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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.29 no.3 Braga 2015
VÁRIA
“A terra está ficando toda de sangue”: poesia e guerra em moçambique
“The entire land is becoming blood-soaked”: poetry and war in mozambique
Giulia Spinuzza*
*Doutoranda do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal. Desenvolve um projeto de investigação orientado pela Professora Doutora Ana Mafalda Leite (FLUL) e co-orientado pela Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ). É bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia através da Bolsa Individual de Doutoramento [SFRH/BD/68433/2010] e membro colaborador do CEsA (ISEG, Universidade de Lisboa).
RESUMO
O objecto de estudo deste ensaio é a temática da guerra na produção poética de Glória de Sant'Anna, autora de origem portuguesa que viveu durante a época colonial em Moçambique. Os textos analisados, que constituem um exemplo da memória poética da Guerra Colonial (Ribeiro & Vecchi, 2011a), apresentam uma perspectiva feminina sobre o conflito e testemunham a partilha, por parte do sujeito poético, do drama dos portugueses, bem como da população local. Assim, demonstraremos que estes poemas, escritos numa fase tardia do colonialismo, entre 1961 e 1972, remetem para uma visão multifacetada do conflito. Na parte final do ensaio, iremos comparar um dos textos de Glória de Sant'Anna com um poema de Eduardo White, para demonstrar que os dois poetas, apesar de representarem conflitos diferentes, utilizam a mesma linguagem de indignação e dor perante o horror da guerra.
Palavras-chave: Poesia, guerra, Moçambique, Glória de Sant'Anna, Eduardo White
ABSTRACT
The aim of this essay is to study the theme of war in the poetic production of Gloria de Sant'Anna, an author of Portuguese origin who lived during the colonial era in Mozambique. The texts that provide an example of poetic memory of Colonial War (Ribeiro & Vecchi, 2011a) offer a feminine perspective on the conflict and show a poetic subject sharing the tragedy of the Portuguese and the local population. We will demonstrate that these poems, written during the final period of colonial era between 1961 and 1972, refer to a multifaceted view of the conflict. In the final part of the article we will compare one of the texts by Glória de Sant'Anna with a poem by Eduardo White to demonstrate that, despite relating to different conflicts, the two poets use the same language of indignation and sorrow at the horror of war.
Keywords: Poetry, War, Mozambique, Glória de Sant'Anna, Eduardo White
Glória de Sant'Anna, autora de origem portuguesa que viveu entre 1951 e 1974 em Moçambique, escreveu vários poemas sobre a Guerra Colonial, acompanhando o desenvolvimento de um conflito cada vez mais dramático. O corpus poético que será objecto da nossa análise abrange uma época que vai de 1961 a 1972, dois anos antes da partida da escritora para Portugal, e – como veremos – reflecte uma perspectiva multifacetada desse período.
A sua escrita, que se enquadra na vertente lírica intimista, não revela apenas uma visão do mundo moçambicano anterior à independência, mas representa também um testemunho importante da escrita feminina no contexto colonial. Na verdade, muitos dos seus textos reevocam uma memória que levanta várias problemáticas relacionadas com o período tardo-colonial (Castelo, Thomaz, Nascimento & Cruz e Silva, 2012), mas, infelizmente, a sua obra foi pouco estudada até ao momento.[1]
Neste sentido, devemos ter em conta que os poemas sobre a Guerra Colonial são, de certa forma, ‘incómodos'. De facto, um dos aspectos problemáticos da fase posterior ao 25 de Abril foi a ‘perda' da memória. Como explica Cláudia Castelo (2006), em Portugal a tendência institucional foi a do esquecimento porque:
No caso português, os agentes da ruptura revolucionária do 25 de Abril de 1974 – os militares – foram, simultaneamente, os principais agentes da repressão colonial. Este facto conduziu a um silenciamento ou, pelos menos, a uma ocultação das circunstâncias em que ocorreram alguns dos episódios mais cruéis da guerra colonial. Os massacres de Moçambique (Wiryamu e Mocumbura, distrito de Tete, Dezembro de 1972) são um exemplo paradigmático dessa amnésia deliberada. (2006, p. 18).
Também Margarida Calafate Ribeiro (2004a, p. 26) demonstra que o pós-25 de Abril não soube lidar com a herança da Guerra Colonial. A principal consequência desta tendência é a dificuldade em adaptar as memórias coloniais ao contexto pós-colonial. E, nesse sentido, a poesia de Glória de Sant'Anna sobre a guerra pode ser considerada duplamente ‘incómoda': por um lado, Portugal não tem interesse em recuperar as memórias dos retornados, preferindo a sua integração anónima na nova sociedade; por outro, do ponto de vista moçambicano, os textos da autora que relatam os horrores da guerra não assumem um discurso explicitamente anticolonial. Mas, como escreveu Eugénio Lisboa (2010) no prefácio a Gritoacanto 1970-74[2], “falar pouco para dizer muito foi sempre o lema desta excelsa poetisa” (p. 7) que deixou um visível legado poético em terras (e águas) moçambicanas. Como é o caso, por exemplo, do poeta Eduardo White que, para além de retomar a semântica aérea e aquática da poesia de Glória de Sant'Anna integrando-a no universo onírico, sensorial e erótico definido pelo Índico e pelo Oriente, reelabora o imaginário e os versos da escritora relacionados com o horror da guerra, que serão objecto da nossa análise.
Tendo em conta essas questões, interessa-nos evidenciar os diferentes matizes e perspectivas sobre a Guerra Colonial que os textos de Glória de Sant'Anna oferecem. Nesse sentido, é importante considerar dois factores: em primeiro lugar, a origem e vivência da autora nascida em Portugal, mas radicada em Moçambique durante 23 anos e, em segundo lugar, a importância do olhar feminino sobre um fenómeno protagonizado maioritariamente por homens. Este último elemento é tido em conta, como veremos, na organização da Antologia da memória poética da Guerra Colonial (Ribeiro & Vecchi, 2011a), que inclui alguns poemas de Glória de Sant'Anna.
