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Sociologia
versão impressa ISSN 0872-3419
Sociologia no.tematico6 Porto dez. 2016
https://doi.org/10.24747/0872-3419/soctema9
ARTIGOS
Redes pessoais em Portugal numa perspetiva do percurso de vida
Personal networks through a life course perspective
Les réseaux personnels au Portugal dans une perspective du parcours de vie
Redes personales en Portugal desde la perspectiva del transcurso de la vida
Rita Gouveia
Université de Genève, Swiss National Centre of Competence in Research “Overcoming Vulnerability: Life Course Perspectives” (NCCR LIVES). Corresponding address: Boulevard du Pont- d'Arve 40, 1205 Genève, Suisse. Email: rita.gouveia@unige.ch
RESUMO
Neste artigo investigamos a pluralização das redes pessoais em Portugal numa perspetiva do percurso de vida. Tendo por base uma amostra representativa de indivíduos de três coortes de nascimento, pretende-se mapear a diversidade de configurações das redes baseando-nos nos tipos de laço incluídos. Através de uma análise de clusters identificámos sete tipos de configurações, as quais estão associadas a perfis sociais distintos, revelando o papel determinante da coorte de nascimento, mas também de fatores estruturais e familiares.
Palavras-chave: redes pessoais; pluralização; percurso de vida
ABSTRACT
The aim of this paper is to investigate the pluralization of personal networks in Portugal through a life- course perspective. Grounded on a representative sample of individuals born in three cohorts, we aim to map the diversity of configurations of personal networks based on the types of ties included. Through a cluster analysis, we identified seven types of configurations, which are associated with distinct social profiles. Thus, revealing the crucial role of birth-cohort, but also the importance of structural and family factors.
Keywords: personal networks; pluralization; life course.
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous enquêtons sur la pluralisation des réseaux personnels au Portugal dans la perspective du parcours de vie. À partir d'un échantillon représentatif d'individus de trois cohortes de naissance, nous souhaitons cartographier la diversité de configurations des réseaux en nous fondant sur les types de liens inclus. Grâce à une analyse des clusters, nous avons identifié sept types de configurations qui sont associées à différents profils sociaux, révélant le rôle déterminant de la cohorte de naissance, mais également des facteurs structurels et familiaux.
Mots-clés: réseaux personnels ; pluralisation ; parcours de vie
Resumen
En este artículo investigamos la pluralización de las redes personales en Portugal desde la perspectiva del transcurso de la vida. Basándonos en una muestra representativa de individuos de tres cohortes de nacimiento, pretendemos identificar la diversidad de la configuración de las redes basándonos en los tipos de lazos incluidos. A través de un análisis de clústeres, identificamos siete tipos de configuraciones, las cuales están asociadas a perfiles sociales diferentes, revelando el papel determinante de la cohorte de nacimiento, así como el papel de los factores estructurales y familiares.
