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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.35 Oeiras abr. 2001

 

UM MODELO DE ANÁLISE DA DRAMATIZAÇÃO NA IMPRENSA ESCRITA

Pedro Diniz de Sousa*

 

Resumo Parte-se de uma definição do conceito de dramatização e da identificação das funções que o discurso dramático pode desempenhar no campo dos média, para chegar a uma grelha de análise capaz de captar as diversas propriedades deste discurso, através de instâncias como a metáfora, a metonímia, a simplificação, a personificação ou o apelo afectivo. Embora a construção do modelo se apoie num objecto situado no campo da imprensa escrita doutrinária e num período de crise (o chamado PREC), em que vários factores concorrem para propiciar o discurso dramático, procurámos fazê-lo de modo a permitir futuras abordagens de outros tipos de média, numa transição de século em que o tema parece assumir grande actualidade. Como conclusão do estudo de caso sugerimos a hipótese de a dramatização constituir um meio eficaz para inverter os termos de uma frase emblemática da ideologia da objectividade (facts are sacred, comment is free): o discurso dramático viabiliza uma prática jornalística em que, sem necessidade de macular a "verdade", quaisquer factos são meros adereços de um palco ideológico esse sim intocável (comment is sacred, facts are free).

Palavras-chave Dramatização, imprensa escrita, imprensa doutrinária, análise do discurso.

 

Abstract A definition of the concept of dramatisation and an identification of the functions of dramatic discourse in the mass media field are used to design an analytical grid with which to capture the different features of this discourse. It does so using tools such as metaphor, metonym, simplification, personification or emotional appeal. Although the model is constructed on the basis of an object which is situated against a background of a doctrinaire written press and during a period of crisis (the so-called PREC — the revolutionary period that followed the 1974 Portuguese Revolution), when several factors combined to favour dramatic discourse, the theme appears to continue to be a highly relevant one as we move from one century to the next. We have therefore constructed the model in such a way as to make it possible to approach other types of media in the future. The case study concludes with the hypothesis that dramatisation constitutes an effective means for inverting the terms of an emblematic phrase from the ideology of objectivity (facts are sacred, comment is free): dramatic discourse permits journalistic practice in which, without needing to distort the "truth", all facts are mere ornaments for an ideological arena that is indeed untouchable (comment is sacred, facts are free).

Keywords Dramatisation, written press, doctrinaire press, discourse analysis.

 

Résumé Cet article part d’une définition du concept de dramatisation et de l’identification des fonctions que le discours dramatique peut avoir dans le domaine des médias, pour arriver à une grille d’analyse capable de capter les différentes propriétés de ce discours, par des procédés tels que la métaphore, la métonymie, la simplification, la personnification ou l’appel affectif. Bien que la construction du modèle soit basée sur un objet situé dans le domaine de la presse écrite engagée et sur une période de crise (appelée PREC), où plusieurs facteurs contribuent à favoriser le discours dramatique, nous nous sommes efforcés de le faire de manière à permettre de futures approches des autres types de média, en ce changement de siècle où le thème semble être d’une grande actualité. En guise de conclusion à l’étude, nous suggérons que l’hypothèse selon laquelle la dramatisation constitue un moyen efficace pour inverser les termes d’une phrase emblématique de l’idéologie de l’objectivité (facts are sacred, comment is free): le discours dramatique viabilisee une pratique journalistique où, sans avoir à déguiser la "vérité", les faits sont de simples accessoires d’une scène idéologique qui, elle, est intouchable (comment is sacred, facts are free).

Mots-clés Dramatisation, presse écrite, presse engagée, analyse du discours.

 

Resúmene Se parte de una definición del concepto de dramatización y de la identificación de las funciones que un discurso dramático puede desempeñar en el campo de los media, para llegar a un esquema de análisis capaz de captar las diversas propiedades de este discurso, a través de la metáfora, la metonimia, la simplificación, la personificación o por la afectividad. Aunque la construcción del modelo se apoya en un objeto situado en el campo de la prensa escrita doctrinaria y en un periodo de crisis (el llamado PREC), en el que varios factores coinciden para propiciar el discurso dramático, procuramos hacerlo de forma a permitir futuras iniciativas de otros tipos de media, en una transición del siglo en el que el tema parece asumir gran actualidad. Como conclusión del estudio del caso sugerimos la hipótesis de la dramatización constituir un medio eficaz para invertir los términos de una frase emblemática de la objetividad (facts are sacred, comment is free): el discurso dramático viabiliza una práctica periodística en la que sin necesidad de maquillar la "verdad", cualquiera de los hechos son meros accesorios de un palco ideológico ese sí intocable (comment is sacred, facts are free).

Palabras-clave dramatización, prensa escrita, prensa doctrinaria, análisis del discurso.

 

Algumas características atribuídas ao discurso mediático, mormente ao das notícias (Traquina, 1988), aproximam-no significativamente do discurso do drama. São os casos da importância do tempo presente, da simplificação decorrente da necessidade de produzir um discurso claro, do carácter apelativo deste discurso (muitas vezes por via afectiva), da presença, no caso das notícias, de narrativas caracterizadas por uma concentração da acção em torno de um pequeno núcleo de personagens.

O campo de análise é tão vasto como múltiplos e distintos são os actuais média. Da imprensa escrita à televisão, da rádio à Internet, muitos poderão ser também os propósitos e as formas de dramatizar, bem como os objectos de dramatização (todo o tipo de acontecimentos - não apenas aqueles que pautam as manchetes dos noticiários -, temas e problemáticas sociais, ideias e ideologias).

Um modelo de análise da dramatização no discurso dos média adquire uma utilidade acrescida num tempo em que vingam conceitos como o de "sociedade do espectáculo" (Debord, 1991) ou o de "estado-espectáculo" (Schwartzenberg, 1977): os factos só valem se mediatizados por imagens. Aparentemente desenvolve-se uma civilização que tende a esbater as fronteiras entre "real" e "virtual", através de canais (multi)mediáticos capazes de "produzir realidade", simulando-a através de meios técnicos cada vez mais sofisticados.

Podemos, para cada situação de comunicação mass-mediática, isto é, para cada medium e para o respectivo campo social, colocar várias questões:

Existe de facto dramatização? Existindo, como se caracteriza, em que consiste exactamente? Os seus suportes são gráficos, verbais ou ambos? A que elementos estilísticos ou estruturais do discurso recorre, e em cada caso para quê? Que funções desempenha cada uma dessas práticas de dramatização no seio do campo social em que o medium se insere mais directamente?

O nosso estudo incide sobre um tipo particular de comunicação mediática, a imprensa escrita doutrinária ou política, no período de crise que se seguiu ao 11 de Março de 1975 (na acepção de Lucien Sfez, 1988: 46). Trata-se de avaliar, neste contexto muito particular da nossa história recente, as características e funções da dramatização no discurso da Voz do Povo, jornal que apoiava a UDP, embora se não considerasse como órgão do partido.

E responder ao desafio analítico lançado por Dominique Pouchin, correspondente do Le Monde em Lisboa no pós-25 de Abril: "(…) esta Revolução foi sobretudo verbalista e teatral. Com uma dupla vantagem: é que se tratava de um teatro a sério, sem atingir, salvo raras excepções, níveis de violência" (Pouchin, 1994).

A "ideologia da objectividade" e a produção social da realidade

A abordagem da dramatização nos média implica uma reflexão prévia sobre as ideias que se desenvolveram acerca do discurso noticioso e da prática jornalística, das quais sobressai a "ideologia da objectividade". Tendo surgido no século XIX, esta mitologia desenvolveu-se ao longo do século XX, associada à máxima facts are sacred, comment is free (Mesquita e Rebelo, 1994: 114). Segundo ela, o jornalismo seria um "espelho da realidade", desinteressado e objectivo (Traquina, 1988). A metáfora do espelho evoca também o carácter mágico do acto subjacente a este ideal de objectividade: o acto de transplantar a realidade do seu espaço natural para o espaço do medium e de a oferecer, intacta, ao espectador.

Esta ideologia foi contestada por numerosos autores, como Tuchman (1978) ou Saperas (1993), que atribuem aos média a função de "produzir realidade", nomeadamente ao seleccionarem e omitirem determinados temas e acontecimentos, ao abordarem esses temas de determinadas formas em detrimento de outras e, finalmente, ao penetrarem na construção social da realidade, na medida em que conferem visibilidade social ao acontecimento noticiado,1 gerando consequências desse acontecimento ao nível da realidade social.2

Merton e Lazarsfeld atribuem aos média as funções de "atribuição e confirmação de status", "produção de normatividade" e "influenciação e conduta do gosto popular" (citados por Paquete de Oliveira, 1988: 85). A socióloga norte-americana Gaye Tuchman (1978) entende as notícias como "realidade construída" a partir de enquadramentos (frames); as notícias são como "janelas" sobre o acontecimento, que chega ao destinatário depois de filtrado por uma conjugação de factores como a sua posição em relação à janela, o formato desta ou os múltiplos constrangimentos com que o jornalista interage no seu trabalho. Para Bourdieu (1989), é a transformação das categorias de percepção do real que molda a própria transformação do real, e é nesse sentido que os média adquirem um poder efectivo sobre a realidade social.

 

Conceitos fundamentais

O conceito de dramatização

Considerando a dramatização como a acção de "dar forma de drama", entendemos por drama uma forma literária ou simplesmente discursiva baseada nalguns atributos que se combinam para criar a ilusão do vivido ou ilusão dramática (Reis, 1995: 274). O termo grego originário remete-nos para a acção, nomeadamente a teatral, que será o atributo central do drama (Silva, 1969; Reis, 1995).3

No drama é o diálogo entre as personagens que define a acção, o cenário e as próprias personagens (Hamburger, 1986), não existindo, como noutros géneros literários, a intervenção da figura do narrador (Reis, 1995). A acção dramática submete-se a atributos específicos: a concentração em torno de personagens principais e num tempo limitado; a tensão que decorre dessa concentração e das relações conflituosas que se estabelecem entre essas personagens; a intensidade que pauta o ritmo da narração (Silva, 1969; Reis, 1995). Deste modo, a forma dramática constitui um apelo à afectividade e às emoções do espectador/leitor, e procura criar nele a ilusão do vivido (Silva, 1969; Dawson, 1975).

As funções da dramatização

Com base em diversos contributos teóricos, procurámos identificar um conjunto de funções que a dramatização hipoteticamente desempenha no discurso mediático, no intuito de as confirmar ou infirmar pela análise. Efectivamente, embora no caso que nos prendeu, a imprensa escrita doutrinária, estas funções assumam sentidos mais específicos do campo político, elas são extrapoláveis para o restante discurso mediático, incluindo o audiovisual.

A função de conferir visibilidade. Como sustenta Pierre Bourdieu (1989: 145), a visibilidade é condição sine qua non para a existência social, uma vez que está na origem das "visões do mundo" ou das representações sociais. Para Adriano Duarte Rodrigues, é mesmo a principal característica de qualquer corpo social com legitimidade instituinte do respectivo campo social. Por outro lado, o campo dos médiaconstitui-se como "campo de mediação" entre os restantes campos sociais, desempenhando a função de lhes conferir visibilidade. Quer dizer, os diversos campos sociais utilizam de múltiplas formas o campo dos médiapara se legitimarem, mediante processos rituais instituintes (Rodrigues, 1990: 145-146).

Assim, uma das funções das notícias é precisamente dar a ver, tal como um palco teatral dá a ver aos espectadores uma determinada peça, podendo falar-se de uma dimensão cénica das notícias (idem, 1988: 12).

A dramatização tem a vocação de conferir visibilidade. É esse o sentido do efeito de ilusão dramática a que já nos referimos: o apelo afectivo, a tensão, a simplificação, a concentração combinam-se para dar visibilidade social ao objecto dramatizado. Carlos Reis (1995) associa mesmo a ilusão dramática à "função ideológico-social do teatro".

Num estudo relativo ao tema da dramatização, Maria Augusta Babo (1998: 75) nota que a visibilidade ou a "exterioridade" que a dramatização confere a um objecto é "o garante da sua própria existência". Podemos considerar então que a notícia dramatizada contribui de uma forma mais activa para gerar visibilidade.

