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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.28 no.3 Braga 2014
DOSSIER 50 ANOS DE LUUANDA
As estórias de Luuanda como 'fábulas angolanas': entre disjunções e confluências
The tales of Luuanda as 'angolan fables': disjunctions and convergence
Inocência Mata*
*Doutora em Letras com pós-doutoramento em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization, Universidade de Califórnia, Berkeley / London School of Economics), professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de Literaturas, Artes e Culturas, presentemente com licença especial para o exercício de funções transitórias na Universidade de Macau, como Prof. Associada do Departamento de Português. É membro do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, da Associação Portuguesa de Literatura Comparada e da Association por L’Étude des Literatures Africaines; Membro fundador da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe, Sócia Honorária da Associação de Escritores Angolanos e Membro Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa – Classe de Letras. Professora convidada de muitas universidades estrangeiras, é autora de diversos livros e artigos sobre literaturas africanas e sobre a teoria pós-colonial. Algumas das suas obras são: Emergência e existência de uma literatura: o caso santomense (1993), Diálogo com as Ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (1998), Literatura angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta (2001), Laços de memória & outros ensaios sobre literatura angolana (2006), A literatura africana e a crítica pós-colonial – reconversões (2008), Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (2010), Ficção e História na Literatura Angolana: o Caso de Pepetela (2011), A Rainha Nzinga Mbandi: história, memória e mito (2012) – para além de obras em co-autoria.
RESUMO
Neste artigo reflecte-se sobre a confluência entre as fábulas angolanas e a escrita das estórias de Luuanda, de Luandino Vieira, sublinhando a semelhante natureza retórica dos dois registos narrativos, que partilham objectivos pedagógicos e induzem à reflexão filosófica e moral, preservando uma sabedoria ancestral passada entre gerações. Para além da sua reconhecida dimensão literária, estas histórias constituem um repositório de elementos da cultura angolana oral (misoso e maka), uma memória do quotidiano de Luanda e da cultura dos musseques enquanto afirmam este micro-cosmos como metáfora identitária da nação. No contexto colonial dos anos 50-60 e 70, a escrita de Luuanda demonstra também o poder da palavra e do escritor no desenvolvimento das consciências, bem como a importância estratégica de recuperar as formas de uma reprimida cultura local. Por fim, a escrita de uma ‘oralidade fingida’, que se evidencia nestes contos, reconhece-se como particularidade da ficção angolana desde o século XIX.
Palavras chave: Literatura angolana, estória, fábula, griot, Luandino Vieira.
ABSTRACT
This article discusses the confluence among Angolan fables, and the writing of Luuanda, a collection of short stories by Luandino Vieira. The proposed argument highlights the elfish nature of all these narrative forms, which share pedagogic aims and induce moral and philosophical reflections, perpetuating ancestor wisdom passed on from generation to generation. Beyond their established literary quality, these short stories amount to a repository of elements from oral Angolan culture (misoso e maka) and they capture a memory of everyday life in the musseque neighbourhoods of Luanda as metaphors of Angolan national identity. In the colonial context of the 1950s-1960s and 1970s, Luuanda also stands as an example of the power of words and of the writer in the process of promoting form of awareness while recovering, strategically, elements of the repressed local culture. Finally, the writing of a ‘oralité feinté’, noticeable in these tales, is a defining feature of Angolan fiction since the 19th century.
Keywords: Angolan Literature, tale, fable, griot, Luandino Vieira.
Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo?
Amadou Hampatê Bâ
Em Novembro de 2013 tive o privilégio de participar na sessão de homenagem a Luandino Vieira, por ocasião de "Os 50 anos de Luuanda, de Luandino Vieira", realizada no dia 21 de Novembro na Universidade do Minho, no âmbito XV Colóquio de Outono do CEHUM, subordinado ao tema "As Humanidades e as Ciências – Disjunções e Confluências" em que também se assinalaram as seguintes efemérides: o Bicentenário de Wagner; o Centenário de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky; o Centenário de Vinícius de Moraes; e o Centenário de Paul Ricoeur.
Tratou-se de uma efeméride antecipada (tal como a que ocorreu durante o V Encontro de Professores de Literaturas / I Encontro da AFROLIC – Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos, em Porto Alegre, de 05 a 08 de Novembro desse mesmo ano). Com efeito, Luuanda, obra escrita em 1963, apenas seria publicada em 1964[1], era seu autor à altura já ‘residente’ na prisão do Tarrafal, Cabo Verde. Em todo o caso, porque este texto decorre da minha participação naquela sessão do Colóquio de Outono, opto por manter o título deste texto pois na altura a minha intervenção foi precisamente orientada para a busca dessas categorias na obra de Luandino Vieira, com ênfase num corpus pouco conhecido da obra luandina, os das ‘fábulas angolanas’. Com efeito, a ideia de olhar para a obra de Luandino Vieira a partir de um ângulo diferente do literário, cruzando interlocuções disciplinares diversas, foi um desafio que procurei não recusar. Foi por isso que na altura o meu propósito foi pôr em diálogo as diversas áreas do conhecimento, as suas indagações teóricas e metodologias específicas, de modo a analisar e debater as interfaces possíveis e as questões que cruzam transversalmente essa diversidade de saberes que tendem a ignorar-se respectivamente.
