Esta entrevista surge a propósito da tradução para português do livro mais emblemático de Daniel Bertaux - Le récit de vie1 - que o tornou reconhecido internacionalmente e que já vai na sua quarta reedição. A sua ligação a Portugal não é recente e tem-se refletido na participação em diversas conferências, inclusive no XI Congresso Português de Sociologia em 2021.2
Daniel Bertaux nasceu no ano em que foi declarada a II Guerra Mundial. Esta e outras guerras constituíram marcos importantes na sua biografia. Ao longo da entrevista, vamos percebendo quais foram os pontos de viragem na sua vida [da engenharia à sociologia] e de que forma a história política e social [nomeadamente Maio de 68] teve influência nalgumas escolhas [por exemplo, trabalhar com narrativas de vida], e ainda a importância de determinados autores [a começar por Oscar Lewis] e o interesse pela antropologia, o que talvez ajude a explicar a sua perspetiva sócio-etnográfica.
Licenciado em engenharia aeronáutica, mas movido pelos seus princípios, decide mudar de área aos 25 anos e estudar Sociologia Geral na Sorbonne, enquanto continuava a ganhar a vida como investigador especializado em sistemas de feedback. Aos 28 anos de idade, deixou um emprego bem pago de engenheiro militar, mas do qual não gostava, para ocupar uma posição a tempo inteiro como investigador em sociologia no Centre national de la recherche scientifique [CNRS]. A sua carreira em investigação sociológica inclui uma intensa atividade em associações nacionais e internacionais de sociologia. É um dos sociólogos franceses mais conhecidos da sua geração, que sucede à de figuras incontornáveis da história da sociologia francesa como Alain Touraine, Pierre Bourdieu, Raymond Boudon [Bertaux trabalhou com estes três], mas também - entre outros - Edgar Morin e Michel Crozier.
Nesta entrevista, Daniel Bertaux fala-nos do método das narrativas de vida e das suas vantagens, fala sobre a pista de obstáculos que teve de percorrer até encontrar o seu lugar. Foi durante este percurso desafiante que o autor decidiu explorar outras geografias e sociologias, tornando-se num sociólogo internacional e cosmopolita.
Pergunta após pergunta, Daniel Bertaux permite-nos ainda descobrir um lado mais intimista, desvelando as suas forças sem, porém, omitir as suas fraquezas. Simultaneamente, reflete sobre o papel que as mulheres que partilharam a sua vida - também elas sociólogas - tiveram no seu trabalho. Ao longo destas páginas, vamos descobrindo um homem de convicções e que, embora aposentado, não se retirou da vida ativa, nem da sociologia. Como ele próprio diz, ainda hoje, com mais de 80 anos, “continuo a fazer sociologia todos os dias, como fiz ao longo de toda a minha vida”; pois fala de sociologia desde que acorda e até se deitar.
Para além de biográfica, esta entrevista revela-se útil para quem quer fazer da investigação em sociologia uma carreira, já que o autor aborda questões como a reviravolta das hipóteses, as dificuldades na abordagem ao terreno, ou ainda o processo de escrita.
A entrevista aqui publicada é o resultado de uma prolongada conversa com o sociólogo francês que se realizou ao longo de três semanas, por zoom, entre fevereiro e março de 2021. Vivíamos novamente uma situação de confinamento, tanto em Portugal como em França e, perante os desafios de um futuro incerto, os meios digitais eram a única forma de viabilizar um encontro que tinha sido projetado antes da pandemia. A entrevista realizou-se em francês, língua materna do autor, tendo sido integralmente transcrita em francês, traduzida para português e editada.
Paradoxalmente, a distância forçada permitiu uma maior proximidade. Através da internet, entrámos em casa do sociólogo, sentamo-nos com ele à mesa da cozinha, bebemos café, à distância de um ecrã e, à margem da entrevista, falámos da meteorologia, das notícias sobre a Covid-19 num e noutro país, de política, entre tantos outros assuntos. O confinamento ofereceu-nos a oportunidade de entrever o espaço doméstico de Daniel Bertaux e possibilitou igualmente que Catherine Delcroix,3 também ela socióloga e sua companheira de vida há 35 anos, na altura em teletrabalho, participasse, uma ou outra vez, na conversa - entre as suas aulas à distância - complementando com mais elementos sobre determinados momentos da carreira e algumas características do sociólogo. Foi uma conversa demorada, uma raridade nos tempos que correm. Pudemos ir ao detalhe, fizemos desvios e abrimos vários parênteses relativamente ao guião inicial. O produto final é uma conversa-narrativa de vida, onde vida pública e privada se entrelaçam, dando a conhecer um homem humilde e humanista, e a sua mundivisão. A escrita, infelizmente, não possibilita reproduzir as entoações e sotaques com os quais Daniel Bertaux gosta de brincar. Não perde uma oportunidade de imitar a fala das pessoas que cita, representando os momentos e as figuras que o marcaram e definiram. Assim, a versão que aqui se apresenta resulta de uma seleção feita pelas duas entrevistadoras e, posteriormente, revista pelo entrevistado.
