Introdução
As pessoas sempre se moveram ao longo dos tempos e há muitas razões que levam a esse deslocamento geográfico. Algumas pessoas buscam novas oportunidades econômicas, outras tentam escapar de conflitos armados, pobreza, fome, insegurança alimentar ou outras privações dos direitos humanos. O deslocamento humano nas últimas décadas também se deve a efeitos adversos das mudanças climáticas, desastres naturais ligados ou não a mudanças climáticas ou outros fatores ambientais. Esses deslocamentos podem envolver fluxos mistos de pessoas, sejam refugiados ou migrantes, que se mudam por razões diferentes, mas que podem usar rotas semelhantes.
Hoje, o mundo experimenta um nível sem precedentes de mobilidade humana que normalmente ocorre sem incidentes. O relatório de 2020 da Organização Internacional para as Migrações (OIM)1 aponta um aumento na escala de migração internacional em relação aos dados dos últimos relatórios, apresentando o número atual de 272 milhões de migrantes no mundo2, sendo que quase dois terços são migrantes em busca de trabalho. O relatório Tendências Globais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)3 mostra que a maioria dos imigrantes está em idade produtiva - 74% deles entre as idades de 20 e 64 anos -, de modo que poderiam ser agentes de desenvolvimento. Aponta ainda que 70,8 milhões de pessoas foram deslocadas à força até o final de 2018, destas, 25,9% são refugiados/as e que a maioria dos imigrantes está em idade produtiva - 74% deles entre as idades de 20 e 64 anos4 - de modo que poderiam ser agentes de desenvolvimento.
O Brasil, segundo o relatório da OIM de 20205, é o terceiro no ranking de países com deslocados internos decorrentes de desastres, brasileiros que cujo acesso aos direitos mais básicos lhe é negado em seu próprio país.
Hoje são milhões de migrantes vulneráveis e refugiados em todo o mundo buscando meios de subsistência para si e suas famílias. Eles são privados de acesso aos serviços públicos mais básicos, como saúde, educação e oportunidades de trabalho decente. Mais de 60% dos refugiados vivem em áreas urbanas6 e, nesse contexto, as empresas têm um papel importante a desempenhar.
Os fluxos migratórios e o mercado de trabalho brasileiro, segundo o relatório anual da OBMigra
Na América do Sul, onde 70% da migração na região são intrarregionais, o número de migrantes aumentou 11% entre 2010 e 2015. Devido às disparidades econômicas e do mercado de trabalho entre os países da região, a maioria dos migrantes se move em busca de trabalho. Países do Cone Sul, como Chile, Argentina e Brasil, tiveram aumentos de 16 a 20% de populações migrantes entre 2010 e 2015 e têm algumas das maiores populações migrantes da América do Sul, atraindo trabalhadores migrantes dos países andinos e do Paraguai7. Os migrantes da Venezuela chegaram a quatro milhões em todo o mundo8.
A imigração para o Brasil no período de 2011 a 2018 foi marcantemente caracterizada por fluxos de pessoas vindas do hemisfério sul, diferentemente dos fluxos migratórios no século XIX e início do século XX, de origem no hemisfério norte.
O relatório anual de 2019 da OBMigra9 aponta que a movimentação de imigrantes - solicitantes de refúgio e refugiados - cresceu significativamente de 2011 a 2018. São 168 mil refugiados e migrantes venezuelanos10, seguidos por haitianos e cubanos11 que ocupam os primeiros lugares dos fluxos de migrantes no mercado de trabalho formal. Segundo o relatório, nos primeiros seis meses de 2019 a movimentação de trabalhadores venezuelanos foi superior à de todo o ano de 2018, o que sinaliza que o mercado de trabalho formal vem absorvendo vigorosamente os imigrantes que chegam ao Brasil.