Foi, pois, pensando nessas confluências de saberes e estratégias de contação que optei por levar à homenagem não propriamente Luuanda, mas as ‘fábulas angolanas’ a que, a par dos livros expectáveis de Luandino Vieira, o escritor tem vindo a dedicar-se nos últimos anos. Com efeito, o que então me pareceu bem remota porém desafiante foi a semelhança do ritual retórico entre as estórias de Luuanda e as fábulas que compõem a série Sambuadi dia Misoso, seis fábulas ilustradas pelo autor, que tematizam as diversas categorias da ética e da deontologia: Liberdade, Poder, Sabedoria, Justiça, Inteligência, Corrupção… É que, como qualquer texto de natureza gnómica, tanto estas fábulas quanto aquelas estórias transmitem uma experiência que a autoridade da escrita, tal como antes a autoridade da voz dos mais velhos que nos conta(va)m histórias, levavam à descoberta da lição que encerram: em "Estória da galinha e do ovo", por exemplo, não é difícil chegar à lição veiculada de que a união faz a força e que o sentido da solidariedade é fundamental para a preservação da paz na comunidade, representando as personagens convocadas, ou autopropostas (sô Zé, Azulinho, sô Vitalino, sô Artur Lemos, o sargento), para dirimir o contencioso, "inimigas" da paz no musseque; em Puku Kambundu e a Sabedoria, aprende-se que a força da inteligência e da astúcia é maior do que o poder da força do branco, arrogante e injusto, mesmo em situação em que a cor negra é, já em si, uma desvantagem. Diz a propósito Luandino Vieira:
O mais sábio (Puku Kambundu) provou a outro que mesmo que se tenha tudo materialmente, falta sempre qualquer coisa, [por isso] ganhou a aposta porque demonstrou que o outro tinha tudo, mas faltava-lhe a sabedoria que é uma coisa que não se vende (...).
Havia uma certa arrogância da parte do colonialismo de que eles [os colonialistas] sabiam fazer tudo. Tinham tudo, logo sabiam tudo. Afinal por muito que tivessem havia sempre qualquer coisa que não tinham, que era a sabedoria para pôr fim aquilo que é tradicional. (Vieira apud Veiga, 2009)
Por isso, a minha proposta de reflexão é que fábulas e estórias luandinas são formas narrativas da elocução verbal que compreendem "mensagens históricas conscientes", independentemente dos requisitos formais e estilísticos, e funcionam como "um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave[2], isto é, a tradição oral [que] pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra" (Vansina, 2010: 140).
1. Disjunções: uma arquitectura de afectos e enfrentamentos
A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.
Walter Benjamin
Luuanda, que reúne três histórias ("Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "Estória do ladrão e do papagaio" e "Estória da galinha e do ovo"), chamou logo a atenção pela novidade do processo narrativo tendo recebido dois prémios muito importantes: o 1.º Prémio Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964, e o 1.º Prémio do Grande Prémio da Novelística, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, em Lisboa, em 1965, cuja história é do conhecimento geral – pelo menos de aqueles que estudam as literaturas africanas em português.
Luuanda viria, na verdade, a consolidar uma estratégia narrativa ensaiada pela primeira vez na obra inaugural do autor, A Cidade e a Infância (1960), designadamente no conto "Faustino", que começa imprimindo na narrativa a sua marca com a apresentação da circunstância em que a história lhe chegou, de que se assume como relator, ou artífice da forma linguística dos factos que compõem a história de Faustino:
Contarei agora a história do Faustino. Não foi a Don’ Ana que me contou, não senhor. Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele mesmo que contou. Faustino é o seu nome. Faustino António. (Vieira, 2007: 79)
Esta declaração de veridicidade, que percorre muitas obras de Luandino Vieira, tais como Vidas Novas (1968), Velhas Estórias (1974) e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974) – aqui marcadamente no final do texto –, e outras mais, acentua a relação do sujeito enunciador com a palavra, que encerra um testemunho daquilo que ele, como pertencente àquela comunidade, é, e de cujo respeito depende a coesão daquela comunidade. E se a oralidade faz nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo (Bâ, 2010: 168), pode dizer-se que para os sujeitos enunciadores luandinos, os narradores das estórias que resultam de testemunhos e/ou relatos oculares,
O que se encontra por detrás do testemunho (…) é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. (Bâ, 2010: 168)
Por outro lado, porque a verdade histórica está sempre estreitamente ligada à fidelidade do registo oral transmitido (Vansina, 2010:156), o jogo de veridicidade que é conseguido através deste procedimento estilístico-cultural instaura, paradoxalmente (por causa do pacto ficcional), uma conflitualidade lúdica com a verdade, em que há a ilustração constante da criação de mundos possíveis pela palavra, contaminada pelo ‘divino’ dado o seu poder criador e operativo. Aqui, e naquele contexto (anos 60 do século XX, musseque Sambizanga, lugar dos ‘causos’), a sátira alia-se à paródia na crítica aos bloqueios da expressão impostos pela censura:
Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvide de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho honrado. (...)