A função de luta pela imposição de uma visão do mundo. Pierre Bourdieu (1998: 90) refere-se à luta política como uma luta quotidiana pela imposição de categorias de percepção do mundo social, pela imposição da visão legítima desse mundo. Uma luta que ultrapassa o âmbito ideológico, visto que a instituição de uma visão do mundo legitima uma intervenção directa no mundo social que corrobore essa mesma visão.

Estando o discurso dramático vocacionado para representar "a totalidade da vida" ou o "mundo" no qual se desenrola a acção (Dawson, 1975: 47), ele constitui-se como uma forma eficaz de empreender a luta simbólica pela imposição de uma visão do mundo.4

Esta vocação é fortalecida pela vocação "natural" dosmédia para imporem visões do mundo. Se as primeiras tipificações das funções dos média se baseavam na trilogia informar, formar e divertir (Paquete de Oliveira, 1988: 84), enquadrável na "ideologia da objectividade", hoje não é controverso afirmar que a imprensa ocupa um lugar de destaque no processo de produção, reprodução e sedimentação das representações sociais. E ao produzirem representações sociais estão também a participar na produção da realidade social. Nelson Traquina (1988: 37) refere a título de exemplo que muitas problemáticas só são abordadas por haver notícias, relatos de acontecimentos, que proporcionam essa abordagem.

A função remitificadora. Alguns autores constatam que as sociedades modernas se caracterizam por uma desintegração da identidade colectiva (Lipovetsky, 1989). Segundo Adriano Duarte Rodrigues, os média têm a função de organizar a experiência do aleatório do homem moderno, devolvendo-lhe novos enquadramentos explicativos e "uma imagem coerente do destino". O autor designa-a como a "função remitificadora" (Rodrigues, 1988: 14-15).

Particularmente em períodos de crise, caracterizados pelo questionar das ordens simbólica e social, pela abundância de signos, torna-se particularmente necessário o surgimento dessa imagem coerente, que permita repor as ordens simbólica e social.

Sfez considera que, nestes períodos, a encenação de um conflito permite desencadear a ruptura em relação à desordem e "restaurar o mito fundador" (1988: 46). É neste sentido que, em períodos de crise, a dramatização - ela própria uma forma de expor conflitos ou representar situações de tensão - se assume como um meio de "repor o mito fundador", um enquadramento explicativo que resolva definitivamente a confusão simbólica predominante. A dramatização pode assim entender-se como um ritual, uma celebração ritualizada do mito fundador.

A função de agitação política. Existem fortes ligações entre a função de agitação política, entendida como a estimulação de um conflito político junto dos destinatários, e o discurso dramático.

Por um lado, porque a forma dramática passa inevitavelmente pelas noções de tensão e de conflito entre as personagens. Por outro, porque diversos atributos da dramatização, tal como adiante é definida em termos operatórios, cumprem a função de agitação, em especial os relativos ao apelo afectivo.

Esta função adequa-se particularmente à teoria revolucionária leninista. Para Lenine, uma das tarefas do agitador é dramatizar os pequenos factos, situando-os ao nível da luta de classes e procurando suscitar nas massas os sentimentos de descontentamento, revolta e ódio de classe. O propagandista, em contrapartida, teria um desempenho mais teórico, centrado na explicação das contradições do capitalismo a grupos mais restritos e dotados de maior capital cultural (Domenach, 1962).

A função de persuasão através da união espectador/actor. Um dos efeitos do discurso dramático, além do da união do grupo de espectadores, é o da união entre esses espectadores e os actores em palco (Silva, 1969: 247). No caso do "teatro do povo", que consistia em gigantescas encenações montadas por regimes para assinalar datas decisivas, este efeito era conseguido na medida em que no palco se representava o próprio povo, isto é, os espectadores reviam-se no palco (Dort, 1971: 267-280).

Podemos questionar se a comunicação mediática actual, com o seu discurso dramático, não procurará uma união entre espectadores (neste caso leitores, telespectadores, etc.) e actores (os protagonistas da realidade abordada pelo medium). Um efeito que consiste em arrastar o espectador para a cena, informando-o de que, na sua posição de receptor, ele está a ver-se a si próprio a actuar no palco encenado pelo medium. No caso do jornalismo político, trata-se de tentar a identificação do leitor com as forças sociais ou políticas que o jornal apoia, ou de levar o leitor a aderir implicando-o na acção.

A dramatização no contexto do jornalismo político

A teatralidade do político. A dramatização encontra no campo político um terreno propício, perante a teatralidade intrínseca deste campo, conhecida e abundantemente teorizada. Podemos evocar a ideia de "teatro político" de Piscator como paradigma da dimensão teatral do político, entretanto desenvolvida por autores tão importantes e heterogéneos como Balandier (1999), Bourdieu (1989) ou Lipovetsky (1989). De forma sintética, Abélès (1995) afirma que, no campo político, as encenações e os processos de ritualização são constantes.

Contudo, cabe referir que os principais contributos teóricos acerca do tema centram-se essencialmente na teatralidade do exercício do poder por parte dos seus titulares/representantes, deixando a outros componentes da actividade política, como o contra-poder ou os destinatários do poder/representados, uma grande margem de desenvolvimento teórico. Ao procurar a análise da dramatização num discurso de contra-poder (o da Voz do Povo), o nosso trabalho encontra-se à partida desenquadrado das teorias acerca da dramatização dos rituais de poder, o que lhe confere um interesse adicional.

Interacção entre os campos político e mediático. A teatralidade intrínseca do político, a par da capacidade e da propensão dos meios de comunicação de massas para dramatizar, fizeram destes o instrumento privilegiado de comunicação entre a classe política e a população.

A relação entre a política e os média começou por ser de instrumentalização destes por aquela. Os regimes políticos, e com particular visibilidade os estados autoritários, usaram os média (a imprensa escrita, a rádio, o cinema e a televisão) como instrumento de propaganda. Abordagens históricas do fenómeno da propaganda, como as de Domenach (1962) e Quintero (1993), ilustram bem esta tendência.

Nas últimas décadas, nas sociedades democráticas, o panorama transformou-se profundamente, com o extraordinário aumento da influência social e política dos média. Auto-suficientes e culturalmente dominantes devido ao seu controlo das técnicas e do mercado da sedução, são estes que passam a instrumentalizar as instituições políticas dependentes desse jogo, no dizer de Alain Minc (1994) ou de Lipovetsky (1989).

O jornalismo doutrinário. O jornalismo doutrinário (ou político) constitui um tipo particular de interacção entre os dois campos, caracterizado por uma instrumentalização política tolerada, até no quadro legal dos regimes democráticos. É o caso do art.º 3.º da Lei de Imprensa portuguesa de Fevereiro de 1975, que vincula apenas a imprensa "informativa" ao respeito pelos "princípios deontológicos da imprensa e a ética profissional".

Trata-se também de um tipo de jornalismo ligado à "primeira etapa" da história da imprensa, que se desenrolou no período de convulsões ideológicas que atravessou o século XIX, até à I Guerra Mundial (Albertosa, 1974: 71).

A dramatização como estratégia de acção revolucionária. O envolvimento do leitor numa visão do mundo "dominada" no campo das representações sociais, o contribuir para a visibilidade desta visão, para a agitação política, para a união espectador/actor (enfim, as funções que hipoteticamente atribuímos à dramatização), a vigência de um período de crise, caracterizado pela indefinição da ordem simbólica (Sfez, 1988; Bourdieu, 1998) - todos estes factores fazem da dramatização uma estratégia discursiva ou simbólica que favorece a adesão à causa revolucionária por parte do leitor.

Outro aspecto que a favorece é o facto de o discurso e a acção dramáticas se caracterizarem pela simplicidade, necessária para que o público acompanhe o enredo no tempo do palco. Para Trotsky (citado por Domenach, 1962: 25), a "condutibilidade das ideias" é um imperativo do êxito revolucionário, e esta exige um discurso simples, acessível ao leitor "operário" ou "camponês".

A própria teoria marxista defende como estratégia simbólica a reconstrução do imaginário, que passa por "liquidar todas as superstições do passado" (Marx, 1982), pela destruição da tradição e da memória, responsáveis pela "fabricação de imagens" que sustenta o regime capitalista (Sfez, 1988). E como vimos, a dramatização pode ser um meio eficaz para concretizar esta tarefa.

 

A Voz do Povo, um jornal doutrinário em 1975

No caso do jornalismo doutrinário, que serviu de base ao nosso trabalho, a questão da dramatização deve ser recolocada em termos teóricos, uma vez que estamos perante um campo muito particular, o político, e um tipo de jornalismo divergente do "informativo". Uma vez que esta especificidade vai determinar a construção do modelo de análise, impõe-se esclarecer o leitor quanto aos principais traços distintivos do jornal.

O jornalismo da Voz do Povo

Partindo do nosso estudo de caso para caracterizar com mais detalhe o jornalismo doutrinário, constatamos, pela leitura dos documentos estatutários do jornal e por leituras preliminares do material, que o tipo de jornalismo praticado contraria frontalmente a ideia de neutralidade veiculada pela ideologia da objectividade.5 Ao descomprometimento desta ideologia, o jornal opõe o comprometimento dos jornalistas com a causa revolucionária. No seu "Regulamento interno" a Voz do Povo autodefine-se como "semanário informativo de combate e crítica social".

A ideia (sem dúvida utópica) de "comunicador desinteressado" cede lugar à de "comunicador interessado", oposição que se aplica às funções da própria actividade jornalística: enquanto no primeiro caso elas são enquadráveis nas tipologias tradicionais, no segundo elas obedecem a uma função política, a uma estratégia explícita de tomada do poder político. No "Estatuto editorial" fala-se, por exemplo, de "radical democratização da sociedade portuguesa" ou da orientação editorial "contra a escalada reaccionária nas Forças Armadas, no aparelho de Estado, na Imprensa, pela melhoria constante das condições de vida da classe operária".

O "jornalista passivo" dá lugar a um jornalista activo, "vigilante", dotado de uma missão política ao serviço "dos sectores mais desfavorecidos da população" na sua "luta contra a burguesia", encarregue de efectuar as "denúncias" e "revelações políticas" preconizadas por Lenine, encarregue de agitar o leitor e de o instruir quanto às formas de luta a empreender.

Se é um facto que podemos abordar qualquer mass-medium nas suas funcionalidades económica, política e cultural, também devemos considerar que em cada mass-medium há dimensões que são de certa forma dominantes. No caso da "luta pelas audiências" entre os actuais média, provavelmente, a função económica terá um papel mais determinante no desenrolar do jogo. No caso de um jornal doutrinário, a questão do apoio a um movimento e ideologia políticos e da captação dos leitores para esse movimento torna-se preponderante.

Neste contexto jornalístico, a dramatização pode ser entendida como uma táctica para envolver o leitor num determinado "cenário ideológico", através da ilusão de realidade própria do drama, e já não como uma prática que peca por pôr em causa a "leitura objectiva" dos factos noticiados. Por outras palavras, a dramatização assume no jornalismo doutrinário um valor moral que a legitima, em ruptura com a ideologia da objectividade.

Em todo o caso, é de extrema importância não confundir dramatização, ou ruptura com a ideologia da objectividade, com desvio em relação à verdade. São conceitos diferentes, e cabe referir que, não só ao longo do corpus surge por duas vezes a frase de Lenine "só a verdade é revolucionária", como no próprio "Guia do correspondente" se sublinha a necessidade de os correspondentes guardarem um respeito absoluto pela verdade dos factos.

É também interessante notar que o jornalismo doutrinário da Voz do Povo parece encontrar no contexto histórico português do pós-25 de Abril uma espécie de reminiscência das épocas revolucionárias do século XIX, que o propiciam. O recurso a terminologias e técnicas de agitação política praticadas em revoluções passadas cruza-se neste jornal com as tendências informativa e explicativa, mais recentes, tornando a sua análise mais aliciante.

Metonímia original

Uma pista para entender o discurso do jornal é o seu próprio nome. Efectivamente, Voz do Povo constitui uma metonímia cujo sentido acompanha a diversos níveis a análise que levámos a cabo desse discurso.

