1. Introdução
Os estudos de Simmel (2006) motivaram uma pesquisa sobre as formas de sociabilidade na cidade de Belém do Pará, localizada na região Norte do Brasil, conhecida como o Portal da Amazônia. O período escolhido para esta foi o momento após o auge do Ciclo da Borracha3, em Belém do Pará. Nesta época de riqueza, a capital passou por alterações urbanas, econômicas e sociais que tiveram pretensões tecnológicas, científicas e higienistas; estas intervenções ganharam destaque nos primeiros anos de 1900, tendo como espelho as modificações de Paris, realizadas pelo Barão de Hausmann. Assim, os ecos da Belle Époque francesa4 encontraram lugar no Brasil, nomeadamente em Belém, em Manaus, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte5, entre outras cidades que buscaram diminuir as reminiscências de um passado monárquico em prol de um novo projeto civilizatório republicano, que privilegiou efetivamente as elites locais.
Em Belém do Pará, estas alterações no espaço urbano central se fizeram com as reformas de Antônio Lemos. No Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém de 1897-1902, percebe-se o intuito de modificação da urbe devido ao destaque, dado pelo governo, à abertura de novas avenidas, aumento do calçamento da cidade, arborização das praças e avenidas, desenvolvimento de um código de postura, realização de limpeza pública com a construção de redes de esgoto (Lemos, 1902). No meio arquitetônico, foram construídos edifícios no centro da cidade que lembram muito a arquitetura europeia, devido ao uso eclético dos estilos neoclássico e art nouveau. Essa nova ideia de modernização burguesa chegou em Belém do Pará através da riqueza gerada pelo Ciclo da Borracha no final do século XIX e propiciou à cidade uma certa continuidade das características da cultura europeia já presentes no período monárquico, que por sua vez dialogavam com as referências dos demais povos que compunham o espaço (Sarges, 2000).
No Brasil, a Modernidade sofria uma influência marcante do ideal de civilidade europeu; porém, com as devidas adaptações, uniria a tradição (atraso) ao urbano-moderno, este traduzido numa postura elitista (…) e que tem influência no ideal de ordem e progresso. O modus operandi - positivismo, liberalismo e republicanismo -, como visto, constitui-se numa tradição por meio do discurso das elites. Unindo a “tradição antiga e o moderno”, surge uma “nova tradição” de que seria preciso modernizar-se diante do atraso do Brasil rural para o moderno urbano (Sobrinho, 2013, p. 225).
As questões urbanísticas europeias marcaram o desejo da elite de se manter próxima aos luxos do Velho Continente, o que se evidenciou nos eventos privados que cresceram exponencialmente na virada do século XIX para o século XX (Pinheiro et al., 2020). As novas configurações urbanas contribuíram para a alteração das sociabilidades locais, dentre as quais destacam-se neste estudo as formas festivas da elite. Ao tomarmos como base um dos periódicos de grande circulação local - A Semana: Revista Illustrada6 -, identifica-se um turbilhão de festas ditas particulares - as festas dos clubes e dos grêmios reservados aos sócios, as festas de inauguração de casas residenciais, as festas de casamento, de aniversário e de batizado e as cerimônias tristes dos funerais e dos velórios - e de festas ditas públicas - realizadas nas ruas, nos templos religiosos, nas praças, nos mercados, nos eventos esportivos, nas datas cívicas (Lott, 2009). Tais manifestações constituem uma maneira de ler parte da elite paraense do pós-Ciclo da Borracha, possibilitando perceber as construções de suas memórias e de suas identidades.
Desta maneira, é assertivo afirmar que as festas fazem parte do cotidiano e apresentam-se como elementos fundamentais para comemorar vitórias, marcar datas, relembrar feitos e reunir pessoas, ou seja, promover laços de sociabilidade, mesmo que estes sejam muitas vezes conflitantes (Simmel, 2006). Em termos acadêmicos, é possível entender a festa em sua própria e singular dinâmica, configurando-se como uma importante forma de entendimento das várias maneiras de viver a experiência humana em coletividade. Podemos tomá-la como um fato social total, ao responder ou colocar questões ligadas a uma dada sociedade (Mauss, 2003).