E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.
("Estória do ladrão e do papagaio", Vieira, 2006a: 105)
Essas declarações de cumplicidade percorrem o reino narrativo de Luuanda e, assim, o "texto estórico" (o subtítulo de Luuanda é "estórias") alcança o limiar do testemunho documental cujo enunciador (o narrador), para preservar a fidelidade da transmissão oral, se alimenta de histórias que lhe são contadas. Diz, com efeito, Walter Benjamin em "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" (1936) que,
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros contadores anónimos. (Benjamin, 1987: 198)
Assim, o narrador luandino, qual Leskov, "está à vontade tanto na distância espacial quanto na distância temporal" (Benjamin, 1987: 199). E, apesar de retirar da sua própria experiência o que conta, que entrecruza com vozes subjectivas ("Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele mesmo que contou". "Faustino". Vieira, 2007: 79), o que reforça essa autonomia em relação ao universo narrado é o seu comportamento como ‘simples’ relator de factos passados, preocupando-se não com a verosimilhança ou com a conformidade entre o mundo narrado e o ‘mundo real’, mas com a verdade dos factos e a sua expansão metonímica, que significa para além do acontecido: "E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado (Vieira, 2006a: 105). Aparentemente, portanto, não se liberta da factualidade, o que faz com que a ordem histórica choque com a ordem literária, baralhando o protocolo ficcional, num processo que sintetiza bem o despreendimento narracional, na tentativa de se ilibar da responsabilidade diegética e ludibriar, por este procedimento retórico (a ironia), a crítica censória:
Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda. Foi na hora das quatro horas. ("Estória da galinha e do ovo", Vieira, 2006a: 107)
Esse jogo tem uma inflexão metafísica, porventura com maior intensidade em "Estória da galinha e do ovo", em que dentro da cumplicidade que percorre todo o texto, a voz do narrador se confunde com a de um interlocutor-narratário como, por exemplo, no seguinte trecho:
(…) e, no fim mesmo, já ninguém que sabe como nasceram, onde começaram, onde acabam essas malucas filhas da nuvem correndo sobre a cidade, largando água pesada e quente que traziam, rindo compridos e tortos relâmpagos, falando a voz grossa de seus trovões, assim, nessa tarde calma, começou a confusão. (Ibidem)
Esta não parece ser apenas a voz do narrador que jura contar apenas a verdade: como começou a confusão, como se espalhou, quem se viu nela envolvido, quem é quem, como terminou, enfim… De quem será, então? Parece ser a voz diferida de um interlocutor, que não apenas ‘condiciona’ o processo narrativo, agindo activamente na própria enunciação (escrita) e no seu julgamento estético, imprimindo-se um papel comunicativo essencial na significação textual. Com efeito, se a escrita dessas estórias se constrói do tecido de vozes enunciativas (narrador, interlocutor, narratário, personagens), a dimensão da oralidade, contaminada pelas estratégias dos textos da oratura, inscreve-se também no plano da recepção (da leitura, no caso), enquanto condicionadora de relações entre as várias instâncias textuais: o narrador que proclama a verdade e que, para a demonstrar, dá constantemente a palavra às personagens e constrói uma combinatória de coloquialidade e oralidade, conciliadas com as inferências subentendidas de um interlocutor – a quem é solicitado que julgue a sua estética.
Essas propostas interpretativas parecem decorrer da pressuposição de que um texto que reivindica a condição de relato (Eu só contei o que aconteceu, é o refrão que é reiterado nas três histórias) se quer assumir como registo da palavra falada. Tal pressuposição enforma uma "metafísica da presença" segundo a qual a verdade existe no que está presente à consciência sem mediação (Culler, 1997) – ou seja, sem a ‘elaboração’ da palavra, o que parece ser confirmado pelo tom coloquial que é transversal à escrita luandina. Aliás, o que ressalta nos textos, é a força da palavra oral, como preservação de uma tradição que perpetua a memória dos acontecimentos através da voz humana – como alternativa ao poder de destruição, pois dado o poder de criação da fala humana,
A fala pode criar a paz, assim como pode destrui-la. É como o fogo. Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. (…)
A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. (Bâ, 2010: 173)
Daí também que uma das lições desse conto possa ser a aprendizagem do poder da palavra: tanto Nga Zefa quanto Nga Bina percebem no final que a palavra dos outros era quase sempre destrutiva da relação entre elas – e foi a vavó Bebeca, uma autoridade estatuída pela idade, quem sistematizou de forma performativa essa aprendizagem: "Vavó Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos dos anos, entregou para Bina" (Vieira, 2006a: 131; sublinhado meu).
