1.Introdução
A educação interprofissional (EIP) é uma abordagem educacional em que atores de duas ou mais profissões de saúde têm a oportunidade clara e intencional de aprender em conjunto, de forma interativa, visando a estimular e reforçar práticas colaborativas e qualificar os serviços ofertados (Reeves, 2016; Reeves et al., 2016, 2013). Estudos apontam o potencial da EIP para qualificar a vivência dos usuários no cuidado (Reeves et al., 2016), bem como a prática profissional, ampliando a satisfação dos trabalhadores (Peduzzi et al., 2020; Song et al., 2017), sendo fundamental para dissipar estereótipos e preconceitos (Guraya & Barr, 2018; Visser et al., 2018). Em parte, esse potencial é pertinente ao seu arcabouço teórico-conceitual e metodológico, comprometido com a construção de processos educativos para profissionais de saúde mais capacitados e propícios para trabalhar em equipe e, consequentemente, para a consolidação do Sistema de saúde (Reeves, 2016; Peduzzi et al., 2013). É preciso, no entanto, superar a ideia de que a EIP se resume a juntar os atores de diferentes profissões num mesmo espaço para dividirem uma experiência de aprendizagem (Reeves, Xyrichis & Zwarenstein, 2018). Assim, essa abordagem precisa ser planejada e executada de forma interativa, significativa e compartilhada, com claro objetivo de desenvolver a colaboração entre os participantes (Barr & Low, 2013). Para Reeves et al. (2016), não se aprende a trabalhar em equipe de forma colaborativa apenas fazendo o trabalho em saúde por si. É fundamental que essa aprendizagem seja reforçada por metodologias que produzam conhecimentos e competências para o trabalho em equipe e, também, que promovam a colaboração (Peduzzi, 2016). Vários estudos corroboram essa perspectiva, indicando a necessidade de novas investigações a partir dos processos interativos vivenciados pelos alunos durante as aprendizagens de educação interprofissional, tanto na graduação quanto na pós-graduação, a fim de verificar os processos metodológicos dessas atividades, analisar suas evidências e potencialidades no desenvolvimento de conhecimentos, competências e comportamentos para o efetivo trabalho em equipe (Allvin, Thompson & Edelbring, 2020; Guraya & Barr, 2018; Reeves, 2016). Há mais de 30 anos a EIP é foco do interesse dos pesquisadores na Europa, Estados Unidos, Canadá e Ásia. A atenção ao tema intensificou-se em 2010, com a publicação do Framework for Action on Interprofessional Education & Collaborative Practice. Elaborado pela Organização Mundial da Saúde, esse documento reforça a potencialidade da EIP para transformação da formação dos profissionais de saúde e melhoria da qualidade dos sistemas de saúde (World Health Organization [WHO], 2010). No Brasil, nos últimos anos, vem sendo verificado um esforço para incorporar a educação interprofissional nas políticas indutoras de reorientação profissional em saúde (Reeves, 2016; Reeves, et al., 2016). Nesse contexto, destaca-se o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). De forma inédita, esse programa pelo edital de sua nona edição, denominado PET-Saúde Interprofissionalidade, o PET-I aplica as bases teóricas e metodológicas da EIP para promover mudanças curriculares alinhadas às Diretrizes Curriculares Nacionais para todos os cursos de graduação na área da saúde, além de iniciativas de educação permanente. Desse modo, o PET-I reforça a estratégia educacional como instrumento de melhoria da qualidade da atenção e de aprimoramento da formação profissional em saúde pelas instituições de ensino e serviços de saúde na perspectiva do Sistema Único de Saúde brasileiro- o SUS (Brasil, 2018a). O objetivo desse estudo foi descrever as experiências e conhecimentos construídos coletivamente na implementação do PET-I, a partir da análise dos grupos focais e dos portfólios realizados pelos participantes, de forma longitudinal à implantação do PET-Saúde Interprofissionalidade em uma universidade pública do centro-oeste brasileiro.
2.Metodologia
Trata-se de uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa vivenciada pelos integrantes do Programa PET-Saúde/Interprofissionalidade (2019-2021). A vivência foi desenvolvida no período de agosto de 2019 a novembro de 2020 envolvendo os estudantes, preceptores e tutores de um programa de educação para o trabalho em saúde em uma universidade pública federal na Universidade no centro- oeste brasileiro.
