Introdução
O presente artigo visa explicar as visões político-partidárias dos partidos que integraram o VI Governo Provisório português - o Partido Comunista Português (PCP), o Partido Socialista (PS) e o Partido Popular Democrático (PPD) -, face ao reconhecimento do Governo de Angola pelo Estado português, em fevereiro de 1976. A historiografia sobre o processo de descolonização de Angola centra não só a sua abordagem nas dinâmicas políticas entre as novas autoridades políticas portuguesas e os três movimentos de libertação nacional - a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) -, mas também nas dinâmicas políticas internas de Angola e Portugal1, negligenciando a fase do reconhecimento do Governo angolano pelo Estado português. A biografia política de Melo Antunes é, neste aspeto, uma exceção2. Ao apresentar os vários momentos que marcaram a vida política do então ministro dos Negócios Estrangeiros, Maria Inácia Rezola mostra, em linhas gerais, a forma como Angola foi discutida no interior do Estado português, evidenciando tanto o ambiente no Conselho da Revolução (CR) e no Governo, como na Assembleia da República. No entanto, não explica o papel dos partidos na tomada de decisão na resolução do problema de Angola. Este artigo visa preencher este vazio, explicando não só a forma como os partidos se posicionaram politicamente ao longo do tempo, mas também a sua importância no contexto do reconhecimento do Governo de Angola pelo Estado português3.
Durante o período em que a questão angolana foi discutida no seio do Estado português (novembro de 1975 a fevereiro de 1976), o PS e o PPD tornaram-se vitais no reconhecimento do Governo de Angola e influenciaram a tomada de decisão do Estado português. Assim, e num contexto de forte liderança do CR e no qual a condução da política externa portuguesa era da responsabilidade do Presidente da República4, por que razão é que estes partidos foram determinantes na gestão política da questão do reconhecimento da República Popular de Angola (RPA)? Para explicar o posicionamento dos partidos políticos, bem como a sua importância nesta matéria, recorreu-se à consulta das atas do CR. Estas atas encontram-se no Arquivo Casa Comum da Fundação Mário Soares e nelas constam informações importantes sobre a forma como a questão angolana foi abordada no interior do Estado português. As atas do CR foram complementadas com a imprensa periódica da época, designadamente o Diário de Lisboa, o jornal Expresso e o órgão oficial do PCP, o jornal Avante. Estes órgãos de comunicação fornecem dados importantes sobre a visão política de cada partido, nomeadamente declarações políticas.
O artigo estrutura-se em três partes. A primeira parte faz uma breve descrição dos elementos historiográficos que antecederam a independência de Angola. Neste caso, aborda-se não só a assinatura do Acordo de Alvor entre as autoridades portuguesas e os três movimentos de libertação nacional - a FNLA, o MPLA e a UNITA -, mas também o conflito político-militar entre os três movimentos. Na segunda parte apresenta-se o estado de reconhecimento internacional do Governo angolano, bem como a forma como as autoridades portuguesas encararam estas dinâmicas. Na terceira e última parte faz-se uma análise sobre a maneira como o PS, o PPD e o PCP se posicionaram em relação ao reconhecimento do Governo angolano.
Independência de angola: ponto prévio
No seguimento da Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, as novas autoridades portuguesas e os três movimentos de libertação de Angola - a FNLA, o MPLA e a UNITA - reuniram em Portugal para assinar os termos que conduziram Angola à independência. Trata-se da Cimeira do Alvor, realizada entre 10 e 15 de janeiro de 1975, no quadro da qual se reconheceu os três movimentos como «os únicos e legítimos representantes do povo angolano»5. A independência de Angola ficou agendada para o dia 11 de novembro de 1975 e seria proclamada «pelo Presidente da República Portuguesa ou por representante seu, expressamente designado»6. Durante o tempo da sua vigência, de 31 de janeiro a 11 de novembro de 1975, o poder passou a ser exercido «pelo alto-comissário e por um Governo de Transição»7.
