SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número3Na cinqüentenária Luuanda: o doloroso retrato de dois jovensAs estórias de Luuanda como 'fábulas angolanas': entre disjunções e confluências índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

DOSSIER 50 ANOS DE LUUANDA

Tematização linguística e arte narrativa em Luuanda

Language thematization and the narrative art in Luuanda

 

Ana Mafalda Leite*

*Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Investigadora do CesA (UL). Publicou sete antologias de ensaios críticos, oito livros de poesia e editou recente- mente os dois volumes que reúnem o produto do último projeto de investigação que coordenou: Nação e Narrativa Pós-colonial (Entrevistas a escritores angolanos e moçambicanos) e Nação e Narrativa Pós-colonial (Ensaios), ambos de 2012.

anamafaldaleite@gmail.com

 

RESUMO

Luandino Vieira marca, com a publicação de Luuanda (1964), um momento fundamental na escrita literária angolana que retoma vários dos trilhos experimentais no tratamento da língua e da arte narrativa angolana.

Palavras chave: literatura angolana, língua, arte narrativa, estória.

 

ABSTRACT

The publication of Luuanda (1964) by Luandino Vieira establishes a key moment in Angolan literary writing, incorporating various experimental trends in the treatment of language and narrative art.

Keywords: Angolan literature, language, fictional writing, tale.

 

A ficção angolana destaca-se das experiências ficcionais dos outros países africanos de língua portuguesa pela variedade de propostas linguísticas utilizadas. A emergência de um escritor como Luandino Vieira motivou um grau de experimentalismo linguístico que se vem a detetar anos mais tarde, com variantes diversas, em outros escritores, como é o caso de Manuel Rui ou de, um dos mais recentes, Ondjaki.

A língua torna-se, além de uma estratégia verbal, ela própria ‘tema’, uma vez que nela começa o trabalho ficcional, a captação rítmico-cultural da angolanidade. Sujeita a maior ou menor grau de criatividade, a língua portuguesa procura encontrar a sua identidade angolana, nomeadamente e em especial na área urbana luandense, cujo grau de aculturação tem uma ascendência e tradição que se prolongam retrospetivamente pelo menos até ao século dezanove. A proliferação de uma escrita ambaquista[1] é um exemplo que virá a ser retomado na ficção de Luandino Vieira.

A aventura linguística começou com os primórdios da literatura angolana. Joaquim Dias Cordeiro da Matta que publicou entre muitos trabalhos sobre a sua língua-mãe, uma Cartilha Racional para se Aprender a ler o Kimbundu Escrito Segundo a Cartilha Maternal do Dr. João de Deus (1892), ao escrever a sua poesia em registo duplo, colocando paralelamente o kimbundu ao lado do português, iniciou um processo de criação linguística, cuja herança virá a tornar-se no futuro suscetível de tratamento diversificado.

Com efeito, Luandino Vieira marca, com a publicação de Luuanda (1964), um momento fundamental na escrita literária angolana que retoma vários dos trilhos experimentais no tratamento da língua, iniciados anos antes. Foi-lhe atribuído o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, motivo que levou ao encerramento daquela instituição pela polícia política portuguesa (vd. Ferreira, 1980).

Um dos membros do júri, Alexandre Pinheiro Torres recenseou criticamente a obra nos seguintes termos:

Três histórias que são – tão-somente no meu modesto juízo que não pretendem sobrepor-se aos dos mais competentes e ao do tempo – três obras-primas do nosso conto contemporâneo, e a enorme e imprevista revelação de um escritor de sensibilidade excepcional e de notável capacidade de criação de um estilo: o estilo que resulta da sapiente fusão de regionalismos e latinismos (da mesma forma que Guimarães Rosa), o estilo que deriva da mesma linguagem onde as tropelias fonéticas, sintácticas e semânticas sofridas pelo português em contacto com os linguajares tradicionais autóctones são apropriados de maneira superior para a obtenção de uma escrita que, durante a leitura, me foi quase sempre, motivo de admirada e deleitada surpresa. (Torres, 1965)

Antes desta obra, que marca uma rutura na sua escrita, Luandino Vieira já tinha escrito A Cidade e a Infância (1957), seguindo-se A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961) e Vidas Novas (1968). Publica depois a partir de 1974 Velhas Estórias, No Antigamente, na Vida, e Nós, os do Makulusu. Seguem-se Macandumba (1978), João Vêncio: os Seus Amores (1979), Lourentinho Dona Antonia de Sousa Neto & Eu (1981). Após uma longa pausa na escrita, publicou recentemente De Livros Velhos e Guerrilheiros, O Livro dos Rios e o Livro dos Guerrilheiros (2006), além de vários livros infantis.