Margarida Calafate Ribeiro (2004a), ao analisar as experiências das mulheres que acompanhavam os maridos em missão militar (que não é, todavia, o caso da escritora[3]), reconhece que o seu testemunho pode oferecer um “olhar-outro” sobre o conflito bélico (p. 24). Também Roberto Vecchi (2004) questiona a existência não só de uma literatura da Guerra Colonial, mas também de uma “literatura feminina da Guerra Colonial” (p. 85). O crítico acrescenta que a escrita da mulher sobre a guerra é uma escrita duplamente silenciada, porque exprime uma “dupla impossibilidade”: “como é que uma figura silenciosa e silenciada, a mulher perante a guerra, pode contribuir para representar um tema, silencioso e silenciado, como a representação da Guerra Colonial?” (Vecchi, 2004, pp. 88, 86).
Por essas razões pensamos que a perspectiva que oferecem os poemas de Glória de Sant'Anna pode ser particularmente interessante. Então, o nosso objectivo será analisar a representação da guerra num percurso de escrita que procura equilibrar o drama pessoal com o colectivo, evidenciando a perspectiva do sujeito poético em relação a esse conflito.
A autora viveu durante muitos anos no norte de Moçambique, bastante perto de um conflito que só chegou à capital, a então Lourenço Marques, algum tempo mais tarde. Na verdade, já nos primeiros anos da década de 60 alguns dos textos de Glória de Sant'Anna referem o drama da guerra ou uma atmosfera de tensão, enquanto na capital moçambicana as mulheres portuguesas nem se apercebiam do conflito em curso. Como atesta Ângela Conceição (2004): “a Guerra Colonial passava quase despercebida para estas senhoras brancas que viviam na cidade de Lourenço Marques; apenas era notada quando se via chegar ‘gente ferida, estropiada'” (p. 104).
Para além de viver geograficamente na zona onde se desenvolveu a resistência da Frelimo, devemos ter em conta que o ensino punha em contacto directo Glória de Sant'Anna com a população local. Podemos ler, por exemplo, alguns versos do poema “Aula”, no qual se preanuncia a inevitável partida: “Turvos meninos/ se me apresentam/ dentro do tempo/ que vou deixar” (Sant'Anna, 1972, p. 43). Como afirma Margarida Calafate Ribeiro (2004b) ao analisar o percurso de muitas mulheres que iam para África[4], a experiência do ensino podia fornecer “uma visão-outra sobre as várias populações locais que na escola se juntavam” (p. 24). A esse propósito, pensamos que o ensino pode ter aproximado Glória de Sant'Anna de um conflito que oficialmente ‘não existia'.
Devemos referir que os textos sobre a guerra foram escritos (e, em algum caso, publicados[5]) antes do 25 de Abril, ou seja, num período em que o estado português negava a existência da Guerra Colonial. Leia-se a este propósito o depoimento de Marcello Caetano, em 1972, citado por Margarida Calafate Ribeiro (2004a): “Guerra colonial? As Províncias Ultramarinas estão em paz e ninguém nelas contesta a sua integração na Nação Portuguesa” (p. 26). Desse modo, podemos dizer que a poesia exerce uma acção contrária aos múltiplos silenciamentos associados à Guerra Colonial porque, como explica Margarida Calafate Ribeiro (2004a, p. 26):
à ocultação da guerra feita pelo antigo regime, (...), seguia-se a ocultação da guerra como se fosse possível fazê-la desacontecer, como se tudo tivesse sido um engano, ou, como aliás veio a dizer o próprio ‘inimigo', Samora Machel, um equívoco, uma história de mal-entendidos.
Nesse sentido, pensamos que a obra poética de Glória de Sant'Anna, ao representar a vivência da Guerra Colonial em Moçambique através dos seus poemas, reconverte a tendência geral para o esquecimento. O corpus poético que iremos analisar compreende textos de Poemas do tempo agreste (Sant'Anna, 1964), do Cancioneiro incompleto (temas da guerra em Moçambique) 1961-1971 (Sant'Anna, 1988) e de Desde que o mundo e 32 Poemas de intervalo (Sant'Anna, 1972). As temáticas recorrentes desses textos são o prenúncio de tempos difíceis, a morte, a dor e a lamentação. A atmosfera de desassossego que envolve essa escrita angustiada torna-se cada vez mais dramática e intensa; assim, afirma-se gradualmente o horror de uma tragédia anunciada. Tendo em conta essa questão, podemos subdividir os poemas analisados em duas grandes linhas temáticas: a primeira inclui os poemas que preanunciam o drama e a segunda compreende os poemas que reflectem de forma mais imediata o conflito em curso.
O corpus seleccionado compreende, como vimos, textos escritos em Moçambique num período histórico que vai de 1961 a 1972, dois anos antes da viagem de volta de Glória de Sant'Anna para Portugal. A este propósito, notamos que nos textos escritos depois dessa data a temática de guerra e o sofrimento relacionado ao conflito colonial aparecem apenas de forma esporádica. Como é o caso, por exemplo, do primeiro poema de Trinando para a noite que avança, publicado em 2009, no qual a autora relembra a angústia do tempo que viveu: “Eu naveguei pelo interior de um longo rio humano/ de tempos diversos onde também há sangue vegetal,/ buscando o que acabei por encontrar – a imensa/ angustia que se reparte” (Sant'Anna, 2009, p. 8).
Voltando aos textos escritos durante a época colonial, verificamos que em Poemas do tempo agreste (Sant'Anna, 1964) a escrita poética adquire uma função catártica: “Um poema é sempre/ como uma lágrima que se solta” (p. 7). Perante a dor e a tristeza de acontecimentos que parecem esmagar as vidas humanas, as palavras só podem ser concisas: “Não sei por que buscas palavras longas/ para as coisas breves que nos assombram” (Sant'Anna, 1964, p. 67). Nestes versos a autora questiona a possibilidade de comunicar e exprimir o que não se pode dizer. Na verdade, a poesia mais intimista de Glória de Sant'Anna é uma poesia que evita as palavras gritantes e procura alcançar no horizonte do Índico, no céu, nas estrelas, na solidão e no silêncio a pureza poética.
Poemas do tempo agreste, publicado em 1964, preanuncia a tragédia que se concretizará numa longa e dolorosa guerra. No poema “Lamento”, por exemplo, vislumbra-se um porvir difícil, no qual a esperança e o amor dão lugar à dor.