Após a assinatura do acordo, as autoridades portuguesas e os três movimentos de libertação nacional comprometeram-se a cumprir e honrar os seus termos, e ao Governo de Transição competia-lhe, entre as suas várias funções, «preparar e assegurar a realização de eleições gerais para a Assembleia Constituinte de Angola», previstas para o mês de outubro de 19758. No final da cimeira, que contou com a presença dos líderes de cada movimento, Holden Roberto pela FNLA, Agostinho Neto pelo MPLA e Jonas Savimbi pela UNITA, o chefe de Estado português, o general Costa Gomes, mostrou-se otimista e «fez um apelo à paz e à ordem em Angola»9. Aos líderes de cada movimento de libertação, o Presidente da República portuguesa falou de um desafio duplo, que os mesmos teriam doravante de atacar: em primeiro lugar, deviam encontrar «soluções angolanas autênticas, baseadas na capacidade de diálogo, no espírito de cooperação e na boa vontade de servir»; em segundo, Costa Gomes enalteceu o desafio de «criar no século XX uma grande comunidade onde o espírito vença definitivamente os convencionalismos raciais»10.
Costa Gomes mostrou-se bastante otimista e perspetivou um futuro com grandes êxitos para os angolanos, nomeadamente a concertação política entre os três movimentos, principais guardiões do projeto político angolano. Entretanto, quer o otimismo demonstrado pelo chefe de Estado português, quer a vontade e o espírito manifestado pelos signatários no Acordo de Alvor, foram efémeros e, ao longo do tempo, o processo conheceu momentos de profunda tensão, ao ponto de os três movimentos entrarem em conflito militar11.
No dia 23 de março de 1975, as forças militares da FNLA atacaram a sede do MPLA em Luanda, sob pretexto de o MPLA tentar tomar o poder pela via da força com a ajuda dos oficiais portugueses pertencentes ao Governo de Transição12. Os acontecimentos de 23 de março de 1975 marcaram o início da luta pelo poder e, em meados de 1975, a FNLA/UNITA criaram uma espécie de coligação para derrotar o MPLA13. Apesar do clima de tensão que se vivia em Angola desde março de 1975, em junho desse ano os três movimentos reuniram-se em Nakuru, no Quénia, para encontrarem uma solução política do conflito14.
Era, na verdade, uma tentativa de salvar o Acordo de Alvor, que tinha sido rompido semanas após a sua assinatura. A tentativa de unidade que se postulou em Nakuru pouco ou nada serviu para reabilitar o Acordo do Alvor: as partes rapidamente rasgaram o compromisso e a escalada de conflito, até então circunscrito a Luanda, estendeu-se para o interior de Angola. Em julho, o MPLA expulsou a FNLA de Luanda, estendendo o conflito não só para o norte de Angola, mas também para o sul, regiões onde se encontravam instaladas a FNLA e a UNITA15.
Oscilando entre a dimensão militar e político-diplomática, a FNLA contra-atacou a partir do Norte, onde, de acordo com Tiago Moreira de Sá, «tinha estacionada uma coluna militar reforçada por tropas regulares do exército zairense e por uma força de mercenários portugueses comandadas pelo coronel Santos e Castro, que entrou em Angola em 14 de julho via Zaire»16. A partir do Norte, a FNLA pretendia chegar a Luanda e expulsar daí o MPLA, e este pretendia conter a ofensiva da FNLA para controlar a capital. Enquanto no Norte o combate era entre o MPLA e a FNLA, no sul do território o MPLA media forças com a UNITA, organização com pouca capacidade militar e a única que pretendia juntar as partes para solucionar o conflito pela via política17.
Em agosto de 1975 a UNITA viu-se forçada a entrar no conflito, devido à ofensiva do MPLA na zona do Moxico, local onde se encontrava o seu quartel-general18. Em resposta a esta ofensiva, as Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA) expulsaram o MPLA e a FNLA do Huambo e Bié19. Com a entrada da UNITA no conflito, a solução política para a questão angolana tornou-se cada vez mais irrealista e, em outubro e princípio de novembro de 1975, a FNLA e o MPLA intensificaram as suas estratégias de combate, com vista a alcançar o poder político pela força20. Assim, o braço armado da FNLA (o Exército de Libertação Nacional de Angola) e o braço armado do MPLA (as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), ambos apoiados por forças estrangeiras, confrontaram-se na localidade do Quifangando, nome que passou a designar a batalha que decorreu para controlar a capital e proclamar a independência de forma unilateral21.
