Introdução
No imediato pós-guerra, os dilemas éticos suscitados pelo Projeto Manhattan - que culminaria com as bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki - e os riscos sem precedentes criados pela corrida nuclear durante a Guerra Fria marcaram o início de uma série de conflitos ciência-sociedade. Nas décadas seguintes, sucederam-se: a crise ambiental provocada pela poluição e a depredação da natureza; a rebelião dos trabalhadores face ao trabalho alienante nas linhas de montagem fordistas; os desastres tecnológicos, como os de Bhopal e Chernobyl; as irreconciliáveis controvérsias sobre os riscos dos organismos geneticamente modificados e sobre o aquecimento global, não raro permeados por conflitos de interesse; os dilemas éticos abertos em torno do uso de dados pessoais pelas ubíquas tecnologias da informação e comunicação e a big data; e a evidente desigualdade na distribuição dos benefícios e riscos tecnocientíficos pari passu com a desigualdade social (Coriat, 1982; Durant, 1999; Jasanoff, 2003; Moore, 1996). Estas tensões intensificaram-se a partir dos anos 1980, e não só levaram a mudar a percepção pública sobre os benefícios da C&T, como evidenciaram um problema de legitimidade da ciência face ao público (Funtowicz e Ravetz, 1993) e de desconfiança dos cidadãos nas instituições governamentais, particularmente nas agências regulatórias (Hagendijk, 2004).
Estas questões tornaram-se problemas públicos, à medida que grupos sociais se organizaram e mobilizaram em torno delas, colocando em xeque a direção tomada pelo desenvolvimento científico e tecnológico e os seus efeitos. Ao fazê-lo, questionaram a autonomia dos cientistas e o poder crescente das tecnocracias nas decisões políticas e exigiram um maior “controlo social” da ciência e da tecnologia (C&T). Noutras palavras, demandaram abrir o espaço blindado da C&T à discussão e decisão democrática. Configurava-se, assim, uma estratégia ativista de participação pública em ciência e tecnologia (PPCT), em que cidadãos não expertos se engajam na discussão e na tomada de decisões sobre assuntos tecnocientíficos (Bucchi e Neresini, 2008).
O ativismo em torno de problemas públicos envolvendo a C&T teve, nos anos 1950, forte participação de cientistas de alta projeção (por exemplo, perante a questão nuclear), mas foi-se progressivamente ampliando aos cidadãos não expertos (Moore, 1996). A partir da década de 1960, ganharam força vários movimentos ativistas, como o ambientalista, o antinuclear, o pacifista, o feminista, de justiça social e outros. Movimentos sociais, Organizações Não Governamentais (ONG) e grupos de interesse, como pacientes ou vítimas de desastres tecnológicos, começaram a exercer pressão sobre as agendas científicas, a expor os riscos das tecnologias, a demandar maior regulação da C&T e a opor-se a projetos tecnológicos (Carty, 2002; Hess, 2010).
Face à escalada de descontentamento social na década de 1990, vários governos nas democracias avançadas idearam formas institucionalizadas de participação dos cidadãos em assuntos científicos ou tecnológicos controversos, visando restabelecer a confiança pública na ciência e nas instituições reguladoras e, também, acalmar a agitação pública. A proliferação de conferências de consenso, júris de cidadãos e diálogos nacionais, entre outros formatos, levou a qualificar o fenómeno como “giro participativo” (Hagendijk e Irwin, 2006; Irwin, 2001). Tornou-se praxe, especialmente na Europa, falar em governança democrática da C&T, que, em oposição às estratégias de confrontação do ativismo, se alicerçou em princípios da democracia participativa, valorizando o diálogo e o consenso (Dryzek, 1990).
No final dos anos 1990, Joss (1999) perguntava-se se este seria um modismo efémero ou se estaríamos ante uma profunda e paradigmática transformação da política de C&T. O autor reconhecia que a participação pública tinha ganhado certo momentum e poderia conduzir a uma mudança, mas ainda não teria adquirido suficiente centralidade. Todavia, mais recentemente, a partir da acumulação de experiências, começou a ser desenvolvida uma literatura de tom mais crítico, que evidencia um conjunto de limitações dessas formas de PPCT na contribuição efetiva para democratizar a ciência e a tecnologia.
Neste trabalho, tomo como ponto de partida essas análises críticas. Sistematizo os argumentos relevantes, esgrimidos por vários autores, ao revisar a ampla evidência empírica. Situo os argumentos num novo enquadramento, que traço a partir de três dimensões de democratização da ciência e da distinção entre produção e consumo próprios da economia política. Avalio, assim, a capacidade democratizante da participação pública institucionalizada sobre a agenda científica, sobre a produção de tecnologias e sobre o seu uso ou consumo. Em seguida, de forma comparativa, a partir da revisão de um conjunto de estudos de caso, procedo à mesma avaliação para a participação pública ativista.
Comparar os efeitos democratizantes de ambas as formas de participação pública, uma organizada de maneira top-down e institucionalizada e outra contestatária e auto-organizada, não só faz sentido porque ambas são respostas diferentes ao mesmo problema, como também porque a sua coexistência não está isenta de contradições e implicações políticas. Faz também sentido porque evidencia que, e este é meu principal argumento, enquanto a PPCT institucionalizada tende a passar ao lado das relações de poder fundamentais que atravessam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no capitalismo contemporâneo, o ativismo constitui-se no enfrentamento dessas relações de poder, aspeto que condiciona a capacidade de ambas as formas de participação de efetivamente incidirem sobre o desenvolvimento tecnocientífico.
Após esta introdução, apresento uma breve discussão sobre a democratização da ciência e da tecnologia. Em seguida, na terceira secção, exponho a metodologia do trabalho. Na quarta secção, examino as formas de participação pública institucionalizada, sistematizando as críticas postas pela literatura e avaliando a sua capacidade de incidir sobre a produção e consumo de C&T. Na quinta secção, a partir de um conjunto de estudos de caso, sistematizo as frentes de ação da participação ativista, aferindo os seus efeitos na produção e consumo de C&T. Finalmente, nas considerações finais, retomo o potencial democratizante das diferentes formas de PPCT institucionalizada e ativista.
