Introdução
A análise das questões relacionadas com os comportamentos aditivos e dependências (CAD) impreterivelmente tem de passar pelos valores de prevalência. Na Europa cerca de 1,2 milhões de pessoas estarão a ser tratadas pelo uso de substâncias ilegais (European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA], 2019), muitas, por consumo de múltiplas substâncias. No que se refere ao álcool, a Europa é a região do mundo com a taxa mais elevada de consumo (World Health Organization [WHO], 2018). No que se refere a Portugal, os dados apontam para a prevalência na população em geral, de consumo de qualquer substância ilícita (nos últimos 12 meses) de 4,8%, 4,5% para cannabis, 0,5% outras substâncias que não cannabis (EMCDDA, 2019). Mais especificamente e sobre as taxas de dependência da população geral, são apontados valores de 0,8% para o álcool (39,6% da população geral bebe diariamente), 0,7% para cannabis, 0,5% para opiáceos, e sobre todas as sustâncias aponta-se 0,2% de consumo injetável (EMCDDA, 2019).
Já no que se refere às respostas, verifica-se que cerca de 27.000 pessoas recebem tratamento, principalmente em ambulatórios, na rede pública, com destaque para os programas de manutenção medicamentosa com agonista opiáceo (17.246) (Guerreiro e Calado, 2019). Sobre a razão da procura de tratamento, verifica-se que 72% das pessoas que procuram os serviços, fazem-no pelo consumo problemático de heroína, no entanto, os dados têm sofrido uma evolução. Nos últimos dados disponíveis, nos utentes readmitidos, a heroína era apontada como a substância principal por 54%, mas, no que se refere a novos utentes, a canábis é apontada como a substância principal por 55% destes utentes (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências [SICAD], 2019).
As respostas do sistema de saúde, passam essencialmente pelo atendimento ambulatório e de base multidisciplinar (SICAD, 2013), e os programas de base medicamentosa são uma resposta essencial para responder à adição aos opiáceos e ao álcool: agonista opióide - cloridrato de metadona; antagonistas - naltrexona ou disulfiram; agonista/antagonista parcial - buprenorfina + naltrexona. Os programas de base medicamentosa são maioritariamente geridos por enfermeiros no dia-a-dia, que se focam na gestão do cuidado diário e nas necessidades dos utentes (Comiskey, et al., 2019). Sobre estas necessidades pode-se destacar o envelhecimento dos utentes, mais comorbilidades, policonsumidores e em acompanhamento há muitos anos (Larney et al., 2018). Frequentemente têm comprometimento da funcionalidade (Maglione et al., 2018) e vivenciam processos familiares complexos, com múltiplas consequências sentidas pelos mesmos, como ansiedade, depressão e stress (Ólafsdóttir et al., 2018).
Perante uma população vulnerável como aquela que recorre a estes serviços, com elevado risco de adoecer mental e físico, é imprescindível adequar as respostas às suas crescentes necessidades em saúde, partindo do conceito de perturbação pelo uso de substâncias como um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e psicológicos, que indicam que uma pessoa com estas caraterísticas continue a usar a substância, apesar de existirem significativos problemas relacionados (Mounteney, et al., 2016). Estas caraterísticas, devidamente integradas pelos profissionais de saúde, quando traçam com os utentes os seus projetos de acompanhamento/tratamento, necessitam de considerar o potencial de adesão terapêutica da pessoa. Especifica, e comprovadamente relacionado com adesão terapêutica, surge o conceito de satisfação com os cuidados de saúde, pois, tem sido investigada por várias disciplinas enquanto indicador de qualidade, relacionado com o estado de saúde (Donabedian, 2003).
A satisfação com os cuidados recebidos é um indicador relevante para a adesão terapêutica e para o sucesso da autogestão da doença (Alasad et al., 2015). Estudos têm revelado que esta satisfação com os técnicos que mais diretamente estão com as populações, como é o caso dos enfermeiros junto dos dependentes de substâncias nos programas medicamentosos, é um indicador fundamental para o sucesso da adesão terapêutica e para o sucesso de autogestão da doença aditiva (Comiskey et al., 2019; Alasab et al., 2015). Podemos definir satisfação com os cuidados de enfermagem, como uma atitude de alguém que foi beneficiário no seu percurso de saúde/doença, ou seja, como uma avaliação subjetiva no domínio cognitivo e emocional que resulta da interação entre as expectativas da pessoa acerca dos cuidados de enfermagem, e da sua perceção do real comportamento e caraterísticas dos enfermeiros (Ribeiro, 2005).