Palabras clave: redes individuales, pluralización, curso de vida
1. Introdução
As diferentes formas através das quais os indivíduos se relacionam e constroem as suas redes pessoais ao longo da vida têm vindo a assumir-se como um tópico central nos debates sociológicos acerca da mudança social na vida familiar e íntima (Gouveia, 2014; Smart, 2007). A emergência de arranjos familiares alternativos, bem como a complexificação dos percursos de vida, têm contribuído para a pluralização dos tipos de redes pessoais nas quais os indivíduos estão inseridos na sua vida quotidiana (Widmer, 2010). Por pluralização entenda-se a multiplicidade de formas ou estados sincrónicos numa dada população ou indivíduo (Brückner e Mayer, 2004). Este conceito tem vindo a ser amplamente utilizado para enquadrar as transformações nas trajetórias de vida no que toca à complexificação de transições, sequências e calendários (Nico, 2011; Ramos, 2015), e a diversificação de estruturas familiares para lá dos limites do agregado doméstico (Bonvalet e Lelièvre, 2013; Widmer, 2010). Neste artigo referimo-nos a pluralização das redes pessoais enquanto diversidade de configurações que as primeiras podem assumir pela combinação de diferentes tipos de laço. As transformações na vida familiar têm vindo a desafiar a forma como olhamos para as estruturas familiares, uma vez que as fronteiras são cada vez mais fluídas e permeáveis à integração de diferentes tipos de laço (Pahl e Spencer, 2004; Wall e Gouveia, 2014). As teorias da individualização (Beck-Gernsheim, 1998, Beck e Beck-Gernsheim, 2001; Giddens, 1992) têm-se destacado como o enquadramento teórico privilegiado para analisar estas mudanças, colocando a tónica na agência e na liberdade de escolha nas relações pessoais (Allan, 2001). Por outro lado, a narrativa sobre a crise da família, assente na ideia que as relações pessoais são cada vez mais frágeis e descomprometidas, tem também recebido considerável atenção no seio da sociologia da família (Smart e Neale, 1999). Adotando uma perspetiva crítica relativamente às teorias da individualização, uma linha de investigação mais compreensiva na sociologia da família tem vindo a salientar a continuidade da importância da família e das solidariedades a ela associadas, apesar das diferentes texturas, significados e práticas que o conceito integra (Attias-Donfut, Lapierre e Segalen, 2002; Finch, 2007; Morgan, 2011; Smart e Shipman, 2004). Mais ainda, os autores argumentam que apesar de uma maior flexibilidade relacional (Allan, 2008), as escolhas relacionais continuam a ser informadas pelos contextos sociais onde elas ocorrem (Gouveia e Widmer, 2014), sendo que as condições biográficas, estruturais e culturais devem ser integradas nos modelos analíticos. Uma das perspetivas que se tem destacado dentro desta linha de pesquisa mais interpretativa é a abordagem configuracional (Kellerhals e Widmer, 2005; Widmer, 2010). Face às transformações na vida familiar e íntima nas sociedades contemporâneas, estes autores têm vindo a salientar a necessidade de deslocar o objeto de estudo da família enquanto o setting privilegiado da vida pessoal dos indivíduos, com limites previamente definidos e circunscritos ao agregado doméstico, em direção a um objecto mais alargado: as redes pessoais. Mais, estes autores têm vindo a mostrar empiricamente que a vida pessoal e familiar dos indivíduos não cabe em modelos analíticos sedimentados na família nuclear parsoniana (Parsons e Bales, 1956), com papéis de género predefinidos e afinidades vinculadas apenas a princípios de co- residência, consanguinidade e aliança. Recorrendo à definição de configuração (Elias, 2010), esta abordagem concebe as redes de relações pessoais e familiares como uma estrutura de pessoas mutuamente interdependentes, as quais cumprem funções de suporte, intimidade e identidade (Widmer, 2010). A mobilização deste enquadramento analítico requer a adoção de três princípios fundamentais. Uma primeira premissa prende-se com a rejeição de critérios apriorísticos para definir as redes pessoais e familiares, permitindo ao sujeito a atribuição subjetiva de afinidade. Uma segunda premissa sustenta que o estudo das díadas familiares, tais como as relações entre cônjuges ou entre pais e filhos, deve ter em conta a eutourage de relações nas quais estão inseridas. E, por último, a necessidade de integração das dimensões de tempo e espaço, de modo a apreender as dinâmicas das redes pessoais ao longo do tempo individual e do tempo histórico. Por conseguinte, composição das redes está intimamente ligada à fase do ciclo de vida em que os indivíduos se encontram e às transições e acontecimentos críticos que estes experienciam ao longo da vida. Para além destes ajustamentos biográficos, as redes são também fortemente moldadas pelo contexto estrutural, geracional e cultural do indivíduo (Gouveia, 2014). O tempo representa, portanto, uma coordenada determinante se queremos entender a pluralização das redes pessoais (Bidart e Lavenu, 2005). Tendo em conta que as redes resultam simultaneamente do exercício da agência “contextual” (Smart e Shipman, 2004) ou “delimitada” (Evans, 2002) e dos contextos sociais nos quais os indivíduos se movem ao longo do tempo biográfico, social e histórico, a abordagem configuracional beneficia da articulação com a perspetiva do percurso de vida (Elder, 1994; Elder, Johnson, e Crosnoe, 2003).