Cada minuto parece perdido
no duro tempo que se escoa,
e as preces são amargas
em nossa boca.
Talvez a esperança tenha morrido
na vida à toa
que agora prende nossas amarras
em cada hora.
E o amor onde tão sem sentido
pelo mundo fora,
que ninguém saiba onde ir buscá-lo
pra suas mágoas. (Sant'Anna, 1964, p. 51)
A autora refere-se nesse livro à percepção de uma guerra que está prestes a começar; numa contagem decrescente que anula a esperança e o amor, os textos alimentam-se de retalhos daquela que será uma terrível tragédia e, ao mesmo tempo, tentam recompor os fragmentos de sentimentos ou visões sombrias associados às turvas circunstâncias vividas. Num outro poema do mesmo livro, por exemplo, os mortos de uma guerra que ‘não existe' são transportados como figuras fantasmagóricas: “Não vale a pensa buscar passados/ que se perderam nas madrugadas: trazem-se mortas e destroçadas/ apenas sombras desnorteadas” (Sant'Anna, 1964, p. 61). A evocação da morte, presente nos versos citados, é um dos temas mais recorrentes nessa linha temática relacionada com a Guerra Colonial. Em Poemas do tempo agreste (Sant'Anna, 1964) há dois textos, construídos com simetrias e repetições, dedicados à morte de meninos — o “Primeiro poema do negrinho morto” e o “Segundo poema do negrinho morto” — que podem ser considerados elegias. A estrutura do segundo poema, constituída por dois quartetos e um terceto, reproduz semanticamente um discurso circular, que começa com a percepção da morte, passa à descrição da dramática cena e termina com uma lamentação:
Ai, o que dói a chuva
por sobre o rosto do negrinho morto.
Ai, o que me dói a chuva
e o seu abandono.
Ali está só, inerte, conciso,
exacto em todas as verdades,
solto na chuva grave
e tão antigo.
Ai, o que me dói o negrinho morto
estar morto
e sozinho. (Sant'Anna, 1964, p. 19; itálico meu)
A nível retórico, o drama da situação apresentada é intensificado pelas repetições da primeira parte de versos – “Ai, o que me dói” — e palavras — “morto” e “chuva” — que remetem para a tristeza e a dor, enquanto a nível imagético, o elo metafórico que se cria entre a chuva e o choro confere mais tragicidade à cena; dessa forma, o luto não é representado com distanciamento, mas é empaticamente vivido pelo sujeito poético que não se limita a ver e descrever, mas partilha a dor causada pela morte do menino negro.
Em Poemas do tempo agreste verificamos o impasse da autora perante uma realidade que, ao preanunciar o sangrento conflito, exige uma tomada de posição. É o que se intui nestes versos, através dos quais se exprime a mágoa de quem partilha a dor e as mortes tanto dos portugueses como da população local: “Venho de longe, do tempo agreste/ (...) Venho de longe, dos lugares neutros/ em que perdi não sei que irmão./ O que me veste são negros feltros./ Ou não?/ Venho tomada do desamparo/ das frases densas dos sem razão./ Não interroguem meu rosto claro./ Não” (Sant'Anna, 1964, p. 35). Para além disso, notamos que neste livro é evocada uma atmosfera de guerra sem referir, de forma mais ou menos directa, como é o caso de alguns dos textos do Cancioneiro incompleto (Sant'Anna, 1988), o conflito em curso.
O Cancioneiro incompleto (temas da guerra em Moçambique) 1961-1971, conjunto de textos inéditos da antologia Amaranto (Sant'Anna, 1988), estende-se temporalmente ao longo de uma época que ficou marcada pelo drama da Guerra Colonial. Na verdade, este é o único texto inteiramente dedicado à guerra; é por isso que o título, que evoca os antigos cancioneiros da tradição lírica, nos remete para a ideia de um conjunto de composições poéticas reunidas à volta da temática bélica. Para além disso, “o estatuto de obra inacabada” (Pitta, 1989, p. 100) deve-se ao facto de a sequência numérica que identifica os títulos dos poemas ser incompleta, porque enquanto a guerra não parar, a poesia continuará a evocar novos dramas e mortes.
Os textos do Cancioneiro incompleto representam várias perspectivas sobre o conflito, como é o caso do “Poema Décimo”, dedicado à morte de um soldado, e do “Poema Décimo Primeiro”, sobre a morte de uma mulher negra. Os primeiros versos do “Poema Décimo”, “Sobre o esquife do soldado morto/ o dia tomba claro” (Sant'Anna, 1988, p. 174), estabelecem uma ligação intertextual com os primeiros versos do segundo poema: “A negra tombou entre os agrestes ramos/ e um súbito espanto” (1988, p. 175). A solenidade da imagem, bem como a referência à morte enquanto acontecimento súbito e irrevogável, testemunha que, como afirma Eugénio Lisboa (2010), “de um lado e do outro – a morte não é partidária” (p. 7).
Na realidade, se por um lado a autora apresenta o drama dos soldados portugueses, por outro mostra também as consequências da guerra para a população local, como é o caso do “Poema Sexto” e“Décimo Primeiro”(Sant'Anna, 1988). O “Poema Sexto” relata o êxodo dos macondes, facto verificado no norte do país, quando muitos deles, por causa do agravamento do conflito interno com o sistema colonial, abandonaram as próprias terras para se deslocarem para outras regiões ou países confinantes. Enquanto o “PoemaDécimo Terceiro”retrata, com muita dignidade, a morte do régulo[6] Megama — Abdul Kamal-Me-gama, penúltimo chefe da dinastia Ekoni Megama e régulo de Chiúre-Velho (1940-65), na província de Cabo Delgado. Megama foi um régulo inicialmente fiel à administração colonial (João, 1989 / 2000, p. 85), mas em 1965, poucos anos depois da peregrinação a Meca, a PIDE acusou-o de estar envolvido na luta anticolonial[7] e transferiu-o de Pemba para a prisão política da ilha de Ibo (na Fortaleza de São João Baptista), onde pouco tempo depois foi assassinado. O episódio da prisão e morte do régulo insere-se, assim, no contexto da Guerra Colonial. Neste poema a autora descreve a grandiosidade de Megama, sublinhando as qualidades do régulo e a sua triste morte. Nas primeiras estrofes é destacada a influência de Megama na região:
Megama régulo grande
anda por cima do tempo
tem longas palavras duras
que lança por muita gente
seus gados pastam por longe
ao lugar onde o sol desce
conta por muitas machambas
seus filhos suas mulheres (...)
