I. COVID-19: A urgência e a geografia do conhecimento
A atual pandemia de Covid-19 é um evento extremo de escala global (McPhillips et al., 2018). Como tal, tem vindo a colocar todo um conjunto de desafios urgentes e rápidas alterações aos modos de organização da sociedade. Parecendo à primeira vista algo inesperado, importa notar que em janeiro de 2019 a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia listado dez ameaças à saúde pública global, que incluíam a ameaça de uma nova pandemia de influenza, o reacender do Ébola, entre outros patógenos de ameaça elevada quando associados à fragilidade de sistemas de cuidados primários (WHO, 2019). Sabendo-se que os grandes desafios globais de saúde pública não são uni-causais, pode dizer-se que o atual modelo de organização global da economia e da sociedade - caracterizado por fortes concentrações e intensos fluxos populacionais, associado à destruição em curso de ecossistemas naturais - levou à formação da “tempestade perfeita” na base da atual pandemia.
Tal como em outras crises epidémicas no passado, também o atual contexto de urgência tem levado à aceleração do volume de produção científica, bem como a milhares de novas colaborações entre cientistas de diversos países - hoje na base de promissores avanços e soluções clínicas associadas ao Coronavírus (Doudna, 2020). Sendo globalmente distribuída, a geografia da produção científica não é aleatória e apresenta hiatos temporais. De facto, à medida em que diferentes países passam pela curva epidemiológica, os mais afetados percecionam o caráter de urgência e, entre outras ações (ex. isolamento social), tendem a rapidamente direcionar recursos de ciência e tecnologia para melhor perceber, mitigar e debelar os efeitos da pandemia (Mendes & Carvalho, 2020).
No sentido de melhor entender estas geografias, e dando seguimento à análise inicial em (Mendes e Carvalho, 2020), este artigo tem dois objetivos. Em primeiro lugar, visa mapear a evolução das centralidades e geografias globais de (co-)produção de conhecimento científico associado ao Coronavírus, utilizando para tal evidência da base bibliográfica Scopus, antes e depois da irrupção da pandemia em janeiro de 2020. Em segundo lugar, e cobrindo uma falta de conhecimento generalizada neste domínio, visa começar a explorar as relações entre os países lusófonos e os mais relevantes centros globais de produção de conhecimento em Coronavírus, medido através de coautorias entre cientistas e suas instituições.
Conceptualmente, esta análise parte da premissa de que o conhecimento científico não é produzido de forma homogénea no tempo ou no espaço e, muitas vezes, resulta de colaboração entre atores distribuídos por várias geografias. Por um lado, os atores que compõem estas redes conectam-se entre si de acordo com diferentes tipos de afinidades ou “proximidades” (Boschma, 2005), dando origem a relações a diferentes escalas, ora concentradas à escala nacional em centros de especialização, ora integradas em torno de sistemas globais de produção de conhecimento (Binz & Truffer, 2017). A codificação e os processos de formalização inerentes à produção científica tendem a facilitar a sua circulação global, sendo a coautoria contingente à presença de afinidade cognitiva entre cientistas (ex. compreensão da área científica e da amplitude do problema), institucional (ex. partilha de códigos e modos de conduta científica, entendimento linguístico e cultural) e social (ex. relações de socialização prévia entre colaboradores) (Davids & Frenken, 2018). Por outro lado, a capacidade de produção e acesso a conhecimento relevante depende da capacidade dos países e das suas organizações de mobilizarem recursos tecnológicos, científicos e financeiros para este propósito. Esta capacidade é particularmente importante para que países relativamente periféricos e a alguma distância da fronteira tecnológica - tal como os países lusófonos - possam identificar conhecimento externo relevante e ancorá-lo internamente para os seus propósitos de desenvolvimento económico (Vale & Carvalho, 2013) ou, neste caso, de procura de soluções para uma emergência de saúde pública.
