filha”, eu só quero ser feliz. Deixe-me ser feliz. Tanto mais que na minha família nunca me chamam de “La Santa”. Todo mundo chama-me de “Jazilo, Jazilo, Jazilo”, que é meu nome verdadeiro. E eu nunca me impus.

Se a correta designação de gênero no nome parece uma das mais importantes reivindicações das pessoas transexuais em vários lugares do mundo, esta não parece ser uma prioridade no Moçambique atual. A fala de La Santa demonstra como sua identidade trans - ou pelo menos a pauta da correta interpelação do gênero no nome de pessoas trans - está subordinada a valores como o respeito à família e aos sêniores (Oyěwùmí, 2004).16 Assim, o terceiro convidado, Machachito, conclui reafirmando nosso argumento de que esta estratégia de resolução de conflitos que viemos tratando até aqui é idealmente nacional:

Tem uma coisa tão maravilhosa, que eu gosto também, é que a nossa sociedade moçambicana tem muito respeito. Nós temos muito respeito. Essa questão do não aceitar ou aceitar são coisas que nós podemos criar com o tempo. O importante... Nós podemos construir no nosso dia a dia. O importante nós já temos em nossas mãos: que é o respeito. [...] Mas eu nunca cheguei, pum, “Pessoal, eu sou gay”, não. Não podia fazer isso. Pela questão tradicionalística. Questão cultural que nós viemos criando, né?

Assim, percebemos que além de estar se institucionalizando a homossexualidade, os agentes em questão também estão institucionalizando uma nação, ao pretender construí-la sob a égide da paz e da não confrontação violenta.

Claro que o leitor atento que chegou até aqui poderia agora perguntar se não se trataria de uma evidente contradição entre uma estratégia de não confrontação - pelo menos direta, agressiva, etc. - e uma estratégia de dar visibilidade ao não normativo, de tentar introduzir uma outra narrativa, por natureza contestatória e que, como diz Danilo, o então diretor da Lambda, seria “inconveniente” para as “estruturas” socioculturais e políticas locais. Neste caso, eu diria que não se trata necessariamente de uma contradição, mas de um duplo vínculo. Pois, se em um nível, para eles e elas do movimento LGBT é importante apaziguar o conflito, no sentido de não terem suas ideias imediatamente descartadas e terem contra si pânico moral17 e fúria social, por outro lado e ao mesmo tempo, suas próprias vivências e a visibilidade de suas vivências forçam, inconscientemente, o que pretendem como reflexão e avanço social.

Em outras palavras, se no conteúdo do discurso os LGBT se mostram pacíficos e conciliatórios, a forma - ou seja, a existência em si do próprio discurso - já é uma maneira de transformar uma ordem social do silêncio, de questionar verdades e de reivindicar novas subjetividades e direitos. Nos termos de Foucault (1988), os ativistas LGBT já estariam pressionando pela mudança do regime da “ars erotica” para uma “scientia sexualis”, ao simplesmente colocarem a sexualidade no discurso. Dito isso, finalizo a análise do segundo programa Café Púrpura, sintetizando: para o movimento LGBT - pelo menos a partir dos seus representantes ouvidos neste programa - 1) o homossexual ama genuinamente e 2) os LGBT moçambicanos, em seu ativismo, não pretendem ser desrespeitosos nem com a sua família, nem com a sociedade que os cerca.

Episódio 3 - Combate ao cyber-bullying e tensionamento da discriminação sexual em Moçambique

Ao ficar uma semana sem ir ao ar, o programa retorna no dia 13 de dezembro de 2018, com o tema “Cyber-bullying e discriminação nas redes sociais”. A música do dia agora é moçambicana e o locutor justifica:

[...] música da semana, onde cada programa temos uma música icônica que marca o movimento LGBT a nível mundial [...] Nesse terceiro programa, a escolha recaiu sobre a música de um cantor bastante querido do nosso país. Estamos a falar sim do Abuchamo Munhoto, com a música “Por quê?”. [...] Nesta música produzida em 2015, Abuchamo Munhoto dá voz aos casais que não se podem expressar livremente e viver o seu amor em plenitude e questiona o porquê não existe essa possibilidade.

A letra da música, que diz em seu refrão sobre a impossibilidade de certos amores: “Então por que não podemos amar? / Não podemos beijar / Deixar a vida se expressar / Então por que não podemos gritar? / Gritar para o mundo ouvir / Estamos a nos amar”, não é explícita em tratar do amor propriamente homossexual (pois poderia se aplicar a qualquer amor proibido). Ela é então ressignificada pelo movimento LGBT moçambicano, domesticando-a aos seus propósitos de institucionalização da homossexualidade através da cultura local. Em outras palavras, se ela não é uma música “icônica do movimento LGBT a nível mundial”, como outras são anunciadas, o movimento LGBT local pretende capturá-la para torná-la, pelo menos, um ícone LGBT local.