Por conseguinte, o objetivo central deste artigo é investigar a pluralização das redes pessoais no contexto do percurso de vida, comparando as redes de indivíduos nascidos em três coortes etárias. Este objetivo principal desdobra-se em dois objetivos específicos. Primeiro, pretende-se mapear a diversidade de configurações que as redes pessoais podem apresentar. Se, por um lado, os processos de pluralização apontam para uma maior complexidade das relações próximas e dos mecanismos de proximidade relacional, para além da consanguinidade, da aliança e da co-residência; por outro, dada a primazia da família nuclear ancorada na conjugalidade e na parentalidade na sociedade portuguesa (Aboim, 2006; Cunha, 2007; Portugal, 2014), interessa-nos averiguar os limites dessa pluralização. Segundo, procura-se explorar de que modo as redes pessoais são moldadas pelo percurso de vida, considerando o impacto de fatores geracionais e etários, estruturais e familiares na diversidade das configurações encontradas.
2. Métodos
Os dados utilizados neste artigo provém de um inquérito nacional desenvolvido no âmbito do projeto de investigação Trajetórias familiares e redes sociais: o percurso de vida numa perspetiva inter-geracional (TFRS), coordenado por Karin Wall no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O inquérito foi aplicado entre 2009 e 2010 a uma amostra representativa (N=1500) de portugueses residentes em Portugal continental e pertencentes a três coortes de nascimento: 1935-1940, 1950-1955 e 1970-1975. O inquérito por questionário foi administrado através do método P.A.P.I. e estava organizado em cinco blocos de perguntas que incidiam sobre: trajetórias de vida; investimento, satisfação e stress associados a diversas esferas da vida; redes pessoais; atitudes face à família; e caracterização sociodemográfica. Este artigo foca-se sobretudo nas redes pessoais, as quais foram mapeadas através de uma técnica ego-centrada e utilizando um gerador de nomes (Degenne e Forsé, 1994; Scott, 2000). Isto significa que a rede foi reconstituída segundo a perspetiva do entrevistado (ego), ao qual foi pedido que elencasse os elementos da rede (alters) através de uma pergunta (gerador de nomes). O gerador de nomes utilizado neste questionário foi o seguinte: “Quais foram as pessoas importantes na sua vida ao longo do último ano, mesmo que não se dê bem com elas?”. Este gerador de nomes foi adaptado do Family Network Method, um método desenvolvido pela equipa de sociólogos da família suíços liderada por Kellerhals e Widmer no estudo das redes familiares (Kellerhals e Widmer, 2005; Widmer, 2010). De forma a permitir a inclusão de outros laços significativos que não se restringissem apenas aos familiares e, por conseguinte, privilegiando a atribuição de proximidade relacional a critérios individuais e subjectivos de afinidade, substituímos o termo “familiar importante” por “pessoa importante”.
Os inquiridos tinham a possibilidade de mencionar um número máximo de 19 alters sobre os quais incidiram as questões seguintes. Um primeiro bloco de questões correspondia à caracterização sociodemográfica dos alters. Um segundo grupo de questões incidia no mapeamento da rede de relações (de contacto, apoio emocional e conflito) entre ego e cada um dos alters, mas também entre os alters. Finalmente, um último bloco de questões focava-se nas trocas diádicas de apoio financeiro, material e de serviços. De forma a mapear as principais configurações das redes pessoais, neste artigo focamo-nos apenas na composição das redes em termos do tipo de laço entre ego e cada um dos alters. Para identificar o tipo de laço entre ego e cada um dos alters, os entrevistados dispunham de uma lista de 40 categorias que incluía diversos tipos de laço de parentesco e de não-parentesco. Após a inspeção da distribuição dos laços na amostra e de forma a evitar percentagens residuais, as categorias foram reagrupadas em 14 categorias (o procedimento utilizado será descrito em detalhe no ponto 4.2.)