Em um quadro geral o relatório da OBMigra mostra que as autorizações de trabalho para refugiados no período de 2011-2018 foram majoritariamente do tipo temporário, seguidas do tipo permanente12. Em 2017-2018 foram concedidas 24 326 autorizações temporárias de trabalho e apenas 1021 permanentes. O relatório mostra que o perfil dos migrantes que buscaram acesso ao mercado de trabalho brasileiro, no período de 2011 a 2018, é de 92,3% homens, na faixa etária entre 20 a 34 anos e de 35 a 49 anos, sendo eles profissionais das ciências e das artes, seguidos de técnicos de nível médio. Com relação ao nível de escolaridade dos refugiados os dados apontam que 54% das autorizações foram para refugiados com nível superior, 37% para refugiados com nível médio e apenas 2% para aqueles com ensino fundamental incompleto. Em 2018, o total de concessões para refugiados com níveis superior, pós-graduação, mestrado e doutorado foi de 66,5% de todas as autorizações.
O perfil sociodemográfico dos solicitantes de refúgio e refugiados no mercado de trabalho brasileiro no ano de 2017, segundo o relatório de 2019 da OBMigra, «é de pessoas oriundas do hemisfério sul, homens, nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos de idade, pretos, solteiros, com nível médio completo»13. No mesmo ano, os refugiados com vínculo ativo (emprego formal) com empresa no Brasil eram senegaleses (23,3%), venezuelanos (16,8%) e haitianos (14,9%). Os refugiados sem vínculo ativo (informal) com empresa no Brasil, em 2017, são na sua maioria senegaleses (29%) e bengalis (12,6%). O relatório aponta que no período de 2011 a 2018 os refugiados entraram e saíram do mercado de trabalho formal, ficando desempregados ou entrando na informalidade. No ano de 2018, foram 71 882 contratados por empresas e 62 921 desligados de empresas. Dos desligados de empresas, apenas 12% entram no mercado informal e 88% ficam desempregados. O que pode indicar que as empresas ainda não adotam políticas e práticas de acesso ao mercado efetivas e que possam garantir trabalho a longo termo.
Os grupos ocupacionais de inserção dos refugiados no ano de 2017 são «em sua maioria, trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados (32,1%) e trabalhadores da produção de bens e serviços industriais (49,9%)», o que indica que os setores industrial e do comércio dão acesso ao maior número de refugiados no Brasil. Em termos regionais, a concentração de refugiados no mercado de trabalho em 2017 é no Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais) e no Sul (Rio Grande do Sul e Paraná), seguidos do Nordeste (Pernambuco) e Norte (Amazonas)14.
O relatório mostra que o fluxo de migrantes para o Brasil vem aumentando em decorrência do agravamento da crise migratória global e de algumas situações regionais, como, em especial, a da Venezuela. No entanto, o Governo brasileiro vem adotando postura avessa às políticas humanitárias no que se refere à acolhida no território brasileiro de migrantes vulneráveis e refugiados, reforçando o discurso de que os migrantes são ameaça à soberania nacional, ameaçando retirar o Brasil de uma das iniciativas mais importantes no tratamento da questão, o Pacto Global para Migrações, o que denuncia uma tendência às políticas cada vez mais restritivas e injustas para os migrantes vulneráveis15.
Desta forma, diante da insuficiência da política migratória brasileira, na forma como vem se delineando no último ano, a despeito do quadro normativo vigente16, de se direcionar a objetivos humanitários, como a garantia do acesso dos refugiados e migrantes vulneráveis ao mercado de trabalho brasileiro17, é necessário refletir sobre novas formas de enfrentar os desafios desta crise migratória global e buscar soluções mais efetivas.
Agência corporativa para a paz sustentável
Os dados apresentados acima mostram que os desafios impostos ao mundo pela crise migratória global, tal como vem se delineando na última década, são cada vez maiores, mais complexos e mais abrangentes, no sentido de que as soluções possíveis não são mais exclusivas dos Estados. A complexidade dos fatores envolvidos nesta faceta da realidade global e a gradativa perda do poder estatal de bancar ações mais efetivas, abre para o necessário engajamento de outros atores, como as empresas.