Ciência, tecnologia e democracia
A relação entre ciência e democracia forjada nas democracias liberais ocidentais no segundo pós-guerra propunha uma clara separação entre ciência e público. Fortemente baseada na proposta de política científica contida no relatório de Bush (Science, the Endless Frontier 1 ), influente em várias latitudes, identificava o público como o beneficiário final do avanço científico e tecnológico, o que justificava o seu financiamento com fundos públicos, mas demandava total autonomia dos cientistas para desenvolverem as suas atividades (Woodhouse, Hess e Breyman, 2002). A democracia representativa assegurava ao público a potestade de indicar os fins, enquanto os cientistas informariam sobre como atingi-los e sobre os possíveis cursos de ação. Como observa Kurtulmuş (2021), esta divisão do trabalho baseava-se em dois pressupostos: de um lado, a neutralidade da ciência e, de outro, que o conhecimento científico não interfere no estabelecimento de fins pelo público.
Esse estado de coisas foi espelhado no escasso diálogo entre o estudo das instituições democráticas, por um lado, e os estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT), por outro. As análises da democracia tenderam a ver a ciência como uma fonte de conhecimento e competência pouco contestados, aproximando-se da ideia de neutralidade. Por outro lado, os ESCT concentraram-se em demonstrar que o conhecimento e as tecnologias são socialmente construídos, revelando relações de poder neste processo, para, em seguida, indagar normativamente: como devem ser construídos? Que grupos sociais devem estar incluídos nesta construção? (Woodhouse, Hess e Breyman, 2002). Entretanto, apesar de reivindicarem uma construção mais democrática da C&T, abrindo-as à participação de atores antes excluídos, os ESCT pouco examinaram os contextos institucionais das democracias contemporâneas (Biegelbauer e Hansen, 2011). Marres e Lezaun (2011) argumentam que o conceito de democracia que ampara os experimentos de participação pública em C&T não é discutido, e Chilvers e Kearnes (2016) vão além, dizendo que tanto o conceito de democracia como o de público são tomados como categorias externas e dados no desenho e avaliação dos experimentos participativos.
Resulta imprescindível uma maior interação entre os ESCT e a teoria política para avaliar os efeitos democratizantes da participação pública em C&T. Assim, por exemplo, é fundamental explicar as diversas formas de participação nas diferentes configurações das democracias atuais, que permitem, esperam, ou obstaculizam diversas formas de participação cidadã. Enquanto as controvérsias geradas pelo desenvolvimento tecnocientífico são cada vez mais ubíquas, evidenciando os limites da democracia representativa em tratar desses problemas pela via da delegação das decisões sobre C&T aos expertos, as respostas sociais têm sido variadas em diferentes contextos, envolvendo desde o ativismo à participação institucionalizada e, em algumas ocasiões, uma combinação de ambos.
Neste sentido, é interessante notar que a emergência de movimentos sociais na década de 1960 foi essencial para o questionamento da democracia representativa e para a reivindicação de formas de democracia direta. Entretanto, como argumenta Young (2014), a ação direta dos movimentos ativistas não encontra um lugar claro na teoria democrática: a democracia representativa tem sido hesitante em acomodá-los como grupos de interesse, enquanto os defensores da democracia deliberativa, baseada nos princípios do debate e da negociação, repreendem este tipo de ação. Os espaços da democracia participativa foram prioritariamente preenchidos pelas metodologias de participação pública típicas do “giro participativo”, embora os seus vínculos (e capacidade de impacto) nos sistemas políticos representativos dominantes fossem pouco claros (Biegelbauer e Hansen, 2011).
Embora o assunto precise de maior discussão, neste trabalho refiro-me à democratização da C&T em termos da capacidade pública de influenciar este âmbito da atividade humana e das condições criadas para desenvolver tal capacidade (Kurtulmuş, 2021). Baseada em Fressoli, Dias e Thomas (2014), refiro-me aos efeitos democratizantes da participação pública em C&T, como a sua capacidade para afetar decisões sobre a direção, alcance e ritmo da produção de conhecimentos e tecnologias.
Ademais, considero importante situar a questão, retomando a distinção fundamental da economia política entre produção e consumo da ciência e tecnologia, e os seus diferentes papéis na acumulação de capital. Como nota Stirling (2008), não deixa de ser um paradoxo que a vontade política de promover a participação pública em ciência e tecnologia ocorresse no momento em que a globalização neoliberal se intensificava e aumentava o poder concentrado pelas corporações, tornando a governança da C&T mais inacessível.2 Assim, resulta fundamental situar a questão da democratização da C&T no quadro destas tendências e relações de poder. Para isso, amplio o antes exposto para considerar os efeitos democratizantes da participação pública em ciência e tecnologia, como a capacidade desta para afetar decisões sobre a direção, alcance e ritmo da produção de conhecimentos e da produção e consumo de tecnologias.
Metodologia
Desenvolvi esta pesquisa a partir de uma extensa revisão de literatura sobre PPCT, orientada por um conjunto de perguntas iniciais amplas: a participação pública tem contribuído para democratizar a C&T? Modificou agendas científicas? Alterou trajetórias tecnológicas?
Não tive a pretensão de fazer uma revisão sistemática, mas sim uma combinação entre revisão de periódicos científicos fundamentais no campo dos ESCT3, pesquisa de trabalhos mediante palavras-chave em portais e uso da técnica “bola de neve” (Ridley, 2012), identificando trabalhos a partir de referências relevantes citadas. A revisão não foi exaustiva, dada a enorme quantidade de artigos, capítulos e livros sobre o tema, mas suficiente para alcançar um ponto de saturação teórica, na medida em que as referências adicionais não aportavam novas informações relevantes sobre o assunto.