3. Resultados
3.1. Tipos de laço: quem faz parte da rede?
Antes de passarmos à análise da composição das redes pessoais, importa saber que dos 1500 inquiridos, 13 apresentaram redes vazias, ou seja, não mencionaram qualquer pessoa que considerassem como “importante”. Dado o seu valor residual, estes inquiridos foram excluídos do estudo. Desta forma, analisaremos as redes de 1487 inquiridos. Se olharmos para o tamanho da rede, verificamos que elas apresentam uma dimensão média de 4,34 e um desvio- padrão de 2,60. Este valor de dispersão indica-nos que as redes apresentam alguma variação na sua dimensão, podendo assumir configurações pequenas ou mais alargadas. Se distinguirmos o tipo de rede de acordo com a integração de parentes e não-parentes, verificamos que 68,5% (1019) dos inquiridos têm redes constituídas exclusivamente por laços de parentesco, enquanto 31,5% (468) dos inquiridos incluem, pelo menos, uma pessoa com a qual não têm qualquer laço de parentesco. Encontrámos, inclusivamente, 48 inquiridos que restringem as suas redes pessoais a laços de não parentesco, correspondendo a 3,2% da amostra. De forma a obter uma análise mais pormenorizada do tipo de laço mais representados, calculámos a percentagem de inquiridos que mencionaram pelo menos 1 alter dentro de cada uma das seguintes categorias (figura 1).
No topo da figura 1 encontramos os laços mais frequentes correspondentes aos elementos da família de procriação, com a categoria ‘filhos' mencionada por 73,6% dos entrevistados, seguida da categoria ‘cônjuge' com 71,3%. Com uma representatividade mais baixa, mas também com alguma expressão, encontramos os elementos da família de origem ou de orientação: as categorias ‘pais' e ‘irmãos' foram mencionadas por 25,8% e 21,3% da amostra, respetivamente. Com uma percentagem equivalente à categoria ‘irmãos', encontramos a categoria ‘amigos' com 22,1%. Esta é a categoria de não-parentes mais representada nas redes pessoais. A categoria ‘netos' foi mencionada por 15,5% dos entrevistados, seguido das categorias ‘noras e genros' (9,3%), ‘colaterais' (6,9%) (tios, primos e sobrinhos) e ‘cunhados' (6,5%). Com valores mais residuais encontramos outras categorias de não-parentes, tais como ‘vizinhos', ‘colegas de trabalho' ou ‘outros'. Esta primeira análise de carácter mais descritivo revela-nos uma maior representatividade do parentesco, sobretudo dos elementos da família nuclear de procriação, mas também da família de origem. No entanto, outros laços de parentesco mais indireto estão também presentes, se bem que com uma expressividade mais residual. Os laços de amizade destacam-se como o grupo de não-parentes mais saliente nas redes pessoais. Esta análise dá-nos um primeiro retrato dos laços mais proeminentes nas redes pessoais dos inquiridos, mas não nos informa em relação à combinação de diferentes tipos de laço. Para esse efeito, na próxima secção procedemos a uma análise tipológica, ou se preferirmos, a uma análise configuracional das redes pessoais.
3.2. Abordagem configuracional para uma tipologia das redes pessoais
Baseando-nos na metodologia utilizada por Widmer (2006) nos seus estudos empíricos sobre as configurações familiares, procedemos a uma análise que engloba três etapas. Numa primeira fase, analisámos a distribuição das variáveis correspondentes às diferentes categorias de laço, de forma a identificar os tipos de laço mais frequentes. Após esta inspeção, retivemos as categorias mencionadas por um mínimo de 3% dos inquiridos. As categorias mencionadas por uma percentagem de inquiridos menor que 3% foram agregadas em três categorias de significado: ‘outros não-parentes' (conhecidos, ex-cônjuge, empregada doméstica, etc.), ‘outros parentes' (avós, elementos da família recomposta, padrinhos/madrinhas) e ‘colegas de trabalho' (colegas e patrão).