Quisemos conhecer melhor um autor cuja obra nos marcou e nos uniu ao longo do doutoramento. Descobrimos um intelectual, atento ao mundo que o rodeia, dotado de uma profundidade e reflexividade extasiantes. Foi-nos dado a conhecer tanto o sociólogo como o homem e fomos percebendo que um e outro se [con]fundem, e que, na verdade, Daniel Bertaux já o era muito antes de o ter sido. Caros leitores e caras leitoras, esperamos que tanto esta entrevista como a tradução recente do seu livro As Narrativas de Vida contribuam para a disseminação em português da obra de um dos principais sociólogos franceses da sua geração e que possam estimular a imaginação sociológica e a reflexividade de quem o ler.
Liliana Azevedo [L.A.] e Vanessa Carvalho da Silva [V.C.S]: Gostaríamos de começar esta entrevista por lhe perguntar: quem é Daniel Bertaux?
É a questão da identidade. Quem sou eu? Aos olhos de quem? Aos meus olhos? Aos olhos da minha mulher, ou aos olhos de um público estrangeiro? A resposta mais correta e, ao mesmo tempo, a mais enigmática é: eu sonhava tornar-me escritor e não me tornei escritor. Portanto, sou alguém que, de certa forma, está profundamente frustrado, porque não fui capaz de realizar o meu projeto tanto profissional como existencial. Provavelmente queria tornar-me escritor porque o meu avô paterno convivia com grandes escritores alemães, era um germânico. Uma vez deparei-me com uma frase de Victor Hugo que dizia: - “Para ser um grande escritor, é preciso três coisas, inteligência, sensibilidade e imaginação”. Tenho duas dessas três. Infelizmente, não tenho muita imaginação. […]
Nasci em 1939. Nasci em fevereiro, a guerra foi declarada no verão. Retirámo-nos para Toulouse em 1940 onde o meu pai era um jovem professor de civilização alemã na universidade. Quando os alemães ocuparam a zona norte de França, ele criou uma rede de resistência. Foi muito corajoso da parte dele, mas não tinha experiência, não era um homem militar, por isso após um ano foi apanhado e encarcerado […] Eu deveria ter tido uma infância muito triste; mas pelo contrário, foi um dos melhores períodos da minha vida. Porque tinha o meu avô Félix [paterno], que cuidou de mim. Íamos passear, ensinava-me os nomes dos pássaros, plantas e flores. Eu ouvia-o e sentia-me contente. Portanto, foi um período feliz da minha vida, o que é um enorme paradoxo. Ele morreu pouco depois da guerra. Eu tinha sete anos de idade e senti um grande desgosto.4
Comecei uma segunda parte da minha vida, um pouco triste, aos sete anos. Demorei muito tempo a sair da minha timidez. Era bastante silencioso, taciturno, mas pensava muito, então tinha facilidade em aprender na escola. Eu não gostava da escola, mas era obediente, pelo que ia trabalhando alguma coisa e acabei por ser bom aluno. Foi, por esse motivo, que os meus pais me disseram: vais fazer as Grandes écoles. O meu pai disse-me: - “Vais fazer a École normale supérieure, mas em ciências”. Era o que ele gostaria de ter feito, mas eu, eu não gostava de ciências; era humanista, graças ao meu avô, gostava de literatura, gostava das pessoas, da vida, não das ciências. Portanto, fui… encaminhado para uma via que não me agradava. Ainda muito jovem, com apenas 18 anos de idade, passei no dificílimo exame de admissão à École polytechnique. Resumindo, quem sou? Não sou de todo um macho alfa. Fui mal orientado logo no início; mas consegui, com dificuldade, voltar a algo que me interessava mais: compreender a sociedade, como ela funciona. Como eu tinha um espírito literário, tinha interesse pelas pessoas, não por inquéritos por questionários, quantitativos. Isso não era a minha praia. O paradoxo é que eu era um matemático, então admitiram-me de imediato no CNRS, disseram-me: - “Vai tornar a sociologia científica, uma verdadeira ciência, uma ciência dura”. Eu disse: - “Sim, sim, sim”. Naturalmente, pensei cá para comigo: “não acredito nisto, a sociologia nunca será uma ciência dura, seus tolos; mas admitam-me e depois logo veremos essa questão!” Basicamente, a história da minha vida profissional é esta.