2.1 Contexto
O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) é uma das mais importantes políticas indutoras de formação profissional em saúde, de fortalecimento do SUS e de apoio ao desenvolvimento da EIP no Brasil (Rossit et al., 2018). Fundamentado nos pressupostos da educação pelo trabalho (De Cesaro & Santos, 2020), ancora-se principalmente na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (Costa, 2014; Haddad et al., 2010), expressando claramente a intenção de utilizar a interdisciplinaridade como um importante eixo de vivência da realidade no processo formativo (Costa, 2014; Haddad et al., 2010) e na interprofissionalidade para a transformação da formação em saúde (Freire Filho et al., 2019). Em síntese, o programa motiva o trabalho em equipe e prepara os participantes para a prática colaborativa, necessária para o cuidado integral (De Cesaro & Santos, 2020; Forte et al., 2016; Costa et al., 2015; Brasil, 2009), além de propiciar a educação permanente dos profissionais de saúde em seu ambiente de trabalho (Brasil, 2008). Mas foi apenas em 2018, com o edital “PET-Saúde/ Interprofissionalidade” (PET-I) (Brasil, 2018a), que o programa estabeleceu efetivamente uma vinculação com a EIP. O Ministério da Saúde contribui com informações técnicas e ajuda financeira aos projetos por meio de bolsas (França et al., 2018). A edição atual do PET-I tem periodicidade bienal, teve início em abril de 2019 e será concluída no fim de 2021. Contempla os 14 cursos da área de saúde oferecidos por instituições de ensino superior públicas ou privadas, sem fins lucrativos, em parceria com Secretarias Municipais de Saúde. Foram selecionados 120 projetos de instituições de ensino superior de todas as regiões do país, envolvendo cerca de 7.000 participantes (Brasil, 2018a), com a intencionalidade de estabelecer um processo de acompanhamento, assistência e avaliação das ações de EIP, com vistas a seu fortalecimento e sua dispersão (Freire Filho & Forster, 2020; Freire Filho et al., 2019).
2.2 Descrição do programa
O presente estudo relata a experiência do PET-I em uma universidade pública no centro-oeste brasileiro. A universidade, atendendo ao edital, implementou o projeto fora do currículo formal, onde a participação era voluntária, sendo que os participantes se inscreveram para a seleção e composição dos grupos tutoriais. Os professores tutores são os docentes nas instituições de ensino superior; os preceptores, os profissionais que atuam em pontos da rede de atenção à saúde e os estudantes de diversos cursos de graduação De Cesaro & Silva, 2020; Brasil, 2018b). Para o programa, a universidade dividiu os participantes selecionados em cinco grupos interprofissionais, fazendo o equilíbrio de diferentes profissões para garantir contato com profissões diferentes, sendo cada um formado por 12 participantes e que eram compostos por seis alunos de diferentes graduações, três tutores e dois preceptores que envolveram na universidade os seguintes cursos: Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Fisioterapia e Medicina. Cada grupo funcionava de modo a desenvolver discussões e exercícios de formação para o trabalho em equipe, por meio de atividades interprofissionais. O programa incluiria uma etapa para levantamento dos conhecimentos e das experiências anteriores dos participantes, uma fase de estudos dos elementos teóricos e práticos da EIP e seria seguido por uma fase mais prática de aprendizagem nos serviços de saúde. Esta última fase teve que ser readequada, devido à ocorrência da pandemia e a consequente suspensão de atividades presenciais. Durante o projeto foram realizados treinamentos e atividades de leituras, observações e rodas de conversa para a discussão de percepções e vivências para que as equipes através da aprendizagem interprofissional se envolvessem em um diálogo aberto para a reflexão e compartilhamento de perspectivas, experiências e conhecimentos profissionais, para que melhorassem a comunicação, ganharem conhecimento e compreensão de outras profissões de saúde, e vivenciarem a dinâmica do trabalho em equipe interprofissional. O contato com os usuários e a comunidade não foi muito explorado, nem mesmo antes da pandemia, porque a Secretaria de Saúde do município impunha limitações à atuação dos alunos da universidade nos serviços de saúde municipais. Em geral, essas atividades ocorreram em ações de educação, e não de clínica, em praças, num shopping e no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Ainda assim, os integrantes puderam desenvolver competências colaborativas e aprender uns com os outros. Os vários cursos on-line contribuíram para o alinhamento conceitual do PET-I, mas foram as webconferências, as iniciativas de maior relevância, especialmente durante a pandemia. Elas possibilitaram o “contato” virtual com pessoas, profissionais e instituições de todo o mundo, momentos de imensa troca de conhecimentos e experiências entre os diferentes projetos PET-I no país. As dinâmicas no Google Meet, no Zoom e no Google Classroom promoveram uma qualificação dos participantes no uso de ferramentas e tecnologias digitais, o que lhes possibilitou diversas atividades interativas e participativas, que lhes trouxeram um pouco de leveza no meio da pandemia e promoveram um intenso diálogo sobre a EIP na saúde. É evidente que houve dificuldades, e muitas. Principalmente no início, durante os primeiros acessos às tecnologias e devido aos problemas de conexão da internet. A coordenação local do PET-I decidiu como metodologia de formação e avaliação a elaboração individual de portfólios que se baseassem no protagonismo e na singularidade do participante na construção de conceitos, reflexões, propostas e ações, num processo ensino-aprendizagem ativo, para promover o desenvolvimento de indivíduos mais reflexivos e críticos e incentivar conhecimentos, atitudes e competências com criatividade (Cotta & Costa, 2016).