Em relação propriamente ao tema daquele programa, é possível perceber os convidados tentando instruir a população a não discriminar pessoas LGBT na internet. A convidada Sue então argumenta pela periculosidade da contaminação do ódio gerado nas redes sociais e o incômodo de ser sexualmente exposto(a), principalmente para o círculo mais próximo:

É assim: todo tipo de preconceito, de bullying ou discriminação afeta. As pessoas pensam que o fato de não ser direto ou fisicamente não afeta, mas afeta. Se bobear, acredito que é pior. Porque se, por exemplo, o Machachito é um homofóbico, ele encontra-me na rua [...] to com a minha namorada, aos beijos, ele atira pedra, ele pode insultar-me e ele já me deu feridas. Depois passam. Mas na rede, eu estou na minha casa, no Facebook, por exemplo, todo mundo tem acesso. E ele escreve uma coisa feita “Oh, Sapatão”, “oh, viado!”, alguma coisa triste que a pessoa pode escrever. Eu vi aquilo. Minha namorada também há de ver. Uma pessoa que podia não ter discriminação vai ver aquilo e pode absorver aquele tipo de maldade. Isso vai contaminar as outras pessoas. Todo mundo que estiver ali à volta a ler aquele comentário vai dar... uma onda de maldade. Então, imagina que... Sei lá, aquilo fica... Aquilo não sai. Não acaba. Aquilo não tem fim. Eu vou receber aquilo até a minha morte. Porque aquilo faz [print] screen, aquilo existe.... Aquilo também afeta. A pessoa tá em casa. A pessoa, de repente, se for feio, pode abrir a janela e se atirar. E as pessoas não têm noção disso.

O apresentador então abre para perguntas dos ouvintes e as respostas são variadas. Ao analisá-las, percebo que - apesar da reclamação legítima dos LGBT moçambicanos que de fato são discriminados nas redes sociais - é evidente, pelo menos na rádio, a maior quantidade de comentários positivos, pró-igualdade e antidiscriminatórios, ainda que alguns sejam ambíguos, o que reforçaria a impressão geral de uma maior tolerância em Moçambique em relação à homossexualidade. É o exemplo do ouvinte Júnior, do bairro da Liberdade, que quando perguntado o que faria se visse uma imagem de dois homens se beijando nas redes sociais, dá a seguinte resposta:

Apenas continuaria a ver outras coisas. Apenas continuaria a ver outras fontes, não faria nada. [...] Escolha deles... É a escolha deles [...] Mas apenas ligava para comentar acerca de algo - se não me engano, um jovem acabava de falar aí sobre screenshots. A situação dele colocar um texto e as pessoas fazerem screenshots e [?] se ofender. Acho que, sinceramente, no meu ponto de vista, não é uma situação para ofender alguém. Independentemente do seu gênero sexual, seja lésbica, ou tanto faz, não é? Existem pessoas maldosas de várias formas tanto para qualquer situação. Screenshots as pessoas sempre vão fazer. E no meu ponto de vista - não sou gay - sou homem, por acaso, não é? - já conheci pessoas gays e acho que são as pessoas mais fortes psicologicamente, emocionalmente, que conheço. Pelo o que passam, pela negação das pessoas, essa situação toda. Então, acho que não é uma situação de eles sentirem-se incomodados com isso, as pessoas [?] com todo mundo. Tanto como existem pessoas boas que vão estar a favor. Então é só seguir com a vida assim. E continuar com o vosso progresso.

O episódio tem ainda outros pontos altos, que valem a pena ser trazidos, por evidenciarem o impacto de um movimento de “visibilidade” em um contexto cultural de discrição sexual. Por exemplo, a reclamação dos LGBT convidados em relação ao fato de eles não terem a mesma liberdade que desfrutariam os heterossexuais ao demonstrarem seus afetos nas redes sociais, sem serem taxados de estarem se expondo demais.

Eu tenho amigas que comentam, por exemplo... tem fotos, tem vídeos que andam no status agora, muito fofinhos de casais a se pegar, vídeos, um sexy cute, que é um bocadinho quente, um bocadinho sexy, um bocadinho love, um de fundo bem fofas, casais héteros... Eu vejo todo mundo a postar no status, porque é bonito. Mas as pessoas dizem que “Ah, vocês gays se expõem muito”. Mas são os mesmos vídeos que os heterossexuais também fazem. [...] Ainda dizem assim: “Não precisam. Podem ser homossexuais, mas não precisam se expor [...]”. Normalmente nudes tão fofinhos entre casais na piscina, entre héteros, é muito fofo. Mas entre homossexuais não é fofo: é “promíscuo”. Entre nós, já não é bonito.