Megama é régulo grande
de todo o mato ao redor (Sant'Anna, 1988, p. 177)
Sucessivamente, é evocado o pacto de fidelidade entre o régulo e a administração colonial, a quebra do pacto, a prisão na fortaleza da Ilha do Ibo e a morte:
ai, Megama régulo grande
repetido entre os ecos do Chiure
quebrou sua medalha
quando o primeiro grito do n'pure[8] se soltava
para um prenúncio de chuva nas altas árvores (...)
Megama régulo grande
quebrou sua medalha
Depois na fortaleza de cinco pontas
copiada de uma estrela no céu de luto
Megama ficou igual a tudo tudo
que fermenta, se decompõe e deteriora
na cúmplice penumbra morna
e mudo
lentamente perdendo sua figura
curvando-se para ser sugado antes da hora
para a terra sem lápide rasa e nua
ele tombou para sempre num tempo sem memória. (Sant'Anna, 1988, p. 179)
Este poema elegíaco enaltece a figura do régulo e a sua trágica morte. O régulo é descrito com grande dignidade, o que contrasta com a ridicularização, inferiorização e fraqueza de espírito da representação dos locais de alguns dos textos da Literatura Colonial. O poema refere um ponto de viragem crucial na vida de Megama, marcado pela ruptura do pacto de fidelidade, para responder à chamada do n'pure, pássaro que aqui simboliza, talvez, a luta anticolonial. Assim, enquanto o começo do poema ressalta a glória do régulo, as últimas estrofes evidenciam o triste destino na Fortaleza de São João Baptista no Ibo que, apesar da sua estrutura em estrela, esconde mágoas e lutos. Embora o último verso remeta para o esquecimento ao qual Megama é condenado após a sua morte, o poema contribui a manter viva a sua memória, ao relembrar o grande régulo.
Para além de poemas que representam diferentes temáticas relacionadas com a guerra, no Cancioneiro incompleto há textos que retratam várias perspectivas sobre o conflito. Como é o caso, por exemplo, da partida do militar português para a guerra; no primeiro poema, “O cântico da mãe”, a voz materna, perante a inevitabilidade da guerra, apela para que lhe tragam de volta os filhos: “Homens,/ esses meninos/ foram colhidos fundo no meu ventre/ (...) (e se é tempo de ser gume e de ser espada,/ estilhaço, ferro, lança bronze e ouro)/ amaldiçoo aquele que não mos traga” (Sant'Anna, 1988, pp. 158-159). Paralelamente, em “O Poema Segundo”, apresenta-se o triste percurso cíclico do soldado, marcado pela partida, pelo combate, pela morte e pelo regresso do corpo ao país natal: “O soldadinho partiu/ dentro dum fato de pano./ (...) o seu rosto era desfeito/ por rudes golpes e tantos, (...) que jorrava do seu rosto/ um rio de puro sangue (o soldadinho voltou/ dentro de um fato de pano,/ apagada a sua sede/ por outra sede de sangue)” (1988, p. 161).
Os dois poemas relatam dois momentos distintos de um percurso comum a muitos militares portugueses, o primeiro, que apresenta uma perspectiva do ponto de vista feminino e materno, muito dramática e sentimental, põe em evidência um tema frequente na literatura sobre a guerra, ou seja, a angústia de uma mãe que vê os próprios filhos partirem. Evoca, então, uma situação individual que interessa a todas as mulheres no seu papel de mãe, esposa ou irmã de quem vai combater. Enquanto o segundo poema, mais descritivo, porque segue o percurso de um dos muitos soldados que parte para a guerra e volta num esquife, apresenta o destino que encontrarão aqueles que partem para a guerra. Assim, os dois poemas apresentam, do ponto de vista português, duas perspectivas complementares sobre o conflito: o drama dos que ficam, as mulheres, e o drama dos que vão para a guerra, os homens.
Para além de ter em conta a perspectiva feminina sobre o conflito, a escrita poética de Glória de Sant'Anna sobre a Guerra Colonial é sensível quer ao drama dos portugueses envolvidos nessa guerra, quer ao drama da população local. Essa dupla perspectiva é particularmente evidente no Cancioneiro incompleto, através dajustaposição de poemas que dialogam entre si. No “Poema Nono”, por exemplo, dedicado a um fuzileiro, a autora descreve a acção do soldado com palavras incisivas: “Ao ritmo do pulso/ palpita o gatilho/ nas mãos apertadas/ as botas esmagam/ formas e palavras/ caminham com eles a dor e a raiva” (1988, pp. 172-173). E no “Poema Sétimo” é apresentada a morte de três raparigas cruelmente fuziladas: “São três raparigas iguais/ vestidas de duro silêncio/ (em frente está o pelotão/ de fuzilamento) / (...) São todos soldados iguais/ atados a um só juramento” (1988, pp. 169-170). O texto acentua a contraposição dicotómica entre as raparigas e o pelotão de fuzilamento, entidade uniformizada com um objectivo comum. Na verdade, neste poema as raparigas são inicialmente “iguais” e, depois da morte, adquirem a própria individualidade: “as raparigas tombadas/ já cada uma é diferente” (1988, p. 170).
Enquanto as vítimas são diferentes uma das outras, a autora salienta, num outro poema, a uniformização dos esquives dos soldados que a morte uniu num efémero hino de glória: “São oito esquifes iguais/ lado a lado./ Sem diferenças traçadas/ assim rasos,/ pela mesma terra tragados,/ pelo mesmo grito elevados/ ao topo da mesma glória/ de soldados” (1988, p. 176).