Numa segunda etapa, procedemos a uma análise fatorial com recurso ao método de extração de componentes principais e optando pela rotação VariMax. Este procedimento visa testar a adequabilidade das agregações previamente realizadas e a necessidade de agregação de outras categorias (por exemplo, filho e filha foram agregados na categoria ‘filhos', uma vez que formavam um só componente). Após este procedimento ficámos com 14 categorias de laço: ‘filhos', ‘cônjuge', ‘pais', ‘amigos', ‘irmãos', ‘netos', ‘noras e genros', ‘cunhados', ‘vizinhos', ‘sogros', ‘outros não-parentes', ‘outros-parentes', ‘colaterais' e ‘colegas de trabalho'.
Numa última etapa, introduzimos 14 variáveis correspondentes ao número de alters mencionados em cada uma das 14 categorias de laço numa Análise de Clusters Hierárquica, com recurso à medida de distâncias euclidianas e ao algoritmo de Ward. Após a análise das soluções de 2 a 10 clusters, selecionámos a solução de sete clusters como aquela que garantia simultaneamente uma melhor interpretabilidade teórica e uma maior robustez estatística (Everett, 1993). De modo a caracterizar as configurações, apresentamos o número médio de alters mencionados dentro de cada categoria de laço em cada cluster (tabela 1).
O cluster modal, que representa 39,9% da amostra, é composto por inquiridos que mencionaram o cônjuge, os pais e os sogros. O laço conjugal é determinante nesta configuração. Contudo, esta não se restringe ao casal, mas estende-se aos pais de ambos os cônjuges. Esta configuração em redor do casal, mas alargada aos ascendentes de ambos os lados, levou-nos a designá-la de “conjugal-extensa”. O segundo cluster (27,4%) representa os inquiridos que restringiram as suas redes aos elementos da família nuclear de procriação, ou seja, com um especial enfoque nos filhos (M=2,16) e no cônjuge (M=0,71). Na verdade, este cluster apresenta duas versões: uma configuração monoparental em que os inquiridos apenas citaram os filhos e outra em que os inquiridos citaram os filhos e o cônjuge. Este confinamento das relações próximas aos limites da família nuclear levou-nos a intitular esta configuração de “nuclear-fechada”. Pelo contrário, o terceiro cluster reúne os indivíduos que citaram quer parentes, quer não-parentes (9,1%). Estes inquiridos mencionaram os pais (M=0,65), mas também os amigos (M=1,90) e ‘outros não-parentes' (M=0,07). Este destaque dos amigos como elemento central desta configuração, a par da saliência dos pais - o que introduz uma certa verticalidade genealógica no sentido ascendente -, conduziu-nos a designar esta configuração como “amizade e ascendentes”. Com uma percentagem equivalente (8,9%), encontramos o quarto cluster composto por inquiridos que citaram sobretudo os irmãos, os cunhados, os sobrinhos e os tios como pessoas próximas. No entanto, os elementos da família de procriação (filhos e cônjuge) estão também presentes nesta configuração. O foco nos irmãos e nos elementos que advém do laço fraternal, levou-nos a designar esta configuração de “orientada para fratria”.