No presente estudo, percebe-se uma forma de sociabilidade da elite belenense7 inserida na lógica do fenômeno da Modernidade e do homem moderno, que glorifica o trabalho em detrimento da festa. Assim, um dos objetivos deste texto é identificar a festa como um fenômeno de destaque da Modernidade, indo de encontro do ponto de vista histórico que se traduz nos “quadros epistêmicos do mundo ocidental moderno, que inventou o homem [como valor cardinal do sistema e eixo da vida]”, que toma o trabalho como uma das principais realizações da Modernidade. “Para o homem moderno a vida é o trabalho, sua obra de vida é o trabalho, sua vocação é o trabalho” (Perez, 2009, p. 3). Há uma tendência em manter a festa como um fenômeno da esfera de sociedades tradicionais, pois “a sociologia se incumbiu da sociedade moderna e de suas obras (realizações), logo do trabalho, enquanto à antropologia coube as sociedades tradicionais, primitivas que, para os padrões modernos (...), viviam apenas uma existência de mera sobrevivência, quase que num ócio permanente, em constante festa” (Perez, 2009, p. 7). No entanto, há de se trazer a festa para além da percepção do divertimento e do ócio de pontuais grupos sociais, como um fenômeno da Modernidade também vivenciado pela elite. Por este motivo, a escolha das festas da elite de Belém, bem como o foco no periódico A Semana: Revista Illustrada destinado a este grupo social, foram o mote deste estudo.
Segundo a sociologia simmeliana, festa é uma “forma” capaz de plasmar conteúdos diversos, e destinada à promoção de laços de sociabilidade, mesmo que conflitantes. Assim compreendida a festa, tento em seguida estabelecer as conexões possíveis entre tal concepção do fenômeno e questões como urbanidade, diversidade, memória, identidades e conflitos (...). Se utilizarmos o pensamento de Simmel como pedra fundamental, é possível pensar, através do fenômeno festivo, os fundamentos dos vínculos coletivos que tecem a sociedade. Assim, a festa, como forma de sociação, teria seu acento no estar-junto e no relacionar-se. (Leonel, 2010, pp. 1-2)
Não obstante a grande maioria dos momentos de sociabilidade propagados na A Semana: Revista Illustrada estar vinculada à elite local em seus clubes privados, os demais habitantes da cidade de Belém puderam aproveitar pontualmente alguns reflexos da Belle Époque devido à construção do Cine Olympia, do Teatro da Paz, de algumas praças e alguns bosques. Dentre estes equipamentos, os dois últimos foram mais utilizados como espaços populares para piqueniques e apresentações circenses. No entanto, os altos custos dos ingressos e/ou as poucas possibilidades de transporte da periferia para o centro - local onde estavam majoritariamente os equipamentos de cultura e lazer - impediram o maciço usufruto da esfera social mais pobre (Pinheiro et al., 2020).
Estas contradições inerentes à experiência da Modernidade - ao mesmo tempo que traz o luxo e as modernizações, traz também a pobreza e a exclusão social - também se fizeram valer em Belém. Os seringueiros e trabalhadores da construção civil tiveram participação importante na produção da borracha e no consequente aumento econômico local, mas não usufruíram das modernizações urbanas. Empurrados para as zonas periféricas, foram-lhes vedados os privilégios dos novos equipamentos urbanos (Sarges, 2000). Com a queda da borracha brasileira devido às melhores ofertas asiáticas, a situação da população mais pobre se agravou - ponto este que não será trabalhado neste artigo, apesar de sua grande relevância, mas que merece um pequeno aceno textual.