2.3 População e amostra
Foram convidados os participantes dos cinco grupos do PET-I. Os participantes foram abordados pelo grupo de comunicação eletrônica comum a todos eles. No entanto, apenas integrantes do Grupo 02 responderam ao convite. Acredita-se que houve incompatibilidade de horário, tendo em vista que os grupos já tinham horários fixos de reunião, e aceitar mais esse convite seria uma atividade extra. O tamanho da amostra foi adequado para o estudo, pois a saturação de dados foi alcançada. A saturação de dados em um estudo qualitativo é um padrão-ouro através de qual um tamanho de amostra intencional é importante (Cresswell, 2012). A população de estudo foi composta por seis estudantes dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia, Medicina e Educação Física. Entre as docentes, duas eram psicólogas, uma é enfermeira e a outra, fisioterapeuta; também havia uma docente coordenadora (professora da Biomedicina) e uma docente tutora (professora da Medicina). Assim, os critérios de seleção foram os estudantes, docentes e tutores vinculados ao Programa PET-I que aceitaram livremente participar do estudo e que tinham pelo menos 75% de participação nas atividades realizadas.
2.4 Coleta de dados
O estudo foi realizado em três fases, cada uma delas com procedimento de coleta de dados específico. A primeira delas, antes da imersão dos participantes nas atividades do PET-I, consistiu em um grupo focal, nomeado Grupo Focal 01, cujo objetivo era conhecer os saberes prévios dos participantes acerca da EIP e do trabalho em equipe. A segunda foi longitudinal ao projeto, por meio da coleta dos portfólios e do registro das atividades a distância, para a avaliação das experiências, percepções e reflexões dos participantes relatadas no decorrer do projeto. A terceira fase compreendeu o segundo grupo focal, convocado remotamente, após as intervenções previstas para a equipe pelo projeto, e teve por objetivo verificar as mudanças dos conhecimentos, experiências, percepções e reflexões depois de um ano de projeto. Com base no referencial teórico da EIP, foi elaborado um roteiro para a condução dos grupos focais, composto de questões-chave baseadas no objetivo da pesquisa. A discussão foi desencadeada por uma questão norteadora para desdobramento do problema: “Por que aprendemos separados se depois trabalharemos juntos?”. O intuito foi problematizar a realidade dos serviços de saúde e levantar temas pertinentes ao processo de formação em saúde na perspectiva da EIP. Em seguida, o mediador conduziu os participantes por meio da “técnica do funil”, trazendo as seguintes questões implícitas: o que eles entendiam por educação interprofissional, seus efeitos e sua realização prática; o que eles entendiam por trabalho em equipe, como seria feito, seus pontos fortes e fracos. Depois, buscou-se conhecer as experiências prévias do grupo, saber se alguém já tinha trabalhado em equipe ou experimentado uma aprendizagem compartilhada e verificar seus resultados, estratégias e expectativas de aprendizado ao fazerem parte do PET-I.