Esses poemas criam um jogo de espelhos entre vítimas e verdugos e manifestam a dificuldade poética de revelar verbalmente o indizível, o horror da guerra. Os textos testemunham a partilha, por parte do sujeito poético, da dor e da mágoa quer dos portugueses, quer da população local, que sofre as consequências da guerra. Relativamente a esse aspecto, Isabel Allegro Magalhães (1995), tendo em conta três romances escritos por mulheres sobre a Guerra Colonial (Corpo Colonial, Percursos e A costa dos murmúrios), afirma que estes demonstram uma preocupação com o sofrimento tanto dos portugueses como dos nativos (p. 29). Apesar de existirem, como é evidente, vários textos de autoria masculina que criticam a guerra, Magalhães (1995) chega à conclusão de que a escrita feminina sobre a Guerra Colonial se distancia, de uma forma geral, da escrita masculina, por ser mais “ousadamente” crítica em relação à guerra (p. 29). A escrita feminina reflectiria, assim, uma percepção distinta do conflito e um ponto de vista inevitavelmente diferente, ligado a uma experiência da guerra que difere da dos homens, já que as mulheres não participaram nas batalhas, mas sim na atmosfera de guerra (Magalhães, 1995, p. 30).
Nesse sentido, devemos ter em conta também que uma grande parte dos poetas que escrevem sobre a Guerra Colonial participaram nela como militares, de acordo com o que verificamos na recolha poética apresentada na Antologia da memória poética da Guerra Colonial (Ribeiro & Vecchi, 2011a). Essa antologia, que constitui uma das mais recentes e completas recolhas poéticas sobre a Guerra Colonial, abrangendo um período que vai de 1961 até 1974, tem o intuito de recolher e sistematizar a herança poética portuguesa da Guerra Colonial, como afirmam os organizadores: “até hoje, esse imenso material do imaginário poético português não tinha ainda sido recolhido e sistematizado” (Ribeiro & Vecchi, 2011c, p. 554). Relativamente ao corpus apresentado notamos que a maioria dos autores são homens que participaram como militares na Guerra Colonial (num total de 177 poetas; há 20 mulheres e mais de metade dos poetas incluídos cumpriu o serviço militar ou comissões militares nas então colónias). A aprofundada pesquisa que foi feita para incluir poetas menos canónicos e um número considerável de mulheres demonstra que a selecção dos autores é heterogénea e que nem todos os textos são fruto de uma participação activa na experiência bélica. Então, a importância desta antologia deriva do facto de recolher e seleccionar textos pertencentes não só aos autores do cânone da poesia da Guerra Colonial, mas também aos autores “que à guerra dedicaram alguns poemas” (Ribeiro & Vecchi, 2011c, p. 555).
Para além disso, a antologia, ao encarar a produção poética da Guerra Colonial como uma reelaboração individual da memória colectiva sobre aquele conflito, contraria a tendência generalizada ao esquecimento, propondo um tema ainda actual na sociedade portuguesa. Assim, os organizadores recuperam, através dos textos poéticos, uma parte da memória da Guerra Colonial, porque “foi, sem dúvida, na literatura que este registo de reelaboração colectiva e individual do evento se tornou mais marcante” (Ribeiro & Vecchi, 2011b, p. 21).
A antologia organiza-se por eixos temáticos que compõem uma “espécie de macro-tema” (2011b, p. 29) identificado com a dor indizível da guerra; os textos de Glória de Sant'Anna são incluídos na secção “Partidas e Regressos” (“Poema Segundo” do Cancioneiro incompleto) e “Morte” (“Poema Décimo”e“Poema Décimo Segundo” retirados do mesmo livro). O “Poema Segundo” aborda, como vimos anteriormente, a partida do soldado, enquanto os outros dois têm como tema central a morte dos soldados portugueses. Como referem os organizadores no Posfácio da antologia, há textos que representam um reflexo imediato da guerra, enquanto outros são “textos-consequências” (Ribeiro & Vecchi, 2011c, p. 556), elaborados posteriormente a partir da experiência testemunhal.
Tendo em conta essas questões, verificamos que a maioria dos poemas de Glória de Sant'Anna (e não só os incluídos nesta antologia) são textos-reflexo, impressões quase imediatas do conflito em curso. Os poemas seleccionados são coerentes com a linha temática da antologia, mas, como tivemos a oportunidade de constatar, há outros textos de Glória de Sant'Anna que, ao apresentarem as consequências da Guerra Colonial para a população local, complementam o ponto de vista exclusivamente ‘português' do conflito. Se por um lado os textos desta autora sobre a guerra não são, de facto, textos anticoloniais, por outro evidenciam o sofrimento dos nativos, bem como dos portugueses que iam combater nas antigas colónias. Assim, é importante ter presente que a recolha de textos de Glória de Sant'Anna incluída na Antologia da memória poética da Guerra Colonial apresenta uma visão parcial da sua produção poética sobre a guerra. Na verdade, como tentámos demonstrar, a poesia de Glória de Sant'Anna possui um carácter multifacetado, o que a coloca numa zona de ‘sombra' entre as linhas de combate, de onde observa e retrata o drama da guerra. A sua posição é inevitavelmente problemática, quer pela origem portuguesa, quer por representar uma perspectiva feminina sobre o conflito. Porém, pensamos que o interesse na poesia dessa autora se fique a dever, em parte, a essa sua complexidade.
Podemos dizer, então, que a escrita de Glória de Sant'Anna, ao problematizar a relação unívoca entre os portugueses na então colónia moçambicana e a população local, sugere uma leitura que ultrapassa as dicotomias e questiona a homogeneidade dos dois grupos, como escreve Cláudia Castelo (2007), “a situação colonial comportava diversos matizes. Uma interpretação linear – do estilo: de um lado os colonos, a autoridade, o poder e a prosperidade; do outro, os africanos, a obediência, o trabalho e as dificuldades – será sempre redutora” (p. 208). A nosso ver, é com base nessa constatação que devem ser lidos os textos de Glória de Sant'Anna.
Antes de concluir, falta mencionar o último texto escrito em Moçambique, Desde que o mundo e 32 poemas de intervalo (Sant'Anna, 1972). O livro divide-se em duas partes: na primeira é apresentado o poema “Desde que o mundo” e na segunda, que reúne os 32 poemas de intervalo, a temática da guerra e da morte é abordada desde uma perspectiva pessoal e íntima; o poema “Epitáfio”, por exemplo, incluído nessa segunda parte, relembra, como o memento homo dos versos bíblicos, a efemeridade e vanitas da vida: “Eu um dia serei uma poalha de vento/ pousando inadvertidamente em tua face/ e me sacudirás” (1972, p. 93).