Inicialmente, revisitei um conjunto de artigos através dos quais tinha entrado em contacto com a temática da PPCT em 2002, a maioria dos quais fazia uma avaliação otimista sobre as incipientes experiências de participação pública institucionalizada (Invernizzi, 2004). Em seguida, revisando publicações mais recentes nos periódicos do campo dos ESCT e fazendo algumas pesquisas em portais a partir de palavras-chave como “public participation in S&T”, “S&T governance”, “S&T democratization”, identifiquei dois conjuntos de textos: de um lado, análises que avaliam criticamente a PPCT, situadas temporalmente no final dos anos 2000 e início da década seguinte; e, de outro, trabalhos mais recentes que propõem novos enfoques, enfatizando a co-construção dos públicos, o caráter performativo das tecnologias de participação e a multiplicidade situada de experimentos participativos. Uma pesquisa complementar localizou mais literatura sobre a participação pública realizada por diversas organizações e movimentos sociais, através de palavras-chave como “S&T activism” e “S&T and social movements”. Finalmente, uma pesquisa específica foi realizada para localizar casos situados na América Latina. Após uma seleção dos textos mais relevantes, o resultado foi um conjunto bastante amplo de 147 trabalhos, registados numa coleção no software Zotero.
A partir da leitura dos trabalhos conceituais e da revisão de estudos de caso, comecei a notar maior incidência da PPCT na esfera do consumo das tecnologias, o que me levou a verificar a escassa importância atribuída pela literatura a dimensões fundamentais da economia política, tais como o lugar dos atores participantes nas relações de produção e a diferenciação entre produção e consumo de C&T. Atentando nessas questões nos estudos de caso, deparei-me com alguns vazios nas tipologias de participação pública existentes, que complementei com novas variáveis de análise.
Parti de algumas dimensões de análise relevantes destacadas em diversas tipologias sobre PPCT, como: (a) o caráter invitado/patrocinado/de laboratório vs. não-invitado/auto-organizado/de protesto das formas de participação (Bogner, 2012; Bucchi e Neresini, 2008; Wynne, 2007); (b) os responsáveis pela agenda e pelo framing da discussão do problema (Bogner, 2012; Wynne, 2007); e (c) a relação entre expertos e leigos na circulação de informação e produção de conhecimentos (Bucchi e Neresini, 2008; Rowe e Frewer, 2000; Schrögel e Kolleck, 2019). Adicionei novas dimensões, centrais para uma análise de economia política, que resultam cruciais para avaliar o impacto democratizante da incidência do público sobre C&T. Trata-se da posição, na estrutura produtiva, desde a qual os atores sociais participam e da distinção entre os efeitos que são capazes de imprimir sobre a produção e o consumo de C&T. O conjunto de dimensões de análise que utilizei para examinar as formas de participação pública relatadas na literatura está sintetizado na Figura 1.
Seguindo as linhas da Figura 1, à esquerda sistematizei os casos, observando a posição na estrutura produtiva dos atores participantes, a forma de participação, a relação expertos-leigos e a elaboração da agenda de discussão. De seguida, avaliei os efeitos democratizantes da participação pública sobre o conhecimento, a produção e o consumo de tecnologia (Figura 1, à direita). Em relação à produção de conhecimento, qual é a incidência sobre a agenda científica? Em relação à produção de tecnologia, a participação pública afeta as trajetórias tecnológicas alterando-as, estimulando o desenvolvimento de trajetórias alternativas ou contribuindo para extinguir trajetórias? Em relação ao consumo de tecnologias, de que formas tem incidido a PPCT? Alterando o local de uso de tecnologias? Impondo limites para a sua aplicação, através de regulação? Mediante o ressarcimento por danos causados?
A participação institucionalizada e os seus limites
As conferências de consenso foram desenhadas no final da década de 1980, pelo Danish Board of Technology, uma organização consultiva do Parlamento dinamarquês, para estimular a participação pública na avaliação de tecnologias (Andersen e Jaeger, 1999). Esta metodologia viria a tornar-se a marca registada do giro participativo (Delvenne e Macq, 2019). Inspirada nos ideais da democracia deliberativa e na transição do governo para a governança (Hagendijk e Irwin, 2006), as conferências visaram promover a discussão pública sobre as implicações do desenvolvimento científico-tecnológico e ampliar as perspectivas para a tomada de decisão sobre C&T. Entretanto, na reprodução do modelo, a íntima ligação com o parlamento do desenho original, essencial para a influência nos decisores, foi geralmente rompida.
Tipicamente, estes eventos deliberativos são organizados por instituições governamentais ou académicas e envolvem pequenos grupos de cidadãos - entre 10 e 30 pessoas -, daí a denominação de “minipúblicos” (Dryzek e Tucker, 2008). Entretanto, alguns exercícios de participação pública ampliaram as suas pretensões de representatividade, mediante debates públicos replicados em várias localidades, para terem alcance nacional e, inclusive, internacional.4 A seleção do público é realizada pelo organizador a partir de um grupo de interessados, contactados mediante avisos públicos ou chamadas telefónicas, visando certa representatividade da sociedade em termos de género, ocupação e localização geográfica. Participam também expertos, escolhidos de forma a representar perspetivas diferentes sobre o assunto em discussão. O processo começa por uma exposição dos aspectos científicos do problema pelos expertos e, em seguida, os cidadãos desenvolvem as suas discussões, mediadas por um facilitador, procurando-se a obtenção de um posicionamento o mais consensual possível sobre as ações a serem recomendadas. As recomendações são entregues a decisores (parlamentares e outros membros do governo) e aos media, para divulgação. As reuniões duram entre 2 a 4 dias (Horning, 1999).
Com variantes de formato e diversas denominações, como “painéis de cidadãos”, “júris de cidadãos”, “conferências cidadãs” e “diálogos públicos”, estes modelos de participação cidadã em pequena escala difundiram-se, desde o início dos anos 90, em muitos países da Europa, Estados Unidos e sudeste asiático (Joss, 1999). Na América Latina, entretanto, foram raramente utilizados (Ureta, 2016). As questões abordadas foram variadas, incluindo biotecnologia, organismos geneticamente modificados em alimentos, tecnologias da informação, lixo nuclear, pesquisa em genética humana, política ambiental (Marris e Joly, 1999) e, mais recentemente, nanotecnologia, terapias génicas, tecnologias reprodutivas e regulação da biotecnologia (Laurent, 2009; O’Doherty e Einsiedel, 2013).