O cluster seguinte, que agrupa 5,8% dos inquiridos, apresenta uma organização genealógica vertical. Os inquiridos pertencentes a este cluster mencionaram elementos pertencentes a três gerações: o cônjuge, os filhos, a noras e os genros, e finalmente, os netos. Este arranjo multigeracional aproxima-se do que Bengston, Biblarz e Roberts (2001) apelidaram de família feijoeiro (beanpole) para designar as estruturas familiares constituídas por várias gerações, mas como poucos elementos por geração. Esta configuração segue uma orientação vertical descendente, uma vez que ego e o cônjuge ocupam a posição de avós, seguidos dos filhos e dos netos. Neste sentido, designámos esta configuração como “ feijoeiro- descendente”. Representando 5,2% da amostra, encontramos um grupo de inquiridos que citaram os elementos da família de procriação (filhos e cônjuge), mas que ao contrário dos que pertencem à configuração “nuclear-fechada”, integraram igualmente os amigos (M=2,88). É também neste grupo de inquiridos que a presença do cônjuge é mais forte (M=0,90). Portanto, a permeabilidade deste tipo de rede aos amigos, apesar da estrutura central ser composta pelos filhos e cônjuge, levou-nos a classificar esta configuração como “nuclear-aberta”. Finalmente, o cluster com uma menor representatividade (3,7%) distingue-se dos outros clusters pelo número elevado de filhos citados (M=5,49), na presença ou ausência do cônjuge. Uma análise mais pormenorizada das características dos alters mostra que se tratam de filhos adultos. Neste sentido, dado o enfoque no número elevado de filhos adultos, designámos esta configuração como “orientada para filhos adultos”.
Em suma, estes resultados apontam para uma diversidade de configurações que as redes pessoais podem assumir. Tal como mencionado na introdução, as redes não se desenvolvem num vácuo social, mas são construídas no contexto do percurso de vida dos indivíduos, pelo que a variedade do tipo de rede está intimamente ligada a fatores multidimensionais. Neste sentido, na próxima secção procuramos identificar os perfis sociais associados a cada um dos tipos de rede, considerando primeiramente a coorte de nascimento, mas considerando também fatores estruturais e familiares.
3.3. Perfis sociais
A primeira variável essencial para compreender a diversidade de configurações é a coorte de nascimento. Os indivíduos nascidos nas três coortes foram socializados em contextos sociais e históricos totalmente distintos, mas sobretudo representam fases do ciclo de vida caracterizadas por transições específicas que condicionam fortemente a composição das redes pessoais. Acresce o facto de os seus reservatórios demográficos, ou seja, a pool de familiares disponíveis para incluir nas redes ser substancialmente diferente. A tabela 2 mostra- nos a distribuição das configurações pelas coortes de nascimento.
Na coorte mais velha, verificamos que há uma maior representatividade das configurações “nuclear-fechada”, “feijoeiro-descendente” e “orientada para filhos adultos”. Já na coorte do meio, verificamos que a configuração “nuclear-aberta” está sobrerrepresentada, mas também constatamos uma forte presença das configurações “nuclear-fechada” e “feijoeiro-descendente”. Por fim, na coorte mais jovem, verificamos uma forte representação da configuração “conjugal extensa”, mas também das configurações “orientada para fratria” e “amizade e ascendentes”. Esta distribuição diferencial das configurações é significativa revelando-nos que há uma forte interdependência entre o tipo de rede e as coortes de nascimento (χ2=275.46, p<.000).
A tabela 3 indica-nos a relação entre as variáveis estruturais e familiares e o tipo de configuração. Um primeiro resultado relevante prende-se com o facto de todas as variáveis consideradas, com a exceção da variável sexo, estarem associadas significativamente com as configurações das redes. Se olharmos para a classe social, destaca-se a sobrerrepresentação de configurações que integram amigos e outros não parentes nas categorias socioprofissionais mais qualificadas. Por exemplo, a configuração “amizade e ascendentes” está sobrerrepresentada no grupo dos profissionais e técnicos enquanto a configuração “nuclear- aberta” está fortemente representada no grupo dos empresários e dirigentes. Se olharmos para o estatuto parental, verificamos que entre as pessoas que não têm filhos há uma maior incidência das configurações “conjugal-extensa” e “amizade e ascendentes”. Já os inquiridos com filhos estão mais associados a configurações do tipo “nuclear aberta” e “nuclear fechada”, mas também “feijoeiro descendente” e “orientada para filhos adultos”. A variável tipo de conjugalidade cruza dois tipos de informação: a experiência de estar a viver em conjugalidade no momento atual e o estado civil.