A batalha decorreu no dia 10 de novembro de 1975, da qual as forças militares do MPLA saíram vitoriosas. Em consequência dessa vitória, no dia seguinte, em 11 de novembro, Agostinho Neto, presidente do MPLA, proclamou a independência de Angola que passou a designar-se República Popular de Angola (RPA)22. No dia 12 de novembro tomou posse o primeiro governo na história de Angola, e, em menos de vinte e quatro horas vários Estados da comunidade internacional deram-lhe o aval positivo, ou seja, legitimaram-no23.
Portugal, a antiga potência colonial e com presença na gestão do processo de transferência de poder para os três movimentos de libertação nacional, não legitimou o Governo angolano, no entanto, congratulou-se pelo facto de Angola se ter tornado independente e «entregou a soberania ao povo angolano»24.
Angola discutida ao mais alto nível do estado português
Pouco menos de vinte e quatro horas após a sua tomada de posse, o Governo angolano foi legitimado por vários países do mundo. Em África, destacam-se Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Libéria, República Popular do Congo, Guiné-Conacri, Mali, Argélia e Senegal; na Europa, destacam-se os países do então do Bloco de Leste - União Soviética, Polónia, Hungria, Bulgária, Roménia, Checoslováquia e República Democrática Alemã; na América Central, Cuba; e, na América Latina, o Brasil, o primeiro a fazê-lo e o único, no seio dos 20 Estados que legitimaram o Governo angolano, com fortes relações com o então Bloco Ocidental25.
Se para estes países a legitimação do Governo angolano foi quase automática, dadas as suas relações com o MPLA, a situação foi completamente diferente para os países do então Bloco Ocidental e nenhum deles legitimou o Governo angolano. Contudo, vários países, incluindo os Estados Unidos da América (EUA), saudaram o nascimento do Estado angolano e mostraram abertura não só para legitimar o seu Governo, mas também para estabelecer, no futuro, relações a nível político-diplomático26.
Os EUA, país que apoiava fortemente a FNLA e a UNITA na luta contra o MPLA, disseram que «o reconhecimento do Estado angolano dependeria da capacidade que o mesmo teria de administrar o país e de cumprir os seus deveres internacionais»27. Mas, no caso de ser o MPLA a conduzir o destino do país, «Washington não teria objeções em reconhecê-lo, desde que o mesmo se afirmasse força dominante do país»28.
A Alemanha Federal, outro país que havia saudado o surgimento do Estado angolano, e que havia mostrado interesse em legitimar o seu Governo, argumentou que «não podia avançar sem antes coordenar a sua posição com os restantes países do Mercado Comum, sobretudo a Inglaterra»29.
A Finlândia e a Suécia argumentaram que «não reconheceriam o Governo angolano sem que a situação política e militar naquele território se normalizasse e se tornasse suficientemente clara»30. A Turquia mostrou-se satisfeita e saudou Angola pelo facto de «dirimir-se do colonialismo»31. A Bélgica endereçou felicitações ao povo angolano, e a Grécia, através do seu Governo, exprimiu vontade de cooperar com o novo Estado africano32.
O Executivo português congratulou-se com o nascimento do Estado angolano e dirigiu uma declaração ao seu povo:
«O Conselho de Ministros saúda o povo angolano e exprime o seu regozijo - que reflete o sentimento generalizado do povo português. O facto alcançado é de significado histórico para os dois povos, para África e para o mundo. O Governo português condena veementemente a ingerência de forças e países estranhos ao povo angolano, que têm contribuído para opor angolanos entre angolanos»33.
O comunicado do Governo português não era de todo surpreendente; conhecia-se a sua posição, e nesse dia veio apenas reafirmar a postura previamente manifestada nas reuniões do Conselho de Ministros de 9 de novembro e na do CR34 realizada no dia 10 de novembro de 1975.
Assim, na primeira reunião, realizada a 9 de novembro de 1975, o Governo analisou a situação de Angola e a mesma contou com a presença dos líderes dos principais partidos políticos portugueses: Mário Soares pelo PS, Álvaro Cunhal pelo PCP, Diogo Freitas do Amaral pelo CDS e Francisco Sá Carneiro pelo PPD. Convocada com carácter de «urgência», a reunião tinha como objetivo «analisar a proposta defendida pela Comissão Nacional de Descolonização35, segundo a qual, Portugal deveria simplesmente reconhecer a independência do povo angolano, a quem compete decidir sobre as formas do seu exercício»36.