Crescentemente profissionalizadas e institucionalizadas (Stirling, 2008), estas instâncias participativas não só contaram com o apoio de governos e instituições de financiamento à pesquisa (European Commission, 2004), mas também, como argumentam Levidow (2007) e Thorpe (2010), foram estimuladas, com bastante êxito, pela comunidade académica dos ESCT, que vinha propondo a necessidade de abrir as dimensões políticas e epistémicas da pesquisa e dos programas tecnológicos ao escrutínio público, para tornar a ciência e a política mais robustas, reflexivas e democráticas.
Transcorrido algum tempo, diversos autores começaram a fazer uma avaliação crítica de várias experiências de PPCT institucionalizada, revelando um conjunto de limitações, tanto no que diz respeito ao caráter democrático do próprio mecanismo participativo, como quanto à sua capacidade democratizante da C&T. Estas podem resumir-se nos aspectos seguintes:
A individualização e despolitização dos participantes - Na seleção dos integrantes dos minipúblicos, prevalece o ideal de “cidadão neutro”, não ideológica ou politicamente condicionado em relação ao tema de C&T em discussão. Quando potenciais participantes têm posicionamentos prévios, são excluídos no processo de seleção (Delvenne e Macq, 2019; Irwin, 2006; Marres e Lezaun, 2011). Alguns expertos em participação pública têm constituído verdadeiras maquinarias políticas para a criação de públicos (Felt et al., 2007). Entretanto, embora essas maquinarias forjem identidades e estabeleçam papéis, os públicos nem sempre se ajustam aos formatos, na medida em que a sua performance está condicionada pelas culturas tecnopolíticas locais (Felt e Fochler, 2010; Laurent, 2009).
A despolitização do espaço de discussão - A participação dá-se de forma “agorística”, num espaço isolado e específico para a deliberação, separando os indivíduos das suas condições sócio-materiais de existência. A participação ocorre como experimento de laboratório, sob condições controladas, artificiais (Bogner, 2012; Marres e Lezaun, 2011).
A escassa incidência do público no enquadramento das questões em debate - O enquadramento das questões a serem debatidas é decidido pelos organizadores, facilitadores e expertos, envolvendo uma dimensão política implícita que determina o que é importante e o que não é, que assuntos são incluídos e quais são excluídos (Bogner, 2012; Hagendijk e Irwin, 2006; Stirling, 2008; Wynne, 2007). Há uma tendência para separar os aspectos científicos e políticos do problema em discussão e para limitar o engajamento do público leigo a questões de valores e ética, sem abrir o campo do conhecimento especializado ao escrutínio público (Hagendijk e Irwin, 2006). Mais recentemente, alguns autores têm chamado a atenção para a importância das condições materiais da participação no framing da discussão: artefactos, objetos, cenários através dos quais os públicos são mobilizados, e que constringem, informam e são constitutivos da forma em que ocorre esse envolvimento (Marres e Lezaun, 2011).
Deslegitimação do dissenso e exclusão de alternativas - A ênfase no consenso e a imposição de um roteiro de discussão, ou outros dispositivos de participação, excluem o desacordo e a discussão de alternativas científicas ou tecnológicas (Hagendijk e Irwin, 2006; Jasanoff, 2003; Laurent, 2009; Stirling, 2008; Wynne, 2007). Mais ainda, a ênfase no consenso deslegitima o conflito e o dissenso, contrariando o ideal republicano de liberdade (Marris e Joly, 1999; Van Bouwel e Van Oudheusden, 2017).
Recursos limitados de participação - Os cidadãos não contam, com frequência, com o conhecimento especializado, os recursos materiais ou o tempo necessário para participarem de forma efetiva nestas instâncias (Delvenne e Macq, 2019; Jasanoff, 2003; Stirling, 2008).
Baixo impacto na tomada de decisões/legitimação - Os efeitos da participação na elaboração de políticas públicas são ténues ou inexistentes, seja porque o processo participativo ocorre muito tarde no desenvolvimento de políticas públicas e da própria tecnologia (Hagendijk e Irwin, 2006; Jasanoff, 2003; Wynne, 2007), seja porque a participação é utilizada para legitimar decisões já tomadas ou para responder ao descontentamento público, prevenir controvérsias e disciplinar a cidadania a aceitar a tecnociência (Bucchi e Neresini, 2008; Dryzek et al., 2009; Hagendijk e Irwin, 2006; Levidow, 2007; Marris e Joly, 1999; Rowe e Frewer, 2000; Stirling, 2008). De acordo com Joly e Kaufman (2008), os experimentos de engajamento público não têm tido o efeito desejado de “coproduzir” a tecnologia, e essa limitação deriva da incapacidade de vincular as deliberações públicas às estruturas de poder, às corporações e aos mercados. Ademais, destacam, enquanto as iniciativas participativas ocorrem em âmbitos nacionais, o desenvolvimento científico ocorre no âmbito global.
Na Figura 2, à esquerda, sintetizo as características destas formas de participação institucionalizada, em que os atores são cidadãos “neutros”. Esses cidadãos participam a partir da sua posição como consumidores efetivos ou potenciais dos conhecimentos ou artefactos tecnológicos sob discussão. Resulta evidente, nesta concepção de participação centrada no consumidor individual, a inspiração no individualismo democrático idealizado no neoliberalismo (Thorpe, 2010). A forma de participação é invitada, regulada pelo organizador e em pequena escala, embora esta possa ampliar-se. A relação entre expertos e leigos pode ser unidirecional ou dialógica, sendo que os primeiros apresentam informação científica, e espera-se do público a discussão em torno de valores, com frequente exclusão da discordância. Finalmente, a agenda de discussão é estabelecida e controlada pelo organizador.
Quais são os efeitos democratizantes da participação institucionalizada na produção e consumo de C&T? (Veja-se o lado direito da Figura 2.) Esta forma de PPCT tem escassa ou nenhuma incidência na formulação das agendas científicas. Os expertos proveem o quadro para a discussão nos limites da ciência e da tecnologia “estabelecidas”. Entretanto, há casos em que os participantes levantam a necessidade de produzir mais conhecimentos. Por exemplo, nas conferências de consenso sobre alimentos geneticamente modificados realizadas na França (1998) (Marris e Joly, 1999), Dinamarca, Canadá e Austrália (1999) (Dryzek e Tucker, 2008; Einsiedel, Erling e Breck, 2001), Japão (2000) (Nishizawa, 2005), Estados Unidos (2001 e 2002) (Dryzek e Tucker, 2008) e Taiwan (2008) (Fan, 2015), os cidadãos chamaram a atenção sobre os potenciais riscos para a saúde e o ambiente, evidenciando que os relatos dos expertos não proviam informações suficientes sobre esses assuntos e salientando a necessidade de mais investigações. Entretanto, apenas no caso japonês se reportou que novos projetos de pesquisa foram financiados, seguindo a recomendação dos participantes.