Sem, é claro, desconsiderar os impactos negativos dos fluxos migratórios prolongados que têm sérios impactos socioeconômicos nos Estados receptores, o que pode levar a tensões políticas e sociais, a migração pode contribuir para o desenvolvimento se for apoiada por políticas apropriadas e pela participação de atores do desenvolvimento, como empresas, que podem contribuir com práticas de promoção do mercado de trabalho e assim impulsionar economias com novas habilidades e dinamismo assim como para a realização do direito ao trabalho decente para migrantes vulneráveis18.
Práticas corporativas (agência das empresas) voltadas para o acesso de migrantes vulneráveis ao mercado de trabalho são ações que contribuem para fomentar a paz, no sentido positivo deste conceito tal como se compreende em Galtung19. A paz tem sempre dois lados: a ausência de violência pessoal e a ausência de violência estrutural, que significa ausência de injustiça social, de desigualdades socioeconômicas, esta última denominada de «paz positiva». Neste sentido, o conceito de paz positiva não se reduz apenas à paz como ausência de conflitos, mas à paz como sustentabilidade, como desenvolvimento, o que implica no reconhecimento do papel dos atores de desenvolvimento, como as empresas, na construção da paz.
No sentido positivo do conceito, empresas são agentes da paz, pois podem contribuir para a redução das causas do conflito, promovendo a estabilidade, a prosperidade e o desenvolvimento no local em que atuam20. Entre as ações que podem ser tomadas para promover a paz, a implementação de políticas que garantam emprego e oportunidades21, fundamentais em países como o Brasil, que tem recebido muitos migrantes em situações de vulnerabilidade económica. Essa vulnerabilidade e, principalmente, as condições de escassez de trabalho formal afetam as condições de paz neste país22.
A agência corporativa para a paz já foi descrita em vários relatórios que descrevem boas práticas corporativas23 com impacto social no local onde são implementadas, o que significa uma agência moral significativa, fundada na paz como valor, a despeito da suspeita24 de que estas boas práticas sejam contrabalançadas com o princípio da supremacia do interesse dos acionistas, princípio forjado nas teorias econômicas neoclássicas e que se funda na ideia de que as relações econômicas são comportamentos racionais de um homo economicus, que só pretende a maximização de seu auto interesse, no caso, o lucro25.
A paz sustentável como objetivo das empresas - que justifica práticas corporativas voltadas para a proteção dos direitos humanos básicos numa determinada sociedade - significa um comportamento ético fundado na paz em sentido amplo, tomado como um hipervalor26. Neste sentido, políticas e práticas corporativas de acesso de migrantes vulneráveis ao mercado de trabalho significam um comportamento ético voltado para a proteção de direitos humanos fundamentais, o direito ao trabalho decente destas pessoas27, o que significa fomentar a paz sustentável e contribuir para a realização da justiça social.
Ressalta-se que as práticas corporativas de proteção aos direitos humanos trazem impactos sociais e políticos positivos, principalmente em contextos nos quais o governo local não cumpre ou cumpre insatisfatoriamente suas funções na garantia dos direitos, como no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil. Nestes contextos, estas práticas têm se mostrado fundamentais.
No plano normativo, a proteção e a assistência aos migrantes vulneráveis e refugiados são direcionadas principalmente ao Estado, que tem o dever primário de proteção, mas o imperativo dessas normas também afeta a comunidade internacional, especialmente as organizações internacionais e organizações não governamentais. Doutrinas mais recentes interpretam o princípio básico da responsabilidade de proteger como o primeiro dever do Estado, mas numa situação em que não há capacidade ou vontade de agir, a comunidade internacional deve ter a oportunidade de agir em favor da proteção e assistência «às populações vitimadas».
A seu turno, os princípios orientadores da ONU sobre os deslocados internos (2014) e o Protocolo sobre Proteção e Assistência às Pessoas Deslocadas Internamente também apontam para a possibilidade de cooperação de outros atores internacionais (princípio 27). No entanto, ainda não há consenso sobre a justificativa para atribuir um dever legal de proteção humanitária às empresas.