Luandino Vieira desenvolveu na sua criação tradições já iniciadas anteriormente na literatura angolana: a crítica social, a atitude expressamente anticolonialista, a ironia paródica. Retoma de forma indireta a herança de ficcionistas como Alfredo Troni, António de Assis Júnior e Castro Soromenho, uma vez que recupera a tradição da narração oral, a crítica de costumes, a dimensão simbólica alusiva. Introduz nos textos repetições e redundâncias discursivas intercalares, aberturas e fechos da narrativa característicos da tradição oral. Utiliza ainda técnicas expressivas que lhe advêm da utilização do kimbundu, língua que acentua e permite a animização de conceitos mais abstratos, e uma dimensão mágico-espiritual mais ampla.

Por outro lado, Luandino recorre a uma modernização da linguagem ficcional através do aproveitamento do discurso indireto, do monólogo interior, do fluxo de consciência, da intertextualidade lexical e mudança constante de planos e perspetivas, e ainda pelo recurso a técnicas narrativas próprias da linguagem cinematográfica como a composição, recomposição e montagens. Com efeito, no livro de contos Luuanda observa-se essa sinuosidade da técnica narrativa, que ‘naturaliza’ a oralidade, recompondo-a, recortando-a, recombinando-a, revelando-se assim uma atitude reflexiva sobre o próprio processo estruturador da estória.

Simultaneamente ficcional e meta-ficcional, o texto recolhe a tradição oral, modernizando-a, e assume a impossibilidade de acesso a uma verdade, ao considerar haver múltiplas verdades e no seu reverso, outras tantas mentiras. Ambiguidades que a vida e seus "casos" demonstram e que encontram um lugar mais que perfeito na literatura. É isto exatamente o que se lê na "Estória do ladrão e do papagaio", incluída em Luuanda:

Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, porquê, praquê, quem? saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo o que na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também um fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para atrás ou para a frente, vê que não se pode partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece...E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdade e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo. (Vieira, 1964: 82).

Salvato Trigo (1980) observou justamente que a "voz-do-povo": Misoso ietu, kidi; muenhu uetu, makutu – é o melhor juízo valorativo levantado na generalidade por todas as obras de José Luandino Vieira.

Integrar os missoso tradicionais na narrativa moderna, como o faz Luandino, corresponderá não só a revificar e perenizar o próprio objeto literário, atualizando as suas origens culturais, mas também a torná-lo mais circulante, e portanto mais sensível aos narratários africanos, na medida em que consegue mimetizar a forma griótica de narração. Os narradores em Luandino, têm, pois, sempre em vista o narratário, como acontece na poética popular. Esta foi descrita e classificada pelo missionário suiço Heli Chatelain em Folk-tales of Angola (1894) e considera a existência de diferentes narrativas orais, as fábulas (com animais) designadas em kimbundu por mi-soso e as histórias verdadeiras com fim instrutivo, designadas por maka. As narrativas históricas são chamadas ma-lunda. Os provérbios, ji-sabu, estão ligados de perto às makas, assim como as adivinhas ji-ngongo (vd. Chatelain, 1960).

A este propósito, Phyllis Reisman chama a atenção num artigo sobre Luandino para o uso do termo designativo do género estória, que considera estar baseado na incorporação das estruturas da narrativa oral (Reisman, 1987: 73). A autora refere ainda que Tamara Bender na sua tradução inglesa de Luuanda (1980) sublinha também esta questão:

He [Luandino] used the Portuguese termo ‘estórias’ (‘tales’) instead of the more traditional Portuguese term ‘histórias’(‘stories’) because he believed estória more correctly translated the kimbundu word "musoso", defined as a moral story or allegory, fable, narrative or tale.

(Bender, 1980)

A ‘estória’ é assim um género característico, que parece ser uma sábia reinvenção da maka e do missoso, mantendo a sua herança de narrativa oralizante e procedimentos estilísticos e retóricos que a tornam recetáculo de herança do cancioneiro oral angolano. Por outro lado, as manipulações linguísticas resultam também dessa necessária adequação entre os ritmos de relato que travejam a representação escrita da narração oral.