Nos estudos de caso revisados não há evidências de impactos das conferências de consenso e similares sobre a produção de tecnologias, modificando trajetórias tecnológicas ou estimulando trajetórias alternativas. Mais ainda, a literatura enfatiza que estas formas de participação regrada funcionam frequentemente como legitimadoras de trajetórias existentes e apaziguadoras de conflitos em torno da C&T (Levidow, 2007), no contexto dos desafios de competitividade impostos pela economia do conhecimento (Bensaude-Vincent, 2012; Thorpe, 2010).
Finalmente, pode ocorrer que a participação institucionalizada tenha algum efeito no consumo de tecnologias, quando os resultados das discussões são levados em conta na elaboração da política regulatória. Por exemplo, Jasanoff (2006) nota que a percepção negativa do público inglês sobre os alimentos geneticamente modificados, revelada na consulta pública GM Nation?, redundou num enfoque mais cauto da parte dos cientistas e autoridades regulatórias no país. Entretanto, é difícil estimar qual o peso real deste evento participativo na regulação, uma vez que havia sido precedido por fortes mobilizações sociais (Bucchi e Neresini, 2008). Os próprios avaliadores do evento consideram não haver clareza sobre até que ponto as recomendações foram levadas em conta pelo governo, nem qual o peso do debate na tomada de decisão sobre a regulação dos organismos geneticamente modificados (Horlick-Jones et al., 2006). De fato, o conjunto da literatura revisada tende a apontar um escasso impacto político dos exercícios participativos.
A participação ativista e os seus efeitos na produção e consumo de c&t
A PPCT desenvolve-se num terreno contestado, onde atores sociais imersos em relações de poder, com diversas capacidades, ideologias e interesses procuram influenciar as decisões tecnocientíficas (Bortz e Thomas, 2017). Entretanto, como enfatizei antes, a participação institucionalizada transcorre em espaços controlados, de acordo com processos seletivos e metodologias de deliberação que limitam a emergência de conflitos e evitam, embora nem sempre com êxito, que conflitos sociais “externos” permeiem a discussão. Já na participação ativista, as relações de poder e as contradições emergem em toda a sua expressão, na medida em que grupos organizados se mobilizam em torno de problemas públicos que envolvem C&T a partir das suas visões do mundo e das suas vivências coletivas, marcadas pela sua posição social.
O ativismo em assuntos de C&T tem profundas raízes históricas. Todavia, os seus antecedentes mais próximos estão no segundo pós-guerra, em torno do problema nuclear, quando alguns cientistas criaram organizações para defender uma “ciência responsável” (Moore, 1996). Nas décadas de 1960 e 1970, formaram-se novos movimentos sociais, como o pacifista, feminista, ambientalista e pelos direitos civis, que contestaram a direção tomada pela C&T e os seus impactos sociais e ambientais. A partir dos anos 1980, começou uma nova onda de ativismo, respondendo à intensificação da Guerra Fria e ao militarismo, à proeminência tomada pelos temas ambientais, ao avanço da pesquisa genética, à epidemia de SIDA, e ao desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, da biotecnologia e, mais recentemente, da nanotecnologia (Lengwiler, 2008; Levidow, 2007).
Muitos desses grupos, constituídos em ONG ou associações, tornaram-se crescentemente profissionalizados, e alguns passaram a contar com quadros científicos e capacidades de pesquisa próprios, o que lhes permitiu terem um papel mais relevante na produção do conhecimento científico, fortalecendo os seus posicionamentos com a produção de contraevidências científicas ( Bucchi e Neresini, 2008; Feenberg, 2009). Além do foco nas políticas de governo e agendas de pesquisa nacionais, há grupos que atuam globalmente, tendo como alvo corporações multinacionais e organizações multilaterais. As suas estratégias são variadas, incluindo campanhas informativas, demonstrações massivas, ação direta e ação legal (Hess, 2007; Jasanoff, 2006). A sua ação é inerentemente política (Bogner, 2012), e muitas vezes envolve enfrentamentos conflitivos.
A literatura reporta um amplo conjunto de frentes em que atua o ativismo. Uma delas é pôr em evidência os riscos das tecnologias para a saúde e para o ambiente, frequentemente obscurecidos pelos discursos de progresso tecnocientífico. Por exemplo, a ONG canadiana ETC Group (2003) fez um pedido de moratória sobre a nanotecnologia, fundamentado nos seus potenciais riscos para a saúde de trabalhadores e consumidores e para os ecossistemas. Embora sem êxito, o pedido colocou a temática dos riscos em discussão pública, mobilizou outras organizações a incluí-la nas suas agendas (Triste, Engeman e Cruz, 2012) e conduziu a um maior investimento na investigação sobre os riscos da nanotecnologia (Warheit, 2018). Os riscos dos agrotóxicos são outro alvo do ativismo. As Madres de Ituzaingó, na Argentina, deram início ao movimento das Cidades Fumigadas. Suspeitando de que a alta incidência de cancro na cidade resultava da fumigação com glifosato nas áreas agrícolas próximas, confecionaram um mapeamento leigo dos casos, organizaram manifestações e constituíram alianças com investigadores e advogados para gerarem a contraespecialização necessária para levar o caso à justiça (Arancibia e Motta, 2019).
No caso estudado por Broitman e Kreimer (2018), moradores da Patagónia chilena mobilizaram-se contra a construção de um grande projeto hidroelétrico que teria forte impacto ambiental, suscitando um movimento em escala nacional que levou, eventualmente, ao abandono do projeto na conjuntura de uma mudança de governo. Na Colômbia, habitantes do Páramo de Santurbán opuseram-se à construção de uma mina a céu aberto que colocaria em risco os aquíferos da região. Recorreram aos conhecimentos ancestrais dos moradores e aos conhecimentos científicos para evidenciarem o possível dano, conseguindo incidir na negação da licença ambiental (Parra Romero, 2019).