Se atentarmos que no "Guia do correspondente" se diz que os correspondentes "são os olhos e os ouvidos do jornal", chegamos, através do título, a uma união simbólica entre "jornal" e "povo", por via dos correspondentes, que representam o povo. Note-se que, segundo o mesmo documento, "não há limite" para o número de correspondentes, sendo ideal que todos os leitores o sejam.

O resultado é uma pessoa - o povo personificado - cujos olhos e ouvidos são os correspondentes e cuja voz (a Voz do Povo) é o jornal. Estipulada a união através do título, ela será concretizada no discurso, tanto em termos ideológicos como estilísticos.

Função primordial

São as posições defendidas no espaço editorial que revelam a função primordial do jornal: o derrube do regime capitalista e das instituições políticas vigentes (que, como veremos, são sistematicamente rotuladas de "burguesas") e a instauração da ditadura do proletariado. Numa palavra: a revolução.

A ideia de um jornal como impulsionador da revolução proletária não é nova. Em 1900, Lenine fundou a Iskra (a Centelha), jornal que o próprio considerou o fio condutor da revolução e cujo título também é sugestivo da sua função primordial.

Rede de correspondentes: um dispositivo revolucionário

A rede de correspondentes projectada pelos responsáveis editoriais da Voz do Povo, cujos contornos são delineados no "Guia do correspondente" e no "Estatuto do correspondente", desempenha funções que excedem em larga medida o âmbito do jornalismo. Encontrando-se explicitadas nestes documentos, constatamos que estas funções são também referidas por Lenine (1966) no seu livro Que fazer?, onde aborda a questão da criação duma rede de correspondentes para o jornal.

A vigilância proletária é a função mais citada. Procura-se criar uma rede de correspondentes "espalhados por todo o país", que vigie os movimentos de "políticos" e de "patrões", bem como as suas "falcatruas". O "Guia do correspondente" aconselha os correspondentes a recolherem a informação junto das pessoas que a centralizam: "barbeiro", "porteiro", "merceeiro". Ou seja, aos correspondentes é prescrita a tarefa de efectuar denúncias, ideia que encontramos também em Lenine (1966). Estamos longe do conceito de news net de Tuchman (1978), referente à rede que os média lançam sobre a realidade para a captar. Aqui a rede procura efectivamente controlar a realidade e transformá-la com o apoio do jornal, através de um dispositivo que tudo vê e tudo sabe: algo semelhante ao "dispositivo panóptico de visibilidade" concebido por Bentham em 1791 (citado por Rodrigues, 1990).

Outra função é unir as massas. O trabalho de recolha de informação, de comunicação dessa informação à redacção, de partilha das notícias de cada nova edição, significa a união de trabalhadores que participam no processo e a ruptura com o seu isolamento (Lenine, 1966: 225). Estamos perante uma aplicação particular da função de "cimento social" atribuída a todos os média (Sfez, 1993).

Podemos ainda falar da função de "educar fortes organizações políticas" a nível local, igualmente através do trabalho em torno da feitura do jornal: a divulgação das directrizes para uma acção disciplinada e a recolha de informações no terreno (Lenine, 1966: 217-218).

 

Operacionalização da problemática

Analisar a dramatização na imprensa escrita: operacionalização

Iniciámos este artigo apontando características que aproximam o discurso das notícias do discurso do drama: importância do tempo presente, necessidade de simplificação e de um estilo apelativo, presença de narrativas caracterizadas por uma concentração em torno de um pequeno núcleo de personagens, o facto de serem estas a definir a acção.

Uma vez que o conceito de dramatização que nos chega da literatura pode não ser adequado para a análise do campo dos média, precisamos de definir um conceito operatório, adaptado à realidade do discurso deste campo, que viabilize a medição dos dados.

Pierre Babin (1993), autor que se debruçou sobre a dramatização nos média, considera cinco "procedimentos clássicos de dramatização": o exageramento; a oposição; a simplificação; a deformação; a amplificação emocional. Esta ideia de "exageramento" permite-nos uma clarificação importante relativamente ao nosso objecto de estudo: é que ele não é constituído pelo conteúdo histórico das notícias, mas pelo discurso que lhes serve de suporte. Daí preferirmos adoptar o termo "enfatização", entendida como uma forma estilística de realçar algo e não como uma forma de "deformar" a realidade, o que não nos interessa demonstrar.

Constituição de uma grelha de análise

Com base nestes diversos contributos, passámos então a elaborar, criticamente, uma grelha de análise, que consistiu em categorias capazes de medir e caracterizar o discurso dramático. O objectivo da análise era apurar em que medida a presença destas categorias no discurso desempenha ou não as funções anteriormente definidas, ou permite descortinar novas funções.

Metáfora. A metáfora permite transportar uma ideia, um objecto, uma imagem do seu universo semântico original para outro, como sugere a palavra em grego, que significa "transporte".6 Podemos mesmo estabelecer a analogia entre metáfora e encenação teatral, na medida em que a encenação teatral constitui sempre uma recriação do guião original, adaptando-o a outros contextos e recorrendo a outros adereços. Os encenadores e actores "dizem uma coisa em termos de outra", isto é, constroem uma metáfora. Esta ideia é partilhada por Dawson, para quem "a relação entre o mundo dramático da peça e a realidade é metafórica" (1975: 25).

As metáforas conferem ao discurso as propriedades dramáticas da simplificação, ao transportarem o discurso para universos mais acessíveis, e da ilusão dramática, porquanto é a própria realidade que a metáfora transporta para os novos universos; e, em muitos casos, da intensidade, na medida em que muitas metáforas enfatizam o respectivo objecto.

Outras formas de representação simbólica. A análise dos dados deve distinguir outras modalidades de representação simbólica da realidade que se aproximam da metáfora, como o símbolo, o emblema, a alegoria, a hipérbole ou a parábola. A alegoria merece-nos uma atenção especial na medida em que consiste num sistema metafórico recorrentemente usado para expor um determinado tema.7 São conceitos que não farão parte dos procedimentos de análise directa do corpus, mas que poderão ser evocados na fase de interpretação dos dados.

Metonímia. A metonímia pode definir-se como o acto de tomar a parte pelo todo, ou vice-versa. Segundo o Dicionário da Literatura, uma metonímia é uma "figura pela qual se designa uma realidade por meio de um termo referente a outra que está objectivamente relacionada com a primeira". "A metonímia (sentido lato) pode resultar das seguintes relações: a parte pela parte; a parte pelo todo; o todo pela parte". Assume modalidades distintas, das quais destacamos: o continente em vez do conteúdo ou vice-versa, a causa pelo efeito ou vice-versa, o sinal pelo significado, o abstracto pelo concreto, etc. (Coelho, 1969: 638).

Confundindo os termos do real, as metonímias permitem, como veremos, encená-lo, produzi-lo, o que lhes confere a propriedade da ilusão dramática.

A detecção dos processos metonímicos pode tornar-se difícil, na medida em que eles desempenham por vezes funções simbólicas revestidas de sentidos subtis. Apresentamos de seguida aquelas que pudemos detectar na Voz do Povo na sequência das leituras prévias e que procurámos avaliar ao longo da análise. Aproveitamos para conceptualizar estas metonímias em termos genéricos, abrindo assim caminho para a sua utilização na análise de outros objectos.

Metonímia 1: Identificação entre o medium e outras entidades, sociais ou ideológicas. Vários autores referem o efeito metonímico entre representante e representado no campo político. São os casos de Bourdieu (1989: 157-159) e Abélès (1995).8

No caso da Voz do Povo, uma observação preliminar de alguns trechos do "Guia do correspondente" e o próprio nome do jornal sugerem-nos a existência de uma metonímia original que identifica o jornal com o povo e que já tivemos ocasião de caracterizar com mais pormenor na apresentação daquele.9 Esta metonímia manifesta-se ao nível do discurso, através de diversas modalidades detectadas mediante leituras prévias. São formas de o jornal se autodelegar representante do povo:

· a assinatura de notícias por elementos do proletariado, exteriores ao corpo redactorial. Constatamos nomeadamente que diversas notícias do corpus são assinadas por operários e camponeses (correspondentes). Trata-se, quanto a nós, de uma ritualização da união simbólica entre o jornal e o proletariado. Quando se escreve, no "Guia do correspondente", que os correspondentes "possuem cartão do Jornal", afirma-se a mesma união;

· a utilização da primeira pessoa do plural, por parte dos jornalistas, a propósito de colectivos proletários. Para Abélès (1995), esta prática constitui uma "estratégia retórica" de afectação do sujeito ao todo do grupo;

· o recurso à linguagem do proletariado por parte dos jornalistas: termos, expressões, calão populares. Um código popular que detectámos na leitura prévia do corpus e que permite concretizar a mesma metonímia. Aliás, no "Guia do correspondente" diz-se que os correspondentes "devem ter a preocupação de transmitir à redacção a maneira de falar do povo", e que devem evitar "a preocupação vulgar de ‘escrever bem’".

Metonímia 2: Narração e interpretação de factos concretos através de uma ideologia. Uma prática comum no discurso noticioso da Voz do Povo parece ser a narração de factos através de uma explicação histórica global, interpretando-os, explicando-os sistematicamente através dos seus termos. Trata-se da preocupação, própria da propaganda leninista, de situar a realidade ao nível da luta de classes (Domenach, 1962: 22-23).10

Esta metonímia, em que o todo é identificado com a parte, é também uma prática corrente no teatro de participação política (Dort, 1971), e permite apresentar uma visão do mundo como a "verdade escondida" nos factos noticiados.

O tomar entidades individuais por entidades colectivas constitui uma modalidade particular desta metonímia. É o que acontece nos seguintes exemplos, em que as entidades "povo" e "reacção" são os elementos da visão do mundo do jornal evocados: "o povo decidiu o saneamento da mesa do Hospital" ou "ninguém se manifestou contra, a reacção manteve-se na expectativa".

Recursos discursivos de simplificação. A simplificação é, como vimos, uma das exigências do discurso dramático, relacionada com o seu ritmo e o tipo de comunicação que estabelece com o público. No caso da imprensa, Babin considera mesmo a simplificação como um dos procedimentos clássicos de dramatização. Encontramos dois recursos de simplificação conceptualmente importantes e mensuráveis: as oposições e associações binárias, por um lado, e um conjunto de termos recorrentes usados para a codificação do real, a que chamamos "rótulos de codificação".

Oposições e associações binárias. A oposição bináriaconstitui, segundo Lévy-Strauss, o processo universal fundamental da produção de sentido. Uma regra ditada, segundo este autor, pelo carácter binário das próprias trocas de informação entre as células do cérebro humano (citado por Fiske, 1993: 158).

Em relação ao discurso ideológico marxista, patente no nosso objecto de estudo, a lógica binária de percepção do real assume um significado particular, que se prende com o facto de ser a ideologia marxista fundada num conjunto de oposições binárias - a perspectiva "preto-no-branco" do universo político de que fala Jean Charlot (1974) - determinadas a partir da oposição burguesia-proletariado que define a luta de classes. Além da simplificação, as oposições binárias têm a função de estabelecer relações de tensão entre as personagens (Babin, 1993), conferindo ao discurso essa propriedade dramática.

A oposição binária define um oposto igualmente simplificador, a associação binária, que ao longo do corpus inclui situações como reuniões, cooperação, coparticipação em acções políticas, concordância ou solidariedade.

Oposições e associações binárias são recursos analíticos que nos poderão ajudar a reconstruir uma estrutura de representações que constituirá a visão do mundo social e político veiculada pelo medium. Para viabilizar uma análise sistemática desta categoria, captaremos cada ocorrência de oposição ou associação através das variáveis "entidade A" e "entidade B".

Rótulos de codificação. Chamamos rótulos de codificação a um conjunto de termos ou expressões que se aplicam recorrentemente para designar entidades ou situações, permitindo codificá-las de uma forma simples e valorativa. Este recurso é detectado numa leitura prévia das notícias da Voz do Povo. Os membros do MRPP são regularmente qualificados de "aventureiros"; o PCP é designado por rótulos como "os revisionistas", "o partido de Cunhal" ou "P’C’P"; a linha sindical defendida pelo PCP, reunindo no mesmo sindicato operários e técnicos, é designada por "caldeirada de classes". Estamos perante outra versão dos "signos distintivos" que Babin (1993) reconhece nos heróis da banda desenhada, como a fusão homem-morcego de Batman.