A reclamação de Sue revela um dado fundamental. Trata-se do embate entre uma cultura que tradicionalmente reserva a sexualidade à intimidade e aos espaços privados, como em outros contextos africanos (Broqua, 2013; Dankwa, 2009; Epprecht, 2004; Kendall, 1998; Murray & Roscoe, 1998; O’Mara, 2013) e duas outras forças modernas: o aparecimento de um movimento social que reivindica desde há algum tempo a visibilidade de sua sexualidade; e algo mais geral e recente, que são as novas tecnologias de produção e incentivo de visibilidade em nossa pós-moderna cultura cibernética. Tanto o movimento LGBT quanto os jovens moçambicanos de uma forma geral parecem estar tensionando antigos pressupostos culturais de discrição, quando o assunto é a sexualidade - e mais particularmente a homossexualidade.18 O que Sue reclama, portanto, é que se a sexualidade de maneira geral está, de fato, mais visível na cultura cibernética atual, os homossexuais também querem dela participar, sem serem deslegitimados. O que ela reivindica, basicamente, é: “Se todos agora podem, por que não nós LGBT?”. A resposta evidente é a “homofobia”.

Episódio 4 - Conjugar uma transformação da política sobre os corpos e manter o valor da senioridade

No quarto programa, cujo tema é “família”, temos a notícia de uma peça teatral moçambicana, à época em exibição em Luanda, que tratava do tema da homossexualidade. O jornalista Francelino Zeúte explica:

E a nova de hoje é muito caseira. É de Moçambique. [...] O grupo moçambicano de teatro O Girassol levou e exibiu em estreia a peça teatral que aborda sobre a homossexualidade, intitulada “O Quarto” no Festival Internacional de Teatro Cazenga (Festeca), organizado em Luanda, capital angolana. [...] Concebida em 2012 e levada ao palco mais de 18 vezes, dentro e fora do país, a mesma é resultado de uma parceria entre a Associação Cultural Girassol e a Lambda [...]. “O Quarto” é uma peça intimista que retrata o diálogo desconcentrado, desencontrado de um casal heterossexual no contexto moçambicano sobre o tema da homossexualidade. Este, esquivado por vários setores sociais, por recearem a estigmatização. A mesma aborda a contradição entre o amor verdadeiro e as convenções sociais, entre o segredo e a abertura, entre o silêncio, entre a mentira e a busca pela felicidade.

Infelizmente, ao longo do meu trabalho de campo, a peça não fora reexibida em Moçambique. Mas algumas críticas que recolhi de jornais locais, em razão da estreia da peça ou de suas reexibições, pareceram bastante positivas, algumas classificando o espetáculo como “uma das melhores obras do nosso teatro contemporâneo” (A Verdade, 25/02/2014).19 Aqui importa notar como a institucionalização da homossexualidade se dá em várias frentes no contexto moçambicano: na atuação do próprio movimento social, nas mídias, nas artes, etc., convergindo para um discurso mais ou menos unificado que não só define o que é a homossexualidade, como a legitima enquanto forma possível de identidade e existência no mundo. Isso fica claro em outro trecho deste mesmo programa, na conversa entre um ouvinte músico de nome Jay, que liga para o programa, e os convidados:

Machachito: Desafio ao Jay pra fazer uma música que fale da diversidade sexual, que tal?

Jay: É assim, já foi tema de debate no estúdio onde eu trabalho. E a gente começou a ver como a sociedade haveria de aceitar a música, não é? Mas o tema ainda tá em dia. Nós ainda vamos ver... Eu ainda vou cozinhar melhor isso, epá, vamos lançar. Eu posso até ser criticado, mas eu quero trazer isto à tona. E vai acontecer...

Francelino, em seguida, complementa: “Os artistas têm um papel muito importante nesta desconstrução dos preconceitos, dos mitos, dos tabus e de todas essas questões. [...] Por exemplo, este tema homossexual...”. Ele se referia então não apenas à importância da frente artística-cultural na institucionalização da homossexualidade como ao tema central deste programa, que é a relação entre as famílias e seus membros homossexuais. Não à toa, a música do dia era “I’m Coming Out”, da cantora norte-americana Diana Ross. O mesmo jornalista assim contextualizaria a história desta canção e seu simbolismo para a cultura gay:

Para a musa do soul, Diana Ross, Nile declarou que a inspiração para compor a música veio depois de visitar uma discoteca na Califórnia, onde encontrou inúmeras drag queens fantasiadas de Diana, que nessa época já era considerada um ícone gay. A canção se tornou um dos maiores sucessos da carreira da cantora e a letra tem tudo a ver com o nosso universo colorido. Em I’m Coming Out - que pode ser traduzido como “Eu estou desabrochando” ou “Eu estou me assumindo” - o que muita gente relaciona com sair do armário. Aumenta o volume!

E é assim também que pela via cultural/artística/musical uma “epistemologia do armário” (Sedgwick, 1990) ganha terreno em Moçambique.