A acumulação em Manaus e Belém dos excedentes (...) e a consequente concentração do poder político nas duas capitais, iriam refletir-se no investimento, tanto a partir do Estado como de capitais privados, em obras de melhoramentos urbanos, alterando assim a paisagem urbana. As duas cidades, locais de residência de poderosos seringalistas-aviadores, e sedes do grande comércio “aviador”(8) e de exportação, deveriam espelhar, através de uma nova paisagem e infraestrutura, o poder e a pujança econômica daqueles que, à custa do enorme sacrifício e espoliação dos seringueiros isolados em suas “barracas” na floresta, rápida e fugazmente tornaram-se ricos. (Corrêa, 1987, pp. 52-53)
Na esteira desta breve introdução, o presente estudo apresentará a sociabilidade festiva no período entre 1919 e 1921 na cidade de Belém do Pará por meio do periódico A Semana: Revista Illustrada. Dentre as várias maneiras de festejar, destacaram-se na pesquisa os eventos noticiados com mais recorrência: as festas de Carnaval, os chás dançantes, os banquetes e os casamentos, realizados nos clubes sociais privados da capital paraense.
2. A elite festeja na Amazônia brasileira: Sociabilidade no pós-Belle Époque
2.1 O Carnaval
N’A Semana: Revista Illustrada, o Carnaval foi fortemente noticiado. Organizados pelas classes mais abastadas em clubes sociais privados, os festejos carnavalescos eram denominados no periódico como: baile de máscara, baile à fantasia, baile de masquée ou bal masqué - seguindo a tendência de valorização da cultura europeia, que influenciava não só a maneira francesa de designar os bailes, como também o padrão de fantasias. O Pierrot, a Colombina e o Arlequim da comédia italiana do século XVI, que apresenta os três personagens em um instigante triângulo amoroso, são comuns nas fotografias (ver Figuras 1, 2 e 3).
A escolha do tema das fantasias, bem como a pompa destas, traduzem a mentalidade da época de manter o vínculo com a mentalidade luxuosa presente na Europa. As festividades carnavalescas noticiadas ocorreram principalmente no Teatro da Providência, onde se realizou o primeiro baile de Carnaval registrado na cidade, em 1844. Os bailes eram embalados por músicas com vinculação europeia como polcas, valsas e quadrilhas, que se mesclavam com os lundus e os maxixes de referências locais. Apenas na década de 1930 temos a inserção do samba como música principal dos bailes paraenses (Oliveira, 2006).
No Pará, o Carnaval teve as seguintes fases: Carnaval de entrudo, de 1695 a 1844; Carnaval pós-entrudo, de 1844 a 1934; Carnaval da era do samba, de 1934 até hoje. Essa última fase se divide, por sua vez, em Carnaval das batalhas de confete, de 1934 a 1957, e Carnaval oficial de avenida, a partir de 1957 (Costa, 2016, p. 76).
Cada uma destas fases do Carnaval belenense merece uma análise diferenciada, mas para este artigo, nos atemos ao ‘Carnaval pós-entrudo’ e retomamos as teorias clássicas sobre os festejos carnavalescos para identificarmos a pertinência destas neste contexto. A festa, como uma forma primeira e marcante dentro da sociedade, é um caminho para se vincular com o mundo das ideias, que por sua vez se completa no Carnaval. Neste festejo, os foliões tendem a se colocar como iguais numa diversão que ocupa temporariamente o universo do utópico, da liberdade, pois há a suspensão temporária das hierarquias e das regras sociais, estabelecendo assim uma maneira outra de sociabilidade entre os carnavalescos. Ou seja, o Carnaval está para além de uma simples festividade e/ou entretenimento: é como um mundo às avessas, onde as normas são colocadas de maneira contrária, nos levando ao comportamento típico do festejo, ‘a cultura do riso carnavalesco’. Este proporciona a fuga da realidade e faz com que o folião adentre ao mundo de fantasia construído no período do Carnaval (Bakhtin, 1981, 1987).