Para além da proposta apresentada pela Comissão Nacional de Descolonização, o ministro da Coordenação Interterritorial, Vítor Crespo, levou consigo um estudo elaborado por um especialista em direito internacional, com o objetivo de propor ao Estado português modalidades de reconhecimento do Governo angolano. Apresentado em três vetores, o estudo estava sintetizado da seguinte maneira: «A independência de Angola e sua plena soberania radica ao povo angolano, a quem decide das formas do seu exercício»; segundo, «proclamação de independência com reconhecimento de governo constituído em Luanda, seja ou não comunicada a formação de outros governos»; terceiro, «proclamação da independência com reconhecimento de um governo de uni- dade nacional e avalizado pelos três movimentos»37.
A segunda reunião, realizada a 10 de novembro de 1975, foi feita a pedido do Governo, para este saber a posição clara de Portugal sobre Angola. O evento contou com a presença não só dos membros do CR, mas também dos secretários-gerais dos partidos que integraram o VI Governo Provisório: o PPD, o PS e o PCP.
De acordo com a ata produzida pelo CR, a reunião decorreu num clima de compreensão mútua, que resultou no seguinte comunicado: primeiro, «aguardar a formação de governo em Angola»; segundo, «verificar se é de unidade nacional»; terceiro, «verificar se a UNITA e a FNLA também formaram governo e fazer análise comparativa»; quarto,
«se o Presidente da República tiver elementos para apreciar a formação do governo de unidade nacional, reconhecer esse governo»38.
No dia 11 de novembro de 1975 Angola tornou-se independente. O MPLA proclamou em Luanda a RPA e, no Huambo, a FNLA e a UNITA proclamaram a República Demo- crática de Angola. No entanto, prevaleceu a República proclamada pelo MPLA39. A FNLA e a UNITA, apesar da sua coligação, não conseguiram construir uma alternativa política viável ao poder instalado em Luanda40.
Como se pode verificar, e embora houvesse alguns dos elementos apresentados na reunião de 9 de novembro de 1975, nomeadamente o segundo ponto da proposta apre- sentada pelo ministro da Coordenação Interterritorial, a reunião de 10 de novembro foi diferente e deu pouca margem de manobra ao que se veio a verificar em Angola, ou seja, nenhuma das hipóteses apresentadas pelas autoridades portuguesas se consumou, tendo estas optado, face ao desfecho do problema angolano, por não legitimar o seu Governo. Esta questão, de difícil resolução no seio do Estado português, motivou debates acesos, no quadro dos quais o PS e o PPD foram chamados para emitir pareceres. Ao PCP não lhe foi solicitado parecer pelas autoridades portuguesas, dada a sua inclinação e o seu apoio incontornável ao MPLA e ao seu Governo.
Os partidos face ao reconhecimento do governo de Angola
Na primeira quinzena de fevereiro de 1976, o Estado angolano somava já importantes vitórias diplomáticas no cenário internacional. À época, um dos seus principais objetivos consistia em ganhar legitimidade internacional, cujo ponto máximo se deu no dia 11 de fevereiro de 1976, quando a Organização de Unidade Africana (OUA) o admitiu como membro de pleno direito41. A cimeira da OUA foi acompanhada pela imprensa portuguesa não só com algum otimismo, mas também com alguma reserva. Um dia antes da sua realização, o Diário de Lisboa noticiava que «um reconhecimento da RPA pela OUA, o qual poderá sair da Cimeira de amanhã em Adis-Abeba, aponta para pro- funda revisão da atitude de Portugal face ao MPLA, traduzida no alinhamento com a posição assumida por aquela organização»42. No entanto, o jornal Expresso advogou que era pouco provável que Portugal viesse a legitimar o Governo angolano, devido não só à falta de consenso no seio do Estado português, mas também por considerar que o seu reconhecimento traria enormes problemas à sociedade portuguesa43.