L.A. & V.C.S: A sua formação de base é em ciências e trabalhou cinco anos como engenheiro militar antes de entrar para o CNRS, como se dá essa mudança de percurso, o que o levou à sociologia?
Eu segui uma via de que não gostava nada, mas tinha de ganhar a vida, fui pai muito novo. Quando terminei a minha formação na Polytechnique, em 1959, tinha 20 anos e estava a decorrer a guerra na Argélia. Os jovens de 20 anos eram enviados diretamente para a guerra. E o meu pai disse: - “Não quero que vás para a Argélia, é demasiado perigoso, desenrasca-te [para não ires]”. Paradoxalmente, em tempos de guerra, os únicos jovens de 20 anos que não são enviados para a guerra são… os futuros oficiais, porque são o futuro do exército. E foi por isso que me tornei um engenheiro aeronáutico militar, apenas para evitar ir para a Argélia. […] Fiz a École supérieure d’aéronautique. Mas depois, tive de trabalhar como engenheiro militar, e isso repugnava-me. Consegui que me enviassem para Berkeley para estudar a teoria dos sistemas de feedback, que são fundamentais para os sistemas de piloto automático de aeronaves. Descobri na Califórnia uma sociedade diferente, que era muito democrática, gostei muito da vida na Califórnia. Isto foi em 1962-63, antes do início da Guerra do Vietname. Em Berkeley, tinha ouvido falar de inteligência artificial, um campo totalmente desconhecido em França. Quando voltei para França, pedi para continuar a trabalhar nesta área. Mas eu também queria começar a estudar sociologia.
Foi o meu pai que me sugeriu a sociologia, como conhecimento essencial para investigar soluções para os problemas da humanidade [as guerras, a pobreza…]. E a coisa boa com a investigação é que te deixam sossegado: consegui tirar as quintas-feiras para estudar sociologia na Sorbonne. Eles não sabiam…era a minha coisa clandestina.
Um dia, estava num café com a Isabelle Bertaux-Wiame5 e ocorreu-me usar um maço de cigarros para fazer um esboço de como era a minha vida. Na altura, ao centro estava… o meu trabalho como engenheiro militar a tempo inteiro, era esse o meu ganha-pão, do qual não gostava nada. E depois, havia a vida real, onde fazia o que queria fazer… mais nas margens. E eu disse para mim mesmo: - “Tenho de mudar. Não vou aguentar toda a minha vida desta maneira! A minha vida real tem de vir para o centro”. Então, decidi fazer das margens felizes o centro da minha vida. Quando após três anos de estudos em sociologia, obtive o meu diploma, decidi candidatar-me ao CNRS como investigador a tempo inteiro.
L.A. & V.C.S: Referiu ter um espírito antropológico, porque não enveredou pela antropologia?