(O Carnaval) caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés”. (Bakhtin, 1987, p. 5)
Este ponto da teoria de Bakhtin fundamentou significativamente a antropologia da festa no Brasil, através dos estudos sobre as festas de Roberto DaMatta, que identificou três maneiras básicas de festejar ou ritualizar no Brasil: pelos carnavais - festas de contrapoder -, pelas paradas - festas de sacralização do poder - e pelas procissões - festas de afirmação do poder. Apesar das devidas diferenciações destas festas, há uma característica similar: todas ocorrem em momentos extraordinários, em que se verifica a suspensão das atividades para a realização do festejo. Quanto às diferenças, nas festas de sacralização do poder há uma estrutura de forte hierarquia e normatização, enquanto no Carnaval tem-se o princípio social da inversão, segundo os moldes de Bakhtin. Além deste autor, DaMatta também insere os escritos de Victor Turner para compor suas análises sobre o Carnaval. Como é sabido, nos estudos estruturalistas de Turner (1974), as sociedades passam por momentos de ritos de passagem - como a passagem da fase de adolescente para a de adulto - e por momentos de indefinição, de ambiguidade ou de indeterminação de tais ritos. Neste momento a sociedade se encontra no estado ‘liminar’, no qual se identificam as sociedades em uma vivência pouco estruturada, ou seja, como communitas. Retomando DaMatta, percebemos que há a vinculação do dia da pátria com a hierarquia e o Carnaval com communitas, festejo este de suma relevância para a manutenção da norma propagada pelas paradas em comemoração do país.
O Carnaval é um momento de communitas, mas que serve - nas condições da organização social da sociedade brasileira, dividida em classes e segmentos - para manter a hierarquia e a posição das classes. Numa palavra, a communitas do Carnaval é uma função da rígida posição social dos grupos e segmentos nele implicados no mundo quotidiano. Sua universalidade e homogeneidade servem precisamente para reforçar e compensar, num outro plano, o particularismo, a hierarquia e a desigualdade do mundo da vida diária brasileira. (DaMatta, 1997, p. 63)
Não obstante a indiscutível relevância de tais teóricos, devemos ressaltar que uma mera transposição de argumentos pensados inicialmente para a Europa Medieval e Renascentista - Bakhtin -, para comunidades africanas - Turner - ou para o Carnaval carioca - DaMatta - pode ser insuficiente para pensar o Carnaval da elite belenense na virada para o século XX, que se organizava dentro de clubes sociais fechados. Ora, aqui não há a significativa inversão de valores, nem tão-pouco a quebra de uma hierarquia social. Talvez possamos perceber uma atmosfera distinta da realidade cotidiana ao focarmos nas fantasias e nas máscaras; mas estas estão revelando muito mais que camuflando, pois estes bailes de Carnaval reforçavam uma ideia de elite que estava sendo construída na época em questão.
O Carnaval brincado no país, que se traduzia em um conjunto de jogos conhecidos como entrudo - que desde o século XVII dividia a opinião das autoridades -, foi definitivamente qualificado como impróprio, por ser considerado “grosseiro”, “sujo” e “violento”. Porém, tais alterações não se processaram de forma “natural”. Em oposição ao velho entrudo, impunha-se o Carnaval de luxo, de modelo veneziano e francês, com seus préstitos e bailes de máscaras que exibiam ricas fantasias (Silva, 2008, p. 22).
Até mesmo a legislação da época vai ao encontro da normatização dos festejos. O controle do comportamento dos foliões era regido pelo Código de Posturas local - Lei n.º 1028, de 5 de maio de 1880 -, o qual no artigo 107.º, parágrafos 1.º e 2.º, proibia “fazer bulhas, vozerias e dar altos gritos sem necessidade”, bem como “fazer batuques ou samba”; ou seja:
vale destacar, como os códigos de Posturas ordenavam o comportamento social, atingindo inclusive a esfera privada, nos festejos carnavalescos os maus hábitos voltavam ao centro da cidade. Por isso, o Carnaval, em muitos momentos, mostrava-se como um elemento necessário a ser controlado pela administração pública, por isso muitos foram arrastados para os interiores dos salões e clubes sociais, frequentados por uma elite que se queria “moderna”. (Castro, 2018, p. 222)
Assim, uma festa que em muitos momentos e locais primou pela inversão de valores, a contraposição a um poder estipulado ou grande participação popular, não se verificou em Belém, ao olharmos os bailes nos clubes sociais privados descritos na A Semana: Revista Illustrada. É certo que houve festejos de rua no mesmo período (Costa, 2016; Oliveira, 2006); no entanto não foram encontrados registros destes nas edições de tal periódico nos anos de 1919, 1920 e 1921; de fato, a revista prima pelo reforço do saudosismo da época de pompa vivenciada pela elite belenense na Belle Époque da Amazônia. Tal escopo jornalístico se mantém na divulgação dos chás dançantes e dos banquetes em homenagem às autoridades locais ou que visitam a capital paraense.