Dando prosseguimento ao tema do programa, o apresentador exibe entrevistas gravadas nas ruas com o seguinte questionamento: “Acha que existe um momento certo pra um homossexual assumir-se pra família?”. As respostas, quase todas, são no sentido de que os entrevistados não acham que exista um momento certo, apesar de vários responderem espontaneamente que quanto mais cedo fosse, melhor. Como vemos se repetir no programa, a maioria dos comentários tendem a ser antidiscriminatórios, pelo menos a maioria, o que novamente aponta para a dita “tolerância” aos LGBT em Moçambique. Mas o mais enfático contra a homossexualidade foi dado pelo quinto entrevistado, que aciona o argumento da exogenia da homossexualidade em África:

Eu acho que... não. Até porque a nossa tradição africana não aceita esse tipo de práticas homossexuais. Então, eu tenho certeza que nenhum pai, nenhuma mãe gostaria de saber que o seu filho é homossexual. Praticamente não há nenhum momento. Pode fazer essas coisas às escondidas, sem que os pais saibam que ele é homossexual.

Pelo tom e pela sua fala ter sido eventual e previamente cortada, não dá para afirmar que o sujeito entrevistado esteja compactuando com a prática homossexual desde que “às escondidas”, mas apenas diagnosticando sua existência social. No entanto, a recomendação de discrição para homossexuais “seja homossexual, mas não se exponha” é absolutamente gramatical em Moçambique (F. Miguel, 2019) e não seria estranho se o ouvinte quisesse isso mesmo sugerir.

Outro aspecto é a aparição neste mesmo programa do argumento da exogenia da homossexualidade. Muito utilizada para se referir à suposta origem não africana da homossexualidade (F. Miguel, 2019; Mott, 2005), desta vez, porém, ela aqui se expressa na ideia de que seria mais fácil aceitá-la quando ela é “de fora”, externa ao meio familiar. Nesse sentido, a oitava ouvinte diz: “Eu acho que a pessoa nunca está preparada para ouvir este tipo de coisas. Nós apoiamos mais os de fora, mas acredito que a situação quando dentro da nossa família, é muito difícil de aceitar”.20

Assim, a questão da exogenia da homossexualidade - seja no microcontexto de vizinhança (família nuclear, vizinhos, família extensa),21 seja no macrocontexto internacional (principalmente na relação entre África e Ocidente) - aparece novamente aqui. Isso demonstra - junto a diversas outras situações - como a ideia da exogenia da homossexualidade resiste operando no senso comum moçambicano, ainda que a visibilidade dos LGBT nativos e seu movimento político tenda, idealmente, a cada vez mais enfraquecer este argumento.22

Aqui é importante perceber ainda dois aspectos que dizem respeito à atuação do movimento LGBT ou dos membros por ele escolhidos para darem publicidade às suas ideias. Trata-se: 1) da noção de “respeito” que pretendem cultivar; e 2) de uma certa relativização do conceito de família. Sobre a última, temos a fala da convidada Sue, relativizando os laços consanguíneos para se classificar uma família como tal:

Eu sei que na minha família não me apoiam. Isso é um fato. Mas eu sei que... Pra mim... Desculpem se for a falar uma coisa assim, um bocadinho chocante, mas pra mim família não é de sangue. Família é aquela que a pessoa cria. Tem muitos pais, mães, irmãos que são só de sangue, mas não dão amor, não dão carinho. Eu tenho minha família com meus colegas de treino do taekwondo, por exemplo, são minha família. Porque estão sempre a apoiar-me. Existem famílias que são famílias de sangue, mas não são família de amor, afeto. A minha família quanto a isso não apoia, mas de acordo com o respeito que eu fui tendo com eles, eles acabaram por me respeitar.

Tal ideia de família não consanguínea tem rara ressonância no senso comum moçambicano. Assim, Sue - como ela mesma alerta para o caráter “chocante” de sua fala - está quebrando alguns paradigmas sobre o que é a família em Moçambique. Mas neste caso é possível perceber um fenômeno mais global sobre novos parentescos entre pessoas LGBT, discriminadas e marginalizadas por suas próprias famílias de sangue (Weston, 1991). Mas o primeiro aspecto, este sim, é uníssono entre os integrantes da Lambda que estiveram neste programa de rádio e que os dados sugerem ter ampla ressonância social. A defesa do “respeito” é uma constante e, curiosamente, bastante dirigido não apenas aos familiares, mas também e principalmente aos próprios LGBT, especialmente os mais jovens, quando em relação com suas famílias:

Não se bate de frente com a família. [...] A família, quer dizer, é nosso primeiro abrigo. Feliz ou infelizmente é nosso primeiro abrigo. É nossa primeira casa. É lá onde nascemos e crescemos. E evoluímos lá. Então deve ser de lá que nós devemos, primeiro, contato. A família não aceita, mas tudo bem, vai ter que respeitar.