Porque, na altura, a antropologia era uma coisa exótica, era preciso ir para o outro lado do mundo. Já tinha uma mulher e uma menina. Mas, de certa forma, tornei-me etnógrafo quando fiz o estudo sobre a padaria artesanal. Aqui tenho de falar de Oscar Lewis e do seu livro Os Filhos de Sanchéz,6 porque foi isso que fez a minha vida mudar. Tive uma revelação ao ler esta obra. Pensei para comigo: Oscar Lewis é fabuloso, é exatamente o que eu quero fazer! Na altura [1962], este livro era um best seller em França […] Pensei que se ligasse o gravador portátil [que tinha acabado de ser inventado] as pessoas falariam assim. Não era o único: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir estavam entre os muitos admiradores deste livro. Simone tinha mesmo dito que significava o fim da literatura, porque os escritores já não precisariam de inventar personagens e diálogos, teriam apenas de fazer como Oscar Lewis fez, ir ter com as pessoas e gravar as suas palavras… Assim, quando me tornei investigador em sociologia, como tinha decidido estudar o fabrico do pão, fui entrevistar padeiros. Liguei o gravador; mas eles não falavam como os filhos de Sanchéz! Não terminavam as suas frases… As transcrições das entrevistas eram ilegíveis. Fiquei devastado. Disse para comigo: - “Não sou bom nisto! Não tinha consciência [na altura ninguém tinha] da diferença entre a oralidade e a escrita, porque antes da invenção do gravador ninguém podia comparar as duas formas de linguagem.” Assim, no livro de Oscar Lewis, ficou evidente que houve uma intervenção na escrita… Oscar Lewis omitiu isso, porém no prefácio ele diz: - “O que estou a dar ao público para ler é em parte ciência, em parte arte - between art and science.” Efetivamente! Ao aludir à arte, Lewis deu a entender que talvez tivesse reescrito as transcrições, mas sem acrescentar quaisquer pormenores…
Posto isto, pensei muito no assunto e acho que temos o direito de reescrever, dentro de certos limites muito precisos [não devemos acrescentar palavras novas, por exemplo]. São as próprias pessoas que pedem para reescrevermos. Uma vez, um padeiro disse-me: “ficou melhor depois de o ter reescrito, prefiro esta versão, porque é mais correta, é realmente o que eu queria dizer”.
L.A. & V.C.S: Houve um ano marcante na sua vida, que o levou a dar a volta ao mundo e lhe abriu novos horizontes. Pode falar-nos sobre isso?
Foi em 1965, já era engenheiro militar há dois anos, mas não gostava. Vi passar uma coisa da Fondation Singer-Polignac. Todos os anos, esta fundação oferecia quatro “bolsas de viagem de longa distância” a jovens franceses licenciados de uma das Grandes écoles; a ideia era que esses jovens, que um dia teriam responsabilidades importantes no estado francês, pudessem dar a volta ao mundo. Davam metade da bolsa em Paris, mas a outra metade era preciso ir buscá-la do outro lado do mundo. Concorri e acabei por ganhar uma dessas bolsas. Andei pela Etiópia e Tanzânia, estive na Índia e no Nepal, na Tailândia e Hong Kong, atravessei a China, a Mongólia, fiz o Transiberiano até ao Pacífico. Estive no Japão um mês. E terminei pela Argentina, Uruguai e Brasil. Ah, o Brasil… adorei.
L.A. & V.C.S: É uma pessoa viajada e poliglota, qual a importância do cosmopolitismo, do internacionalismo e das línguas na sua carreira?
Em França, na minha geração fui - pela minha estadia em Berkeley - um dos poucos sociólogos que falava bem inglês. E, graças àquela viagem à volta do mundo, fui muito mais internacionalista ou cosmopolita do que a grande maioria dos sociólogos franceses da minha geração. Os sociólogos franceses pensam que se lemos Durkheim e Mauss sabemos tudo sobre a sociologia, e que não é preciso aprender inglês ou alemão. Os sociólogos franceses são assim, tal como os sociólogos alemães, que podem ler Marx, Weber e Simmel no texto original. No caso dos sociólogos norte-americanos e britânicos: o inglês é simultaneamente a sua língua materna e a língua internacional, por isso pensam que não é necessário aprender outras línguas. Em contrapartida, os sociólogos portugueses sabem que o português não é suficiente, por isso aprendem inglês e conhecem a sociologia internacional.