É uma realidade que a maioria das pessoas em acompanhamento nas equipas especializadas no âmbito dos CAD, estão integradas em programas de base medicamentosa, principalmente com metadona, buprenorfina e medicação aversiva/antagonista para o álcool. É neste sentido que surge este estudo, que tem como objetivos:
- Caraterizar a satisfação com os cuidados de enfermagem numa população atendida por enfermeiros num programa de suporte medicamentoso para pessoas dependentes de substâncias.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal, observacional, analítico, de abordagem quantitativa.
O contexto em estudo foi numa Equipa Técnica Especializada de Tratamento (ETET), da Divisão de Intervenção para os Comportamentos Aditivos e Dependências da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (Unidade com 824 utentes em seguimento, dos quais 569 em programa de suporte medicamentoso). A recolha de dados foi realizada em janeiro de 2019, durante uma semana, por assistentes externos não profissionais da unidade e não investigadores do projeto, junto da população que recorre ao programa de base medicamentosa. A abordagem era feita na sala de espera antes das consultas de enfermagem ou da toma medicamentosa presencial. Em caso de aceitação de participação, os questionadores conduziam a uma sala próxima, garantindo a privacidade, o que se pode considerar uma amostra não probabilística do tipo intencional. A população alvo era todos os utentes que nessa semana acedessem à unidade.
Instrumentos de recolha de dados:
- Formulário para caraterização sociodemográfica, psicossocial e estado de saúde, elaborado pelos autores, questionando as seguintes variáveis: idade, género, estado civil, agregado familiar, profissão, situação laboral e fonte de rendimento, consumo de substâncias psicoativas, tipo e tempo de programa farmacológico.
- Escala de satisfação dos utentes com os cuidados de enfermagem no centro de saúde (SUCECS), com 22 itens e com 6 subescalas/dimensões: Qualidade na assistência (6 itens); Envolvimento do utente (4 itens); Formalização da informação (3 itens); Promoção de elo de ligação (4 itens); Informação de recursos (3 itens); Individualização da informação (2 itens). Os itens da SUCECS são avaliados numa escala tipo Likert de quatro pontos, variando entre 0 (não se aplica/sem opinião) a 3 (sempre satisfeito), permitindo obter pontuações compreendidas entre 0 e 66 pontos (estes valores podem ser convertidos num valor entre 0-100%). É possível ainda a apreciação de cada subescala por valores médios (ajustado ao número de itens). Para valores mais elevados, maior a satisfação (Seabra et al., 2017).
Os questionários, depois de recolhidos, foram introduzidos por investigadores não profissionais da unidade, numa base de dados em formato Excel e posteriormente transcritos para uma base de dados Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 25 para Windows. Os dados foram anonimizados no momento de registo nessas bases de dados. Tratou-se os dados quantitativos com recurso à análise estatística descritiva e inferencial. Recorremos aos testes paramétricos para comparação de médias (t student, para comparação entre dois grupos, e Anova, para comparações entre mais de 2 grupos) e correlação (correlação de Pearson para relação entre variáveis contínuas), assumindo o teorema do limite central para as distribuições amostrais. A probabilidade de erro tipo I considerado foi de 0,05. Sobre o tratamento de dados, e no que se refere a ausência de resposta em algumas variáveis de caracterização, não se induziu nada a partir dos missings e os mesmos foram excluídos análise a análise.
Foi obtido o parecer da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (Referencia 111/CES/INV/2018). Aos utentes eram explicados os objetivos do estudo, solicitada a participação e pedido para assinarem o consentimento livre e esclarecido.
Resultados
Acederam ao serviço nessa semana 242 (N) pessoas, e destas, 181 (n) responderam ao questionário (taxa de resposta de 76%). A média de idade apurada foi 46,3 (dp=6,4) [23-76] anos, essencialmente homens (81,7%), solteiros (51,4%), com um valor médio de pessoas no agregado de 2,54 (dp=1,29) [1-8], muitos sem profissão (40%), desempregados (46,5%), e a viver de apoios sociais ou familiares (35,6%).