Por hipótese, o rótulo posiciona a entidade-objecto no quadro da visão do mundo que o jornal pretende impor, criando a ilusão de um determinado real e contribuindo para essa imposição.

Além de simplificar pela omissão, ou pela redução de entidades complexas de uma sociedade em convulsão a uma mera "definição-síntese", os rótulos possuem, na maior parte dos casos, assim nos parece, um juízo de valor associado, uma componente valorativa decisiva na caracterização da entidade. É através dessa propriedade de valoração que devemos entender o poder simplificador do rótulo: o juízo de valor simplifica ao libertar o leitor do trabalho de valoração. Por outro lado, leva-o a recolocar a entidade no espaço simbólico, orientando a sua descodificação.

A análise exaustiva destes rótulos pode levar-nos a: identificar as entidades/personagens em destaque nos espaços político e social definidos no espaço noticioso; identificar as características e funções que o jornal atribui a estes actores através dos rótulos e dos juízos de valor que eles contenham; reconstituir a "visão do mundo" pela qual luta a Voz do Povo.

O apelo afectivo. O apelo afectivo é uma das traves mestras do drama, consistindo em procurar no espectador um envolvimento emocional. O jogo de sentimentos entre as personagens em cena, mas também o ritmo tenso e intenso do drama e os processos de enfatização, suscitam por sua vez sentimentos no espectador que, afectivamente envolvido, se torna mais vulnerável a assimilar o almejado efeito de "ilusão de realidade".

Sentimentos. Pierre Ansart (1983; 1997) analisa os processos políticos enquanto processos de manipulação dos sentimentos e sensibilidades colectivos. A recolha dos sentimentos nomeados no corpus permitir-nos-á incorrer nessa perspectiva do jogo político, que se relaciona directamente com a dramatização.

Quais são as funções que os sentimentos desempenham na visão do mundo do jornal? Que formas de envolvimento afectivo procuram suscitar no leitor? Que entidades da realidade noticiada permitem os sentimentos relacionar e em que sentidos?

A resposta a estas questões e o trabalho de análise são valorizados pela decomposição desta categoria em três variáveis, captáveis em todas as ocorrências: o "sentimento", o seu "sujeito" e o seu "objecto ou causa".

Enfatização. Consideramos as situações discursivas de enfatização como forma de apelo afectivo, na medida em que, ao realçar-se ou intensificar-se um determinado objecto, se estabelece com o leitor uma comunicação que dispensa a interpretação racional do texto:11

· O ponto de exclamação. A simples utilização deste sinal confere a qualquer frase, independentemente do seu sentido, o estatuto de exclamação, o que constitui uma forma de enfatização. A linguagem exclamativa juntamente com a interrogativa e a imperativa são, de resto, características do drama (Dawson, 1975: 37). A enfatização pelo ponto de exclamação não deve ser considerada sempre que ele culmine uma frase já de si enfática;

· O recurso a advérbios de intensidade (já, muito, sempre, nunca, tão ou tanto) ou a graus superlativos de adjectivos e advérbios (muitíssimo, pobríssimo, imenso, pessimamente);

· A ironia. Uma forma de enfatizar particularmente difícil de identificar. A ironia é subliminar por definição e o seu registo depende da habilidade de quem observa para descortinar a intenção irónica do jornalista, por vezes impossível de comprovar;

· A enfatização semântica. Quando encontramos uma situação discursiva que identificamos como enfática pelo seu contexto semântico, mas que não contém as formas discursivas de enfatização a que acabámos de nos referir. É o caso das hipérboles, que constituem o tipo de enfatização mais frequente. Ressalve-se que a avaliação das situações de enfatização por via semântica envolve em muitos casos subjectividade: a enfatização resulta duma interacção das palavras e do seu sentido com os contextos, podendo interpretar-se sob diferentes perspectivas.

Vitimização. No estudo da dramatização, a vitimização, ou a apresentação de determinada entidade como vítima, constitui um recurso importante. Por um lado, é uma forma de apelo afectivo, ao estimular no leitor sentimentos como a comiseração para com os vitimados e o ódio aos agressores. Por outro, ajuda-nos a precisar a estrutura de relações entre os actores sociais que ocupam o espaço simbólico do medium, ao estabelecer um conjunto de oposições binárias. Finalmente, ela permite-nos caracterizar o conflito social e político representado pelo medium.

Podemos decompor cada situação de vitimização em três variáveis, cujos valores deverão ser atribuídos no acto de recolha dos dados: 1) a vítima, 2) o tipo de agressão e 3) o agressor. A forma como estas variáveis se relacionarem definirá o sentido da vitimização.

As palavras de ordem. Muitas das notícias da Voz do Povo culminam com uma sequência de palavras de ordem, que constituem um caso particular de apelo afectivo: um apelo enfático à acção revolucionária ou uma forma enfática de apoiar ou atacar uma entidade.

Segundo os teóricos, a palavra de ordem é um dos pilares da propaganda leninista. Para Domenach (1962), trata-se da tradução verbal de uma fase do combate revolucionário ou da expressão dum objectivo importante. A eficácia desta forma de comunicação reside no efeito multiplicador da sua difusão, na medida em que "utiliza como meio difusor aqueles mesmos a quem é dirigida" (Quintero, 1993).

Personificação. Muito mais do que sucede noutros géneros discursivos, a presença de personagens é vital no drama. É o diálogo que estabelecem entre si que define a sua personalidade e o próprio enredo (Hamburger, 1986).

Num discurso como o das notícias de um jornal doutrinário, temos que considerar não apenas as personagens antropomórficas (pessoas nomeadas), como também as personagens não antropomórficas constituintes da visão do mundo do jornal, isto é, grupos sociais, entidades e sentimentos colectivos ou categorias ideológicas.

Se o apuramento destas últimas depende da interpretação de outras categorias de análise, como os rótulos ou as metáforas (a metáfora do corpo é um exemplo de personificação), o apuramento das personagens antropomórficas pode fazer-se através da recolha de todas as nomeações do corpus. Para que a recolha seja consequente em termos analíticos, deverá incluir não só a variável "pessoa nomeada", mas também as variáveis "entidade de pertença da pessoa nomeada"e "sinal da valoração"; como veremos, as características do material legitimam a utilização desta última variável.

 

Definição do corpus e dos procedimentos de análise

Escolha do período de análise

Optámos por fazer incidir a análise sobre um período típico de crise, compreendido entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975. Escolhemo-lo, por um lado, por se tratar de um período de dinâmica revolucionária, caracterizado pelos extremismos e uma intensa conflitualidade, no qual o poder constituinte da linguagem é mais acentuado e em que a dramatização do discurso será mais premente e de contornos mais claros (Bourdieu, 1982, 1998; Sfez, 1988); por outro, porque essa situação permitir-nos-ia confrontar o objecto com teorizações já feitas acerca do discurso em períodos de crise.

Desse período seleccionámos o compreendido entre 11 de Março e 19 de Julho de 1975, dia do discurso de Mário Soares na Alameda, em Lisboa, que terá constituído um suporte político e ideológico importante da reacção contra o chamado "processo revolucionário em curso" (iniciado a 11 de Março) e marcado o princípio do declínio da influência do PCP e da extrema-esquerda na sociedade (Reis, 1994: 32-33).

Escolha do género jornalístico

Na sua condição de jornal doutrinário, a Voz do Povo contém vários tipos de artigos: editoriais, artigos de opinião, notícias, comunicados e notas de imprensa de forças políticas; por sua vez, os objectos de notícia abrangem múltiplas situações do quotidiano social, político e cultural e, no caso da dimensão política, muitas delas resumem-se quase só a transcrições de longos discursos em comícios, manifestações, etc.

Escolhemos a notícia por se tratar de um espaço privilegiado de dramatização; nele o jornalista reconstrói ou encena a realidade, dispondo para isso de uma grande liberdade a nível narrativo e vocabular.

O conceito de notícia. Ao eleger a notícia como objecto de observação, impõe-se uma definição fundamentada e precisa do conceito. Para Albertosa (1974: 88), a notícia é um facto verdadeiro comunicado a um público numeroso. Mas parece-nos importante, para o estudo da dramatização, assumir a notícia como uma forma de produção simbólica e mesmo social da realidade. Assumindo a perspectiva de Tuchman (1978), entendemos a notícia como uma construção baseada no enquadramento (frame) que filtra a comunicação dos factos ao receptor: em vez de "espelhar" o real, ela recria-o, participando assim a um nível simbólico na coprodução da realidade social.

Quanto ao nosso estudo de caso, do âmbito do jornalismo doutrinário, importa ter em atenção que estamos perante um caso particular de notícia. Dado que aqui o comentário político acompanha quase sempre a notícia, parece prudente incluir na sua definição a crónica, a reportagem, ou até certos artigos de opinião, desde que, evidentemente, relatem factos objectivos a par dos comentários. De resto, este procedimento não se afasta da definição de notícia de Albertosa (1974).

Quanto aos enquadramentos que moldam a notícia, eles têm no caso do jornalismo doutrinário um carácter eminentemente ideológico e obedecem a uma estratégia política.

Opções metodológicas para a análise

O estudo da dramatização no discurso de um jornal em tempo de crise deve levar à procura dos traços que o individualizam e não apenas dos que eventualmente resultem desse contexto e sejam comuns a outros agentes do jornalismo doutrinário. Nestas condições, torna-se muito importante obter um ou mais termos de comparação.

A opção recaiu num segundo jornal doutrinário ou político, em detrimento de um jornal de referência que por motivos vários poria em causa a comparabilidade. O facto de se tratar de um jornal de um partido (o PS), com funções políticas claramente diferentes das do partido apoiado pela Voz do Povo, permitiu uma verdadeira confrontação da relação de duas ideologias diferentes com a dramatização. Finalmente, todos os números do Portugal Socialista no período considerado estavam disponíveis, ao contrário do que sucedia com diversos outros jornais.

Desigual distância dos dois discursos. A análise comparativa dos dois discursos debate-se com uma dificuldade: o facto de o discurso do Portugal Socialista e as suas categorias de apropriação do real estarem "mais próximos", tanto do discurso do senso comum de hoje, como do próprio discurso científico, o que se deve ao facto de essas categorias terem saído vitoriosas do conflito simbólico particularmente violento que se viveu no pós-25 de Abril (Matos, 1992).

Assim, não devemos confundir a "normalidade" de certo discurso ou vocabulário do Portugal Socialista com isenção, objectividade ou profundidade de análise.

Da análise de conteúdo à análise do discurso. Na perspectiva da análise de conteúdo, importa definir as "unidades de registo" a usar na recolha dos dados. Este tipo de análise considera como unidades de registo entidades homogéneas, como a "palavra", a "frase", o "acontecimento" ou o "documento". Acontece que estas entidades, obedecendo à "regra da exclusividade", uma das condições prescritas por Bardin (1979), não se ajustam ao nosso objecto de estudo.

Procurámos no discurso situações como enfatização, vitimização, metáforas, metonímias ou oposições binárias, isto é, as situações discursivas e linguísticas definidas como características da dramatização e que nos permitiriam confirmar ou infirmar as funções teoricamente atribuídas ao discurso dramático. Esta variedade de categorias de análise impõe ao texto um carácter polissémico. Por exemplo, uma mesma frase pode ser uma metáfora, constituir uma oposição binária, conter rótulos de codificação, e estar ainda contida num parágrafo que assuma o sentido de uma metonímia entre os factos noticiados e a sua explicação histórica. Essa mesma frase pode desempenhar múltiplas funções ao nível do discurso e deve ser registada (ela ou partes dela) tantas vezes quantas as categorias de análise que serve.

As unidades de registo são assim unidades de sentido, correspondentes a ocorrências das categorias de análise, o que implica que a sua dimensão não seja fixa.12

Refira-se que o tema do nosso trabalho é relativo à forma, ao estilo do discurso, e não tanto ao seu significado decorrente do seu conteúdo; a dramatização não decorre da estrutura semântica do discurso, mas duma forma particular de a transmitir. Isto não significa que a análise que nos propomos procure conclusões na área da linguística aplicada.13 Ela procura antes relacionar as categorias de análise definidas com a problematização interdisciplinar que elaborámos.