Se o processo reflexivo da narrativa de Luandino Vieira começa na língua, através da sua tematização, ela estende-se ao género, pelo experimentalismo. Pode-se confirmar que a ‘estória’ é uma opção que Luandino – enquanto griot urbano – escolhe para as suas narrativas e que a obra Luuanda tão significativamente emblematiza.

Esta forma híbrida sustenta os vários cruzamentos de género que se encontram na obra de Luandino. Sobre este tema, Carlos Ervedosa (1979) refere que, de forma mais ou menos indireta, se encontram na narrativa oral as matrizes de uma literatura angolana que, a partir da segunda metade do século XX, e em especial com Luandino, foi veículo de um trabalho de subversão da hegemonia do discurso literário europeu metropolitano, aliando a consciência de uma identidade cultural à ideia de nacionalidade e da libertação nacional.

As três estórias de Luandino em Luuanda retomam essa herança, em situação de sincretismo, reinventando os elementos do imaginário coletivo e do mitológico. E este sincretismo da voz e da letra constitui tal, como tem sido apontado pela crítica, um dos aspetos da originalidade da sua escrita (Mata, 1992: 52 seg.). Tal sincretismo, com suas formas específicas, parece configurar, efetivamente, uma das dimensões da angolanidade literária, que se define pela confluência de géneros e pela modalização de formas. Por sua vez, a língua é mediatizada por uma forma concreta, a estória, tornando-se elemento indissociável no processo de reatualizar o género literário. É pois assumindo-se como estória que se faz a narrativização do real quotidiano, à maneira dos contadores de ‘estórias’, iniciando Luandino Vieira esta arte com uma obra singela de três narrativas, que misturam elementos fabulares à crítica social.

A insistência na tematização linguística é evidência da importância das metamorfoses formais no desenvolvimento da ficção angolana. Luandino Vieira iniciou esse processo com as suas narrativas, e Luuanda, pela sua originalidade, pelo impacto mediático e histórico, torna-se sem dúvida uma obra exemplarmente emblemática neste domínio. Modelo experimental de ritmos e de formas de narrar as estórias, Luuanda é um exercício reflexivo sobre a língua e sobre as formas de a narrar, obra que de certo modo está na fundação do diverso desenvolvimento da moderna ficção angolana.

 

Referências

Bender, Tamara (1980), [comentário à sua tradução de] Luandino Vieira, Luuanda, London: Heinemann.

Chatelain, Heli (1960), Contos Populares de Angola. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar.         [ Links ]

Ervedosa, Carlos (1979), Roteiro da Literatura Angolana. Luanda: UEA.         [ Links ]

Ferreira, Manuel (1980), "Luuanda / Sociedade Portuguesa de Escritores um caso de agressão ideológica", in Michel Laban et al. (orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos, testemunhos, entrevistas, Lisboa. Lisboa: Ed.70, 1980, pp. 105-116.         [ Links ]

Laban, Michel et al. (1980, orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos testemunhos, entrevistas. Lisboa: Ed.70.         [ Links ]

Mata, Inocência (1992), Pelos Trilhos da Literatura Africana em Língua Portuguesa. Braga: Cadernos do Povo.         [ Links ]

Reisman, Phyllis A (1987), "José Luandino Vieira and the ‘new’ Angolan fiction", LusoBrazilian Review XXIV, 1 (1987), pp. 69-78.         [ Links ]

Torres, Alexandre Pinheiro (1965),"Vida Literária e Artística", Diário de Lisboa,14/1/65.         [ Links ]

Trigo, Salvato (1980), "O Texto de Luandino Vieira", in Michel Laban et al. (orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos testemunhos, entrevistas. Lisboa, Ed.70, pp. 231-248.         [ Links ]

Vieira, Luandino (1964), Luuanda. Luanda: ABC.         [ Links ]

 

[Recebido em 18 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]

 

Notas

[1]A vila de Ambaca, uns quilómetros ao norte de Malange, foi desde cedo um ponto comercial. Emergiu aí uma elite de africanos letrados, os ambaquistas, que ganhavam a vida como amanuenses para sobas analfabetos e colonos incultos. Designa-se de ambaquismo este fenómeno de escrita.