E aqui, mais uma vez, é de se realçar, naquele contexto, o papel do escritor no desenvolvimento da consciência de um contador de histórias, por um lado, numa relação de empatia para com o seu leitor-ouvinte e como força comunitária e, por outro, como ‘ciência’ paralela à crónica dos tempos coloniais. E porque a situação colonial é também de privação de identidade cultural, como um dos males que são corolários de uma situação de dominação estrangeira (e a privação de identidade própria é, no contexto, uma questão fundamental), fazer literatura quase se confundia, na altura, com testemunhar e denunciar as estratégias de dominação: note-se, a propósito, a epígrafe de Vidas Novas, dois versos de Pablo Neruda[3], que sintetiza a dialéctica do processo de escrita do escritor: narrar o vivido, registar a existência. Por outro lado, os títulos (muitas vezes com nomes das personagens para que as narrativas pareçam ‘histórias de vida’ – Vavó Xixi, Zeca Santos; antes, em A Cidade e a Infância, Bebiana, Marcelina, Faustino, Quinzinho; ou nas fábulas da série Sambuadi dia Misoso, Kiombokiadimuka, Kaxinjengele, Puku Kambundu, Ngola Mukongo, Kaputu Kinjila, Kambaxi Kiaxi e Xingandele), assim como a própria designação de ‘estória’ que muitas vezes aparece em subtítulo, sugerem essa função de testemunho, o que aproxima essas narrativas (e as obras de Luandino regra geral) do ritual de contação tradicional. Assim é que o leitor, dimensionado nessa "metafísica da presença", toma o texto como se ele fosse contado e cada palavra não está livre da presença comunicativa que lhe dá o seu enunciador: o importante para ele é a verdade mais do que a estética, cuja avaliação a atribui a um ‘vocês’, que parece ser o seu ouvinte.
Pode dizer-se, neste contexto, que há dois tipos de recepção que as estórias podem suscitar:
• Se o leitor é angolano, conhecendo, pela vivência ou experiência, as relações de convivialidade num musseque de Luanda, tenderá a ensaiar uma leitura que estabeleça uma relação comparativa entre os seus problemas (ou aqueles que partilha) e os das personagens – é a "concretização" da procura de uma autenticidade única na realidade das situações descritas (Stern, 1980: 194);
• Se não, mas conhecedor da ambiência sócio-cultural do musseque, as suas interpretações e leituras acabarão por ter como base o complexo autoral subjacente à produção textual – e não admira que, neste caso, o crédito de uma projecção autobiográfica desempenhe um papel essencial na significação textual, exponenciando-se a empatia que emana desse jogo enunciativo com a verdade.
É por isso que se pode afirmar que nas obras de José Vieira Mateus da Graça (que, não sendo natural de Luanda, adoptou o gentílico "luandino" para homenagear a cidade que o viu crescer), Luanda é contada e as estórias de Luuanda participam de uma arqueologia literária sobre Luanda, de tal forma poderosa que se pode falar, de facto, de uma "prosa de musseque", na expressão de Tania Macêdo (2001)[4]: é que essa extensa produção, sobre e a partir de Luanda, com toda a arquitectura de sensações e afectos, sonhos e medos, "acaba por fundar um modelo histórico e nacional-linguístico espacial" (Macêdo, 2001: 244). Esta é, na verdade, uma escrita em que o sujeito da enunciação narrativa funciona como griot[5], quais trovadores e menestréis dos eventos do quotidiano, tal como os outros griots de Luanda (Arnaldo Santos, António Cardoso, Jorge Macedo, Jofre Rocha, Boaventura Cardoso e mesmo aqueloutros autores de uma poesia narrativa, como Mário António, António Jacinto, Viriato da Cruz ou Agostinho Neto) que narrativizam (Hayden White) memórias de vivências e experiências, no sentido em que estas noções funcionam nas reflexões de Walter Benjamin (1936)[6], do opressivo quotidiano das relações sociais e afectivas nos bairros luandenses, conformando a estética que tenho vindo a designar como "escrita griótica" da cidade de Luanda (Mata, 2003; 2010; 2012), como nos poemas narrativos de Viriato da Cruz e de António Jacinto, respectivamente:
(…)
Quando sô Santo passa
gente e mais gente vem à janela:
"Bom dia, padrinho..."
"Olá!..."
"Beçá cumpadre..."
"Como está?..."
"Bom-om di-ia sô Saaanto!..."
"Olá, Povo!..." (…)
Lá vai...
descendo a calçada
a mesma calçada que outrora subia cigarro apagado
bengala na mão...