2.5 Análise de dados
Buscando conhecer a vivência dos docentes e estudantes que participaram da pesquisa, bem como suas percepções e seus saberes sobre educação interprofissional na experiência PET-I, utilizou-se a análise temática de Bardin (2011), tendo também como base o referencial teórico-conceitual e metodológico da EIP. Isso foi alcançado lendo e relendo dados dos grupos focais e dos portfólios e com a anotação inicial das palavras-chave e frases. Isso levou ao desenvolvimento das categorias e subcategorias. As categorias e subcategorias foram analisadas indutivamente. Isto foi seguido pela identificação das conexões através das categorias, o que levou ao desenvolvimento dos temas (Creswell, 2012). Para garantir a confidencialidade dos participantes, foi utilizado o código com a letra A para os estudantes e conforme a ordem que forem surgindo suas falas (de 1 a 6); a letra P designa as preceptoras e numeradas conforme sua ordem de apresentação no discurso (de 1 a 4); e a denominação Prof para as docentes da universidade (1 e 2). Este processo permitiu aos pesquisadores construir uma trajetória do aprendizado e das experiências em EPI dos participantes do programa ao longo do tempo. Em particular, o enredo foi desenvolvido do ponto de vista das mudanças longitudinais nas percepções destes sobre a EIP e o trabalho em equipe. Para aumentar a confiabilidade da análise qualitativa, dois pesquisadores participaram da análise dos dados. Esses autores depois, cruzaram a interpretação e a análise dos dados. Os dados foram analisados por cada grupo focal e pelos portfólios, por vez e a análise destes serviu como amostragem teórica e auxiliou os pesquisadores a alcançar saturação de dados.
2.6 Considerações éticas
A autorização ética foi obtida do Comitê de Ética em Pesquisa em Saúde (CEP) da Universidade, por meio do parecer de no 3.727.135. Cada participante voluntário deu consentimento informado por escrito para participação, após receberem informações verbal e escritas sobre o objetivo do estudo, incluindo todos os riscos e benefícios ao participar. Medidas foram tomadas para salvaguardar o anonimato e a confidencialidade de todos os participantes.
3.Resultados
Os encontros do PET-I eram quinzenais, sempre às sextas-feiras, mas poderiam ser agendadas outras atividades conforme oportunidades de participação em atividades extras. Apesar de as atividades serem abertas a todos os 05 grupos do projeto, não houve adesão dos subgrupos nas atividades propostas entre si e também para esse estudo. Sendo assim, a participação da população de estudo limitou-se aos participantes do Grupo 02, isso talvez porque uma das preceptoras desse grupo fosse uma das pesquisadoras desse estudo. Do número total de participantes do projeto (n = 60), apenas 12 participaram das atividades para coleta de dados e 06 desses forneceram os portfólios completos. Esses 12 participantes representaram as seguintes profissões: enfermagem (n-03, sendo 02 alunos e 01tutora); fisioterapia (n-02 alunos); medicina (n-02, sendo 01 aluna e 01 preceptora), educação física (n-01 aluno), psicologia (n-02 tutoras), fisioterapia (n-01 tutora); biomedicina (01 preceptora). Da análise das respostas dos Grupo Focais e dos portfólios emergiram os seguintes temas para a interpretação dos dados: Interprofissionalidade e trabalho em equipe; desenvolvimento de conhecimentos, competências e atitudes; fragilidades do projeto e recomendações. Para a realização deste trabalho, optou-se por focar na categoria Interprofissionalidade e trabalho em equipe. Os participantes do PET-I relataram que já tinham conhecimento prévio sobre a EIP e seus conceitos principais. A necessidade de uma atenção integral apareceu de forma muito frequente nas falas e discussões, inter-relacionada com a EIP - sendo esta entendida como uma nova abordagem educacional para a formação dos profissionais, que visa a quebrar paradigmas nas relações entre as profissões e a melhorar os serviços, como vemos nos relatos. [...] eu acho que é um novo olhar sobre a formação dos profissionais de saúde, tendo em vista todas as mudanças que a gente tem de paradigmas relacionados à saúde, que é necessária uma atenção integral ao sujeito. Então a EIP vem para trazer essa nova forma de formar profissionais de saúde, olhar com este novo olhar (P1). Notavelmente, mesmo no início do projeto, os participantes tinham visões positivas da EIP e de seus benefícios. Como observado nos discursos, os resultados são considerados para os pacientes, para os profissionais de saúde e para a formação dos profissionais. No que diz respeito às atitudes interprofissionais, os participantes refletiram sobre a importância da colaboração e o impacto da aprendizagem da EIP nas profissões