Assim, percebemos, a partir de dados concretos, como se dá essa estratégia discursiva do movimento LGBT de uma não confrontação violenta, de estar preocupado supostamente apenas em “informar”. Mas isso não impede que os mesmos representantes do movimento teçam, nos bastidores, críticas duríssimas às famílias que não aceitam seus membros homossexuais (F. Miguel, 2019). O mais importante aqui, no entanto, é constatar o método: a construção contínua, pelo movimento LGBT, do que é a homossexualidade (e, consequentemente, sobre o que ela não seria) e os valores morais que estão informando tais definições.

Episódio 5 - Homossexualidade como sentimento e combate aos papéis sexuais

Esse trabalho continua no quinto e último episódio da temporada, exibido no dia 27 de dezembro de 2018, cujo tema foi “papéis sexuais”. Nele, é enfatizado o caráter natural da homossexualidade, quando, respondendo aos ouvintes, os convidados afirmam em uníssono que o ato sexual com um gay não necessariamente torna um heterossexual em um homossexual; e logo, que o ato sexual não é diretamente conectado à orientação sexual. Nesse sentido, a convidada Sue afirma que a homossexualidade, novamente, não teria a ver com sexo, mas sim com “alma”, com “amor”:

Primeiro explicar que uma pessoa não se torna homossexual. Primeiro erro está aí: não se torna, a pessoa descobre-se. Pode-se descobrir durante o sexo como não. Isso depende de pessoa pra pessoa. Agora, dizer que uma pessoa abandona a vida de hétero porque... (risos) Motivos são muitos. As pessoas inventam os motivos. Isso não existe. O que existe é: HSH, MSM. “Que que é isso?” HSH é homem que faz sexo com homem. Homossexualidade não é sexo, é amor, é carinho, é muita coisa. Sexo é só sexo, só cama, é prazer, é diversão, é aquele momento íntimo. Então a pessoa pode sim ter uma curiosidade. Não tem problema nenhum. Achar que “olha, sexo de mulher pode ser bom, deixa-me experimentar”. Isso não tem nada de mal. Está a experimentar. E só querer experimentar um poliamor, que é sexo em grupo. É que nem o sexo sozinho, que é a masturbação. É sexo só. Sexo não tem nada a ver com orientação sexual. Tem a ver com... sexo é corpo - não é alma. Homossexualidade é alma, é amor, nanana... por aí (risadas).

A definição de homossexualidade como um sentimento e não como uma prática sexual por parte do movimento LGBT, aqui, tem as funções simultâneas de: 1) naturalizar a homossexualidade (tirando-a do escopo da negociação moral e da possibilidade de “cura”23); 2) dessexualizar os homossexuais na percepção do senso comum moçambicano, associando-os não necessariamente ao que fazem na cama, mas ao sentimento “universal” e legitimado do amor; 3) legitimar as experiências homoeróticas de pessoas que se reconhecem como heterossexuais, no sentido de promover uma liberalização da sexualidade não só para si mas também para os outros; 4) fazer ingressar nas políticas de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, principalmente os homens que fazem sexo com homens ou “HSH”, que já são preocupação de alguns de seus programas de saúde.

Enquanto algumas dessas funções são intuídas da minha experiência de campo com interlocutores LGBT - inclusive com alguns destes mesmos que estão no programa - outras se evidenciam no depoimento seguinte de Machachito:

Porque realmente - como estamos aqui a dizer - o sexo não tem nada a ver com a orientação sexual da pessoa, é mesmo mental. É questão do prazer. A pessoa onde que se sente mais à vontade em fazer. Não é porque eu sou hétero, eu vou me meter com um gay, que eu vou deixar de ser hétero. É aquilo que estava a falar a Sue, temos os HSH, temos as MSM. Homens que fazem sexo com homens não são homossexuais. Não são bissexuais, não são gays. Prontos. Tem a adrenalina, tem a vontade de querer fazer sexo. E faz. Porque quer, porque o corpo precisa. Não é porque a pessoa fez sexo com um gay que vai se tornar gay. Não! Mentira! E também não coloquem os vossos irmãos que são homossexuais dentro dos quartinhos com trabalhadoras de sexo para torná-los homens porque isso não existe.