Ao contrário dos poemas analisados até agora, que referem situações dramáticas específicas relacionadas com a guerra, o poema “Desde que o mundo” ergue-se como porta-voz da guerra enquanto drama universal:
A terra está ficando toda de sangue
toda de sangue
e mil olhos nos olham de lá do fundo
Cada corola que rompe vem cheia de sangue
cheia de sangue
e traz no centro um olho duro
As faces, as faces, as faces quietas
que eram de carne e são de terra
e os dentes, os dentes, os dentes dispersos
por entre de dentro no meio das pedras
E orelhas, orelhas deitadas escutando
escutando esperando escutando esperando
os passos e o pulso e as vozes e o fumo
e o vento e a chuva e o rodar do mundo
E comendo a fome de sangue da terra
entre ossos e pele
entre ossos e pele
gusanos, gusanos, gusanos, gusanos
repartindo tudo. (Sant'Anna, 1972, p. 19)
No primeiro verso desse poema, a autora evoca o sangrento período vivido em solo moçambicano e, ao fazer convergir a imagem de sangue com a terra, enraíza a sua dor e a dor de todos os que sofrem com esta guerra, nesse espaço. As palavras que se referem às partes do rosto (dentes, orelhas, faces, olhos) e do corpo humano, repetidas ao longo do texto, sobretudo na terceira e quarta estrofes, funcionam como imagens de horror que se afirmam insistentemente na memória; destroços de corpos compõem esta paisagem sombria, em que, à maneira do Guernica de Picasso, os corpos perdem a sua unidade. Muitos poetas e artistas moçambicanos representaram o drama da Guerra Colonial e da guerra do pós-independência, como os pintores Malangatana Valente e Sansão Cossa, cujas telas, com dentes, caveiras, corpos entrelaçados e olhos que mostram o desespero da guerra, lembram a imagem de morte e horror do poema de Glória de Sant'Anna.
O poema citado constitui, como vimos, a primeira parte do livro Desde que o mundo e 32 poemas de intervalo, publicado em 1972, apenas dois anos antes da partida da autora para Portugal e numa altura em que o eclodir do conflito se torna extremamente opressivo, como podemos verificar ao ler os versos que remetem para o seu desassossego perante a difícil realidade: “não volto as costas/ à hora exígua/ só me pergunto que faço aqui” (1972, p. 67). Esses versos preanunciam a imanente ida da escritora para Portugal, seguindo assim os passos dos filhos, como podemos ler no poema “Partindo-se”:
E eis que vos ausentais teimosamente
de todas estas lágrimas vestidos
E eis que vos vejo ir e não vos digo
ficai ainda porque sois precisos
E eis que partis mesmo estando presentes
ao lado destes mortos consentidos
Eis que vos vejo e os vejo e não vos digo
ficai ainda um pouco, olhai e crede
Eis que sereis (seremos) esquecidos
mesmo por estas fímbrias de arvoredos
que foram sombra dos nossos caminhos
Eis que sereis (seremos) repartidos
por (talvez) uma próxima memória
com sentinelas de perfis delidos. (Sant'Anna, 1972, p. 95)
Nesse poema é referida a partida de alguns dos filhos que, por diferentes motivos[9], deixaram o país natal para viver em Portugal ou no exílio. Glória de Sant'Anna (2010) dedica também à partida dos filhos algumas estrofes do poema-livro Gritoacanto 1970-74: “de sangue salgado se vestem/ estas minhas palavras/ e é sangue e sal o que escrevo/ e mágoa/ da verdadeira impossibilidade de lágrimas/ (...) ausentes ainda vos vejo moldados/ ao que já é uma lembrança errada/ porque ides/ (...) ai ide ninguém saberá/ que estais ausentes/ porque tem que ser que ninguém saiba (ou suspeite)” (p. 16). Esses versos representam também o clima de intimidação e perigo vivido então em Moçambique. Pouco tempo depois da partida dos filhos, em 1974, também Glória de Sant'Anna deixará para sempre Moçambique.
Em suma, a poesia de Glória de Sant'Anna problematiza várias questões, que remetem para a relação entre os portugueses que viviam nas então colónias e os nativos e para o ponto de vista feminino sobre a Guerra Colonial em Moçambique, entre outras. Para além disso, a sua importância no âmbito literário moçambicano deriva também de uma linha poética comum, a do lirismo intimista, que reúne vários poetas do período colonial com outros do pós-independência.
Eduardo White, por exemplo, reelabora poeticamente alguns imaginários poéticos de Glória de Sant'Anna. A obra poética de White acompanha momentos históricos fundamentais para Moçambique: a euforia do pós-independência, a guerra civil, o acordo de paz de 1992 e a nova e longa fase de construção democrática, dominada pela Frelimo. Ao mesmo tempo, a sua obra, ao retomar temáticas e recursos poéticos de alguns dos autores do passado, como Glória de Sant'Anna, estabelece uma intertextualidade que redefine, em parte, os valores culturais e estéticos do sistema literário no pós-independência. A sua poesia intimista, mais veiculada à expressão e reflexão do eu lírico do que à poesia de combate que exalta o nós colectivo, reivindica o direito à liberdade criativa, ao sonho e ao amor.
Na obra poética de White o drama da guerra, da miséria e da fome não é, à excepção de Homoíne (1987), o tema central. Isto porque a sua poesia tenta exorcizar os fantasmas do passado e do presente alimentando outros horizontes poéticos. Como evidencia Jessica Falconi (2011), o poeta reconfigura o “heroísmo nacionalista” como “heroísmo do amor, derradeiro espaço de vitalidade onde se recuperar uma dimensão humana para o dia-a-dia” (p. 119). Como afirma Eduardo White referindo-se às trágicas dinâmicas do próprio país, apesar do passado sangrento é preciso sonhar com um futuro melhor: “eles passam-nos um testemunho pesado porque nos passam um passado de sangue e um presente de sangue. Resta saber se somos uma geração capaz de fazer um futuro sem sangue, isso é que é importante. Eu espero que sim. Com amor fazemos” (Laban, 1998b, p. 1193).