Trabalhei durante vários anos a nível internacional e isso orientou o meu trabalho para a produção de numerosas comunicações que apresentei em conferências e congressos. Não escrevi os livros que deveria ter escrito, porque estava sempre a preparar comunicações; fiz muitos papers. De tal forma que, no CNRS, quando se tratou de progredir na carreira, disseram-me: - “Vimos o teu dossiê, o número de comunicações que fizeste é impressionante, mas não as conseguimos ler porque está tudo escrito em língua estrangeira. ”Eu disse: - “Está em inglês.”- “Sim, precisamente, é isso que estou a dizer! Por isso, não te podemos ler, e não podemos avaliar o que fazes.” De modo que tenho uma carreira bastante limitada em França…
Nunca aprendi inglês na escola. Eu era de uma família de germanistas, por isso aprendi alemão. E quando se tratou de escolher a segunda língua escolhi o grego antigo. Mais tarde, percebi que ainda tinha de aprender inglês; então, aprendi inglês sozinho com o método Assimil.7 Tenho um certo dom para línguas, falo cinco ou seis línguas, falo espanhol, alguma coisa de italiano e de português - aprendi a falar português com sotaque brasileiro, para poder dar aulas de Sociologia na IUPERJ [Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro] - e até aprendi russo… Gosto de imitar sotaques. Portanto, o resultado é que todas estas línguas, que adoro falar, se tornaram minhas. Cometo erros quando falo, mas isso, para mim, não importa. Cada vez que consigo fazer-me entender, é uma vitória pessoal! Mas com o alemão é exatamente o oposto: no liceu ensinaram-me a gramática alemã, que é difícil; por isso, estou muito consciente de todos os erros que cometo quando falo alemão, cada frase é uma derrota pessoal e isso desencoraja-me…
L.A. & V.C.S: A sua participação nos congressos da Associação Internacional de Sociologia [ISA, na sigla em inglês] remonta à década de 70. Pode falar-nos sobre a importância desta dimensão internacional da sua carreira?
Entrei para o CNRS em 1967 [e em 1970] fui a Varna, na Bulgária, a um congresso mundial, adorei o ambiente. Porque… era o oposto do ambiente em Paris. Em Paris, encontrava-se outro sociólogo e perguntava-se: - “Olá, em que laboratório estás?” - “Estou no laboratório de Bourdieu”. “Ah!” [silêncio]. Acabava logo ali, a comunicação terminava porque o outro estava no laboratório de Boudon ou no laboratório de Touraine; por isso, eram inimigos. Era suposto sermos inimigos antes mesmo de nos conhecermos. Enquanto no meio internacional, se eu tinha ideias que as pessoas não conheciam, pegavam nessas ideias; mas eu não me importava, pelo contrário, porque iam citar-me. Enquanto em França nunca nos citamos uns aos outros! Bourdieu cita muitos autores, mas nunca cita um único sociólogo francês contemporâneo, nunca, nunca. Há aí uma espécie de norma, de violência muito forte. Enquanto no meio internacional estamos felizes por nos citarmos uns aos outros; e, por esse motivo, adorei este meio.
L.A. & V.C.S: Além disso, também criou um Research Committee em torno da temática das narrativas de vida. Pode falar-nos disso?
No âmbito da ISA, criei o Research Committee Biography and Society.8 A criação deste comité demorou oito anos. Organizei uma primeira reunião no Congresso Mundial em Uppsala, em 1978. Tinha pedido um grupo ad-hoc sobre life stories e reservado uma sala para 30 pessoas. Pensei que viriam umas 15; mas vieram 80 pessoas, imensa gente. Eu tinha colocado todas as estrelas na primeira das três sessões do grupo ad-hoc: havia Franco Ferrarrotti, o italiano; Paul Thompson, o inglês, e Nicole Gagnon, do Quebeque. Tinha também convidado John Goldthorpe, um famoso cientista inglês quantitativo. O que eu queria era fazer um debate entre os qualitativistas e ele. E de facto, houve debate e foi bastante violento, entre ele e Gagnon. Os argumentos que lhe foram apresentados foram: jura pela amostra representativa, mas se quisermos estudar os heroinómanos, por exemplo, como se faz uma amostra representativa? O debate foi muito interessante, foi falado nos corredores e no dia seguinte um membro do Comité Executivo, Wladimir Wesolowski, disse-me: - “Daniel, devias pensar em criar um Research Committee sobre life histories. Isto é novo e muitas pessoas estão interessadas!” Não estava nos meus planos, mas como fui convidado para o fazer, fi-lo.
É um processo moroso. São necessários quatro anos para obter o estatuto de Working Group, e conseguimo-lo no congresso seguinte. Depois disso, pudemos candidatar-nos ao estatuto de Research Committee, que obtivemos em 1986, em Nova Deli. […] No Congresso seguinte, em Madrid, eu disse: - “Não quero assumir a presidência durante outros quatro anos. Quero estabelecer uma gestão democrática”. Foi eleito Wolfgang Fischer, companheiro de Gabriele Rosenthal,9 uma socióloga alemã que estava por detrás dele. Rosenthal tomou o poder… e nunca mais o largou. De modo que, hoje, 30 anos mais tarde, ela ainda o detém. Isto é, ela foi presidente do Comité durante 12 anos; depois foi outra pessoa, que lhe era próxima e depois voltou a ser ela. O problema é a sua forma de trabalhar com as narrativas de vida e o facto de ela querer impô-la como a única forma. Recolhe uma história de vida e vai escrever um artigo inteiro sobre essa história. Com uma única narrativa de vida, a atenção do/a investigador/a só pode concentrar-se na personalidade do/a entrevistado/a, na sua psicologia e não nas relações sociais que caracterizam o mundo social em que trabalha ou vive. Já não estamos a fazer sociologia, estamos a fazer psicologia.