No dia 14 de fevereiro de 1976, o CR reuniu para discutir a questão do reconhecimento do Governo angolano, reunião da qual resultaram dois pontos. Primeiro, abordou as repercussões internas do reconhecimento do seu Governo, nomeadamente no seio dos «retornados», das Forças Armadas e dos partidos políticos. A segunda linha esteve relacionada com a evolução internacional do reconhecimento do Governo angolano. Neste quadro, destaca-se a dimensão africana, a europeia, bem com a posição dos EUA44.
A notícia do Diário de Lisboa sobre a possível admissão da RPA na OUA não foi tema de debate nesta reunião do CR, porém, fez menção do estado da evolução do reconheci- mento de Angola por Estados que integravam a OUA. Todavia, a notícia veiculada pelo jornal Expresso foi a que mais se aproximava à realidade dos factos. Era provável que o fator internacional, nomeadamente de reconhecimento pelos países da Europa Ocidental, viesse a dinamizar o debate no seio do Estado português45. Este argumento é sustentado na forma como o debate foi desencadeado no CR: a preocupação portuguesa residia essencialmente no reconhecimento de Angola pelos países europeus e pelos EUA. Relativamente aos partidos políticos, questionou-se sobre a forma como iriam posicionar-se e qual seria a repercussão deste posicionamento nas dinâmicas políticas do país. Assim, enquanto decorria a reunião, o Presidente da República efetuou diligências junto do PS e do PPD, para saber a visão de cada partido.
Quando foi solicitado para emitir parecer, Mário Soares, líder do PS, disse que só daria efetivamente luz verde quando estivessem satisfeitas as seguintes condições: primeiro, estabelecer «conversações prévias com alguns países, os EUA, a França, os “nove” da Europa e a República Sul-africana»; segundo, «preparar os “retornados” para o reconhecimento, tendo em atenção que não estão mentalizados para tal e até pensam que os prejudicará»; terceiro, fazer «diligências do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministro da Cooperação junto do MPLA, com vista a tentar prevenir que o Presidente do MPLA, num assono de soberania, nos sujeite a uma desconsideração para com a nossa atitude»46.
Embora não tivesse dado luz verde, as recomendações do PS apontavam para soluções futuras. Era claro que havia necessidade de precaver situações que potenciassem manifestações, sobretudo para o segmento da população que regressara de Angola no decurso de 1975, ou seja, os ditos «retornados».
Contudo, a situação foi bastante diferente para o PPD. Sá Carneiro, líder do partido, argumentou que não via «quaisquer vantagens para Portugal em reconhecer a República Popular de Angola e pensava que conduziria de imediato ao agudizar de problemas internos, nomeadamente com os “retornados”»47. No entanto, o líder do PPD achava que «deveriam manter a possibilidade de em qualquer altura estabelecer negociações»48. Os dois partidos receavam que a população vinda de Angola pudesse organizar manifestações ou protestos violentos contra o reconhecimento do Governo angolano. Este receio poder-se-á constatar na forma como uma parte dos «retornados» encarava a questão angolana. Entre a proclamação da sua independência até ao momento em que o Estado português emitiu a declaração de reconhecimento do seu Governo, assistiu-se em Portugal a uma onda de indignação contra o MPLA que provinha, em grande medida, daquele segmento populacional49. As contestações variavam e subiam de tom, enquanto os portugueses «retornados» não vissem resolvida a questão dos bens que haviam deixado em Angola50. O debate sobre o reconhecimento da RPA teve lugar dois meses antes das primeiras eleições legislativas, previstas para 25 de abril de 1976. Neste contexto, a chegada de centenas de milhares de «retornados» representou para os partidos portugueses um potencial aumento do número de votos51.
O grande ausente nas diligências do Presidente da República foi o PCP. A sua ausência conjetura-se pelo facto de o mesmo manifestar apoio contínuo ao MPLA. No dia da independência de Angola, o Comité Central do PCP endereçou uma mensagem de felicitação ao Presidente Agostinho Neto; saudou o novo Estado independente e condenou a agressão imperialista. Para o Comité Central do PCP «deu-se por vencidas as forças reacionárias e conservadoras em Portugal, que procuravam impedir a revolução»52. E quando o Estado português não legitimava o Governo angolano, o PCP argumentava que «não via razões para Portugal não reconhecer a legitimidade do governo do MPLA»53. Para o PCP, «o partido de Agostinho Neto era o único com o qual o povo se identificava, o movimento de vanguarda revolucionária do seu povo, com o qual o Estado português tinha de legitimar o poder»54. As críticas do PCP saíram da esfera política para a militar, considerando que os membros das Forças Armadas deviam exercer alguma influência junto do poder político, pelo seu papel no processo de descolonização, iniciado após o 25 de abril de 197455.