A este respeito, Maingueneau (1976: 4) chama a atenção para a falsidade que constitui a extrapolação de uma terminologia específica de uma ciência para outra. No caso do nosso objecto de estudo, devemos ter o cuidado de não extrair conclusões do âmbito da ciência política ou da sociologia histórica de um universo analítico que nos situa no âmbito do espaço simbólico e das representações sociais.

Propomo-nos desenvolver uma análise do discurso, método que tem a vantagem de se situar na intersecção dos universos da linguística e de outras ciências sociais (Maingueneau, 1976; Fairclough, 1996).

A noção de discurso que assumimos é basicamente a de Maingueneau (1976): um enunciado (sequência de frases inscrita numa língua) considerado do ponto de vista das suas condições sociais de produção e integrado numa situação de comunicação específica. É portanto uma noção de discurso mais abrangente do que a assumida na área da linguística e criticada por Dominique Memmi.14

Complementaridade das dimensões quantitativa e qualitativa da análise. Procuraremos ao longo da análise evitar a identificação da frequência de utilização das unidades de registo com a sua importância no sentido geral do corpus. Greimas refere-se a esta identificação como absurda e adverte que a frequência pode muito bem ocultar mais do que revelar os sentidos mais importantes do discurso (Memmi, 1986).

As contagens são importantes e indispensáveis, mas constituem uma etapa entre várias no processo de recolha e análise dos dados. Às contagens deve suceder a utilização de medidas estatísticas e a implementação de técnicas de análise de dados quantitativos.

A interpretação dos resultados, o equacionamento de novas hipóteses, os próprios trabalhos de recodificação e agregação dos dados em modalidades não prescindem de uma abordagem qualitativa e crítica do material, que evoque a problemática, recorra a saberes teóricos, e valorize através de exemplos o particular que o quantitativo não conseguiu captar. É por isso muito importante que não se deixe de ter em vista o material em bruto - os dados primários - depois das primeiras fases do processamento quantitativo desse material.

Decomposição das categorias de análise em variáveis. A análise da dramatização no corpus partiu da recolha das ocorrências das categorias de análise anteriormente definidas. Como também já dissemos, estas ocorrências poderão ser palavras, frases ou mesmo conjuntos de frases.

Tendo todas as categorias sentidos traduzíveis em variáveis, procedemos à respectiva decomposição. Ela valoriza a interpretação dos dados e as conclusões duma forma inestimável, ao viabilizar a aplicação de técnicas de análise quantitativa, ao conferir rigor conceptual ao próprio discurso analítico. A partir desta decomposição, o sentido de cada categoria de análise passa a ser dado pela relação entre as variáveis que a constituem e o sentido de cada ocorrência a depender das modalidades presentes nela.

Veja-se no quadro 1 o conjunto de variáveis definidas para cada categoria.

Agregação dos dados em modalidades. Da recolha dos dados resultaram cerca de 6500 ocorrências. Seguiu-se um longo processo de codificação e recodificação, no qual procurámos reduzir a mole de entidades sociais, políticas ou ideológicas que intervieram nas notícias a um número mais reduzido de modalidades que se pudessem constituir como entidades comuns às várias categorias de análise.

Como se calcula, este procedimento era obrigatório para que as modalidades tivessem um peso estatístico aceitável. O reverso da medalha deste processo de agregação foi a perda do valor específico de determinadas entidades agregadas noutras mais genéricas. Uma perda reversível, dado não termos perdido de vista os dados primários.

Abandonar a ligação aos dados primários, no universo da análise do discurso, significa, de certo modo, perder o contacto com a realidade.

Tipificar os dados a posteriori. Tipificar constitui um acto artificial, uma delimitação de fronteiras e a escolha de critérios de (di)visão. A pertinência que se possa evocar para a escolha dos critérios e dos limites que se impõem ao material não afasta completamente o carácter discricionário - ou mágico - do acto (Bourdieu, 1989). Mas será possível "ser fiel" ao material de análise? Provavelmente não, ou não fosse o processo científico um processo de desconstrução e construção sempre fundado em objectos teóricos e metodológicos exteriores a esse material.

Poderíamos construir uma grelha de modalidades "exaustiva" a priori, abrangendo todas as situações possíveis e respeitando a regra da exclusividade. Mas, se o fizéssemos, estaríamos a provocar uma leitura do material sem que o tivéssemos ainda observado. O exemplo da "luta de classes" é bom para ilustrar esta situação. Poderíamos ser tentados, perante o foco da Voz do Povo nesse tema, a tipificar a priori as ocorrências de uma categoria de análise em modalidades que abrangessem um leque de situações típicas da luta de classes.

Consideramos ser mais respeitador do material definir as "modalidades" - as entidades implicadas no discurso dramático - à medida que vão ocorrendo, e incluí-las no processo analítico se, após o trabalho de agregação dos dados a que já nos referimos, a sua recorrência o justificar.

 

Análise dos dados

Não cabe no espaço deste artigo a apresentação dos dados e medidas estatísticas em que se baseou o processo de análise, numa perspectiva de complementaridade entre o quantitativo e o qualitativo, tanto mais que o seu propósito não é expor as conclusões do estudo de caso, mas antes um modelo de análise. Assim, apresentam-se de seguida as principais ideias que resultaram das várias etapas analíticas e, em conclusão, a forma como o estudo responde às funções da dramatização enunciadas como hipóteses.

Rótulos de codificação: reenquadramento das entidades que ofendem a visão binária

O rótulo assume uma importância decisiva na constituição da visão do mundo da Voz do Povo; podemos afirmar que é uma das formas mais regulares de o jornal construir esta visão. A comparação da utilização deste recurso na Voz do Povo e no Portugal Socialista confirma-o: 744 ocorrências no primeiro jornal contra 344 (valor corrigido) no segundo e 8 codificações por entidade rotulada no primeiro contra 4 no segundo.15 Esta última comparação revela como a caracterização dos actores sociais recorre mais aos rótulos na Voz do Povo.

(1) Campo político. Centralidade da falsidade do PCP. O PCP não só é a entidade mais rotulada (191 ocorrências, 25,7% do total), como assume um lugar central na utilização deste recurso, se lhe juntarmos entidades que o jornal apresenta como estreitamente ligadas ao partido: a sua ideologia, a UEC, os sindicatos ou sindicalistas, as acções de elementos do PCP. O PCP e estas entidades somam 302 ocorrências, 40,6% do total.

A ideia de falsidade do PCP e a oposição que lhe está implícita (falsos comunistas/verdadeiros comunistas) quase monopolizam a codificação do PCP e entidades a ele ligadas. O rótulo "revisionista", evocando uma corrente do comunismo que o jornal opõe à dos "verdadeiros comunistas", regista 66 ocorrências. O rótulo P"C"P, onde as aspas conferem explicitamente o estatuto de "falso" ao partido, regista 31 ocorrências. O adjectivo "falso" surge ele próprio em rótulos como: falsos comunistas ou falsos amigos do povo. O rótulo "partido burguês" (6) acentua a mesma falsidade.

Subjacente a esta oposição podemos ler uma outra, a que confronta sujidade e limpeza: as aspas do P"C"P, também usadas no rótulo P"S", seriam uma forma ortográfica ou semiológica de o jornalista não conspurcar os nomes comunista e socialista (interpretação que no entanto carece de aprofundamento).

Associação PCP-Álvaro Cunhal. Tomando o PCP por "o partido de Álvaro Cunhal", em 44 ocorrências, o jornal encontra mais uma forma de evitar designá-lo objectivamente comoPCP, e de assim o apelidar, ainda que pelo mero uso da sigla, de comunista. É afinal mais uma maneira de acentuar a sua falsidade. Há um número curiosamente elevado de formas de rótulos (17) que produzem esta associação, entre as quais "o partido de Cunhal"(a mais frequente), "Partido Cunhalista Português", "camarilha revisionista de Cunhal" ou "Cunhal & C.ª".

Forças de direita: fascistas. As entidades de direita, obtidas após a recodificação, são a direita ou forças de direita ou elementos de direita (e de extrema-direita), o CDS e a Juventude Centrista. Os rótulos que lhes são aplicados procuram claramente uma associação entre estas entidades e o anterior regime (um regime particularmente odiado no período pós-revolucionário) e as suas práticas violentas. É o rótulo fascista que se impõe com 20 de um total de 42 ocorrências. Os restantes rótulos confirmam a dureza do primeiro: "juventude nazi" (JC), "bando de assassinos", "bando terrorista", "canalha", "facínoras", etc.

Órgãos e forças do regime: burgueses. Mais importante é a codificação que se faz do regime e das suas instituições: Assembleia Constituinte, eleições, regime político vigente, lei ou tribunais, governo ou membros do governo, partidos da coligação governamental. O rótulo "burguês" quase monopoliza a codificação destas entidades. Trata-se da representação literal da visão marxista, segundo a qual os órgãos de soberania e as instituições políticas têm por função manter a burguesia como classe dominante.

UDP e forças revolucionárias: elementos conscientes. A valoração positiva no campo político incide normalmente sobre entidades do campo social que assumem funções políticas, como veremos através das oposições e associações binárias. Mesmo assim, a UDP ou elementos da UDP, as acções de elementos da UDP e a ideologia da UDP são rotuladas 29 vezes. Através dos rótulos "operários conscientes", "operários mais conscientes" ou "elementos conscientes" e do próprio rótulo "vanguarda", constatamos que o partido apoiado pelo jornal é apontado como a vanguarda consciente da classe operária, que tem como funções instruí-la e encorajá-la.

(2) Campo laboral. Rótulos concentrados nas entidades intermédias. Chamamos entidades intermédias àquelas entidades do campo laboral que não representam inequivocamente um dos dois campos que se opõem na visão do mundo da Voz do Povo: técnicos, quadros, encarregados, chefes, trabalhadores não combativos e trabalhadores que colaboram com o patrão. Constata-se que são estas entidades e não as que fazem parte dessa oposição binária que são objecto de codificação. Estas últimas (trabalhadores, povo e operários ou classe operária, patrões) simplesmente não são rotuladas.

A codificação das entidades intermédias é muito consistente, recorrendo sempre ao rótulo "lacaios" ou "lacaios do patrão" para as situar do lado do patronato. O tom de profundo desprezo deste rótulo é confirmado por outros, como "bufos" e "lambe-botas", no caso dos trabalhadores não combativos, e "cães de guarda do capital", "carrascos do povo", "gorilas do capital", no caso das chefias.

Traição dos sindicatos e sindicalistas. 13,7% das ocorrências (totalizando 102) de rótulos reportam-se a entidades do campo sindical, o que revela a importância da codificação na representação deste campo. Apontam-se aos sindicatos dois níveis de "traição": por um lado, a não participação dos sindicatos ou sindicalistas em acções de luta; por outro, a pertença destes ao "inimigo de classe". A traição pode ler-se como uma manifestação da falsidade apontada ao PCP.

A codificação das linhas sindicais em confronto constitui uma ocasião de as explanar. O principal visado neste jogo é, previsivelmente, o "sindicalismo vertical" apoiado pelo PCP e a Intersindical, designados por "caldeirada de classes", que o jornal opõe ao "sindicalismo de classe".

De entre uma mole de 744 rótulos sobressai o facto de não serem codificados os protagonistas clássicos da visão binária da luta de classes: povo, trabalhadores, classe operária, patrões, burguesia. São codificadas outras entidades: o PCP (a entidade mais rotulada); os sindicatos; as camadas intermédias (chefes, encarregados, técnicos e quadros, profissionais liberais); a direita; as instituições políticas vigentes (governo, eleições, parlamento). Estas entidades são apresentadas como pertencendo ao campo da burguesia apesar de provavelmente não lhe pertencem na perspectiva das representações sociais dominantes.

Assim, os rótulos, com a sua natureza valorativa, simplificadora e por vezes caricatural, assumem uma função de "correcção", de reenquadramento destas entidades no seio da visão binária que se pretende impor no espaço das representações sociais. Por outras palavras, constituem uma subversão da ordem simbólica, uma reacção às categorias de apropriação da realidade que, contrariando a visão binária defendida pelo jornal, ameaçam impor-se como representações sociais.