O respeito, a proteção e a realização dos direitos humanos são, também, tradicionalmente obrigações dos Estados. No entanto, a ONU vem investindo esforços para criar mecanismos aptos a regular as ações das empresas, devido à fragmentação de suas atividades28. Nesse sentido, em 2005, a ONU nomeou John Ruggie como representante especial em direitos humanos e questões corporativas para estabelecer uma estrutura inicial de prestação de contas que foi concluída em 201129. O marco Ruggie delimita a obrigação das empresas de proteger, respeitar os direitos humanos e de remediar o seu não cumprimento a estes direitos, definindo os deveres de prevenção, investigação, punição e reparação de infrações aos direitos humanos, fazendo recomendações mais precisas sobre as obrigações de direitos humanos dos Estados e aquelas que visam as relações entre o Estado e as empresas, dando mais atenção à definição do conteúdo e limites das obrigações corporativas30.
É certo que os três pilares de Ruggie marcam uma importante e nova fase ao lidar com o problema do engajamento das empresas com os direitos humanos, estabelecendo uma plataforma inicial para orientar ações e iniciativas assim engajando cada vez mais as empresas com as obrigações de direitos humanos, embora ainda limitadas a obrigações negativas de respeitar/proteger e mitigar danos31.
No entanto, a despeito de sua importância como ferramenta inovadora para orientar as ações das empresas em direção a padrões normativos de direitos humanos, isso não as mantém protegidas do ceticismo quanto à força jurídica de suas obrigações, porque ainda há a suspeita de que não é possível atribuir obrigações e responsabilidades às empresas que respeitam direitos humanos e que qualquer resultado mais efetivo depende da «boa vontade» das empresas em incluir essas obrigações em sua cadeia de suprimentos. Um tratado que busca impor obrigações impositivas de direitos humanos às empresas está sendo negociado na ONU e ainda não se pode concluir sobre sua efetividade no sentido de vincular mais fortemente as empresas com os direitos humanos32.
Em 2016, a ONU lança a Agenda 2030 e apresenta os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (UN/SDG), revitalizando a parceria global para a sustentabilidade e exigindo a participação de todos, incluindo ONG, autoridades locais e empresas, na sua implementação até 2030. Nesse sentido, a agenda reconhece pela primeira vez a contribuição da migração para o desenvolvimento sustentável e é vista como uma questão transversal, relevante para todas as metas de desenvolvimento sustentável e, por esse motivo, 11 das 17 metas de desenvolvimento sustentável contêm metas e indicadores relevantes à migração ou mobilidade.
As Nações Unidas/ODS também estabeleceram uma meta de «não deixar ninguém de fora», incluindo pessoas vulneráveis, como migrantes e refugiados. O trabalho decente e os quatro pilares da agenda do trabalho decente - criação de empregos, proteção social, direitos no trabalho e diálogo social - tornaram-se elementos integrais da meta de desenvolvimento sustentável, exigindo a promoção de crescimento económico sustentado, inclusivo e sustentável, pleno de emprego produtivo e trabalho decente.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também está envolvida no desenvolvimento de uma agenda para os trabalhadores migrantes que buscam conectar empresas e fornecedores multinacionais com a sociedade civil, organizações internacionais e governos, a fim de criar transparência ao redor do sistema global de migração e promover práticas de negócios especialmente para incluir o trabalhador migrante nas cadeias de suprimentos como fator relevante nas cadeias globais de valor - redes de empresas onde cada atividade económica realizada agrega valor ao produto e, nesse sentido, também ao trabalho do migrante.
Neste quadro, a crise migratória global e seus reflexos locais exige a participação de todos: a) dos Estados aos quais são imperativos humanitários; b) das organizações internacionais, o setor privado e a sociedade civil, para garantir os direitos humanos dos migrantes vulneráveis, privados das condições materiais mínimas para uma vida decente. Neste sentido, há um impulso global por um crescente protagonismo das empresas, como exigem os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU e, nesse esforço, organizações internacionais estão se mobilizando para desenvolver instrumentos mais fortes que comprometam as empresas com os direitos dos migrantes numa situação de vulnerabilidade, garantindo-lhes ao menos o direito a um emprego decente.