Enquanto em Portugal a questão angolana parecia ser uma incógnita, vários países da Europa Ocidental legitimavam o Governo angolano. A França fê-lo no dia 17 e a Inglaterra no dia 18 de fevereiro de 197656. O reconhecimento do Governo angolano por estes países terá provavelmente introduzido uma outra dinâmica no seio do Estado português. Curiosamente, no dia em que a Inglaterra legitimou o Governo angolano, o CR voltou a reunir para debater o assunto. E, nessa reunião, abordaram-se, no essencial, três pontos. Primeiro, tratou-se de explicar a evolução da situação no interior de Angola (domínio militar das forças governamentais)57; segundo, abordou-se a situação internacional, nomeadamente o reconhecimento do seu Governo por vários países da Europa Ocidental; e, terceiro e último, os membros do CR tomaram conhecimento das diligências que o Presidente da República havia efetuado junto dos líderes do PS e PPD58.
Relativamente a estes dois partidos, os documentos consultados mostram que apre- sentaram pouca evolução na forma como viam a questão angolana. O PPD manteve a posição que apresentara na reunião de 14 de fevereiro, e o PS, que havia efetuado algumas recomendações, informou que se devia «aguardar um pouco», sugerindo que se fizessem «sondagens junto do governo angolano», de modo a clarificar «as consequências do reconhecimento por parte de Portugal»59. Embora os partidos não tivessem dado luz verde, o CR concluiu que não havia quaisquer problemas em legitimar o Governo angolano, desde que houvesse, no entanto, um consenso alargado, ou seja, que o PS e PPD dessem aval positivo60.
As divisões no seio do CR foram dissipadas nessa reunião e aguardava-se apenas pela posição do PS e do PPD. Na reunião, houve alguma cautela face a estes partidos, de modo a evitar uma instabilidade política no país. Esta hipótese foi levantada por alguns membros do CR, com destaque para o primeiro-ministro que, para além de afirmar que o Governo não tinha competências para tal efeito, aconselhou prudência na tomada de decisão, por considerar que o PS e o PPD poderiam abandonar o Governo: «acho necessário que se ponderem as implicações de uma crise política desta natureza na conjuntura político-económica e financeira que Portugal vive atualmente», declarou o almirante Pinheiro de Azevedo61.
O argumento do primeiro-ministro justificava-se, provavelmente, pelo facto de o Governo ter uma base partidária. Dez das 19 pastas ministeriais estavam sob tutela dos partidos. O PS tinha seis ministros, o PPD dois e os restantes, dois eram do PCP62. Foi a primeira vez, na história da transição para a democracia portuguesa, que o Governo foi construído num quadro de base partidária63. Este estatuto surge no seguimento das eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas no dia 25 de abril de 1975, as quais deram a vitória ao PS. O PPD sagrou-se em segundo e o PCP ficou em terceiro lugar64.
No dia 20 de fevereiro de 1976, o CR voltou a reunir para debater a questão angolana. No que diz respeito à posição dos partidos, Costa Gomes informou as diligências que o PS fizera junto dos embaixadores dos EUA, da Jugoslávia e dos países nórdicos. De acordo com a ata da reunião, esses países informaram o PS que «não viam inconveniência no reconhecimento de Angola por parte de Portugal»65. E quando solicitado sobre a sua posição em relação ao reconhecimento do Governo angolano Costa Gomes informou que o PS «sujeitar-se-ia ao resultado da votação do Conselho de Ministros; não sairia do Governo, antes pelo contrário, esclareceria as massas das razões que aconselharam o reconhecimento»66.