2.2 Chás dançantes e banquetes
Nos chás dançantes, os comportamentos dos participantes eram regidos por regras mais rígidas que as dos festejos do Rei Momo. Os chás dançantes eram usualmente realizados para homenagear alguém da alta sociedade, como sucedeu por exemplo, no elegante festejo organizado no quartel-general das forças armadas para o Dr. José Joaquim Seabra, que governou a Bahia entre 1912 e 1916 e entre 1920 e 1924 (ver Figuras 5 e 6). O homenageado está em destaque na fotografia publicada no periódico, aparecendo no centro juntamente com um membro das forças armadas - o general Clodoaldo da Fonseca - e ladeado por mulheres ricamente vestidas à moda francesa, com saltos altos e chapéus.
Outro exemplo de festa de homenagem a uma autoridade política foi o evento organizado em 1934 na Associação Comercial do Pará (ACP) para o advogado e deputado federal pelo Pará, Clementino Lisboa, o qual recebeu o diploma de sócio benemérito da associação. É importante destacar nesta fotografia (Figura 6) não só a pompa das vestimentas como também a ornamentação do local. Fundada em 1864, a ACP foi construída em estilo eclético, seguindo o padrão de beleza arquitetônica do final do século XIX e início do século XX, em Belém. No salão onde ocorreu a festa podemos identificar elementos deste ecletismo como o teto pintado e as colunas clássicas. Ademais, o chá dançante contou com decoração e iluminação especial, comuns neste tipo de festejos.
Além dos chás dançantes, havia os banquetes, organizados para o deleite dos convidados, mas também como forma de firmar alianças políticas e homenagear indivíduos de elevada posição econômica ou militar. Ou seja, os banquetes representavam momentos de proximidade entre políticos e sua base de apoio, pois no interior dos salões as conversas versavam sobre questões de cunho político (Moura, 2008). Dentre os banquetes realizados, destacamos o oferecido ao deputado estadual Dr. Francisco Campos, em 1921, no Rolisserie Suisse, um luxuoso hotel e restaurante, no bairro da Campina, onde atualmente funciona uma agência do Banco Bradesco (ver Figura 7). É relevante ressaltar que a participação era restrita aos seletos convidados; no entanto, usualmente os organizadores promoviam eventos na porta do prédio para propagandear o banquete. Neste caso, houve uma banda de música na frente do prédio, o que possivelmente criou a ilusão na população de que estaria a participar do evento; segundo a teoria de Duvignaud (1983), trata-se de uma ‘festa de representação’ na qual existem os ‘atores’ - os participantes do banquete no Rolisserie Suisse - e os ‘espectadores’ - que assistiram à banda de música da calçada. Os primeiros participam diretamente da festa e determinam que parte dela os ‘espectadores’ podem aproveitar. Desta maneira, a festa perde o seu caráter revolucionário e destruidor, aproximando se apenas de uma simples celebração. Assim sendo, os banquetes identificados no periódico são festas de representação, bem como rituais de reforço da identidade da elite local (DaMatta, 1997); assim, os membros da alta hierarquia adentram ao luxuoso edifício para participarem do banquete, enquanto os demais membros da sociedade ficam do lado de fora, apenas com os momento de música promovida pelos mais abastados, nos levando assim a mais uma possibilidade de conceitualização dos banquetes: são ‘festas de ordem’, onde “se celebram as relações sociais tal como elas operam no mundo diário, e as diferenças são mantidas” (DaMatta, 1986, p. 82).
Apesar de não haver a identificação de momentos na rua no banquete oferecido ao sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) João Alfredo de Mendonça, que teve como finalidade assinalar a sua despedida da capital em 1921, percebe-se pela foto que se trata de um festejo bastante restrito (ver Figura 8). Nesta festa participou o Sr. Clovis Barata, representante do governo do estado, os senadores Alves da Cunha e Camillo Salgado, os militares tenente-coronel Dr. Luiz Lobo e coronel Apolinario Moreira. A fotografia também demonstra a exclusão das mulheres em grande parte dos festejos com finalidade política, o que pode ser percebido nos dois banquetes, assim como no oferecido ao português Lima, de passagem em Belém (ver Figura 9).