Podemos dizer, então, que no contexto da poesia de White, Homoíne constitui uma excepção, por ser o texto poético que mais reflecte o drama da guerra. Homoíne é um poema-livro publicado em 1987, centrado no massacre que teve lugar a 18 de Julho de 1987 na vila homónima, situada na província de Inhambane. O assassínio de cerca de 400 civis, maioritariamente mulheres e crianças, por parte da Renamo, com o apoio da África do Sul (Springer, Keast & Therrien, 1987, p. 4), foi perpetuado com o objectivo de semear o terror entre a população civil. O Diário de Moçambique, a 7 de Novembro de 1987, dedicou à tragédia de Homoíne uma secção cultural do jornal, no qual foram publicados poemas de vários autores, incluindo o texto de White.
Gerado a partir das dramáticas consequências de um massacre que realmente aconteceu, Homoíne eleva-se, como o poema “Desde que o mundo” de Glória de Sant'Anna, a canto universal. Neste sentido, o longo poema de White (1987) torna-se numa condenação à insensatez da guerra, que tira ao homem qualquer sentido de humanidade: “Ai, quem matou estes mortos?/ Ai, quem celebrou com fogo suas vidas?/ Ai, quem os calou no silêncio definitivo?/ Deuses, homens ou bichos?/ Bichos certamente” (IV).
No longo poema, que é dividido em oito partes, são descritas as consequências imediatas da terrível chacina e constrói-se com repetições e quiasmos num ritmo em crescendo de imagens aterradoras que reproduzem a ânsia e o desespero da cena do massacre. Leiam-se a esse propósito as seguintes estrofes:
Os nossos mortos são muitos,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns
e a terra está sangrando de repente,
tem sede e sangra lentamente (...)
os nossos mortos são muitos,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns (...) (White, 1987, I; itálico meu)
Oh, os nossos mortos são muitos,
nem se os pode ver,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns,
e são cidades de sangue; são cidades sem luz
e são moscas verdes e cheias de pus,
que estão inchando e zunindo,
que estão zunindo e inchando,
inchando e zunindo nos seus corpos nus (White, 1987, V; itálico meu)
Os quiasmos presentes nessas estrofes, bem como a repetição com ligeiras variações do verso ‘os nossos mortos são muitos'[10] intensificam a imagem de morte, que se torna obsessiva e aterradora, contribuindo para a partilha da dor e do sentimento de indignação perante tal chacina. O poema desenvolve a descrição do massacre com detalhes bastante pormenorizados, como podemos ler nos seguintes versos:
e há também uma criança nua, sobrevivente,
é a única criança que vive e que não tem parentes
e que está bebendo,
e que está sorvendo
dos seios tenros dos cadáveres,
dos duros sexos dos falecidos,
os leites espessos e amarelecidos,
os gordurosos leites apodrecidos
que a estão matando de sede (White, 1987, II)
Esta terrível imagem da criança que amamenta dos cadáveres coincide com o testemunho de um sobrevivente referido num dos muitos artigos dedicados ao massacre: ‘Disseram-me (...) que, depois do massacre, fora do hospital, estava uma mulher morta e uma criança, de leite, tentando mamar nos seios da mãe' (Santos, 1987, p. 24). Na verdade, o massacre de Homoíne foi uma carnificina de civis, muitos dos quais mulheres, idosos, crianças e doentes internados no hospital local. No texto de White (1987), nem os animais escaparam ao massacre: “homens, mulheres, crianças,/ gado, cães, serpentes,/ que dentro do fogo estão nascendo,/ que dentro do fogo estão crescendo,/ que dentro do fogo se vão erguendo,/ com a morte correndo como um grito/ com a morte explodindo como um tiro” (III).
O ritmo em crescendo do poema alcança o seu ponto máximo no final da última parte, a VIII, na qual os mortos reivindicam o direito à própria vida: “e gritam os mortos, ai, e gritam desolados/ à vida e aos vivos que lhes acenam distantes/ e batem no corpo e arranham o rosto/ e insuflam os olhos numa aflição incontida/ e não tardam se aperceber em derradeiro desgosto/ que a terra já desce com a morte vestida” (White, 1987, VIII).
Homoíne demonstra que perante o horror da guerra o poeta tem o dever de reivindicar os sonhos e os amores dos que foram impiedosamente mortos, porque é ainda possível acreditar no futuro e manter viva a esperança: “e há dentro deles imagens e pensamentos,/ há sonhos por acabar, mulheres por amar/ (...) e há borboletas pousando por sobre o sangue/ e há pássaros alegres que o estão limpando/ e há uma cigarra vermelha/ uma cigarra de sangue/ que do coração dos mortos os está contando” (White, 1987, VI).
Esse longo poema dialoga com o texto “Desde que o mundo” de Glória de Sant'Anna (1972). Embora tenham sido escritos em contextos históricos diferentes (o primeiro insere-se no conflito que deflagrou após a independência do país e que durou até 1992, enquanto o segundo foi escrito durante a Guerra Colonial), os dois textos têm muitos elementos comuns. Partindo do pressuposto de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”, segundo a noção de “intertextualidade” elaborada por Julia Kristeva (1969/1974, p. 64) com base nos estudos de Bakhtine, podemos evidenciar os elementos reelaborados por Eduardo White a partir do poema “Desde que o mundo” de Glória de Sant'Anna (1972, p. 19).
No processo de releitura intertextual notamos que o que une os dois poemas é o ritmo e o imaginário terrífico que se vai construindo aos poucos. Podemos fazer uma leitura do poema de White em dois níveis: por um lado, a nível imagético, há uma série de elementos-chave que são reelaborados pelo poeta e por outro lado, a nível retórico, White utiliza frequentemente, como Glória de Sant'Anna, as figuras de repetição.