Outro alvo do ativismo são as implicações sociais do desenvolvimento tecnocientífico. No final dos anos 90, eclodiram, por todo o mundo, protestos contra os alimentos geneticamente modificados, identificando a biotecnologia como símbolo da homogeinização ambiental, económica e cultural imposta pelas grandes corporações (Jasanoff, 2006). Tratava-se de um projeto que “afetava a ordem social atual e futura”, de acordo com os ativistas, ameaçando as práticas produtivas dos pequenos agricultores, a diversidade de plantas e frutos, as tradições culinárias locais e as culturas ancestrais (Schurman e Munro, 2010). Na mira do ativismo esteve o projeto tecnológico de criar sementes estéreis, pela corporação Monsanto, apelidado pela ONG RAFI (Fundação Internacional para o Avanço Rural) de “Terminator”. Uma bem-sucedida campanha incrementou a pressão internacional, e a empresa decidiu abortar o projeto (Jasanoff, 2006). As diversas formas de maternidade/paternidade criadas pelas tecnologias reprodutivas são outro caso bem documentado de mobilização e disputa de grupos organizados, frente a implicações sociais do avanço tecnocientífico. Grupos ativistas conservadores, feministas, religiosos e da comunidade LGBTQ+ enquadram de maneiras diversas a relação entre as tecnologias reprodutivas e os conceitos de família, exigindo medidas regulatórias ( Jasanoff, 2007).
A luta pelo direito ao acesso a C&T é bem exemplificada pelos movimentos de pacientes que procuram garantir recursos para investigação e desenvolvimento de medicamentos. Quando irrompeu a epidemia de SIDA, no início da década de 1980, grupos homossexuais que lutavam pelos direitos civis viram-se envoltos numa batalha pela vida. Epstein (1995) mostra que, nos Estados Unidos, face à ausência de cura, os ativistas reivindicaram que os ensaios clínicos fossem concebidos, ao mesmo tempo, como pesquisa e tratamento, garantindo o direito dos pacientes de se submeterem às provas. No processo, precisaram de se adentrar nas metodologias científicas, tornando-se quase expertos. No Brasil, a mobilização de organizações de pacientes com SIDA, aliados ao movimento pela reforma sanitária, foi fundamental para conseguir o acesso universal aos tratamentos antirretrovirais. A garantia de acesso, condicionada pela redução de preços mediante a produção de genéricos no país, levou a conflitos internacionais no âmbito da OMC e das Nações Unidas pelo reconhecimento da precedência do direito à vida em relação ao comércio (Barros e Vieira-da-Silva, 2017; Grangeiro, Laurindo e Teixeira, 2009).
Uma frente de ação cada vez mais frequente é a mobilização social para forçar ou endurecer a regulação das tecnologias. No Brasil, apesar da tragédia ocorrida no início da década de 1960, a talidomida continuou a ser amplamente utilizada para tratar a hanseníase, produzindo novas gerações de vítimas. Como examina Moro (2017), a Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida e a organização dos pacientes com hanseníase, embora com interesses iniciais diferentes, aliaram-se para pressionar o Conselho Nacional de Saúde por regulações fortes que protegessem os pacientes. Enquanto as velhas tecnologias permanecem pobremente reguladas, a emergência de outras novas cria desafios regulatórios. Face ao aumento de produtos com nanotecnologias no mercado e à incerteza sobre os seus riscos, várias organizações, convocadas pelo International Center for Technology Assessment (ICTA) e Friends of the Earth elaboraram, em 2007, os Princípios para a Supervisão de Nanotecnologia e Nanomateriais. Esse documento, assinado por mais de 70 organizações sociais e sindicatos de seis continentes, materializou uma ampla aliança global para orientar as ações de avaliação e demandas por regulação da nanotecnologia (International Center for Technology Assessment, 2007).
Grupos organizados também se têm digladiado pela reparação de danos causados por tecnologias. Ex-empregados da RCA, em Taiwan, resultaram vítimas de um processo industrial contaminante que redundou em casos de cancro, abortos, crianças natimortas e outros agravos à saúde sofridos pelos 1600 trabalhadores. Organizados numa associação, mapearam os casos e, com ajuda de sindicatos, advogados e investigadores, conseguiram reunir as evidências necessárias para demonstrar o dano sofrido e processar a empresa, exigindo compensações e penalidades. Após 20 anos de ação, obtiveram um parecer favorável em 2018 (Chen, 2014; Jobin, Chen e Lin, 2018). No Brasil, pessoas deslocadas por grandes projetos hidroelétricos, especialmente pequenos produtores rurais, organizaram-se para contestar as compensações injustas recebidas pelas suas terras. Diversos movimentos locais uniram-se no Movimento de Atingidos por Barragens, em 1984, ampliando o escopo de ação. Não apenas questionaram uma perspectiva não problemática, benéfica e desenvolvimentista dos grandes projetos hidroelétricos, como ampliaram a interpretação dos danos e perdas reconhecidos pelos técnicos das empesas, incluindo dimensões como o dano ecológico, cultural e social (McCormick, 2009; Reis, 2009).
Feenberg (2005) tem insistido em que há brechas para modificar tecnologias. O computador, argumenta, foi concebido como espaço de imitação de interações quotidianas em que circulariam apenas informações valiosas (militares, corporativas). Entretanto, os utilizadores converteram-no num meio de comunicação, em que proliferam todo o tipo de comunidades virtuais. Carty (2002), por exemplo, mostrou que a rede mundial de computadores foi utilizada pelo movimento global anti-sweat shop, que mobiliza consumidores globais contra corporações que exploram trabalhadores, enquanto os “hacktivistas” publicitam informações de interesse público (Manion e Goodrum, 2000). Outro caso de modificação de tecnologias vem da contestação do modelo hegemónico de assistência ao parto, considerado excessivamente medicalizado e tecnocrático (Hirsch, 2015). No Brasil, onde a taxa de cesarianas é de 57%, um conjunto de movimentos de mulheres e de profissionais da saúde insiste, desde os anos 1980, em utilizar tecnologias mais simples e seguras, procurando recuperar a autonomia da mulher na experiência do parto. Estes movimentos contestaram a tese do parto cirúrgico como sendo mais seguro, alimentada em círculos médicos, revalorizando o conhecimento de parteiras e doulas (Tornquist, 2004). Aproveitando oportunidades políticas (Hirsch, 2015) ou mediante litígios na justiça (Leão et al., 2013), conseguiram modificar práticas do Sistema Público de Saúde.