2.3 As cerimônias de casamento
Outra festa particular recorrentemente noticiada é a cerimônia de casamento, que podem ser tomadas não apenas como união entre dois indivíduos, mas como união entre famílias (ver Figuras 10 e 11). Assim, os casamentos noticiados durante os anos de 1919, 1920 e 1921 dizem respeito à união entre famílias vinculadas à riqueza advinda do Ciclo da Borracha, dos engenhos, da criação de gados e dos grandes comerciantes locais, fortalecendo cada vez mais a elite local, formada por poucos membros comparativamente à restante população. Ademais, outro ponto destacado nas notícias é o casamento religioso católico.
A celebração dos casamentos era quase sempre feita em igrejas católicas, o que gerava ampla documentação sobre a vida familiar, status social, idade, naturalidade, entre outros aspectos que estavam sob organização da Igreja. Uma aparente ameaça para esta instituição foi o Decreto n.º 181, de 24 de janeiro de 1890, que aprovou os casamentos civis, pelo que a Igreja Católica perderia a primazia nas celebrações de casamentos, batizados e óbitos (Cancela, 2006). No entanto, ao verificar as notícias, percebe-se que a constância dos casamentos católicos ainda era recorrente nos anos de 1919, 1920 e 1921. Os casamentos nas igrejas eram manchete no periódico, e o número de convidados estava diretamente relacionado com a grandiosidade do evento e, por conseguinte, com o poder social e financeiro das famílias que estavam se unindo.
Assim sendo, a secularização do casamento no Brasil - Decreto n.º 181, de 24 de janeiro de 1890 - e a promulgação do Código Civil que versou sobre as questões de família e casamento - Lei n.º 3.071, de 1.º de janeiro de 1916 - não destruíram os festejos católicos, nem mesmo os valores do tradicional casamento. Estes ainda estavam fortemente presentes na sociedade, quando esta passou a estar sob a égide da república, da secularização e da modernidade.
Mesmo com a secularização, o matrimônio permaneceu vinculado aos ideais de família católicos. Nas primeiras décadas do século XX, era aprovado o Código Civil brasileiro, em 1916, que afirmava, no seu artigo 229.º, que o matrimônio criava a família legítima e, no artigo 315.º, assegurava que as núpcias, quando celebradas, somente se dissolviam pela morte de um dos cônjuges. Se as leis republicanas “conseguiram” secularizar o casamento e a ruptura da convivência a dois, é de suma importância não generalizar o fato. Em outras palavras, a secularização realizada pelo Estado conseguiu apenas retirar das mãos da Igreja o poder exclusivo sobre a união e o desligamento ou não dos vínculos conjugais (Campos, 2009, p. 40).
Indo ao encontro da manutenção dos valores relacionados à família acima citados, temos as fotografias de casamento, nas quais identifica-se a vestimenta tradicional da noiva: roupa clara - provavelmente branco -, véu e buquê (ver Figuras 12 e 13). O vestido de noiva usualmente recebia um comentário dos editores: se era discreto, simples e com poucos adornos ou, pelo contrário, exuberante e luxuoso; em ambos os casos o design era europeu, afinal a moda também era um elemento de grande importância para a aproximação simbólica aos valores da Europa. Assim, a moda francesa do início do século XX dava o tom da vestimenta: verificava-se uma certa masculinização do vestuário feminino, depois de abandonada uma modelagem definida pelos espartilhos usados até à Primeira Grande Guerra. Então, os símbolos do feminino apareciam nos bordados com referência ao Art Déco e nos adereços ou arranjos de cabeça (ver Figuras 12 e 13). Já o noivo, vestia o fraque completo em cor escura e usualmente usava chapéu (ver Figura 12) (Schneid, 2020).
Outro ponto identificado nas notícias pesquisadas são as diferentes idades dos noivos. A grande parte dos homens se casava com mulheres mais novas, situação típica da virada para o século XX ao verificarmos o gráfico abaixo.