Entre os inquiridos que vivem em conjugalidade, independentemente de serem casados ou viverem em união de facto, constatamos uma sobrerrepresentação das configurações “conjugal-extensa”, “feijoeiro-descendente” e “nuclear-aberta”. Entre os inquiridos que não vivem atualmente com o cônjuge e que são viúvos há uma sobrerrepresentação da configuração “nuclear-fechada”, em particular na sua versão monoparental, e da “orientada para filhos adultos”. Entre os inquiridos que não vivem em conjugalidade e que são solteiros, os dados mostram que existe uma forte associação com as configurações “amizade e ascendentes” e “orientada para fratria”. Finalmente, os inquiridos que não vivem com o cônjuge, sobretudo inquiridos divorciados ou casados (estes últimos, por exemplo, por motivos de emigração), estão mais associados com as configurações “nuclear fechada” ou “amizade e ascendentes”. Finalmente, o tipo de agregado doméstico no qual os inquiridos viviam no momento do inquérito também está fortemente associado com o tipo de configuração apresentada. Por exemplo, os inquiridos que vivem sozinhos ou aqueles que vivem com pessoas não aparentadas estão mais associados à configuração “amizade e ascendentes”. Por outro lado, aqueles que vivem num agregado familiar complexo estão mais associados com a configuração multigeracional “feijoeiro descendente”. Curiosamente, os inquiridos que vivem em casal sem filhos podem estar associados a duas configurações bastante diferentes: a “conjugal-extensa” e a “feijoeiro descendente”. Este efeito parece estar relacionado com a idade dos inquiridos. Sendo que no primeiro caso trata-se de inquiridos que ainda não fizeram a transição para a parentalidade e o segundo caso corresponde a inquiridos que estão a experimentar o ninho vazio, ou seja, indivíduos a viver em casal que co-residiam previamente com os filhos, mas cujos filhos deixaram o agregado doméstico.
Como podemos verificar, a coorte de nascimento e os efeitos de geração e de ciclo de vida que esta encerra, bem como os contextos diferenciados associados quer às condições estruturais quer às circunstâncias familiares, moldam os tipos de configuração relacional nos quais os indivíduos estão embebidos.
4. Discussão e conclusões
Este artigo teve como principal objetivo compreender e analisar a pluralização das redes pessoais na sociedade portuguesa, adotando, para esse efeito, uma perspetiva do percurso de vida. Por um lado, pretendemos mapear a diversidade de configurações das redes pessoais através da inclusão de diferentes tipos de laço de parentesco e de não-parentesco. Desta forma, quisemos averiguar a extensão da pluralização e avaliar a centralidade do modelo nuclear na sua composição, bem como a complexidade dos mecanismos geradores de proximidade relacional. Por outro lado, interessava-nos compreender de que forma a pluralização das redes pessoais se sustenta em lógicas associadas ao percurso de vida e, portanto, procurámos compreender o papel da coorte de nascimento, mas também de fatores estruturais e familiares, na diversidade dos tipos de configurações encontrados.