No que se refere à satisfação, a média apurada foi 59,36 dp=8,19 [23-66], que corresponde a um total de 89,9% (tabela 1). O instrumento utilizado (SUCECS22), demostrou uma boa consistência interna (Alpha de Cronbach=0,892).
A subescala que revelou maior índice de satisfação é a que respeita à “Individualização da informação” (inclui itens relacionados com explicação da informação de forma compreensível por parte dos enfermeiros, assim como quando estes se asseguram que o utente percebeu a informação e repetem se necessário) e com menor índice de satisfação “Informação de recursos” (inclui a preocupação em envolver os familiares, a informação sobre a utilização de outros recursos disponíveis e utilização de serviços de saúde) (Tabela 2).
Os itens com os quais os utentes se encontram menos satisfeitos são: item n.º 3 “Relativamente à informação, os enfermeiros preocupam-se em envolver os seus familiares ou as pessoas mais próximas” (2,26); item n.º 4 “Os enfermeiros preocupam-se em transmitir-lhe informação sobre os serviços que tem à sua disposição” (2,46); item n.º 10 “Quando necessita, é fácil contactar os enfermeiros da ET” (2,69). E os itens com os quais os utentes se encontram mais satisfeitos com os cuidados de enfermagem são: item n.º 21 “Relativamente ao modo como os enfermeiros lhe prestam os cuidados” (2,91); item n.º 6 “Os enfermeiros procuram explicar-lhe as coisas de forma compreensível” (2,88); item n.º 14 “Sente que os enfermeiros o colocam à vontade para pôr as suas dúvidas” (2,87); item n.º 2 “Sente que os enfermeiros se preocupam em fazer os ensinos que necessita para lidar com as suas necessidades em cuidados de enfermagem” (2,87).
Em relação à satisfação e às diferenças de género, verifica-se que as mulheres (média=60,21; dp=1,31) têm maior satisfação que os homens (média= 59,00; dp=0,74), embora a diferença não seja significativa (t(161) =-0,698; p=0,486; n=163). No que se refere à relação entre a idade e a satisfação, não se verificam relações significativas (rp=0,083;p=0,291). No que se refere ao estado civil também não se verificam diferenças significativas (F(4)=0,119;p=0,976).
Não se verificaram relações significativas entre o tempo de programa farmacológico e a satisfação, embora os dados apontem para que este seja maior, quanto menos tempo de programa (rp=-0,227;p=0,082). Os participantes integrados no programa com fármaco aversivo para o álcool têm maior satisfação com os cuidados de enfermagem (média=63,37; dp=3,99) que aqueles em programa de metadona (média=59,92; dp=7,21), embora a diferença não seja significativa (t(58)=1,316; p=0,193; n=60). Não se verificaram diferenças (usando o teste t student) na satisfação face ao consumo de substâncias embora os consumidores de benzodiazepinas tivessem o valor mais baixo (tabela 3). Não se verificaram diferenças na relação entre a satisfação e à quantidade de álcool consumido (rp=-0,013; p=0,922).
Discussão
A satisfação dos utentes é no geral muito elevada, na linha de outros estudos que associam valores elevados de satisfação quando as condições de trabalho dos enfermeiros são satisfatórias e estes têm as suas intervenções estruturadas e organizadas (Papastavrou et al., 2014). A observância de um cuidado estruturado e individualizado prestado por esta equipa, pode explicar os níveis de satisfação, e estes, por sua vez, reforçam esta avaliação do cuidado prestado.