Mas o programa particularmente acaba voltado para um debate interno aos LGBT sobre papéis sexuais e seus supostos malefícios. Quem nos explica são Sue e Machachito, já que La Santa não participara deste último programa:

Papéis sexuais. [...] Eu gosto muito desse tema porque é um tema tabu tanto dentro quanto fora da comunidade. Tem muita gente mesmo dentro da comunidade que não tem informação. [...] Vou dar exemplo, um conselho pras meninas. [...] Tenho uma namorada que ela é masculina, mais ativa e não fica à vontade [...] de tirar a roupa... é comum [no] relacionamento entre duas mulheres. Porque ela [se] sente muito ativa, então ela acha que por ser ativa, tem que ser - desculpa - o homem. [...] “Fazer sexo com a minha mulher, ela sem roupa, eu com roupa”. Isso é muito errado. Pra meninas que têm umas namoradas assim, antes de despir a roupa dela, despir a mente. Nós não podemos forçar uma coisa agora. Ela fica à vontade com roupa. Claro que dói, mas vamos nas calmas. [...] Porque às vezes ela não fica à vontade com o corpo dela. Ela pode ser masculina, pode ser trans. Nós não podemos obrigar ela, porque... “Tu és mulher como eu, tu tens que fazer isso, porque...” Não tem nada a ver! A pessoa não pode ser obrigada a fazer uma coisa que não quer. A pessoa tem que ir nas calmas. “Minha namorada assim... Vou entender ela primeiro”. “Ai, amor, eu prefiro assim, eu prefiro assim”.

E Machachito continua:

Essa questão dos papéis sexuais estraga muito as relações porque as pessoas colocam-se dentro de uma caixa [...] Querem dar regras à vida sexual das pessoas. Não só a vida sexual, quer dizer, a vida amorosa. “Ah, eu sou o homem da relação”. “Ah, porque eu sou a mulher da relação”. Não existe homem da relação, mulher da relação! As pessoas, às vezes, não deixam o amor fluir de dentro delas, por causa dessa questão. [...] Porque as pessoas dizem “Ah, não, eu não posso fazer isso porque ele [o marido] não vai gostar, porque ele é quem paga as contas em casa”. As pessoas que são homossexuais querem muitas vezes adotar aquele costume de vida dos heterossexuais. E isso são coisas totalmente diferentes e não pode. “Ah, como eu sou um pouco mais afeminado em relação a ele, eu tenho que ser mais submisso, eu devo fazer isso ou aquilo. Quem faz tudo em casa sou eu”. Não pode! As pessoas colocam muitas regras. “Ah, porque na hora H, ele é que manda”. “Porque na hora H, [?] eu não posso fazer isto, eu não posso fazer aquilo”. Não pode! É uma coisa muito errada. Papéis sexuais praticamente não existem. Nós só vivemos dentro das quatro paredes aquilo que é o prazer sexual, não é? Não podemos nos impor... Falo muito mais pra nossa comunidade LGBT. Várias pessoas não deixam o amor fluir, não deixam... [...] “Ah, porque eu não posso me envolver com Wanda, porque a Wanda é muito masculina, eu não gosto de mulher assim masculina”. Não tem nada a ver...

Deni, um interlocutor homossexual moçambicano de 40 anos, contesta, como outros homossexuais moçambicanos, esta perspectiva do movimento LGBT local, reforçando uma perspectiva binária do gênero e a necessidade de cumprir seus papéis sexuais, mesmo em um casal formado por pessoas do mesmo sexo:

- Muita das vezes se diz “não há papéis”, não é? Nessa relação de homossexuais não há papéis. Mas para mim há papéis! (risos) - Ah, ok. E quais são os papéis? (risos) - Pra mim há papéis. Há o ativo e há a passiva. Não é? Então há que mudar o homem que tu te sentes mais à vontade, aquele que tu te sentes “Wow”, que pra mim é esplêndido. Então há aquele... Há coisas que eu faço, mas que fazia só por fazer. (Entrevista com Deni, Maputo, 29/06/2018)

Em minha tese de doutorado (F. Miguel, 2019), pude discutir com mais detalhes e escrutínio as noções de gênero e sexualidade de meus interlocutores e os padrões que observei operarem no sul de Moçambique. Aqui, quis enfatizar como o movimento LGBT, através dos convidados da Lambda neste programa de rádio, institui as noções de “homossexualidade”, “homossexual”, “papéis sexuais”, “sexo”, “orientação sexual”, “identidade”, “amor”, etc. Com isso, quis mostrar que tipo de discurso sobre a homossexualidade o movimento LGBT moçambicano pretende institucionalizar. Basicamente, um discurso que advoga pela naturalidade da “homossexualidade”, não como prática sexual, mas como sentimento. Para além disso, a análise dos cinco programas de rádio demonstra como as ideias de “exogenia” e “tolerância” são trazidas no cotidiano do movimento LGBT, demonstrando sua enorme atualidade.

Considerações gerais

A dita tolerância moçambicana no que diz respeito à homossexualidade ou às pessoas LGBT é ambígua. Por um lado, os moçambicanos - com distintas práticas sexuais - apontam para as discriminações que sofreriam os LGBT, seja em casa seja pela sociedade mais ampla; por outro lado assumem que não vivem em uma sociedade que persiga, que encarcere ou que mate pessoas LGBT - como eles veem acontecer em Estados nacionais vizinhos ou além-mar. A tolerância é uma categoria nativa e não cabe ao antropólogo apontar sua falsidade, mas sua lógica. Como categoria nativa, ela está em disputa na ciência, na religião, na militância e no dia a dia das pessoas.