Práticas de acesso ao mercado de trabalho brasileiro de migrantes vulneráveis: análise do programa de formação e contratação de refugiados implementado pela Electrolux em Manaus
A escolha da Electrolux Brasil
A escolha da característica da empresa Electrolux, cuja prática será analisada, é fundamental no sentido de que sua política de promoção da paz através da garantia do acesso de migrantes vulneráveis ao mercado de trabalho brasileiro pode ter mais impacto social. Cada empresa pode contribuir de maneira diferente para a paz, dependendo de sua capacidade, objetivos e contexto em que opera. Assim, a escolha de uma empresa global com atuação no Brasil se deve principalmente pela capacidade económica de implementar políticas que possam contribuir para a paz, através do acesso de migrantes vulneráveis ao mercado de trabalho.
As grandes empresas são agentes económicos poderosos como fonte de investimento direto; seu poder de influência nos governos locais ou seus efeitos substanciais nas comunidades locais são importantes. Seu poder de transformação social é grande porque as práticas de construção da paz implementadas exigem que outros elos da cadeia produtiva se envolvam em práticas semelhantes, o que aumenta a disseminação da paz.
A Electrolux é empresa líder global33 em equipamentos que agrega marcas como Electrolux, AEG, Anova, Frigidaire, Westinghouse e Zanussi. A sede da empresa é em Estocolmo, na Suécia, onde foi fundada em 1919. As atividades da corporação compreendem o desenvolvimento, inovação e venda de eletrodomésticos e aparelhos para uso profissional.
A empresa conta com mais de 55 mil funcionários em 150 países e vende por ano mais de 60 milhões de produtos. O Brasil representa 60% nos resultados de vendas da América Latina e é a terceira maior operação no grupo, representando 12% da receita líquida nas vendas globais34.
Por todas essas razões, a Electrolux, como empresa global, está mais apta a provocar as mudanças positivas implementadas por suas políticas de paz comprometidas eticamente, como acesso a trabalho decente para migrantes vulneráveis, principalmente por conta do alto grau de concentração35 e extensa cadeia produtiva (supply-chain)36, o que aumenta o poder de influência das políticas que implementa em outros estados do Brasil ou em outros países. A escolha de uma empresa do setor industrial como a Electrolux justifica-se no fato de que este setor é o que mais contrata refugiados e migrantes vulneráveis, como aponta o relatório da OBMigra.
O Estado do Amazonas, por sua vez, tem sido o destino de milhares de refugiados que chegam ao Brasil da Venezuela e está em oitavo lugar em número de autorizações de trabalho por unidade da Federação37. O fluxo intenso e crescente de refugiados na região tem sido percebido não só pela comunidade local, mas pelas empresas, como a Electrolux, que tem uma de suas sedes em Manaus.
O programa de formação e contratação de refugiados
Segundo as informações disponíveis na plataforma Empresas com Refugiados,o programa de formação e contratação de refugiados38 desenvolvido pela Electrolux, no primeiro semestre de 2019, em Manaus, foi dividido em três etapas: a) preparação dos refugiados para o mercado de trabalho; b) contratação para vagas temporárias;e, c) a formação de profissionais autónomos. Estas três fases são independentes, o que significa que o refugiado ou refugiada que participa de uma não precisa obrigatoriamente participar das outras, que, ainda assim, permanecem disponíveis a todos.
A fase de preparação é dividida em quatro módulos. O primeiro módulo é a preparação de currículos em português, entrevistas e processos seletivos no Brasil. O segundo, consiste na segurança no trabalho. O terceiro módulo consiste na gestão de desperdícios e o último na preparação em refrigeração básica. Os cursos são oferecidos durante uma semana, três horas por dia. Esta seria efetivamente a fase de capacitação do refugiado nas técnicas deste mercado.
A segunda etapa consiste na contratação para vagas temporárias nas áreas de operação oferecidas pela empresa, devido ao aumento da demanda por mão de obra na fabricação de ar-condicionado por conta da proximidade do verão. As vagas são inicialmente sazonais, mas com possibilidade de efetivação. Esta é apenas uma possibilidade e, neste sentido, o refugiado ou a refugiada, embora capacitados para atuação no mercado de eletrodomésticos, podem voltar à situação de vulnerabilidade, seja ao desemprego ou à informalidade.