********* Naquele tempo
("Sô Santo", Poemas, 1961)
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
ali mesmo naquele largo areal batidos dos caminhos passados os mesmos trilhos de escravidões
onde hoje passa a avenida luminosamente grande e com uma bola de meia
bem forrada de rede
bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves em alegre folguedo, entremeando caçambulas
... a gente fazia um desafio... (…)
("O grande desafio", Poemas, 1961)
Trabalho de agentes activos do processo ‘arquivístico’ do passado, essa escrita funciona em convergência com o registo históriográfico das relações sociais, na perspectiva de uma epopeia de resistência face à insuportabilidade do quotidiano feito de repressão, fome, prisão, analfabetismo. A consideração de que "a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção", como ‘lamentara’ Walter Benjamin em 1936 (1987: 200-201), não procede no reino narrativo da ficção luandina.
É também de se notar que na obra de Luandino, particularmente nas suas primeiras obras, tal como em outras narrativas da cidade de Luanda, cumpre-se o pressuposto de ‘terra de origem’, impossibilitado que estava o destinador em operar a expansão territorial da colónia, todavia ainda preenchendo os critérios de uma "poética da relação" que Édouard Glissant resgataria anos mais tarde, em Traité du Tout Monde, para dizer que "a poética da relação permite abordar a diferença entre uma terra – local incontornável do ser – e um território – reivindicação como ritual e agora infértil, do ser" (Glissant, 1997: 197).. Note-se, no entanto, que nessa altura talvez seja temerário dizer que essa base urbana concedesse ao processo de simbolização nacional um cunho cosmopolita. É verdade que esse processo obedeceu a uma lógica de entidades micro-históricas (vivências próprias e outras, conhecidas e ouvidas, sabidas e sentidas), porém a partir de elementos lineares da tradição, com a sua autoridade, e mediatizados por um olhar não tão prospectivo quanto retrospectivo. Na verdade, embora não subscreva a dimensão de efemeridade de que falam alguns estudiosos da questão identitária, as identidades culturais são resultados sempre transitórios de processos de identificação. E por essa altura, nas décadas de 50-60-70, nas cidades coloniais – e Luanda particularmente – erigia-se a metáfora da nação na construção do discurso de identidade, por via de elaborações intelectuais, como o procedimento alegórico de construção de uma ‘comunidade imaginada’ a partir de sinais da natureza e da cultura social.
É assim que da Luanda literária dos anos difíceis emergiam valores socioculturais que relevavam da intersecção conflituosa entre o modus vivendi e o modus faciendi do asfalto e o do musseque e se faziam modelo de um espaço que se pretendia nacional, com actores que se pretendiam já sem laços assumidos de uma identidade étnica, sociocultural e regional localizada. A prática narrativa privilegiava a estória, forma que recupera a tradição oral e a transfere à escrita, estabelecendo-se assim os paralelos ouvinte-leitor e contador de histórias-escritor e anulando uma qualquer visão disjuntiva entre oralidade e escrita, enquanto fazia do ‘local da escrita’ também o da voz que a palavra escrita intenta recuperar:
Minha estória.
Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda. ( "Estória da galinha e do ovo", Vieira, 2006a: 132)
2. Confluências: da transmissão à transformação
A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade.
Jan Vansina
Os procedimentos discursivos atrás referidos são estratégias reinventadas a partir daquelas que são actualizadas nos rituais de contação, em que os ouvintes são convocados quer para responderem a interpelações directas do portador da palavra (até para testar o grau de envolvência da audiência) quer para participar nos momentos musicais da narrativa. Em qualquer caso, isso faz com que os ouvintes se ‘sintam’ também responsáveis, se não pela narração, pela narrativa, tanto porque o griot "pode ter duas línguas" (Bâ, 2010: 178) quanto porque "a palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissão original, uma força que a torna operante e sacramental" (Idem, 181).
Por outro lado, tal resgate, em situação de sincretismo da voz (dita tradição africana) e da letra (dito cânone literário vigente), passa pela reinvenção de elementos do mitológico e do imaginário colectivo. Vozes tradicionais, saber gnómico codificados em "formas simples" (André Jolles), estórias obliteradas ou desclassificadas (como a do sô Lemos de "Estória da galinha e do ovo"), tempos rasurados pela ideologia colonial, vozes sussurrantes como se estivessem submersas pela noite colonial, que não são recordadas, mas são trazidas ao presente, presentificadas. Em todo o caso, mais do que uma prolífera reinvenção do significante e do significado, ou de uma inventividade da língua, trata-se sim da metamorfose da expressão e sua substância, portanto, da revitalização de uma cultura que durante muito tempo ficou invisível e inaudível no seu veículo de expressão. Com efeito, não se trata de um ‘estádio’, mas de uma opção por um meio de comunicação pois, lembra Jan Vansina, "a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade" (Vansina, 2010: 140). Trata-se, afinal do processo de oraturização da escrita – longe da pressuposição de "fala mucéquica", de que fala Salvato Trigo, que considerava, estranhamente, o musseque "lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais" (Trigo, 1990: 56). Por isso, muitas vezes para se chegar ao desvelamento dos sentidos do escrito, há que passar, quase incontornavelmente, pelas fontes e recursos linguísticos das suas matrizes assim como pelas formas verbais da oralidade e interpretação de seus valores – vale dizer, valores éticos, morais e ideológicos das comunidades de que emanam e por que elas pautam o seu modus vivendi, o modus operandi e o modus faciendi, no quotidiano, na interpretação do passado e na planificação do futuro. Pela obra que se enraíza no húmus da sageza da oratura se conhecem também as estratégias de gestão das mudanças com que se confrontam e que lhe são impostas pela dinâmica da história.