Para fazer boa sociologia com narrativas de vida, na minha opinião, é necessário multiplicar as narrativas de vida para estudar um mesmo mundo social - um social world no sentido de Howard S. Becker10- e cruzar várias narrativas de vida desse mesmo mundo social.
Não há outra técnica de observação sociológica que seja tão rica como a narrativa de vida. Há entrevistas muito ricas, isso é verdade; mas precisamente, a narrativa de vida é, para mim, uma forma específica de entrevista, com uma dimensão histórica, uma dimensão da génese, uma dinâmica… tem muitas coisas, incluindo as relações entre uma pessoa e os significant others. Há tudo isso numa narrativa de vida, é fascinante.
Mas também é, de certa forma, demasiado rico. É, por assim dizer, uma técnica muito particular porque, como dizer…, existe uma dimensão quase transcendental, que foi o que me atraiu. As pessoas falam da vida, da morte, do sentido da vida, às vezes de dramas que viveram. E podem fazer-se coisas diferentes, muito diferentes, com as narrativas.
Até me aconteceu - contrariamente ao princípio geral que acabo de enunciar - ter escrito um artigo partindo de uma única narrativa de vida. Tratava-se de um pequeno padeiro de província que tinha acabado de se reformar, e que contou a história da sua vida de forma muito simples. A entrevista foi realizada por Isabelle Bertaux-Wiame; na altura, ela e eu estávamos a trabalhar em conjunto sobre a padaria artesanal. Quando li a transcrição desta entrevista, senti que sob a aparência de uma história muito simples, talvez houvesse outras coisas para descobrir. Esta narrativa inspirou-me. Li-a uma e outra vez, e de cada vez que a voltava a ler, surgiam questões interessantes. Tentei imaginar o contexto local das situações vividas por este homem, e os projetos que tinham sustentado o seu curso de ação. Pouco a pouco comecei a perceber e a analisar muitas das lógicas sociais que governavam este contexto local. Resultou num artigo11 sobre a transmissão do património ao longo de cinco gerações. Falo deste exemplo para mostrar que não sou dogmático. Com uma única narrativa de vida é, por vezes, possível encontrar coisas que são sociológicas. Por vezes.
L.A. & V.C.S: O seu objetivo era partir do individual para alcançar uma melhor compreensão do social?
Não, de modo algum! Enquanto sociólogo, de certa forma, nunca estive interessado nos indivíduos. Digo isto de uma forma provocadora. Ou seja, alguém que foi padeiro durante 20 anos, mas que depois se tornou camionista, não terei qualquer interesse na sua vida de camionista, porque não é a pessoa que me interessa. Enquanto escritor ou humanista, as pessoas interessam-me; mas enquanto sociólogo, não. Cada pessoa tem a sua própria história e isso é fascinante. No entanto, se quisermos produzir conhecimento científico, ou melhor dizendo, conhecimento objetivo, temos de sair desta diversidade infinita. É preciso organizar as narrativas de vida de modo a que convirjam, procurando recorrências e saturação. E a melhor coisa que encontrei foram os mundos sociais; a padaria, por exemplo, é um mundo social, no sentido de Howard S. Becker. Becker explicou este conceito muito bem, com exemplos.
L.A. & V.C.S: Em que momento da sua vida surge o método das narrativas de vida?
Enquanto esperava mudar de emprego [trabalhava a tempo inteiro para ganhar a minha vida], inscrevi-me em sociologia na Sorbonne e comecei a ler os grandes clássicos. Mas achava Auguste Comte e Émile Durkheim muito aborrecidos! Max Weber não estava traduzido, ou estava muito mal traduzido. Felizmente, havia Tocqueville e Marx. Eu estava apaixonado por Marx. Houve um ano em que deixei de comprar jornais todos os dias e lia Marx, todas as noites vinte páginas. Adorei. Porque percebi que ler o jornal é ler 10, 20, 30 itens de informação sobre coisas muito diferentes, o cérebro vai em todas as direções. Enquanto ler o mesmo livro, o pensamento de um grande autor, todas as noites, faz bem ao cérebro.