Em relação à primeira questão de pesquisa, concluímos que as redes pessoais podem assumir uma diversidade de configurações manifestada através da combinação de diferentes tipos de laço, e por conseguinte, assente em diversos mecanismos de proximidade relacional. No presente estudo encontrámos sete tipos de rede: a “conjugal extensa”, a “nuclear fechada”, a “amizade e ascendentes”, a “orientada para fratria”, a “nuclear aberta”, a “feijoeiro- descendente” e a “orientada para filhos adultos”. Esta diversidade de configurações resulta de uma articulação complexa de diversos mecanismos de proximidade: a restrição a elementos da família nuclear ou o alargamento a familiares mais distantes; a abertura ou fechamento da rede aos não-parentes (sobretudo, aos amigos); e a organização genealógica vertical ou horizontal segundo uma orientação ascendente, descendente ou colateral. No que toca à extensão da pluralização, por um lado, encontrámos uma diversidade de configurações que vão para além dos limites da co-residência e do modelo de família nuclear. Por outro, a família nuclear - sobretudo os elementos da família de procriação, mas também os membros da família de orientação - permanece como uma referência na construção das redes pessoais. No entanto, apenas dois tipos de configuração, a “nuclear-fechada e a “orientada para filhos adultos”, se restringem a estes elementos. As restantes configurações incluem outro tipo de laços, quer aqueles associados a parentes mais distantes, quer mesmo a não-parentes. Nas redes “conjugais-extensas” o foco da configuração é o laço conjugal e os pais de ambos os elementos do casal, enquanto na “amizade e ascendentes” os indivíduos referem os pais, mas incluem os amigos na mesma medida. Portanto, estas redes estão organizadas num sentido ascendente, tendo por base uma estrutura nuclear associada à família de origem, mas ao redor da qual gravitam também outros tipos de laço considerados como próximos. Outras três configurações são compostas pelos elementos da família de procriação, sendo, contudo, alargadas aos irmãos e a outros colaterais (“orientada para fratria”), aos amigos (“nuclear aberta”) ou aos netos e às noras e aos genros (“feijoeiro descendente”). Portanto, contrariando a hipótese do isolamento da família nuclear, as redes pessoais são plurais e raramente se restringem a esta estrutura, resultando da combinação de vários laços que se tornam salientes ao longo do percurso de vida. No entanto, a família nuclear permanece como uma referência normativa incontornável.
Isto conduz-nos à nossa segunda questão de pesquisa, sobre a construção social das redes pessoais. Dito de outra forma, contrariamente às ideias veiculadas pelas teorias da individualização, as escolhas relacionais não resultam apenas do exercício da agência individual. São também condicionadas pelos contextos vivenciais. Os resultados empíricos mostraram que a coorte de nascimento, a classe social e fatores biográficos estão associados diferencialmente aos sete tipos de rede. Neste sentido, a diversidade das redes pessoais é moldada, sobretudo, pelo ciclo de vida e as transições que cada grupo etário estava a atravessar ao momento do inquérito, bem como pela sua pool de parentes e pelos seus backgrounds geracionais. Por outro lado, a classe social assumiu-se também como uma coordenada essencial para compreender esta construção diferencial das relações pessoais, em particular a permeabilidade das redes a não-parentes. Os indivíduos com qualificações mais elevadas são aqueles que, provavelmente devido à vivência de contextos mais diversificados ao longo do seu percurso, integram mais amigos nas suas redes de relações próximas. Finalmente, as circunstâncias familiares revelaram-se determinantes na variação dos tipos de configuração. Por exemplo, é interessante verificar que indivíduos pertencentes à mesma coorte de nascimento (1970-1975) estão associados a três configurações diferentes: “amizade e ascendentes”, “conjugal extensa” e “orientada para fratria”. No entanto, se atentarmos no papel da conjugalidade e da parentalidade conseguimos perceber como o facto de não viver em conjugalidade leva os indivíduos a centrarem-se nos pais e nos amigos (“amizade e ascendentes”); e que o facto de viver em conjugalidade, mas não ter experienciado ainda a transição para a parentalidade leva o indivíduo a focar-se no casal e nos pais de ambos os lados (“conjugal extensa”); enquanto o facto de viver em conjugalidade e ter filhos aproxima os indivíduos dos irmãos e da família dos irmãos (“orientada para fratria”).
Em suma, estes resultados mostram que, apesar de os indivíduos serem dotados de uma flexibilidade relacional, a construção das redes de relações próximas não acontece num vácuo social, mas é contingente à interseção do tempo biográfico, estrutural e familiar. É precisamente devido a estes aspetos que a mobilização da perspetiva do percurso de vida pode ser particularmente pertinente para compreender os contornos da pluralização das redes pessoais nas sociedades contemporâneas.
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Artigo recebido de março de 2016. Publicação aprovada em 15 de agosto de 2016