A erradicação de tecnologias como resultado da resistência cidadã organizada é pouco frequente. O movimento antinuclear abraçou a causa do desarmamento e do fim do uso de reatores nucleares para geração de energia. Embora com ganhos limitados na primeira frente, o ativismo foi fundamental para a assinatura de tratados de controlo de armas e para o congelamento de campanhas armamentistas (Coburn, 2017). O sucesso foi maior na segunda frente, provocando a demora, suspensão ou arrefecimento do ritmo de construção de usinas nucleares nos Estados Unidos e nalguns países europeus (Kitschelt, 1986). Na então Alemanha Ocidental, o ativismo antinuclear, fortalecido na década de 70, foi bem-sucedido em conseguir o congelamento da infraestrutura nuclear após o desastre de Chernobyl (Rucht, 1990). Mais tarde, a tragédia de Fukushima acelerou o programa alemão de desativação total dos reatores nucleares até 2022 (Feldhoff, 2014).
Na Figura 3, à esquerda, resumo as características da PPCT ativista. Nestes casos, a participação ocorre através de atores coletivos, mobilizados em torno de um problema. Do ponto de vista da sua posição na estrutura produtiva, trata-se de consumidores efetivos ou potenciais das tecnologias que são objeto de ação. Há também afetados, seja pela produção de tecnologias, como os operários da RCA, pelo seu consumo, como os consumidores de talidomida, ou pela posição espacial que ocupam, quando há espaços que são de facto tomados por atividades tecnológicas, como os deslocados por barragens ou os povos fumigados situados em áreas adjacentes à produção agrícola (ver Figura 3, à esquerda).
Ao contrário das formas de participação institucionalizada, o ativismo é auto-organizado a partir dos enquadramentos próprios dos problemas públicos em disputa, realizados conforme os interesses do grupo mobilizado. Ocorrem formas mais espontâneas de organização (como as Madres de Ituzaingó) e mais profissionalizadas (ONG como o Grupo ETC ou Friends of the Earth). A sua atuação ocorre em pequena escala, quando se trata de problemas locais; a nível nacional, como na mobilização frente aos grandes projetos hidroelétricos chilenos ou brasileiros; e, inclusive, internacionalmente, como ocorreu com os alimentos geneticamente modificados ou a nanotecnologia.
A relação entre expertos e leigos é construída de formas diferentes e redunda em diferentes capacidades dos grupos de incidirem na produção de conhecimento. Há oposição e contestação de dados, como no movimento de atingidos por barragens, na determinação das causas das doenças nos casos de Ituzaingó e da RCA ou na avaliação do risco nuclear. Os casos mostram que a cientificação das disputas em torno da ciência estabelecida é recorrente, o que torna vital para os ativistas o acesso a esse conhecimento. Alguns logram-no, tornando-se quase expertos, como os ativistas norte-americanos em torno da SIDA, ou a partir de quadros científicos próprios, em organizações como Friends of the Earth ou Greenpeace, mas muitos movimentos dependem da colaboração com cientistas dispostos a assumirem os problemas nas suas agendas de pesquisa para produzir contraevidências. Em alguns casos, embora não pareça ser tão frequente, os ativistas são bem-sucedidos na mobilização de conhecimentos locais, como as epidemiologias leigas, o saber das parteiras tradicionais ou o conhecimento sobre as “fábricas de água” dos moradores do páramo colombiano.
A agenda de discussão está no cerne do debate. O framing do problema proposto pelas autoridades regulatórias, as indústrias, os juízes, é contestado pelas organizações sociais para que se incluam outros elementos na discussão, como a incomensurabilidade do dano produzido nas vidas dos trabalhadores da RCA, o valor cultural e ambiental das terras alagadas entre os afetados por barragens ou a primazia da vida frente ao comércio no caso da SIDA. Quando ocorre negociação, pode haver um deslizamento da agenda dos participantes, isto é, aspectos são cedidos. Por exemplo, nas disputas em torno da regulação da biotecnologia ou da nanotecnologia, é recorrente o estreitamento do marco de discussão da regulação social mais ampla, reivindicada pelos ativistas, para um enfoque estreito de riscos-benefícios, mais comum no enfoque das agências reguladoras.
Do conjunto de casos examinados, resulta evidente que os grupos ativistas conseguem efeitos democratizantes da C&T mais amplos do que a participação institucionalizada, como pode observar-se no lado direito da Figura 3. Incidem na agenda de pesquisa, forçando a introdução de novos temas nas agendas da ciência estabelecida, como, por exemplo, os riscos da nanotecnologia, ou mediante a criação de agendas científicas alternativas que produzem contraevidências sobre o valor das perdas dos deslocados por hidroelétricas ou sobre os efeitos carcinogénicos dos agrotóxicos.
Estes grupos têm demonstrado capacidade de incidir na produção de tecnologias, seja mediante a alteração de trajetórias tecnológicas - como no caso da biotecnologia e do gene terminator ou da modificação das configurações e usos dos computadores -, seja promovendo trajetórias alternativas, como o parto desmedicalizado, ou, ainda, levando à extinção de tecnologias, como a nuclear, em alguns países.
Os ativistas também conseguiram influenciar o consumo de tecnologias de diversas formas. Os grupos de pacientes são um exemplo das lutas pela ampliação do acesso a elas. O consumo também é foco da ação quando há pugnas pela alteração do local de uso de tecnologias, como as hidroelétricas ou projetos de mineração. Em relação a várias tecnologias, os movimentos organizados têm conseguido impor limites à sua utilização, lutando pela sua regulação. É o caso dos agrotóxicos, da biotecnologia e da talidomida. Finalmente, quando o dano já foi causado, só resta às organizações de vítimas reivindicarem o ressarcimento dos danos e chamarem a atenção pública sobre os efeitos deletérios que pode ter uma tecnologia. Este é um terreno extremamente difícil para as organizações, pelas condições desiguais em que empresas e vítimas se opõem em litígios sumamente longos.