As narrativas de vida não têm nada a ver com tudo isso, realmente nada. É o oposto. Em todo o caso, parece o oposto aos olhos do senso comum académico. Felizmente, eu era tão ignorante sobre o meio académico que não sabia disto…
Na altura, os sociólogos norte-americanos estavam convencidos de que tinham encontrado o método que finalmente permitiria à sociologia tornar-se científica: a investigação com base em inquéritos por questionário [survey research]. Andaram por todo o mundo para persuadir outros sociólogos. Já ninguém estava interessado em narrativas de vida, uma forma de recolher dados que parecia pertencer a uma era distante e completamente passada… E com a minha formação em ciências físicas, eu estava preparado para essa visão. Quando entrei para o CNRS, com base na minha formação avançada em matemática, trabalhei durante vários anos em dados de inquéritos por questionário sobre mobilidade social. Fui obrigado a esconder o meu interesse pessoal pelas narrativas de vida; se o tivesse dito ninguém teria compreendido, e teria arriscado perder o meu emprego como sociólogo…
Hoje em dia, parece difícil acreditar nisto, por isso, aqui está a prova concreta. Durante a minha participação em conferências internacionais - nas quais apenas falei sobre mobilidade social - fui encontrando alguns sociólogos que trabalhavam com narrativas de vida: por exemplo Nicole Gagnon que, no Quebeque, as utilizou para avaliar o grau de “consciência québécoise” dos canadianos francófonos. Tinha também aprendido com uma colega francesa de origem polaca, Janina Markiewicz-Lagneau, que, em 1918, quando a Polónia se tinha tornado novamente um país independente, intelectuais e sociólogos polacos tinham organizado grandes concursos públicos de autobiografias: de facto, estavam interessados em avaliar o grau de consciência nacional [polaca]. Assim, organizei um workshop de dez dias sobre narrativas de vida em Paris, e convidei Nicole, Janina e alguns outros colegas do Quebeque e da Polónia. Realizou-se numa sala da Maison des sciences de l’homme, e o seu diretor Clemens Heller, um homem caloroso e muito aberto a ideias originais, tinha gentilmente financiado a viagem dos meus convidados.
Éramos apenas algumas dezenas, mas tínhamos a sensação de termos trabalhado muito bem em conjunto, graças aos longos períodos de tempo que permitiram discussões aprofundadas. Por outro lado, eu não tinha pensado que este workshop fosse objeto de ciúmes, especialmente entre colegas muito mais bem financiados do que eu… Porém, alguns anos mais tarde, Pierre Bourdieu publicou um artigo polémico na sua revista Actes de la recherche en sciences sociales intitulado “L’illusion biographique”,12 que começava com a frase: “As narrativas de vida entraram contrabandeadas no espaço das ciências humanas, primeiro em antropologia, sem fazer qualquer barulho; e depois, em sociologia, mas com que estrondo!” O resto do artigo é do mesmo teor, violentamente crítico. Claro que nenhum nome de sociólogo francês é mencionado, mas todos compreenderam quem era o alvo desta fúria intelectual.
Não respondi por escrito a este ataque, que se destinava a ser a machadada final. Alguns anos mais tarde, um sociólogo francês muito mais conhecido e reconhecido do que eu respondeu de facto, através da sua própria prática, publicando - com a ajuda de 23 colegas - um livro constituído por 52 entrevistas autobiográficas [52 narrativas de vida em bruto], cada uma acompanhada de comentários sofisticados. Este livro de cerca de 900 páginas tornou-se imediatamente um best seller em França. Chama-se La Misère du Monde,13 e o seu autor principal é… Pierre Bourdieu! Como diz o ditado: Só os tolos não mudam de opinião.
Porém, não utilizei uma forma qualquer de narrativas de vida, mas sim uma forma em particular: o estudo de mundos sociais [como a padaria artesanal] através das narrativas de vida. Não faço narrativas de vida no geral, nem ao estilo de Gabriele Rosenthal, onde se pega numa narrativa de vida e se vai à procura de toda a psicologia, não é isso. Também não é a coisa antropológica, onde através de uma pessoa que conta a sua vida, acedemos a uma cultura inteira, porque isso pode funcionar em microculturas; mas não funciona nas nossas sociedades. No entanto, podemos estudar um mundo social. […] A melhor coisa que escrevi até agora sobre o que fiz em relação às narrativas de vida penso que foi a introdução da edição portuguesa do livro As Narrativas de Vida, aí está bem explicado.