Os valores mais baixos nas subescalas relacionam-se com a subescala “Informação de recursos” (que inclui a preocupação em envolver os familiares, a informação sobre a utilização de outros recursos disponíveis e utilização de serviços de saúde). Os valores mais altos, entre as subescalas, é na subescala “Individualização da informação” (itens relacionados com explicação da informação de forma compreensível por parte dos enfermeiros, assim como quando estes se asseguram que o utente percebeu a informação e repetem se necessário). O item com valor mais reduzido foi o item “Relativamente à informação, os enfermeiros preocupam-se em envolver os seus familiares ou as pessoas mais próximas” e o item mais cotado foi o item “Está satisfeito relativamente ao modo como os enfermeiros lhe prestam os cuidados”. Se a família continua a ser uma das dimensões mais lesadas diretamente, com maior sofrimento e sentidas pela própria pessoa com CAD, como o que é mais difícil de gerir do seu dia a dia (Ólafsdóttir et al., 2018), estes dados reforçam a necessidade de se reinventar a forma como as equipas podem continuar a integrar e a fazer da família o parceiro ideal para a abordagem centrada na pessoa com CAD (McCann & Lubman, 2017). No geral, há menos satisfação no que se refere a informação de recursos e formalização da informação, e mais satisfação na qualidade da assistência. Tal pode expressar dificuldades de os enfermeiros assumirem um papel centralizador da avaliação das necessidades e suporte ao que a pessoa precisa e posterior articulação interdisciplinar e interinstitucional.
Estes participantes, integrados em um programas de base medicamentosa, têm no geral indicadores de satisfação muito semelhantes pois não se verificaram diferenças face ao género, à idade, estado civil, tempo de programa, tipo de programa farmacológico. As respostas eficazes das equipas de saúde, especificamente nesta área dos CAD têm evoluído na perspetiva do cuidado centrado no cidadão e até integrando a perspetiva dos Patient Reported outcomes, ou seja, a negociação e centralidade naquilo que são as expectativas das pessoas para o seu próprio tratamento (Neale et al., 2016). Justificam ainda estes dados, as intervenções indicadas face às diferentes necessidades em diferentes fases do ciclo de vida (Diniz et al., 2015), as questões especificas relacionadas com o género (Greenfield et al., 2010) e inclusive, a evolução e a aprendizagem dos técnicos de diferentes programas (anteriormente separados em programas de apoio às pessoas uso problemático de álcool versus programas de apoio a pessoas com uso de todas as outras substâncias psicoativas) (Attilia et al., 2018). Em conjunto têm contribuído para respostas eficazes, satisfatórias e estáveis ao longo do tempo em que as pessoas permanecem nos programas.
Verifica-se que independentemente de ter alguns consumos, mesmo durante o programa terapêutico, a intervenção de suporte, estruturada e de proximidade contribui para bons resultados em saúde e qualidade de vida (Maglione et al., 2018). Neste estudo, os dados relacionados com as benzodiazepinas apontam, tal como em outros estudos, para piores resultados relacionados com fatores de sofrimento e disfuncionalidade (Xu et al., 2020).
Conclusão
A satisfação dos utentes com os cuidados de enfermagem é elevada, muito próxima do valor máximo, sendo a maior dificuldade apontada à inclusão de outros agentes no processo de acompanhamento e, a informação de outros recursos disponíveis. Face a estes resultados tão expressivos, importa a reflexão sobre se houve fatores que condicionassem as respostas. Organizou-se uma equipa externa de assistentes de investigação, assim como um espaço que concedia privacidade, tentava diminuir os riscos de respostas influenciadas pelo contexto ou receio de identificação das suas respostas anónimas. Os resultados mantêm aberta a discussão sobre a melhor forma de fazer investigação sobre satisfação.
Estes resultados demostram a mais-valia de um atendimento personalizado, nos programas de suporte medicamentoso, muitas vezes complementado por uma consulta de enfermagem de seguimento. A satisfação com os cuidados de enfermagem neste contexto é um indicador importante na qualidade dos cuidados prestados e a sua avaliação permite aos enfermeiros conhecer as dimensões envolvidas na satisfação dos utentes, e por outo lado permite integrar a opinião dos utentes na avaliação da qualidade dos cuidados que lhe são prestados.
São limitações deste estudo a impossibilidade de se extrapolar os resultados, quer pelo tamanho da amostra em relação à população em estudo, quer pela estreita ligação destes resultados à equipa de enfermagem que os atende, e aos cuidados recebidos.
Implicações para a prática clínica
A avaliação da satisfação com os cuidados de enfermagem possibilita aos enfermeiros monitorizarem um indicador determinante para a qualidade dos seus cuidados e, desta forma, integrando-o, contribuir para a avaliação das práticas e planeamento de respostas. Permite aos enfermeiros ajustarem a sua prática de cuidados, planeando as suas intervenções e organização estrutural, para responder ao que lhe é desocultado por este tipo de estudos.