Relações de oposição e associação binárias: politização do conflito social/laboral

Considerando que as funções de uma entidade no sistema são dadas pelo sentido das relações que ela estabelece com as outras entidades, a análise das associações e oposições binárias - como a dos rótulos de codificação - conduz-nos a essas funções e, através da descodificação dessa estrutura de relações, à (re)constituição do espaço simbólico definido pelo jornal.

Dois dados fundamentais - porque estruturantes da visão do mundo do jornal - sobressaem da análise da figura 1 e dos dados que lhe deram origem:

· a centralidade do campo social/laboral em relação aos outros campos;

· a larga predominância das relações de oposição binária sobre as relações de associação, revelando uma visão da realidade centrada no conflito.

 

Estes dois dados, associados, configuram um centramento da estrutura de relações na luta de classes, o que é confirmado pela quase ausência de oposições binárias no campo político e ideológico. De todas as relações de oposição, 65% constituem oposições directas entre duas entidades do campo social/laboral. Além disso, as relações estabelecidas pelas entidades do campo político são em larga medida de associação.

As entidades do campo político definem-se assim como "entidades de suporte" do verdadeiro confronto, que se joga no campo social/laboral: a "luta frontal classe contra classe", expressão recorrente no corpus e claramente ilustrada na figura 1.

O vazio que se regista na área superior direita da figura, ou seja, a ausência de entidades políticas/ideológicas e militares/policiais positivamente valoradas, não nos pode levar a concluir que a dimensão política está ausente do espaço simbólico do jornal. Pelo contrário, encontramos nestes dados uma profunda "politização" do campo social/laboral, de resto perfeitamente coerente com a visão do mundo marxista.

Um outro efeito muito interessante e significativo é a ausência quase total de relações entre entidades do mesmo campo igualmente valoradas. As entidades do conjunto latifundiários-sindicatos-capitalistas-patrões-burguesia não apresentam associações significativas entre si, o mesmo para os conjuntos Governo-PCP-direita, forças policiais-MFA-PIDE, UDP-extrema-esquerda e explorados-camponeses-trabalhadores-operários-povo. Mesmo as 4 associações entre operários e camponeses são insignificantes ao pé das 61 relações que estas duas entidades estabelecem.

Este facto tem a seguinte leitura: se repararmos que em certos casos (como os grupos trabalhadores-operários ou burguesia-patrões-capitalistas) as relações de oposição e associação estabelecidas são praticamente semelhantes, achamo-nos perante uma situação de identidade entre as entidades, ou pelo menos de indistinção funcional. Por outras palavras, o facto de uma entidade não se poder relacionar consigo própria explicaria a referida ausência de relações. Estaremos pois perante mais uma manifestação do carácter binário da ideologia marxista apontado por Charlot (1974).

Sentimentos: mobilização do espaço afectivo para a luta de classes

Procedeu-se a uma recolha de todas as nomeações de sentimentos do corpus e de seguida à sua agregação em campos semânticos, de modo a obter valores estatisticamente mais significativos. Levando à perda do valor semântico específico de determinados sentimentos, a constituição de campos semânticos, em número de 38, era essencial para uma análise estatística credível. Para dar dois exemplos, o campo semântico vontade reuniu os sentimentos "ambição", "anseio", "aspiração", "desejo", "vontade" e o campo semântico medo reuniu os sentimentos "alarme", "horror", "intimidação", "medo", "pânico", "receio" e "terror".

Procedemos a uma análise comparativa de um conjunto de frequências e rácios obtidos para os dois jornais e a uma análise mais detalhada de todos os sentimentos cuja frequência relativa fosse pelo menos 5% do total de ocorrências.16 Tratando-se de duas variáveis (sujeito e objecto), as tabelas cruzadas foram suficientes para captar a totalidade do sentido dos dados para cada sentimento. Eis as funções mais interessantes que identificámos em resultado da análise:

Alimento afectivo da luta de classes. Usamos esta metáfora para designar a função de representação do reforço do processo de luta de classes através de sentimentos de coesão de classe (solidariedade) e de motivação interior (vontade e confiança). Estes três sentimentos, totalizando 29% das ocorrências, dão conta do peso quantitativo desta função.

A solidariedade (23) não é utilizada enquanto forma de compaixão para com as entidades vitimizadas, mas sim como alimento afectivo da luta política e laboral, uma vez que são as entidades que representam essa luta os seus objectos (luta laboral de trabalhadores, operários e classe operária, trabalhadores). A mesma função pode ser atribuída ao sentimento vontade(22). A expressão "vontade do povo", de objecto indefinido, é a que contribui mais para o total de ocorrências, e surge como uma justificação, um motivo para as acções de luta política e laboral, legitimadas assim pela necessidade de "respeitar a vontade popular". Com um fraco suporte empírico, resultado da dispersão, nas 19 ocorrências do binómio sujeito/objecto, podemos mesmo assim dizer que o sentimento de confiança desempenha a função identificada para os anteriores.

Radicalização da oposição burguesia/proletariado. Alguns sentimentos procuram enfatizar o carácter conflitual da oposição burguesia/proletariado; a sua utilização revela uma mobilização do espaço afectivo para a representação da violência do conflito.

Desde logo o sentimento mais nomeado, o medo (30), pressupõe uma ameaça e uma situação de violência. Os binómios sujeito/objecto de medo são constituídos invariavelmente por entidades opostas nos campos em confronto na visão do jornal. O desprezo (18) é outro sentimento com um peso relativamente forte e exprimindo uma relação de forte antagonismo. Tal como o medo, é evocado nos dois sentidos: são sujeitos de desprezo entidades negativamente valoradas (do campo da burguesia), mas também entidades positivamente valoradas. A matriz de relações sujeito/objecto de ódio revela-nos que este sentimento define a relação entre o campo revolucionário e a direita: todos os sujeitos de ódio pertencem ao campo do proletariado, sendo as entidades mais odiadas a direita, as forças policiais e a burguesia.

Vitimização e apelo à revolta. Há um conjunto de utilizações dos sentimentos de medo, desprezo e revolta em que encontramos a função de vitimização das entidades do campo do proletariado. Refira-se que esta função tem por sua vez o valor de denúncia e constitui um apelo à revolta ou à reacção do leitor por via do empenhamento político.

Em 12 ocorrências, o medo tem como sujeitos operários, trabalhadores e povo. Dos respectivos objectos, destacamos a direita (temida pelo povo), o governo (pelos trabalhadores) e os sindicatos (pelos operários). A quase totalidade das relações de desprezo encontra também como vítimas os trabalhadores e o povo. São ainda estas duas entidades a destacar-se como sujeitos de revolta, que se pode incluir nesta função, na medida em que constitui a representação da reacção às situações de injustiça, exploração ou repressão.

Força das entidades combativas do campo revolucionário. Através dos sentimentos medo e coragem, apresentam-se duas entidades - a UDP e operários ou classe operária - como o reservatório de força da revolução ou o seu "motor". São eles, e não o povo ou os trabalhadores, os sujeitos de coragem e os objectos de medo.

Sentimentos: conclusões adicionais

· Exprimindo os sentimentos uma relação sujeito-objecto, eles permitem-nos testar a estrutura de relações entre as entidades que identificámos através do estudo das oposições binárias e dos rótulos de codificação. Tendo a quase totalidade das ocorrências agentes da luta de classes como sujeito e objecto, podemos falar de mobilização do espaço afectivo para esta causa e dos sentimentos como um cimento que consolida a posição relativa dos mesmos agentes no espaço simbólico e confirma a posição central da luta de classes.

· Concluímos ainda que a mobilização do espaço afectivo para a luta de classes assume duas vertentes: a dos sentimentos negativos, que tende a enfatizar a oposição burguesia/proletariado; e a dos sentimentos positivos, que representa o reforço por via afectiva do campo do proletariado ou, em certos casos - arriscamos dizê-lo -, a materialização afectiva do conceito de consciência de classe.

· A realidade social noticiada, profundamente conflitual, é racionalmente descodificável à luz da visão do mundo marxista, e constata-se que essa forma racional de ler a realidade, encenada no espaço noticioso, não está dependente do recurso aos sentimentos. Este facto explica uma relativamente escassa presença de sentimentos no corpus.

Enfatização: apelo afectivo a três fases da luta

A enfatização, ao conferir intensidade e importância a um objecto, tem a função de captar a atenção, não por via racional ou retórica, mas por via de um envolvimento emocional do leitor. Pode também servir para justificar a escolha de um tema que não cumpra os requisitos de noticiabilidade, os clássicos (excepção, falha, inversão) ou os prescritos aos jornalistas da Voz do Povo. Refira-se que o contexto estruturalmente enfático dos discursos dificultou a recolha de dados, ao retirar visibilidade às ocorrências.

A Voz do Povo regista o dobro das ocorrências de enfatização do Portugal Socialista. 570 ocorrências no primeiro caso, 295 (valor corrigido) no segundo. Por outro lado, depois de recolhidos e agregados os dados, constatamos que o discurso enfático da Voz do Povo incide sobre quatro grandes temas ou objectos de enfatização: denúncias; luta; situação do povo; hostilidade.

Denúncias. 43% das ocorrências de enfatização (247) são denúncias. Eis dois exemplos de denúncias enfatizadas: "a imprensa inunda páginas e páginas à volta do MRPP" - neste caso denunciam-se os órgãos de comunicação social de forma enfática, com recurso às figuras da repetição, da metáfora e da metonímia ("a imprensa"); "há os que nada fazem e que são doutores" - aqui denuncia-se enfaticamente a situação privilegiada dos quadros. O principal visado das denúncias enfatizadas é o PCP, ouelementos do PCP, que, em conjunto com as denúncias de sindicatos ou sindicalistas, soma 94 ocorrências, seguindo-se a direita ou elementos da direita (47) e os patrões (33).

Formas de enfatização da luta. A centralidade e o investimento afectivo em torno do tema da luta de classes está patente também na análise da enfatização: 243 ocorrências (42,6% do total) têm como objecto a luta; normalmente, enfatiza-se a necessidade de empreender a luta ou a dureza da luta em curso.

Em certas ocorrências de enfatização da luta apela-se mesmo a uma crença enfatizada por via emocional, ou seja, à fé. No exemplo "o princípio que vai incutir no espírito dos operários mais tímidos e duvidosos a certeza inabalável da força da CLASSE OPERÁRIA", a "confiança" ganha o estatuto de "certeza inabalável", e a entidade é situada num plano superior (sacralizada?) por via da caixa alta.

O próximo exemplo, referente ao despejo de populares que ocupavam uma casa rural, revela o mesmo apelo:

Tocaram-se os sinos, vieram os que estavam no campo - e os guardas foram obrigados a ir-se embora, sem terem cumprido as ordens dos fascistas, porque o povo se lhes opôs, com determinação.

Aqui a polissemia do toque do sino (que apela à reunião da população em torno da igreja em situações de crise ou à hora da missa) parece-nos ser aproveitada para sugerir a entrega espiritual à luta. A notícia omite os pormenores do afastamento dos guardas, que assim parece acontecer pelo simples efeito mágico da reunião do povo, desencadeada pelo toque do sino.

Um número significativo de ocorrências (43) refere-se à orientação pragmática da luta ou acções de luta. São os casos da enfatização da "necessidade de estar alerta" e da "necessidade de evitar formas erradas de luta".

Injustiças sociais e hostilidade do povo ou dos trabalhadores. 39 situações de enfatização têm por objecto a situação do povo ou dos trabalhadores. Ao enfatizar-se injustiças sociais (13), situações de miséria do povo (11) e exploração dos trabalhadores (13), está-se a denunciar a culpa do próprio regime capitalista e a provocar, mais uma vez, o "ódio de classe". Outra forma de representar e conferir visibilidade a este sentimento é a enfatização de situações de hostilidade do povo ou trabalhadores (24) contra entidades como a direita ou as forças policiais.