As primeiras imagens de sangue caracterizam o começo dos dois textos, a esse propósito leiam-se os versos das duas primeiras estrofes de “Desde que o mundo”: “A terra está ficando toda de sangue/ toda de sangue/ (...) Cada corola que rompe vem cheia de sangue/ cheia de sangue” (Sant'Anna, 1972, p. 19). White (1987) recupera esse elemento temático ao escrever os seguintes versos: “e a terra está sangrando de repente,/ tem sede e sangra lentamente” (I). Também a imagem dos vermes que corroem os corpos dos mortos na última estrofe do poema de Glória de Sant'Anna (1972) – “E comendo a fome de sangue da terra/ entre ossos e pele/ entre ossos e pele/ gusanos, gusanos, gusanos, gusanos/ repartindo tudo” (p. 19) – está presente em Homoíne: “e há um enorme pássaro que se encanta,/ é o pássaro lento do esquecimento,/ pássaro de sangue, pássaro que se levanta/ dos vermes que estão comendo os nossos mortos por dentro” (White, 1987, I).
Apesar de o poema de Glória de Sant'Anna ser mais breve do longo texto de White, verificamos que, do ponto de vista retórico, a autora utiliza frequentemente a figura da repetição para acentuar de forma quase obsessiva o drama representado. Por exemplo, nas duas primeiras estrofes de “Desde que o mundo” citadas precedentemente, são referidas as últimas palavras do verso (anadiplose) – “toda de sangue” e “cheia de sangue” (1972, p. 19) – para realçar a imagem sangrenta da cena representada. De notar, para além disso, que a repetição dos substantivos que remetem para as partes do corpo têm o efeito de reforçar o sofrimento das vítimas: “As faces, as faces, as faces quietas/ (...) e os dentes, os dentes, os dentes dispersos/ (...) E orelhas, orelhas deitadas escutando/ (...) entre ossos e pele/ entre ossos e pele” (1972, p. 19). A evocação das diferentes partes do corpo remete ainda para a imagem de seccionamento cruel do corpo martirizado. Assinalamos, por último, a presença da assonância, que vem contribuir, juntamente com outras figuras de repetição, para a intensificação do drama. Leiam-se, por exemplo, os seguintes versos: “e os dentes, os dentes, os dentes dispersos/ por entre de dentro no meio das pedras” (1972, p. 19).
Em conclusão, reparamos que no texto de Glória de Sant'Anna as repetições de palavras ou sons criam um efeito rítmico que reproduz uma intensidade dramática em crescendo associada à angústia e ao desespero. Também Eduardo White, em Homoíne (1987), utiliza com o mesmo objectivo a repetição de palavras ou versos, como é o caso do seguinte quiasmo: “Os nossos mortos são muitos, / são muitos os nossos mortos” (I).
Tendo em conta os elementos retóricos evidenciados, bem como as imagens representadas, comparem-se alguns versos dos dois poetas para compreender de que forma o ritmo da morte em crescendo avança impiedosamente ao longo dos textos:
E orelhas, orelhas deitadas escutando
escutando esperando escutando esperando
os passos e o pulso e as vozes e o fumo
e o vento e a chuva e o rodar do mundo
E comendo a fome de sangue da terra
entre ossos e pele
entre ossos e pele
gusanos, gusanos, gusanos, gusanos
repartindo tudo. (Sant'Anna, 1972, p. 19)
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns (...)
e são cidades de sangue, são cidades sem luz
e são moscas verdes e cheias de pus,
que estão inchando e zunindo,
que estão zunindo e inchando,
inchando e zunindo nos seus corpos nus. (White 1987, IV, V)
Os dois textos, que representam duas guerras, duas épocas e contextos políticos distintos, testemunham o mesmo drama. Perante o horror da guerra a atitude dos poetas é a mesma: a de denunciar através da linguagem poética a ‘desumanização' do homem. Se Eduardo White procura exorcizar os medos, o horror da guerra e da pobreza através do amor e abrindo novos horizontes territoriais e poéticos, também a poesia intimista de Glória de Sant'Anna, embora de forma diferente, procura no mundo do silêncio e da solidão uma forma de (r)existir, como lembram os seus versos: “Serei tão secreta como o tecido da água” (1972, p. 47).
Enquanto os dois autores reivindicam a própria liberdade poética, os seus textos demonstram que o drama da guerra é um drama comum e que a linguagem para exprimir a dor associada às carnificinas que esta provoca é universal. Perante a morte causada pelas guerras, independentemente do tempo e do lugar, a indignação do homem (e do poeta) é a mesma.
Referências
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(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)
[recebido em 30 de abril de 2015 e aceite para publicação em 24 de junho de 2015]
Notas
[1] Salientamos, a esse propósito, os ensaios sobre a poesia de Glória de Sant'Anna escritos por Eugénio Lisboa e Carmen Lucia Tindó Secco, para além da dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Rio de Janeiro por Guilherme de Sousa Bezerra Gonçalves (2013).
[2] O longo poema foi publicado em 1988 na antologia Amaranto (Sant'Anna, 1988) e em 2010, após a morte da autora, foi editado em livro pelos filhos (Sant'Anna, 2010).
[3] Glória de Sant'Anna mudou-se para Moçambique com o marido, que era arquiteto, e aí foi professora. Ao longo da sua estadia viveu em Nampula, Porto Amélia (Pemba) e Vila Pery (Chimoio).
[4] A autora concentra-se sobretudo nos casos de mulheres que acompanhavam os maridos em missão militar.
[5] Como é o caso do livro Poemas do tempo agreste, publicado por Glória de Sant'Anna em 1964, e de Desde que o mundo e 32 Poemas de intervalo, publicado em 1972.
[6] Nome com o qual é designado o chefe local em Moçambique.
[7] Benedito Brito João contesta esta tese e, baseando-se em testemunhos orais, acredita que foram “as contradições que opunham Abdul Kamal às autoridades locais e aos colonos ali estabelecidos” que levaram à sua prisão e morte (João, 1989 / 2000, p. 122).
[8] “É um pássaro preto e branco/ com olhos cor de fogo muito lindos/ mas mais bonito é se canta” (Sant'Anna, 1995, “O n'pure”).
[9] Relacionados também com a dramática situação vivida então em Moçambique, com a pressão política e com a necessidade de fugir à obrigação militar. Na verdade, os filhos de Glória de Sant'Anna, nascidos em Moçambique, tiveram que tomar decisões muito duras sobretudo no período final do conflito colonial (Laban, 1998 a, pp. 197-168).
[10] Este verso repete-se também na primeira estrofe de cada parte do poema, à exceção da III e VIII.