Embora sendo um dos loci importantes da construção da identidade e da gestão da alteridade nas literaturas africanas, não é no sentido de oralidade que neste contexto se compreende tradição, isto é, com o redutor significado de um registo linguístico que se opõe ao escrito ou a representação da língua falada, o que tem vindo a constituir matéria de análise literária de muitas obras de escritores africanos, sob o equívoco da presença da tradição oral (sobretudo através dos corpora do código gnómico) na literatura escrita como especificidade exclusiva das literaturas africanas – como se não houvesse presença da tradição oral na Ilíada… Também não me parece produtiva a perspectiva da oralidade como transposição recriativa da realidade em que há papéis enunciativos desempenhados por agentes em situações comunicativas cujas acções locucionais visam um efeito oralizante; tampouco no sentido de "tradição oral" que, na sua acepção primordial, compreende corpora das "formas [literárias] fundamentais da tradição oral" (Vansina), também referidas como "literatura de tradição oral", "literatura de transmissão oral", "literatura de expressão oral", ou até "literatura popular" e "literatura tradicional" – designações não consensuais e igualmente ambíguas que nem a proposta de Walter J. Ong, "oral verbal forms"[7], resolve, mas cuja discussão não cabe no âmbito desta breve reflexão. O que importa, neste caso, é perscrutar o deslocamento, para a escrita autoral, da lógica da convivialidade social, ou o que o imaginário guarda da "oralidade primária". Com efeito,
Today primary oral culture in the strict sense hardly exists, since every culture knows of writing and has some experience of its effects. Still, to varying degrees many cultures and subcultures, even in a high-technology ambiance, preserve much of the mindset of primary orality.
The purely oral tradition or primary orality is not easy to conceive of accurately and meaningfully. Writing makes ‘words’ appear similar to things because we think of words as the visible marks signaling words to decoders: we can see and touch such inscribed ‘words’ in texts and books. Written words are residue. Oral tradition has no such residue or deposit. When an often-told oral story is not actually being told, all that exists of it is the potential in certain human beings to tell it. We (those who read texts such as this) are for the most part so resolutely literate that we seldom feel comfortable with a situation in which verbalization is so little thing-like as it is in oral tradition. (Ong, 2002: 11)
Do que se depreende destas considerações de Ong é que essa mentalidade advém da mundivivencialidade, escopo do universo dos contos da tradição oral – que muitas vezes é simplificada como sendo a reconversão da oralidade em escrita. Se se pode ver esse processo como podendo afectar a imediata legibilidade dos mundos culturais, vale lembrar que essa ‘oralidade’ da literatura mais não é do que o conjunto dos procedimentos linguísticos, de natureza estilística, que conformam a ilusão da oralidade (a que Alioune Tine designa por isso como "oralité feinté", oralidade fingida) e as categorias intelectuais da escrita. Neste caso, é estimulante ler literatura que, como resultado do labor estético individual, não descura a dimensão ideológica da escrita que é, também, a transmissão de valores – de que a oratura é o repositório privilegiado em sociedades em que a escrita, pelo menos a de línguas europeias, é ainda um privilégio.
No caso em apreço há que considerar a desconfiguração de formas orais, designadamente misoso e maka[8], numa forma escrita, a estória, que parece ser, aliás, uma das particularidades da ficção angolana, desde os princípios do século XX, com os trabalhos de Óscar Ribas, continuando com os ‘cantores’ da Luanda da fronteira entre o asfalto e o musseque. Estudiosos da literatura angolana, como Carlos Ervedosa (1979) e Helena Riáuzova (1985; 1986), têm colocado na narrativa oral as matrizes da estória que, a partir da segunda metade do século XX, foi veículo de subversão da hegemonia do discurso literário metropolitano, ao afastar-se da contenção estrutural do conto e incorporando elementos do discurso oral, próprios da prática da contação oral, como já referido anteriormente nos exemplos retirados do celebrado livro de Luandino Vieira, Luuanda (1965), reeditada em outros ficcionistas, por exemplo em O Cão e os Calus (1985):
E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca se tenham passado. ("Estória do ladrão e do papagaio", Vieira, 2006a: 105)
As cenas que se vão narrar passaram no ano de 1980 e seguintes, nessa nossa cidade de Luanda. No século passado, portanto. Século sibilino. (…)
Mas previno que qualquer dissemelhança com factos ou pessoas pretendidos reais foi involuntária.