de saúde. Os participantes identificaram a necessidade de um trabalho em equipe colaborativo, baseado no entendimento e respeito às diferentes perspectivas, funções e responsabilidades de modo que somente ao trabalharem juntas, as diferentes profissões, serão capazes de fornecer o melhor atendimento aos pacientes. A percepção positiva em relação à EIP foi demonstrada pelas sugestões empolgantes sobre como ela pode ser usada para melhorar o ensino e a aprendizagem na educação profissional em saúde. [...] mas esse trabalho é enriquecedor para todos. Para ambas as partes. Porque é que nem ela falou, o que eu não estou vendo o outro profissional enxerga, aí vão surgindo hipóteses, ideias, opções. É facilitar o trabalho de todo mundo (A1). Nas narrativas foram identificados fatores que atuam como dificuldades para o trabalho em equipe: a formação em saúde fragmentada; a falta de clareza e o desconhecimento dos papéis dos profissionais; a falta de interação entre eles; barreiras físicas e geográficas; cultura biomédica e fragmentada de assistência; estereótipos e visões deturpadas das profissões; pouco apoio institucional; e despreparo dos docentes. No entanto, durante a primeira atividade, foi possível identificar alguns estereótipos e pensamentos que evidenciavam a competição que existe no dia a dia dos serviços de saúde, e que permaneciam no grupo. Identifica-se nos relatos, que havia, no entanto, alguma evidência de reflexão no grupo, que viu essa tensão e a distinção profissional como aspectos da prática a ser negociadas como equipe, numa visão de colaboração, e quanto é importante desconstruí-las. Eles sugeriram que conhecer o próprio escopo de prática profissional e o de outras profissões tem o potencial de quebrar essas barreiras à colaboração. No que diz respeito à EIP e o trabalho em equipe, ao longo e após a vivência no PET-I, percebeu-se um amadurecimento sobre o entendimento da EIP, diante da melhoria de suas habilidades com o trabalho interprofissional e pelo debate fértil sobre a realidade da formação em saúde no país. As necessidades de saúde no contexto atual são muitas e dinâmicas; os participantes reconheceram o seu caráter complexo e defenderam a importância dos vários atores no trabalho em saúde, como relatado nos depoimentos. [...] A EIP é muito importante para melhorar a colaboração. A interprofissionalidade aumenta a qualidade da assistência aos pacientes. Assim, a EIP se mostra uma oportunidade de trocar conhecimentos, ampliar olhares, e projetar novos caminhos para a formação de profissionais de saúde mais preparados para práticas compartilhadas (A6).
4.Discussão
A análise dos dados permitiu entender e interpretar melhor a experiência dos participantes na construção da aprendizagem compartilhada. Também, ajudou a contextualizar o projeto, a dinâmica e as estratégias pedagógicas empregadas, reconhecer as competências colaborativas desenvolvidas para o trabalho em equipe, identificar os fundamentos teórico-conceituais da EIP, bem como evidenciar as diferenças entre a formação tradicional e a interprofissional, expressas nas reflexões do grupo. A análise ajudou, ainda, entender como esses processos formam as relações profissionais. Observou-se que a vivência no grupo PET-I promoveu a aquisição de mais conhecimentos sobre a educação e a prática colaborativa. Para Moreira et al. (2020), a vivência da formação no PET-I e em outras experiências similares de EIP possibilita novas aberturas na educação profissional, uma vez que intensifica a aprendizagem através da interação e do diálogo, num processo de comunicação que viabiliza uma aprendizagem mais significativa e dá aos participantes mais sentido para que desenvolvam a prática colaborativa. O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde, o PET-Saúde (Brasil, 2008), reforça o diálogo e a efetiva articulação de todos os envolvidos (universidades, profissionais, gestores de serviços, órgãos de regulação de profissionais, usuários e população) para a superação dos modelos dominantes da educação e prática uniprofissional, oferecendo oportunidades de desenvolver habilidades e competências para uma formação com perfil adequado às necessidades de saúde e de acordo com ideais do SUS (Forte et al., 2016; Costa et al., 2015; Brasil, 2009). Conceituada por Reeves et al. (2013) como situações de aprendizagem nas quais dois ou mais profissionais de saúde de diferentes áreas aprendem juntos, sobre os outros e uns com os outros, a EIP pode melhorar a qualidade do atendimento. Isso porque é uma abordagem educacional eficiente que enfatiza o aprendizado interativo entre as diferentes profissões com vistas a fortalecer parcerias, incentiva buscar resolver problemas ativamente em equipes