Enfatização: conclusões adicionais

· Se categorias de análise como os rótulos de codificação, associações/oposições binárias e sentimentos nos elucidam acerca da estrutura do espaço simbólico definido pelo jornal, a enfatização mostra-nos a forma emotiva e intensa como são transmitidas ao leitor as várias fases do processo de luta de classes: primeiro, a situação do povo e a sua denúncia; segundo, a hostilidade gerada pela fase anterior; finalmente, a luta resultante dessa hostilidade. Procura-se que este processo, baseado na trilogia denúncia-hostilidade-luta, seja apreendido de forma emotiva pelo leitor, gerando nele uma reacção que conduza ao conflito contra as instituições sociais e políticas, retratadas de forma profundamente negativa. Podemos falar de um inculcamento da "consciência de classe" por via afectiva.

· O grande peso da enfatização das denúncias (um dos pilares da práxis revolucionária leninista), revelando, a par das nomeações, o pendor acusatório do discurso do jornal, mostra que este trabalho de agitação política é levado a cabo através de formas discursivas dramáticas.

Vitimização: um meio de apelo à revolta

A vitimização, situação explorada extensivamente no discurso da Voz do Povo, ao contrário do que sucede no jornal do PS, permite suscitar a revolta do leitor e o seu "ódio de classe".

Ao contrário de outras categorias de análise, em que a análise factorial das correspondências múltiplas foi tentada sem resultados conclusivos - o que se terá ficado a dever ao facto de estarmos perante somente duas ou três variáveis -, no caso da vitimização esta técnica resultou eficazmente. Permitindo-nos identificar os factores que determinam a covariação das três variáveis definidas (vítima, tipo de agressão, agressor), ela leva-nos a identificar tipos de agressão/vitimização coerentes, reconhecíveis nos grupos de modalidades revelados pelos planos factoriais.

 

Os principais factores identificados são:

· Factor 1: oposição entre situações de vitimização no campo político e no campo laboral;

· Factor 2: oposição entre situações de vitimização conjunturais (relativas à luta política) e estruturais (relativas à natureza do regime capitalista);

· Factor 3: oposição entre situações de vitimização no campo militar e no campo partidário e ideológico.

A disposição destes factores em dois planos (1-2 e 2-3) permite-nos identificar três grupos que constituem as três formas de vitimização exploradas pelo jornal:

· Grupo 1: vitimização no campo da luta política imediata. Este grupo, contribuindo decisivamente para a definição dos factores 1 e 2, refere-se ao contexto da luta política quotidiana, que tem como intervenientes a UDP ou elementos da UDP, a extrema-esquerda e soldados (enquanto vítimas) e os militares de direita, forças policiais e PCP ou elementos do PCP (enquanto agressores). Os tipos de agressão que os relacionam são a violência física, a repressão e assassinatos. É o factor 3 que clarifica estas relações, ao operar uma divisão deste primeiro grupo em dois subgrupos: um relativo à vitimização de carácter militar e um que caracteriza a vitimização de carácter político e ideológico.

· Grupo 2: vitimização no campo laboral. É um conjunto de relações vividas no seio das empresas, em que trabalhadores e operários são vítimas de exploração, ameaça de despedimentos, despedimentos e más condições de trabalho, perpetrados por uma só entidade, os patrões. Compreensivelmente, a posição das entidades do grupo é neutra em relação ao factor 2, já que se encontra no meio-termo entre a violência política e a opressão imposta pelas estruturas socioeconómicas.

· Grupo 3: vitimização de longo termo, imposta pelo regime capitalista. Este grupo é formado pelo povo e camponeses (esta modalidade com um peso muito fraco) como vítimas de miséria, opressão e más condições de habitação, impostos pelo capitalismo ou capitalistas, latifundiários e autoridades municipais. Note-se que as vítimas deste tipo de agressão, relativa às estruturas socioeconómicas, são as entidades retratadas como passivas ao longo do corpus.

Nomeação: extensa lista de denúncias

A análise da nomeação de pessoas no corpus permite-nos o apuramento das personagens antropomórficas. Por outro lado, as características do jornal e da matéria noticiável proporcionam o aproveitamento de cada nomeação para efectuar uma valoração positiva ou negativa, situação que, nas 649 ocorrências de nomeações, conhece apenas 16 excepções. É por isso pertinente a decomposição da categoria de análise nas variáveis "pessoa nomeada", "entidade de pertença" e "sinal da valoração", e a divisão desta última nas modalidades "valoração positiva", "valoração negativa" e "valoração de sinal indefinido".

A disparidade entre nomeações positivas e negativas é enorme em ambos os jornais, mas em sentido rigorosamente inverso. A Voz do Povo apresenta 521 nomeações negativas e apenas 112 nomeações positivas. O Portugal Socialista apresenta 404 nomeações positivas e 79 nomeações negativas. Curiosamente, há nos dois casos uma disparidade de 5 para 1 entre as duas valorações, mas em sentido inverso.

Total disciplina ideológica. Uma primeira constatação é a radical disciplina ideológica dos jornalistas da Voz do Povo, na medida em que o sinal das nomeações individuais depende em 100% dos casos da posição da entidade de pertença da pessoa nomeada no palco bipolar da luta de classes. Esta situação está longe de se verificar no corpus do jornal do PS.

Denúncias pela nomeação ou revelações políticas. No caso da Voz do Povo, estamos perante uma extensiva utilização da denúncia pela nomeação, que incide na maior parte dos casos sobre o campo social/laboral. Trata-se da "revelação política" prescrita por Lenine aos propagandistas e tem a função de identificar os inimigos perante os trabalhadores, "apontá-los a dedo": quem são, onde estão, o que fizeram.

Estamos também perante uma prática de personificação dos atributos negativos da visão marxista da sociedade capitalista, conferindo-lhes uma forma visível e humana e permitindo a concentração do "ódio de classe" em pessoas. Normalmente, o redactor recorre ao nome pelo qual o nomeado é conhecido localmente, de modo a permitir uma fácil identificação, como no exemplo:

Na actualidade os gerentes Barros e Fernando Pereira estão "pastando" na Alemanha a convite da Bosch deixando o controlo da empresa aos seus fiéis colaboradores Nogueira e Paiva, sendo este último proprietário de uma empresa de assistência na Covilhã, subsidiária da própria Carlar.

Vilões e heróis. Agrupando as ocorrências não por entidade de pertença dos nomeados mas apenas pelas próprias pessoas nomeadas, notamos que, à dispersão de nomeações no campo social/laboral - relativa à denúncia de uma grande variedade de situações laborais e sindicais -, corresponde uma concentração das nomeações no campo político nas pessoas de Álvaro Cunhal e de alguns militares de direita (principalmente Spínola e Galvão de Melo). Procura-se assim concentrar a hostilidade dos leitores num número reduzido de personagens, que são eleitos como os representantes antropomórficos da "burguesia" (Cunhal) e do "fascismo" (Galvão de Melo e Spínola).

As nomeações positivamente conotadas, ainda que muito minoritárias, revelam um aspecto curioso: a concentração das ocorrências em três personagens que se constituem como símbolos da luta nos três grupos sociais de referência da revolução proletária: operários, camponeses e soldados. São, respectivamente: Horácio dos Santos, operário metalúrgico vítima de exploração que congregou um movimento de solidariedade (8); José Diogo, camponês que matou um latifundiário e viria a tornar-se uma causa da "justiça popular" (19); e Joaquim Luís, o soldado do RAL-1 morto durante o 11 de Março (3). Procura-se assim encontrar, para cada uma destas entidades sociais, uma personagem referencial (um "herói"), que deverá constituir um factor de mobilização.

Metáforas: uma alegoria da guerra

Partimos mais uma vez de uma enorme disparidade entre os dois jornais. Enquanto no corpus da Voz do Povo encontramos 326 metáforas e sistemas metafóricos elaborados, no corpus do Portugal Socialista há apenas 95 ocorrências (valor corrigido). Além da função de simplificação do discurso, inerente à própria definição de metáfora e muito importante no caso em estudo, pudemos detectar outras através da análise da relação entre os tipos de metáfora e os seus objectos.

Metáfora da luta e alegoria da guerra: transporte para a verdade. Na Voz do Povo predomina a metáfora da luta, com 143 ocorrências (43,9% do total). As situações noticiadas são descritas através de metáforas relativas à luta verbal, luta física, repressão policial, armas, massacres e guerra. Sendo a luta de classes o centro da cosmovisão marxista, a utilização extensiva desta metáfora dá-lhe visibilidade e de certo modo cumpre a função de "situar a verdade ao nível da luta de classes".

Entre as metáforas de luta, predomina a relativa à guerra, quer em termos quantitativos (91) quer na riqueza e coerência com que é empregue para descrever a realidade. De tal modo que podemos falar de alegoria da guerra: um cenário feito de manobras, avanços, batalhas, frentes de combate, trincheiras ou sabotagens.

Podemos estar perante uma estratégia simbólica informada, já que a teoria leninista diz que a luta de classes é uma necessidade de tipo militar e deve ser conduzida como uma guerra (Quintero, 1993).

Metáfora do corpo: personificação de entidades; representação de coesão, de um instrumento de acção e de poderes. O jornal recorre a esta metáfora com muita frequência (72), e por via dela representa - e assim personifica - as entidades que constituem a sua visão do mundo. As metáforas utilizadas para designar trabalhadores, operários e povo são quase só metáforas do corpo, o que diz bem do esforço de personificação destas entidades. Nestes casos, o corpo humano representa ou um instrumento de acção ou a própria coesão da entidade, como quando se exortam trabalhadores a serem um "corpo sólido que não embarque em manobras".

Também as entidades negativamente valoradas são frequentemente personificadas por este meio. Eis dois exemplos:

a reacção não é uma invenção mas uma coisa muito real, de carne e osso, que no Alentejo se chama "latifundiário".

Os revisionistas levantam uma pedra que acabará por lhes cair em cima.

A metáfora do corpo é desenvolvida através da representação de partes do corpo, principalmente o cérebro, as mãos e os olhos. As entidades são assim apresentadas como organismos, dotados de órgãos com funções específicas, neste caso tipos de poder específicos. As partes do corpo mais metaforizadas pelo jornal representam nomeadamente três tipos de poder: o poder de pensar, chefiar e decidir ("o cérebro que o comandou… esse cérebro chama-se burguesia"), de controlar a acção no terreno ("o dedo que apertou o gatilho"), e de estar atento e vigilante ("tapam os olhos à classe operária").

Metonímia entre factos noticiados e a sua explicação histórica

Trata-se, como já referimos, de um processo de identificação entre o particular relatado na notícia e o geral, entre o concreto e o abstracto, entre o efeito e a causa. O recurso a este tipo de metonímia permite dar uma inteligibilidade teórica aos factos da realidade social e política e desse modo impor uma ideologia.

Perante a complexidade da estrutura das ocorrências, optámos por uma abordagem mais qualitativa, que salvaguardasse a riqueza semântica de cada caso. Esta metonímia reveste-se de duas formas: 1) a explicação/identificação, processo preconizado por Lenine, em que o facto é um mero pretexto para expor a ideologia, é a face aparente da verdade, que se situa ao nível da explicação histórica; e 2) a lição, consistindo esta fórmula na conclusão da notícia com "a lição que se extrai" dos factos, o que também permite expor a ideologia.

Em 124 ocorrências, 58,1% referem-se a situações que classificámos de "luta laboral", 29% de "luta política" e 12,1% de "luta sindical". Ou seja, o tema da luta de classes monopoliza também a utilização da metonímia.

Entidades colectivas, grandes conceitos, princípios de acção. Como já foi referido, concorre significativamente para a metoníma a identificação entre entidades individuais e colectivas: um grupo de operários ou trabalhadores é chamado "a classe operária"; empresários, o governo ou uma direcção sindical são frequentemente "a burguesia"; um grupo de camponeses ou de manifestantes é "o povo" ou "as massas populares".

Ela produz-se também com o recurso a grandes conceitos abstractos aplicados aos factos. Por exemplo, a atitude persecutória do chefe de uma cooperativa é "capitalismo puro e simples". De entre os conceitos teóricos que desempenham estas funções, destacam-se o capitalismo/capital, o fascismo e o imperialismo.

Finalmente, a técnica da metonímia é usada para se definirem princípios de acção, dos quais se destacam a importância da unidade dos trabalhadores como condição indispensável das suas vitórias, a importância da consciência de classe e o papel da vanguarda revolucionária na condução das lutas.