(…)
E o meu sonho… se foi. Com ele começa a vossa fala. (Pepetela, 1988: 186)
Por isso, é pensando nas confluências que essas transformações de género narrativo – das estórias como transformação dos misoso –, que leio as mais recentes fábulas de Luandino Vieira, equivocadamente, a meu ver, rotuladas como literatura infantil. São seis os títulos já publicados[9]:
Kiombokiadimuka e a Liberdade
Kaxinjengele e o Poder
Puku Kambundu e a Sabedoria
Ngola Mukongo e a Justiça
Kaputu Kinjila e o Sócio Dele Kambaxi Kiaxi
Xingandele, o Corvo de Colarinho Branco
São "fábulas" – sendo por isso, como sabemos, apenas metáforas para dizer o que vai no mundo dos homens. Pode dizer-se que existe "Uma África a precisar de voltar a fábulas para se recompor" (Mata, 2009): num momento de desânimo, de puro desencantamento, em que muitos tentam perceber e perscrutar, em várias partes de África, as razões do que se pode considerar ‘problemas africanos’, vale a pena regressar aos ensinamentos tradicionais uma vez que as aquisições do mundo actual, dito ‘moderno’ (a par de outra dicotomia sem suporte), confundidas muitas vezes com progresso, têm vindo a ser mal assimiladas, como em questões relacionadas com o sentido de valores éticos e até em questões mais políticas, como a democracia.
O que há de comum entre estas narrativas para além de, ostensivamente (porque aparecem no subtítulo), serem consideradas "fábulas angolanas"? É que partilham três características, três delas transversais na obra luandina, e uma quarta, embora não original, nova:
• características do musoso tradicional (a ritualística da contação): reinvenção dos misoso tradicionais, isto é, narrativas da tradição oral de factos ficcionais ou realistas, em que entram animais e pessoas e em que podem entrar elementos do maravilhoso ou elementos mágicos;
• os abismos temáticos da contemporaneidade: questões de ética política ou social e os meandros da democracia e da cidadania;
• a oraturização da língua portuguesa: a linguagem oralizante e o estilo coloquial, incluindo uma lição de moral;
• a amplitude etária do seu leitor ideal, reeditando, por outro lado, o jogo com a faixa etária do ‘leitor ideal’ que já vem de trás: A Guerra dos Fazedores de Chuva com os Caçadores de Nuvens (Guerra para Crianças), livro que não se encaixa, pelo menos de modo tão linear, no corpus da literatura infanto-juvenil, baralhando a convenção literária referente ao ‘leitor ideal’…
3. Concluindo, se possível, falando de Luandino…
Remotas conexões: fragmentos de um diário.
Luandino Vieira
Em Luandino Vieira, através de estórias e fábulas, a narrativa curta transforma-se em História e cumpre uma função testemunhal, através de uma técnica narrativa de envolvimento do sujeito de enunciação na diegese. Esta constrói-se de tramas referentes a temas da infância e do quotidiano e das cenas de convivialidade social em que as personagens, funcionando como representações de entidades prosopopeicas e ideológicas da realidade, geram uma significação simbólica para além do factual:
Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. (Bâ, 2010: 209)
É um trabalho contra o esquecimento, de preservação da memória não ‘historiografável’, a que o autor regressa, muitos anos depois, resgatando essa ‘função’ cronística – ou memorialística, como se prefere designar hoje esse trabalho sobre o passado – em O Livro dos Rios (2006), o primeiro romance da anunciada trilogia De Rios Velhos e Guerrilheiros, dedicado, sem margem de dúvida: aos do Tarrafal (1962-1974), e tendo como alvo de um retribute Langston Hughes, autor do conhecido poema "The Negro Speaks of Rivers" (1920), em que canta o rio Mississipi, emblemático rio do imaginário escravocrata dos afrodescendentes americanos. Nesse discurso em primeira pessoa, o que se ‘ouve’ é a voz de "Kene Vua, o guerrilheiro", ou Kapapa – seu nome de sempre (Vieira, 2006b: 101), que narra o seu passado revolucionário e guerrilheiro, em narrativa em que são vocalizadas estórias históricas da guerrilha, guardadas nos escaninhos dolorosos da memória, que tenderiam a ficar "omissas" dos relatos historiográficos – e nem é despiciendo o facto de a edição indicar que este primeiro romance da trilogia ter como " ‘remotas conexões: fragmentos de um diário’, 1996"[10] –, e figuras históricas, remotas (como Njinga a Mbande) e recentes (como Agostinho Neto) para, na correnteza das suas significações, nelas relembrar as acções sacrificiais dos sujeitos História de Angola (cujas vozes se presentificam de forma impressiva em O Livro dos Guerrilheiros, 2009). O que se pode pressentir no autor é a intenção de relembrar lugares geográficos, espirituais e ideológicos de memória, numa altura em que a cultura do efémero e a relativização do passado tendem a dominar o imaginário histórico e social: não por acaso toda a narrativa é pautada por termos que constroem uma semântica sacrificial e bélica que aponta para a resistência nacionalista: PIDE, perseguição, prisão, presídio, fuga, mata, nuvens negras, luta, peleja, lanças, flechas, guerrilha, guerra civil, camarada, guerrilheiro, comandante, inimigo, emboscada, perseguição, morte, corpo enforcado são termos e expressões que compõem isotopias de resistência e da luta de libertação. Com o Livro dos Rios, o escritor traz outros cenários geoculturais de Angola, agora as matas, no caso do Moxico: tal como o autor fizera de Luanda o microcosmos do país, agora é o rio Kwanza, o maior rio exclusivamente angolano, que nasce e desagua em território angolano[11], que se erige a mãe e a pai dos rios, significando, nessa hidrografia identitária, a territorialização da pátria angolana:
(…) o Kwanza rodeia a pátria da nossa luta; missão, agora, era de lhe dar encontro no princípio desse rio, nos seus três fios de água, lá nas altas serras do Bié – onde que o mundo acaba e todas as águas começam.