Todavia, é preciso levar em conta que a literatura sobre o ativismo em temas de C&T tem um viés que favorece os casos de êxito, mesmo que esse seja parcial. Certamente, tais casos concitam mais interesse dos investigadores. Portanto, há limitações dos casos aqui apresentados. De fato, não é possível aferir o quanto representam uma tendência dominante ou casos relativamente excecionais.
Conclusões
Examinei neste trabalho alguns limites das formas institucionalizadas de PPCT para atingir efeitos democratizantes da C&T e argumentei que as formas de participação ativista conseguem maior efetividade, pois inserem-se nas relações de poder que estão no cerne do desenvolvimento tecnocientífico. Para fazer esta análise, baseei-me em algumas dimensões utilizadas em várias tipologias para examinar a PPCT; todavia, argumentei a necessidade de ampliar a análise para uma perspectiva de economia política que situe o lugar na estrutura produtiva a partir do qual participam os atores individuais ou coletivos e que distinga os efeitos democratizantes sobre a produção e consumo de C&T. Este enfoque permitiu-me considerar limitações adicionais às já relatadas pela literatura na capacidade democratizante da PPCT institucionalizada. De fato, estas têm uma restrita incidência sobre a produção e consumo de C&T, capacidade que se amplia na participação ativista.
A participação institucionalizada, ao individualizar e descontextualizar a discussão sobre C&T das experiências pessoais, tende a despolitizar esses exercícios, isto é, a separá-los das relações de poder em que se desenvolve a C&T. Ao fazê-lo, contrariamente ao seu propósito democratizante, redunda em efeitos muito frágeis sobre os rumos da C&T. A literatura deixa claro que estas formas de participação tendem a ter poucos efeitos na tomada de decisão, pois o elo com as instâncias políticas nem sempre existe ou é robusto o suficiente. Quando as recomendações dos minipúblicos ou experiências participativas em maior escala conseguem ter efeitos políticos, podem desencadear a inclusão de novos temas de investigação nas agendas de pesquisa, afetando a produção de conhecimentos. Não há evidência de que tenham capacidade de incidir na produção de tecnologias, afetando de alguma forma as trajetórias tecnológicas. Como dizem Joly e Kaufman (2008), há um ponto cego nestas metodologias participativas, pois não há nenhum nexo com o espaço de produção de tecnologias nas corporações. Mais ainda, a literatura enfatiza o frequente papel legitimador de tecnologias emergentes que assumem estas instâncias. Finalmente, em caso de haver conexão com os decisores, as recomendações dos cidadãos podem refletir-se na elaboração da regulação de tecnologias, afetando o seu consumo. Em suma, os seus efeitos democratizantes são frágeis e, com frequência, parecem ser inócuos.
Já o ativismo, com as suas bases coletivas e organizadas, resulta mais bem-sucedido por enquadrar o problema da democratização da C&T no terreno político ao qual pertence, evidenciando e contestando as relações de poder e as suas consequências em termos de distribuição de riscos e benefícios, vieses de classe e dominação cultural contidos na C&T. Por essas mesmas razões, os casos evidenciaram que a democratização da C&T é um processo extremamente contestado e trabalhoso. A revisão de casos de participação ativista mostra que os grupos sociais conseguem, às vezes, incidir nas agendas científicas; todavia, para isso, os grupos organizados dependem de ter quadros científicos próprios ou de fazerem alianças com investigadores de universidades. Na medida em que a sociedade e a política se tornam cada vez mais cientizadas, incidir nas agendas resulta um aspecto democratizante fundamental. Todavia, tal como alertara Feenberg (2009), adentrar os aspectos epistémicos de problemas públicos é árduo, assim como o é o reconhecimento de contraespecializações e ainda mais o reconhecimento de saberes locais ou tradicionais.
A produção de tecnologias é um âmbito resistente à democratização, pois está atravessada pelas mais fortes desigualdades de poder, num cenário de crescente e concentrado poder das corporações. Não obstante, vários movimentos sociais têm conseguido impor algumas alterações nas trajetórias tecnológicas para reduzir os seus efeitos deletérios. Menos frequentemente, têm incidido na promoção de trajetórias alternativas ou na extinção de trajetórias.
O consumo é o âmbito que parece ser mais permeável à PPCT ativista, especialmente através da regulação, espaço ampliado para a confrontação e negociação entre atores sociais, na medida em que os Estados neoliberais reduzem a sua atuação direta nas áreas da saúde, do trabalho e do ambiente, passando a regulá-las. O combate ao uso de tecnologias em determinados espaços tem sido outro âmbito crescente de atuação pública, da qual parecem resultar vitórias efémeras, na medida em que poderão ser alocadas noutros espaços que ofereçam menor resistência. Já o ressarcimento de danos causados parece ser o terreno mais difícil, e somente resulta democratizante se disso decorrerem transformações efetivas no uso de tecnologias, por exemplo, trazendo à tona regulações mais rígidas. Esta pressão de grupos sociais para democratizar a tomada de decisões sobre o consumo de tecnologias ressalta a importância política da organização coletiva dos consumidores.
Pelo exposto, resulta evidente que as tentativas de democratização da C&T mais efetivas ainda transcorrem fundamentalmente num terreno agonístico. Entretanto, é preciso matizar esta conclusão, pois, como notamos, a literatura sobre o ativismo em C&T tem um viés para os casos de sucesso. Por outro lado, em relação à participação pública institucionalizada, é preciso considerar que se trata de uma experiência bastante recente e restrita a alguns espaços de democracias avançadas. As suas limitações não justificam o seu descarte, mas evidenciam, sim, a necessidade da sua transformação. Enquanto institucionalizar espaços de discussão da C&T resulta fundamental para avançar na sua democratização, as formas de representação social individualizadas nestes espaços são contestáveis, especialmente frente aos grupos sociais e lobbies poderosos no terreno da produção e regulação de tecnologias. Uma democratização mais efetiva a partir desses espaços poderia, talvez, efetivar-se a partir da conquista por grupos organizados que tenham uma representação social relevante.