Nesse sentido, a “tolerância” moçambicana ainda está sobre a mesa. Alguns grupos militantes reafirmam a estratégia de uma política com “respeito” que busca criar ressonância dessas novas identidades e da liberdade de elas existirem. Assim, mais do que forçar o Estado a transformações jurídicas e reivindicar direitos civis, esses grupos pretendem espalhar a “informação” e cativar o “respeito” e a “aceitação”, primeiro das famílias e depois da sociedade mais ampla. É também por isso que, para esses grupos, o “advocacy” das cartilhas e dos programas de rádio parece agora mais urgente do que o “pride” ou o casamento gay.24 Por outro lado, o medo da insurgência e do caos da guerra (e talvez também certa dose de repugnância às pessoas LGBT) faz com que parte destes e de outros grupos reafirmem a necessidade de não dar visibilidade à questão, deixando estar como está, porque do outro modo é ainda incerto.

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1Em A História da Sexualidade, Foucault parece sugerir que é o poder institucional que propicia a multiplicação das sexualidades: “O crescimento das perversões [...] É o produto real da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres” (Foucault, 1988, pp. 47-48).

2Boellstorff afirma que “o ponto crucial é que a homossexualidade (como qualquer outra lógica cultural) se globaliza (ou se move) não como um discurso monolítico mas como uma multiplicidade de crenças e práticas, elementos que podem se mover independentemente entre si ou não se mover de forma nenhuma” (2005, p. 173); por exemplo, na Indonésia, toda a ideia confessional embutida na epistemologia do armário não teria tido ressonância entre os nativos gays e lesbi.

3A pesquisa de campo em Moçambique consistiu em um período de seis meses contínuos em campo, de março a setembro de 2018, na província de Maputo. Ao total, foram realizadas 36 entrevistas formais, entre pessoas LGBT e pessoas não LGBT, brancos, negros e mestiços, moçambicanos e estrangeiros, ativistas sociais, acadêmicos, artistas, trabalhadores urbanos, e quem mais estivesse disposto a sobre isso comigo conversar. Por fim, pude acompanhar, de forma mais sistemática, não apenas o dia a dia administrativo da Lambda, a principal organização LGBT do país, mas também o cotidiano de alguns de seus agentes comunitários e beneficiários LGBT em seus trabalhos na periferia da cidade, frequentar algumas de suas festas, seus cultos religiosos e conhecer alguns de seus lares e famílias.

4Há de se esclarecer que este programa era transmitido em língua portuguesa, o que poderia limitar sua ressonância. Para uma análise da TV moçambicana a respeito da homossexualidade, ver Souza (2015). Para uma análise da importância dos veículos de massa na institucionalização da homossexualidade em outros contextos pós-coloniais, ver Boellstorff (2005).

5O programa fora transmitido às quintas-feiras, na Rádio SFM, frequência 94.6 FM, nos dias 22 e 29 de novembro; e nos dias 13, 20 e 27 de dezembro de 2018.

6Disponível em https://www.cmjornal.pt/famosos/detalhe/filho-de-jose-eduardo-dos-santos-assume-homossexualidade

7Enquanto Moçambique aparece em terceiro lugar no ranking dos países africanos mais tolerantes em relação à homossexualidade - pelo menos em relação à homossexualidade de vizinhos -, em um recente levantamento do Guia Gay Internacional Spartacus (2019), Moçambique apareceria como segundo melhor destino turístico gay em África e 41º no mundo, aparecendo melhor colocado do que países como EUA (47º), Brasil (68º) e até mesmo Cabo Verde (95º). Fonte: https://spartacus.gayguide.travel/gaytravelindex-2019.pdf Algo, aliás, orgulhosamente divulgado pela Lambda: http://www.lambdamoz.news/indice_spartacus_destino_gay

8Colchetes acrescentados pelo autor para conferir sentido ao discurso do entrevistado, uma vez que se privilegiou a transcrição literal das falas e que é inviável trazer todo o conteúdo das mesmas.

9Sobre a dimensão racista da hipersexualização dos africanos em geral, ver Lyons e Lyons (2004).

10Mata-bicho é como, em Moçambique, se denomina o café da manhã.

11É possível observar um discurso semelhante reproduzido em uma das matérias de um jornal local (“Retrato de um país enquanto ‘gay’”, jornal Zambeze, 24/07/2003). A estratégia narrativa de conectar a homossexualidade ao amor para legitimar-se diante da sociedade mais ampla não é exclusiva a Moçambique e já fora também percebida em outros lugares, como na Indonésia (Boellstorff, 2005, p. 106).