(Vieira, 2006b:126)
Tal como antes o celebrado rio Mississípi construíra uma hidrografia histórica e identitária. Tal como antes Luanda, com suas histórias estoricizadas…
Referências
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(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)
[Recebido em 20 de agosto de 2014 e aceite para publicac¸a~o em 15 de outubro de 2014]
Notas
[1]Muito confusa, aliás, com inúmeras e contraditórias referências cruzadas, até em seus livros e em estudiosos da obra luandina que afirmavam – e escreviam – que Luuanda fora publicado em 1963 (daí algumas homenagens antecipadas!), escrevi ao escritor e pedi-lhe que me dilucidasse sobre este imbróglio temporal. Eis a resposta em email:
"Foi escrito em Luanda, no pavilhão prisional da PIDE em S. Paulo e na cadeia do Comando da PSP na Baixa, durante o ano de 1963, publicado pelo ABC em 1964, em Setembro, por força do regulamento do Prémio Motta Veiga e...." (Luandino Vieira, 13 de Agosto de 2014).
[2]Um pouco mais adiante, em "A tradição como obra literária", Vansina afirma que "Numa sociedade oral, a maioria das obras literárias são tradições, e todas as tradições conscientes são elocuções orais. Como em todas elocuções, a forma e os critérios literários influenciam o conteúdo da mensagem. Essa é a principal razão das tradições serem colocadas no quadro geral de um estudo de estruturas literárias e serem avaliadas criticamente como tal" (Vansina, 2010: 142).
[3]"Hablo de cosas que existen, Dios me libre/ de inventar cosas cuando estoy cantando!" (dois versos do poema "Estatuto del viño" de Pablo Neruda).
[4]Tania Macêdo utiliza a expressão pela primeira vez na sua dissertação de doutoramento intitulada Da fronteira do asfalto aos caminhos da liberdade: imagens de Luanda na literatura angolana contemporânea (USP, 1990).
[5]Embora se saiba que não são de longe os únicos guardiães da tradição oral, e que esta casta de tradicionalistas comporta três categorias, o termo griot é aqui utilizado no seu sentido comum: cantadores das histórias acontecidas, reconhecidos pela sociedade na sua profissão, num misto de cronista e poeta-músico – "le conteur", como sintetiza Bernard Nantet (1992: 4). Convém lembrar, porém, Hampatê Bã para quem "um griot não é necessariamente um tradicionalista ‘conhecedor’, mas que pode tornar-se um, se for essa sua vocação." E mais adiante: "Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (‘cativos de casa’). Para estes, a disciplina da verdade não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar o público. ‘O griot’, como se diz, ‘pode ter duas línguas’" (Bâ, 2010: 176178). Ver também, por exemplo: "Os animadores públicos ou ‘griots’ (‘dieli’ em bambara)" (Bâ, 2010: 193-200).
[6]Nesse ensaio, o filósofo alemão distingue a experiência do conhecimento, exemplificada pelo viajante, da experiência da vida quotidiana e tradicional, da vivência, exemplificada pelo camponês, cuja interpenetração torna plena a figura do narrador.
[7]Este assunto das designações é tão polémico que um dos maiores críticos da área, Walter J. Ong, não consegue resolver a questão quando propõe a expressão "oral art forms" (2002: 10): formas de arte verbal.
[8]Misoso: histórias tradicionais de ficção que incorporam o maravilhoso, o extraordinário e o sobrenatural; maka: histórias tidas como acontecidas que, funcionando como exempla, visam instruir distraindo. Classificação de Héli Chatélain, retomada por Carlos Ervedosa (1979: 9-10).
[9]"O Passarão e o Cágado" foi anunciado em Agosto de 2009, em São Tomé, por ocasião do lançamento da edição para São Tomé e Príncipe de Puku Kambundu e a Sabedoria, em homenagem a Alda Espírito Santo, e cujas receitas foram atribuídas a uma associação de apoio à criança na região dos Angolares, no sul da ilha de São Tomé.
[10]Remote Connections: Fragments of a Diary, 1996.
[11]Vale lembrar que Kwanza é também o nome da moeda de Angola.