II. A evolução e a geografia da produção de conhecimento sobre coronavirus
Para explorar estas geografias, foram analisadas as (co-)autorias nas publicações científicas resultantes de uma pesquisa à base Scopus a 31 de maio de 2020, focada em dois períodos distintos: pré-crise (1 de janeiro de 2010 - 31 de dezembro de 2019) e pós-crise epidémica (1 de janeiro - 30 de maio de 2020). Ainda que a Covid-19 esteja associada a um novo vírus, foi utilizado como parâmetro de comparação a estrutura de produção de conhecimento voltada para a família dos Coronavírus mais relevantes (MERS-CoV, SARS-CoV), uma vez que existem semelhanças biológicas e de conhecimento científico relevante entre eles (Lu et al., 2020). Assim, a pesquisa procurou as palavras “CORONAVIRUS”, “COVID-19”, “SARS-COV” e “MERS-COV” no título, resumo e palavras-chave de cada artigo nestes dois períodosi, utilizando a escala do país para a análise de redes subsequente.
Enquanto que durante 2010-2019 foram publicados 7695 documentos com este perfil, apenas nos cinco primeiros meses de 2020 foram publicados 17 148 documentos - um aumento superior a 50 vezes a média mensal de publicações do período anterior. Dos 131 países que produziram artigos durante 2010-2019, apenas 11 não o fizeram após a crise. Em contrapartida, 20 novos países passaram a fazer parte deste sistema global de produção de conhecimento, tendo-se também observado um aumento no número médio de conexões entre países (medidas pelas coautorias, através do indicador de “Centralidade de Grau” - Degree Centralityii), passando de 29,77 para 31,17 conexões.
No primeiro período (fig. 1), é possível identificar a elevada centralidade dos Estados Unidos da América (EUA) nas redes de produção de conhecimento, seguida por um sistema europeu com destaque para o Reino Unido, especialmente no que diz respeito à sua capacidade de intermediação (Betweennessiii). Na Ásia, e em resultado das epidemias de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) da última década, as instituições chinesas (incluindo Hong Kong), bem como Coreia do Sul, Japão (e Austrália), não só apresentam volumes relevantes de produção científica como aparecem fortemente conectadas aos EUAiv. Do mesmo modo, a forte participação e centralidade do Egito e da Arábia Saudita neste sistema global e a sua associação aos países líderes não é alheia à identificação da Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS), cuja epidemia em 2014 provocou um elevado número de óbitos. Já no segundo período (fig. 2), observa-se que os EUA e as suas organizações mantêm a centralidade relativa anterior, contudo intensificando relações de coautoria com China, Reino Unido e Itália - que juntamente com Espanha foram epicentros europeus da pandemia e aumentaram significativamente os seus volumes de produção científica - a par da Holanda e Suíça, países com bases científicas sólidas e relevantes organizações internacionais.
Tendo sido o primeiro epicentro da pandemia de Covid-19, a China destacou-se quer em volume quer em centralidade nos três primeiros meses de 2020 (Mendes & Carvalho, 2020), tendo, entretanto, sido ultrapassada em termos relativos pelos EUA no seguimento da difusão global da pandemia. Não obstante, e de acordo com a hipótese levantada em (Mendes e Carvalho, 2020), a evidência sugere que a China possa ter desenvolvido vantagens estruturais neste sistema de produção de conhecimento. À data de 31 de maio de 2020, as publicações oriundas de organizações chinesas eram de longe as mais citadas, com um total de 18 357 citações, seguidas pelos EUA (com 4803), surgindo a China como polo de intermediação na região e como nó central de produção de conhecimento a nível global.
Considerando a estrutura deste sistema global, foi efetuada uma análise complementar para perceber o papel e as geografias mobilizadas pelos países lusófonos na co-produção de conhecimento associado ao Coronavírus (fig. 3). No seu total, estes passaram de 518 artigos publicados entre 2010-2019 (6,8% da produção global de conhecimento em Coronavírus) para 1423 (8,2%) nos cinco primeiros meses de 2020 (fig. 4). O Brasil destaca-se em ambos os períodos em volume de artigos, seguido por Portugal e, a uma distância significativa, por Moçambique e (a partir de 2020) pela Guiné Bissau.