O PPD informou o Presidente da República que a decisão do reconhecimento «cabe constitucionalmente ao Conselho da Revolução», pelo que o assunto não deveria ser submetido ao «Conselho de Ministros», visto que os membros do partido votarão contra. No entanto, «caso for decidido pelo Conselho da Revolução, o partido aceitá-lo-ia e não tomaria qualquer atitude que provocasse crise governamental»67.
A diferença entre os dois partidos consistia na forma como emitiram as suas posições. Assim, após estas diligências, o impasse político parecia estar ultrapassado. A mu- dança de posição dos partidos introduziu uma nova fase no debate político português sobre Angola, cujo ponto alto se deu no dia 22 de fevereiro de 1976, quando o Estado português deu a conhecer que o Governo angolano era legítimo e que estavam criadas as condições políticas para se «estabelecer relações fraternas de amizade entre os dois povos, na base da não ingerência nos assuntos internos, da igualdade e do respeito mútuo»68.
Com a declaração de reconhecimento do Governo angolano fechava-se uma página conturbada nas ligações pós-coloniais entre Portugal e Angola, e iniciava-se um outro capítulo nas relações entre os dois países, mas, desta vez, ao nível político-diplomático69.
Considerações finais
O presente artigo procurou explicar o posicionamento e a importância dos partidos que integraram o VI Governo Provisório português - o PCP, o PS e o PPD - face ao reconhecimento do Governo de Angola pelo Estado português, em fevereiro de 1976. De novembro de 1975 a fevereiro de 1976, a questão do reconhecimento do Governo angolano dominou a agenda política portuguesa. Os partidos políticos foram chamados para emitirem as suas posições em relação a esta questão, cujo desfecho dependeu do aval do PS e do PPD.
Deste modo, e num contexto de forte liderança do Conselho da Revolução (CR), no qual a condução da política externa portuguesa era da responsabilidade do Presidente da República70, por que razão é que o PS e o PPD foram centrais na gestão política portuguesa da questão angolana?
Em primeiro lugar, conjetura-se pelo pacto constitucional entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos, assinado no quadro da construção de um ambiente político favorável para o país71. Em segundo, pela realização das eleições para Assembleia Constituinte, em abril de 1975, que deram legitimidade política aos partidos72. Terceiro e último, pela integração dos partidos no VI Governo Provisório português73.
No quadro dessa conjuntura, os partidos deixaram de ser meros espetadores e tornaram-se parceiros importantes da gestão da vida política portuguesa. Em Portugal, a transição para a democracia foi profundamente marcada por crises políticas e a questão angolana, muito complexa e de difícil resolução, requereria um amplo consenso político interno, do qual os partidos eram não só parte integrante, mas também decisivos na tomada de decisão. Simultaneamente, aproximava-se a realização das eleições legislativas e presidenciais, e com a boa gestão do caso angolano evitavam-se não só situações de crise política interna, mas também convulsões no seio das populações provenientes de Angola e das Forças Armadas74. A tese sobre uma possível crise política foi levantada por vários membros do CR, incluindo o primeiro-ministro, o almirante Pinheiro de Azevedo.
Assim, enquanto o PCP considerava que o MPLA era o único legítimo representante do povo angolano e que o Estado português devia reconhecer o seu Governo, o PPD argumentava que não via vantagens em legitimar o Governo angolano e que, caso o fizesse, traria sérios problemas internos em Portugal, designadamente no seio das Forças Arma- das e dos «retornados». Esta tese, aliás, permaneceu no discurso do PPD e, mesmo após ter dado um parecer favorável, o partido liderado por Sá Carneiro voltou a criticar o Estado português.
Moderado, o PS argumentava que o Estado português podia legitimar o Governo angolano, desde que o mesmo obedecesse a alguns critérios, tanto no que dizia respeito à dimensão interna (explicar aos «retornados» as razões do seu reconhecimento), como à dimensão internacional (conversações com os EUA e a África do Sul, mas também com os países da Comunidade Económica Europeia). A questão relacionada com os «retornados» marcou o discurso do PS e do PPD. Ambos consideravam que se devia ter alguma cautela com este segmento da população, sob pena de causarem uma forte onda de constatação face à posição do Estado português. Esta cautela pode ter encontrado respaldo na forma como alguns «retornados» se apresentavam na imprensa face a Angola.