A terceira e última etapa é a formação em manutenção e refrigeração, com a finalidade de preparar profissionais autónomos, sem vínculo empregatício - certificados pela empresa - para oferecer assistência técnica aos produtos da marca Electrolux. Até junho de 2019 ainda não tinha iniciado. Esta etapa não agregaria força ao programa como meio de acesso ao mercado de trabalho formal, mas a contribuição seria na habilitação e qualificação de profissionais autónomos, o que estaria a depender das demandas pelos profissionais especializados, o que ainda não seria suficiente para garantir a autossuficiência financeira do refugiado ou refugiada de modo a garantir o acesso aos direitos mais fundamentais para si e para sua família.
A proposta do programa, segundo a empresa, é a de transformar as pessoas (refugiados), habilitando-as através do ensino de técnicas de manutenção das máquinas, dos processos produtivos e ainda possibilitando o conhecimento de um novo idioma. Neste sentido, o programa parece mais limitado à capacitação dos refugiados como profissionais autónomos, do que garantia de trabalho formal, o que, segundo declarado, só acontece temporariamente como meio de atender a uma necessidade contingencial da Electrolux.
Conclusão
A proposta deste artigo foi analisar, no contexto da crise migratória global e suas consequências no Brasil, o programa de formação e contratação de refugiados da empresa Electrolux como agência corporativa para a paz sustentável, para avaliar até que ponto esta prática tem efetivamente impacto social, como potencial de inserir refugiados/as e migrantes vulneráveis no mercado formal de trabalho brasileiro.
Os dados apontam que a crise migratória é um processo global e regional em evolução, estando o Brasil no caminho do fluxo de refugiados/as e migrantes vulneráveis. Esta crise é ainda mais grave em países em desenvolvimento, pela fraqueza de suas instituições e pela insuficiência das políticas de acesso ao mercado de trabalho para estas pessoas. Diante disso, a agência corporativa para a construção da paz sustentável é uma forma de estender as exigências de respeito, proteção e realização de direitos humanos a agentes privados, que por sua capacidade económica podem, através de boas políticas e práticas corporativas, incluir e garantir direitos e assim aumentar a justiça social e o desenvolvimento do país.
No contexto da crise econômica que o Brasil atravessa é grave o problema do desemprego, que em 2019 atingia 12,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE39. Taxa que se mantém constante, com pequenas variações nos últimos dois anos. Ainda segundo o IBGE, a informalidade, como resposta a esta crise do mercado de trabalho, chega ao patamar recorde de 41,4% (autónomos, dos empregados sem carteira e dos não remunerados), nos quais os trabalhadores não possuem garantia de direitos, incluídos os direitos trabalhistas, como direito a um salário justo e previdência social.
No caso dos refugiados/as ou migrantes vulneráveis, que, por sua condição não possuem acesso aos direitos e serviços básicos, a informalidade é uma situação precária que não melhora sua condição de vida e que contribui em termos gerais para o agravamento da pobreza40. Nesse sentido, o programa da Electrolux mostra-se insuficiente como prática de construção da paz sustentável, pois como empresa global, líder do setor, suas boas práticas em direitos humanos poderiam ter muito mais impacto social, através de programas mais efetivos de acesso ao mercado de trabalho formal.
Embora o programa seja até certo ponto uma prática positiva, no sentido de que capacita e assim agrega competências profissionais à refugiados/as e os/as ajuda na sua integração social, esta prática não pode ser considerada uma agência para a paz sustentável como argumentamos acima, visto que não diminui a situação de precariedade, e não fomenta o desenvolvimento. O programa, na medida em que não garante aos/às refugiados/as e migrantes vulneráveis o direito ao trabalho decente, via acesso ao mercado de trabalho formal, não garante os direitos que dele decorrem, isto é, a sua autossuficiência e de sua família, o que seria fomentar sua condição como agente de desenvolvimento.