Face a Moçambique ou Guiné-Bissau, é de destacar a ausência de Angola, em particular, nas redes estabelecidas em ambos os períodos. Por um lado, dado o reduzido volume de publicações dos países africanos lusófonos sobre este tema, a saliência relativa dos primeiros pode estar relacionada com a presença isolada de cientistas ou outras ocorrências avulsas que não traduzem necessariamente uma estrutura de ciência e tecnologia. Por outro lado, a especificidade do tema faz com que mesmo países que tenham realizado investimentos relevantes em investigação científica nos últimos anos possam estar ausentes nos dados coletados - como é notável no caso de Angola (Costa, 2017).
Enquanto no primeiro período o Brasil tinha uma ligação principal com os EUA e outras ligações de destaque com Itália, Reino Unido, Holanda, Alemanha, Cuba, entre outros, no segundo período o Brasil reforça a sua ligação Europeia ao mesmo tempo que amplia redes em África, na Ásia e na América Latina (passando a colaborar com 64 países vs 34 em toda a década passada). Também Portugal expande a sua rede de coautorias (de 45 para 56 países), diversificando as suas relações (tradicionalmente europeias) em direção a outros continentes. O volume de colaborações, quer de Portugal quer do Brasil com EUA e China aumentou rapidamente neste período, sendo as relações de ambos os países sempre mais fortes com os EUA (77 e 202 coautorias desde o início de 2020, para Portugal e Brasil, respetivamente) do que com a China (34 e 81 coautorias). As conexões de Moçambique são pontuais e pouco frequentes em ambos os períodos, tendo uma estrutura basicamente ligada aos continentes africano e europeu antes da crise, ampliando-a também para as Américas (nomeadamente EUA e Brasil) e Ásia no segundo período. Também neste período, Guiné Bissau passa a fazer parte deste ecossistema de produção de conhecimento, estando unicamente ligada a Portugal, Brasil e EUA. É apenas neste momento, após o início da crise, que estes quatro países lusófonos passam a estar conectados, ainda que pontualmente, através da coautoria de publicações ligadas aos Coronavírus.
III. Conclusões e implicações
A análise supra permitiu explorar a configuração do sistema global de produção de conhecimento científico sobre Coronavírus. A evidência sugere que esta configuração vem associada não apenas às capacidades científicas e tecnológicas dos países, mas também à própria geografia da doença. Por exemplo, o caso da MERS colocou os países do Médio Oriente em posição de destaque no primeiro período em análise; e o mesmo ocorreu com a China no início de 2020, logo ultrapassada em centralidade científica pelos novos epicentros EUA, Reino Unido e Itália - mostrando que a produção deste tipo de conhecimento tem uma variação temporal significativa e altamente direcionada pelo fator epidemiológico.
Neste sistema global existem centralidades bem definidas, que concentram os maiores volumes de produção e capacidade de intermediação de conhecimento. Os países lusófonos têm um papel periférico nestas redes, estando dependentes de outros nós globais para (co-)produção de conhecimento científico relevante. Ainda que o Brasil seja o 15º país em volume de publicações após a crise, sua centralidade nas redes coloca-o na 25ª posição. Por outro lado, a crise trouxe alterações nas geografias das redes mobilizadas por estes países, tornando-os mais integrados entre si e mais abertos a parcerias internacionais. Naturalmente, haveria que explorar até que ponto esta alteração terá efeitos dinâmicos ao longo do tempo, reforçando um novo conjunto de proximidades entre instituições científicas de diferentes países, ou se se dissolverá após a crise epidémica.
A evolução da pandemia tem colocado o Brasil como o novo epicentro desta crise. Neste sentido, seria interessante que novos trabalhos fossem desenvolvidos, ampliando o período analisado e identificando até que ponto esta nova realidade colocará o país em posição mais central nas redes. A mesma análise poderá identificar, também, se os países de língua oficial portuguesa se aproximarão mais do Brasil neste período, comparativamente aos demais países. Assim, será possível identificar se a componente institucional caracterizada pela proximidade linguística exercerá influência nas coautorias estabelecidas, bem como contribuir para o reforço de outros tipos de proximidade.