Em suma, a metonímia entre factos noticiados e a sua explicação constitui uma encenação, através da práxis, de grandes princípios teóricos. Um processo que incorre no terreno onde o leitor se move para o envolver emocionalmente e conduzir aos princípios doutrinários defendidos pelo jornal.

Metonímia entre o jornal e o povo através do recurso à linguagem popular: opção de classe verbal

Constata-se que o recurso ao calão ou a códigos tipicamente populares é significativo na Voz do Povo (125 ocorrências), por oposição ao Portugal Socialista, onde detectámos apenas 8 ocorrências com as mesmas características.

Também ao contrário do que se passa no Portugal Socialista, a escrita dos jornalistas da Voz do Povo revela uma notável correcção verbal e gramatical, um habitus verbal próprio de camadas sociais mais "cultas". Informações que recolhemos junto de pessoas então ligadas ao jornal confirmam que a redacção era composta por alguns jornalistas com um "nível cultural" elevado, provavelmente não oriundos de um "proletariado" com acesso limitado à escolaridade.

Estes factos levam-nos a pensar que, recorrendo à linguagem popular, os jornalistas estão a assumir uma "opção de classe", mais particularmente uma opção de classe verbal.

A opção de classe verbal é recomendada expressamente, noutros termos, no "Guia do correspondente", quando se diz:

Os correspondentes devem ter a preocupação de transmitir à redacção a maneira de falar do povo. E, quando se tratar de correspondentes operários e camponeses, deverão também preocupar-se em escrever a notícia tal como se estivessem a contá-la de viva voz, sem a preocupação vulgar de "escrever bem".

Cabe referir que a opção de classe - verbal ou não - é um acto em certa medida teatral, já que o seu sujeito recusa facetas marcantes da sua natureza envolvendo-o numa representação. A irrepreensível correcção verbal do excerto do "Guia do correspondente" que acabámos de transcrever é um excelente exemplo desse contraste, que acompanha o texto de muitas das notícias analisadas.

 

Conclusões do estudo de caso

A partir da análise desenvolvida podemos esboçar uma reconstituição da visão do mundo do jornal, encenada através do seu espaço noticioso, e dizer de que formas essa visão se transmite através de um discurso dramatizado. Isto permite confirmar ou infirmar as funções inicialmente propostas como hipóteses, identificar outras funções simbólicas reveladas pela análise e levantar novas hipóteses, a desenvolver em trabalhos posteriores.

Luta pela imposição de uma visão do mundo centrada na luta de classes e pela sua visibilidade

O discurso dramatizado da Voz do Povo elabora uma encenação coerente e disciplinada de um enredo centrado na luta de classes, característico da cosmovisão marxista, lutando deste modo pela sua imposição no espaço simbólico. Todas as categorias de análise confirmam esta centralidade, que parte dos próprios critérios de noticiabilidade patentes na estrutura temática do corpus. Esta luta procura, através dos meios dramáticos, a visibilidade social desta visão.

As oposições e associações binárias revelam-nos uma visão profundamente conflitual, um conflito social e político protagonizado por entidades dos campos social e laboral, que substituem as entidades do campo político e ideológico. A análise da relação entre sujeitos e objectos dos sentimentos confirma estas posições, consolidando-as, e revela uma mobilização do espaço afectivo para a visão da luta de classes. Uma consolidação também operada pela relação vítima-agressão-agressor nas relações de vitimização estabelecidas.

Os rótulos de codificação, sistematicamente utilizados, revestem-se de um papel importante na composição da representação da sociedade, ao incidirem, dum modo que poderíamos classificar de meticuloso, apenas sobre as categorias de apropriação do real que ao nível das supostas representações sociais ofendem a visão que se pretende impor.

As metonímias de situar a verdade dos factos noticiados ao nível da sua explicação histórica e de tomar entidades individuais por entidades colectivas são um meio discursivamente poderoso de explicitar a referida visão do mundo, de transformar o espaço noticioso numa apresentação tanto de um programa de acção política como de uma ideologia coerente. As metáforas também colaboram nesta luta simbólica, por via da representação da luta de classes, através de um sistema metafórico baseado na terminologia militar, a que podemos chamar uma alegoria da guerra.

Uma tal visão, caracterizada pela conflitualidade constante entre as personagens, confere ao discurso dois atributos essenciais do dramático: uma permanente tensão e uma forte concentração da acção no enredo da luta de classes.

Vias dramáticas de agitação política

A função de agitação política é preenchida por vários níveis do discurso dramatizado. O mais significativo talvez seja o seu pendor acusatório, consubstanciado na prática de denúncias. Esta prática quase monopoliza as nomeações de pessoas, é um dos principais objectos de enfatização e uma das traduções imediatas da representação insistente da vitimização.

O discurso enfático da Voz do Povo concentra-se na função de agitação política. De facto, os três principais objectos de enfatização constituem uma forma discursiva de agitação estruturada em três fases do processo de luta de classes: denúncia, hostilidade e a própria luta, cada fase gerada pela anterior. As palavras de ordem, que rematam a maior parte das notícias, são outra forma de enfatização que procura a agitação política.

A própria estruturação de relações que o jornal define entre as entidades, com base nas oposições binárias, recorre à agitação política, por um lado, ao caracterizar-se por uma profunda conflitualidade e, por outro, ao situar simbolicamente no campo político os conflitos sociais e laborais.

Mobilização do espaço afectivo para fins ideológicos

Trata-se de uma função do discurso dramático no jornalismo doutrinário que podemos agora formular como hipótese: este tipo de jornalismo utilizaria o discurso dramático para situar os sentimentos do leitor/espectador numa situação de reforço de um dispositivo ideológico.

Como vimos pelo estudo das relações sujeito/objecto dos sentimentos, os dois jornais colocam-nos ao serviço de funções simbólicas claramente identificáveis e enquadráveis nesse dispositivo. No caso da Voz do Povo, eles permitem consolidar as posições relativas de oposição ou associação das entidades que definem o espaço simbólico. Podemos falar de mobilização do espaço afectivo quando a totalidade dos sentimentos evocados se refere ao elemento central do dispositivo: a luta de classes.

No caso do Portugal Socialista, estamos perante uma mobilização ainda mais intensa do espaço afectivo, já notada por Madalena Matos (1992) no discurso do PS de então, também para fins ideológicos. De facto, os sentimentos são uma presença quase constante no discurso do jornal, onde assumem o valor de explicação de múltiplos aspectos da ideologia de consenso e pacificação exposta nesse discurso.

"Comment is sacred, facts are free"

O jornalismo doutrinário incorre numa situação de ambiguidade, quando confronta a pretensão de objectividade, reclamada também por este tipo de jornalismo, com a exposição de uma visão do mundo perfeitamente enquadrada ideologicamente. E constatamos que a dramatização constitui uma resposta a esta ambiguidade. No espaço da notícia, assim marcado pelo choque de dois constrangimentos de produção jornalística, o redactor pode dispor factos noticiáveis, objectivos, verdadeiros, num palco simbólico pré-concebido com base na ideologia, a que chamamos "visão do mundo", e desenvolver a narrativa como se se tratasse de um drama. A concentração da acção, a tensão entre as personagens, a intensidade do enredo, criando a ilusão de realidade ou "ilusão dramática", asseguram o desempenho das funções políticas próprias de um jornal ideológico, sem macular a verdade e a objectividade dos factos.

Em 1926, o jornalista do Guardian Charles Scott fez uma afirmação que seria uma das referências da ideologia da objectividade: "comment is free but facts are sacred". Pela análise que levámos a cabo, concluímos que a norma que guia o discurso dos jornais doutrinários constitui uma inversão desta frase: comment is sacred, facts are free; ou seja, os factos são pretextos para a promoção, por via dramática, de uma ideologia e de um programa de acção.

Notas

1    Tornado meta-acontecimento, segundo Adriano Duarte Rodrigues, 1988.

2    "Autores como Horkheimer, Adorno e Habermas, da escola de Frankfurt, Ellul, Bourdieu, Baudrillard ou Althusser negaram, cada um a seu modo, esse suposto grau zero da escrita de imprensa (…). Interrogaram esse conceito idealista de jornal como inocente ‘espelho da realidade’; de jornal ou de jornalista convertido(s) numa espécie de satélite, pairando sobre o mundo, capaz(es) de tudo captar, com o seu olhar panóptico, e de tudo transmitir sem reelaboração nem constrangimentos" (Mesquita e Rebelo, 1994: 115).

3    Refira-se que a acção, ou a acção teatral, não define por si só o drama: efectivamente, ela é comum a outros géneros literários, como a lírica e o romance (Hamburger, 1986).

4    "O drama (…) procura representar também a totalidade da vida, mas através de acções humanas que se opõem, de forma que o fulcro daquela totalidade reside na colisão dramática" (Silva, 1969: 245).

5    Leia-se o "Estatuto editorial", o "Estatuto do correspondente" e, principalmente, o "Guia do correspondente".

6    "A essência da metáfora é permitir compreender alguma coisa em termos de outra coisa" (Meunier, 1995: 227). Para Shaw, metáfora é uma "Figura de retórica pela qual, em referência a uma pessoa, uma ideia ou um objecto, se emprega uma palavra ou uma frase que não lhe é literalmente aplicável" (Shaw, 1978: 296).

7    "(Alegoria): Método de representação em que uma pessoa, uma ideia abstracta ou um determinado facto nos aparece como aquilo que realmente é e também como alguma coisa diferente. A alegoria pode definir-se como uma metáfora desenvolvida (…)" (Shaw, 1978: 22).

8    "O representante não existe enquanto tal, a não ser pela investidura que recebe do grupo, este por sua vez, não existe como conjunto unificado a não ser que um representante incarne e materialize a identidade de grupo" (Abélès, 1995: 110).

9    Naquele que consideramos ser o trecho mais significativo a este respeito, lê-se: "(os correspondentes) são os olhos e os ouvidos do jornal que chegam a todo o lado - à mais pequena empresa, à mais pequena repartição, à mais pequena aldeia" ("Guia do correspondente").

10    "Uma greve, uma guerra, um escândalo político, constituem boas ocasiões, mas na maior parte das vezes é a partir de pequenos acontecimentos, dos mais concretos, que a demonstração consegue chegar até à causa. " (idem, ibidem)

11    As formas objectivas de enfatização do discurso que a seguir definimos evitam a noção de "exageramento" proposta por Babin (1993).

12    Esta abordagem analítica afasta-nos em grande medida das abordagens lexicológicas, que procedem à recolha sistemática de palavras, respectivas formas e contextos. Por outro lado, ela aproxima-nos da noção de valor, introduzida por Saussure no Curso de Linguística Geral. Quando Wittgenstein diz "não procurem o sentido duma palavra, procurem o uso que dela se faz" (citado por Maingueneau, 1976), ele pretende notar que as palavras não têm um sentido único, assumindo valores diferentes para cada contexto em que são empregues, para cada emissor e para cada receptor.

13    A linguística tende a abordar o discurso segundo a lógica própria da língua e não enquanto produção social, o que coloca dificuldades de relacionamento entre esta disciplina e outras ciências sociais, inclusive ao nível das técnicas de análise.

14    "Tudo se passa como se se admitisse que o discurso não é determinado nem governado senão por si próprio, e sobretudo que é ele próprio a chave da sua inteligibilidade" (Memmi, 1986: 14).

15    A comparação das frequências absolutas de ocorrências num e noutro corpus obriga a fazer equivaler a sua dimensão. O rácio de correcção obtido, através do critério que nos pareceu mais correcto - o número de palavras - e aplicado só para efeitos de comparação ao Portugal Socialista, é 1,4104.

16    Foi motivador o facto de a utilização dos sentimentos pela Voz do Povo ser escassa (cerca de um terço) em relação à sua utilização pelo Portugal Socialista, uma vez que ele contraria a pressuposição de que haverá uma "maior" dramatização por parte da Voz do Povo.

 

 

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*Pedro Diniz de Sousa. Mestre em "Sociologia Aprofundada e Realidade Portuguesa", pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde exerce a sua actividade. E-mail: pedro.sousa@fcsh.unl.pt

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