interprofissionais. Portanto, os prepara para a prática clínica futura e os ajuda a moldar os aspectos interprofissionais desejáveis de comunicação, através do respeito aos papéis uns dos outros (Flood & Morgan, 2020). A EIP atraiu interesse internacional porque tende a substituir as barreiras à prática centrada na pessoa, como a competição entre os profissionais de saúde, pela colaboração e parceria, interesse e disposição para o trabalho em equipe, melhora da comunicação e desconstrução de hierarquias e desequilíbrios de poder, em compromisso com a igualdade e a responsabilidade coletiva (D’Amour et al., 2005). Estudos têm demonstrado a satisfação dos alunos e os resultados positivos de experiências dessa aprendizagem, com o aprimoramento do reconhecimento sobre outras profissões, melhor compreensão dos seus papéis, mudanças de atitudes e comportamentos em relação aos parceiros interprofissionais, valorizando o atendimento centrado na pessoa (Flood & Morgan, 2020; Peduzzi & Agreli, 2018). Além disso, a crescente demanda por uma assistência integral à saúde reforça a importância do trabalho em equipe interprofissional (Rocha et al., 2017). A prática colaborativa é uma ferramenta que tem potencial para preparar melhor esses profissionais para o cuidado integral (Toassi et al., 2020) porque ela concretiza em cenários de prática a colaboração interprofissional, revelando a interdependência do trabalho conjunto (Kwiatkowiski et al., 2020), em que eles podem, juntos, discutir as necessidades dos usuários e resolver problemas, pela reflexão, troca de conhecimentos e boa comunicação. Ainda assim, aponta Costa (2019), a perspectiva uniprofissional tem sido predominante na formação brasileira, sendo por isso a própria formação interprofissional um desafio para os profissionais já formados, inclusive os docentes que atuam nos cursos de graduação. Nesse contexto de reconhecer as falhas deixadas pelo ensino e pela prática uniprofissional, esta pesquisa concorda com Rossit et al. (2018) e reconhece que as políticas indutoras da formação em saúde tornaram- se uma ferramenta importante para nortear a formação profissional, fortalecer o SUS e apoiar o desenvolvimento da EIP no Brasil, o que pode ajudar a superar a fragmentação do trabalho em saúde no país. Assim, a EIP tem influenciado, nos últimos anos, as políticas públicas de reorientação da formação em saúde no país (Costa, 2016).
5.Considerações finais
Os participantes desenvolveram uma maior compreensão do contexto, sendo capazes de maiores reflexões e críticas sobre sua própria formação e a oferecida pela instituição. Com o desenvolvimento das atividades do programa, as percepções do grupo se intensificaram e houve o entendimento de que o processo poderia ser melhor quando as dificuldades e as sugestões de mudanças eram discutidas conjuntamente, o que reforça a importância do método escolhido para condução desse processo. O PET-Saúde apresenta-se como possibilidade de desenvolvimento de melhores capacidades crítico- reflexivas dos alunos, com ganhos inclusive para os docentes, a partir da promoção de educação permanente dos preceptores que atuam nos serviços. O PET-I oportunizou diferentes experiências de aprendizagem que contribuíram para a formação de profissionais mais críticos, reflexivos, proativos e preparados para atuar em equipe no mercado de trabalho. As atividades propostas pelo PET-I buscaram desenvolver as competências colaborativas ao dar mais autonomia aos participantes, incentivando um maior protagonismo para o seu desenvolvimento e exigindo deles uma maior colaboração interprofissional nas atividades que desempenhadas. Para tanto, foi necessário que os integrantes se conhecessem e confiassem uns nos outros e se comunicassem de modo a desenvolver um trabalho coletivo, e a adoção dos grupos focais como método foi essencial para garantir a interação entre os participantes. Essa vivência nos grupos focais foi o grande disparador da aprendizagem e reflexão sobre a integralidade do cuidado e o trabalho em equipe. Foi possível notar que as atividades eram planejadas, em sua maioria, coletiva e articuladamente pelos integrantes do grupo, com vistas a tomar o processo de aprendizagem um momento de encontro e diálogo. Desse modo, as reuniões quinzenais eram um espaço favorável ao compartilhamento, a troca, a escuta e a reflexão. Nesse contexto, observa-se que a realização de pesquisa exploratória de abordagem qualitativa favoreceu a criação e proteção desse espaço de integração desde a realização do primeiro grupo focal até a realização do segundo, incluindo o período de intervenção do programa. Assim, reforça- se a importância da adoção de metodologias qualitativas no processo de formação em saúde e interprofissionalidade.