12Para uma análise sobre como a epidemia de HIV/Aids raramente fora associada, em África, a práticas ou a indivíduos homossexuais, ver Patton (1992) e F. Miguel (2019).

13Como veremos pelas respostas dos ouvintes e pela ênfase nas respostas dos militantes, essa não é uma pergunta retórica, tampouco seria uma dúvida apenas para os não LGBT. Em A Sombra dos Dias (Melo, 1981), o personagem homossexual moçambicano Guy se coloca a mesma questão: “Seria que alguma vez, como homossexual, sentiria ou encontraria aquele mesmo amor que os outros têm à sua espera, na vida? Ou seria que ele existiria apenas entre o homem e a mulher?” (grifo do autor, p. 252).

14A questão da descendência é um importante valor não só em Moçambique, como em grande parte do continente africano. Loforte diz que Moçambique - como em outros contextos em África - tem uma “sociedade capitalizadora de seres humanos” (Loforte, 2000, p. 210), em que a descendência tem valor não apenas como continuação do grupo linhageiro, como garantidores de mão de obra e da segurança dos pais em contextos rurais. Chipenembe demonstra em sua tese de doutorado os conflitos vividos por mulheres lésbicas moçambicanas que se recusam a casar-se com homens e ter filhos (Chipenembe, 2018).

15Isso não é uma exclusividade moçambicana. Em um verbete sobre ativismo na África subsaariana, publicado na Global Encyclopedia of Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, and Queer (LGBTQ) History (2019), Aylward e Oluoch apontam que enquanto nas “democracias industrializadas avançadas” há um foco de suas agendas para a promoção de mudanças legislativas, tal estratégia não seria adequada para a África subsaariana. Isso porque a maioria da violência contra indivíduos LGBTQI na África subsaariana ocorreria nas mãos de familiares, amigos ou outros civis, e não nas mãos de agentes da lei (p. 13).

16Importante ressalvar, porém, que a ênfase na senioridade como diacrítico africano em relação às sociedades ocidentais produziu alguns exageros. Primeiro que a senioridade não pode ser tida, como defende Oyěwùmí para a sociedade yorubá, como único ou mais relevante critério de hierarquização social em África - desconsiderando o gênero como outro marcador igualmente relevante (Bakare-Yusuf, 2003). Em segundo lugar, a leitura da autora sobre a família patriarcal nas sociedades ocidentais desconsidera a senioridade como marcador também fundamental na distribuição do poder no agregado familiar e na vida política dessas sociedades.

17Segundo Sokari Ekine (2013, p. 10), “O pânico moral contra a homossexualidade no continente é sistemático e indicativo de uma campanha instrumentalizada e bem organizada que expõe a estreita relação entre os fundamentalismos religiosos e culturais afirmados através de vigorosas agendas políticas nacionalistas”.

18 Mbembe (2014, pp. 175-178) chega a falar de uma revolução sexual “silenciosa” em África e Ekine (2013, p. 85) aponta para o recentíssimo fenômeno da visibilidade LGBT no continente.

19Disponível em: http://www.verdade.co.mz/cultura/44312-girassol-denuncia-segredos-do-quarto

20Algo que também é acionado para explicar o tratamento dado historicamente à homossexualidade pela mídia impressa do país. Ou seja, porque a homossexualidade é uma prática ou uma identidade de fora, dos estrangeiros, ela seria aceitável como prática ou identidade desses outros, mas não para os próprios moçambicanos (F. Miguel, 2019).

21É isso que acontece com o jovem Pablo, outro interlocutor de pesquisa cuja mãe tem amigos gays, empresta capulana para seus amigos gays amarrarem na cintura (assim como fazem as mulheres), mas, apesar de saber da orientação sexual do próprio filho, tem dificuldade em aceitá-lo. Sobre as famílias das classes populares em Moçambique, tanto como vetores de institucionalização de dados modelos de homossexualidade, assim como sobre a relação que estabelecem com seus membros que assumem essa identidade, ver F. Miguel (2019).

22Essa parece uma contestação de Vale de Almeida (2010, pp. 205-211) aos estruturalistas franceses, entre eles, Françoise Héritier, que defendiam a inviabilidade simbólica do casamento homossexual, por supostamente não corresponder ao sistema de reprodução sexuada, por sua vez necessariamente binário. Vale de Almeida afirma que, sendo uma realidade no Ocidente, já é um fenômeno antropologicamente observável, logo, o argumento da inviabilidade se desmontaria.

23Sobre a “cura gay” em Moçambique, ver F. Miguel (2019).

24Para uma análise minuciosa não apenas das polêmicas internas aos ativistas LGBT sobre a adesão ou não à pauta do casamento gay em Moçambique, mas também das razões elencadas para a inexistência até o presente momento de marchas ou paradas gays locais, ver F. Miguel (2019).

Recebido: 28 de Novembro de 2019; Aceito: 30 de Novembro de 2020

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