O Gráfico 1 foi construído tendo como dados o recenseamento local realizado em 1920. Em primeiro lugar, identificamos uma nítida diferença entre os dois primeiros grupos etários. Não há a presença de homens que se casaram com menos de 15 anos, mas, entre os 15 e os 19 anos, as mulheres são a grande maioria. Na faixa entre 20 e 29 anos, há um equilíbrio entre os gêneros; no entanto, após os 29 anos, o número de nubentes masculinos se distancia consideravelmente do das mulheres, corroborando a premissa da união entre homens mais velhos com mulheres mais novas em Belém. Como exemplos tem-se o matrimônio de Lauro Sodré Filho com a jovem Maria de Lourdes Pereira Gomes (Figura 11) e do sr. Álvaro de Oliveira Menezes com a jovem Antunes da Matta Bacellar (Figura 12).
3. Considerações finais
Simmel (2006) considera o conceito de sociabilidade como uma consequência de prazer, relações pessoais e experiências vividas conforme o meio em que está inserido. A sociabilidade inclina o indivíduo a viver de forma comum na companhia de outro alguém, unificando ideias e agregando pessoas. Assim sendo, a sociabilidade festiva em Belém no pós-Belle Époque se configurou como um período de saudosismo da elite local, que procurou manter a pompa e o luxo vivenciados pelo Ciclo da Borracha, momento no qual Belém teve seu ápice econômico. Neste sentido, como os festejos da elite remetem às memórias e às identidades de um passado burguês, nos cabe pontuar nesta consideração final a questão da Belle Époque em Belém - e por conseguinte da Modernidade -, por meio de uma leitura atual como base nos estudos decoloniais.
Tomando o fenômeno da Belle Époque como referência de um discurso que opera na lógica da colonialidade, questiona-se: existiu uma Belle Époque na Amazônia? “Se, por questão de aceitação de um léxico aplicado à leitura das realidades culturais, sociais e materiais pelas quais a Amazônia da borracha passou”, há de se afirmar que estas transformações estão correlacionadas com um pensamento colonialista. Então, “admite-se, por transposição e adequação terminológica, que a Amazônia de então viveu a sua, repita-se, a sua Belle Époque” (Coelho, 2016, pp. 42-43). Apesar de a Belle Époque ter tido um pequeno período de duração, os ecos do fascínio eurocêntrico se refletiram em manifestações de padrões da cultura burguesa europeia, fazendo com que houvesse um “sentido de pertencimento a um tempo mítico, transformando o sujeito singular em cidadão do mundo, em homem da Modernidade” (Coelho, 2016, p. 44). Estes ecos de um dito sentimento de Modernidade foram edificados sob os reflexos de uma Belle Époque e podem, como trabalhado neste artigo, ser ainda identificados anos depois nos festejos da elite na cidade de Belém.
Como exemplo, destacaram-se nas fontes pesquisadas os bailes de Carnaval dos clubes privados. Nestes, a elite não só utilizou palavras francesas para anunciar o festejo, como também tomou elementos da literatura europeia para compor suas fantasias e dançar ao som de músicas com fortes referências estrangeiras. Outros eventos expõem o fortalecimento da memória da Belle Époque da elite social belenense, como é o caso dos banquetes. Estes foram reuniões de pessoas consideradas com cargos relevantes para a capital paraense, que aproveitaram o momento festivo para construir suas bases políticas. Nos chás dançantes e nos casamentos, a moda francesa estava fortemente presente nas roupas e nos adornos dos participantes; de fato, tais vestimentas - também identificadas nas festas carnavalescas - remetiam ao passado francês do período da Belle Époque, que por sua vez foi fortemente propagado pela elite local nos festejos dos anos de 1919, 1920 e 1921.
Diante deste breve passeio pelas festas da elite belenense no pós-Belle Époque, identifica-se a manutenção ou (ou sua tentativa) dos valores de pompa e luxo vivenciados durante o período áureo da elite local. Não obstante a queda nos padrões econômicos e a significativa diminuição do embelezamento do centro urbano da cidade, os festejos continuavam a seguir a mentalidade da época anterior.