L.A. & V.C.S: A primeira vez que usou o método das narrativas de vida foi no estudo sobre a padaria artesanal?
Sim. Então, como surgiu o tema da padaria? No Outono de 1967, eu ainda era engenheiro militar, mas Haroun Jamous, um amigo que estava a ensinar metodologia num novo curso de investigação na École des hautes études en sciences sociales, pediu-me para o ajudar.
Eu era pouco mais velho do que os estudantes, partilhava as mesmas ideias e vivíamos juntos a efervescência de maio e junho de 1968. No ano seguinte, disse-lhes: “Ouçam, temos de mostrar aos franceses que a sociedade está organizada em torno de relações de classe”. Porque, anteriormente, nunca se ouvia falar dos assalariados e dos trabalhadores manuais, que constituíam 50-60% da população, nunca apareciam na televisão nem na rádio. Em maio-junho de 68, os trabalhadores aderiram ao movimento e foi extraordinário. Toda a França entrou em greve. Parou tudo: Grève générale!!! Os trabalhadores começaram a ir para a rua, começámos a ver os seus rostos, a ouvir as suas vozes. […] Mas bastou um discurso muito autoritário do general De Gaulle, acompanhado pela ameaça de intervenção do Exército, para restaurar a ordem anterior. Foi muito dececionante…
Formei um pequeno grupo de estudantes [e disse-lhes]: “Vamos escrever um livro para explicar aos franceses que vivemos numa sociedade de classes. Mas em vez de ser um livro com teorias de Marx, Trotsky, etc., vamos cativar as pessoas com um objeto do quotidiano, o pão.” […] A ideia era escrever um pequeno livro, fácil de ler, e mostrar as relações de classe, porque ninguém se atrevia a falar disso e ainda hoje é assim. Quem se atreve a falar de relações de classes? […] Depois chegaram as férias de verão de 1969; e quando regressámos, os estudantes tinham desaparecido, o curso tinha acabado, fiquei sozinho. […] Então decidi continuar sozinho. Mas não conseguia fazer a minha primeira narrativa de vida. Entrava numa padaria e dizia: - “Gostaria de falar com o patrão… de o entrevistar.” O padeiro vinha, coberto de farinha, com pressa e dizia: - “Quer entrevistar-me, mas porquê?” - “Porque sou investigador.” - “O que é que isso significa?” - “Investigador no CNRS, é uma instituição estatal.” - “E depois, o que vai fazer com a entrevista?” - “Vou fazer mais entrevistas e escrever um relatório.” - “Escreve relatórios para o estado? [silêncio] Não tenho tempo.” Eu não compreendia, ia para casa, deprimido. Nunca serei um bom sociólogo, pensava. Na verdade, o que aconteceu [mais de uma vez…] era que eu tinha usado muito ingenuamente as palavras que mais assustam os padeiros [e todos os artesãos e pequenos comerciantes]: investigação, relatório, estado… Para eles, estas palavras significavam investigação pelas autoridades fiscais, denúncia de fraude fiscal e advertência fiscal: exatamente tudo o que mais odiavam no mundo. Mas eu, filho e neto de funcionários públicos, não tinha conhecimento das pequenas empresas e das suas fobias profissionais…
Felizmente, perante estes falhanços sucessivos, tive a ideia de ir ao sindicato dos padeiros. E eles, lá, receberam-me de braços abertos. Disseram: “finalmente, alguém que vai falar sobre nós. Vamos contar-lhe tudo!” Foi assim que, por fim, consegui iniciar esta investigação empírica sobre a padaria.14
E depois consegui, através da Isabelle, cujo pai era artesão e que compreendia bem este meio socioprofissional, entrevistar padeiros. Juntávamo-nos e dizíamos que estávamos a preparar um livro [não um relatório!] sobre a panificação francesa. “Ah! exclamavam os padeiros, vocês trabalham em casal, como nós!” O gelo estava quebrado, e tudo correu muito bem a partir daí…
L.A. & V.C.S: Voltando um pouco atrás e como disse, foi com base num mal-entendido que entrou para o CNRS, integrou as equipas de grandes sociólogos franceses da época, mas não se identificou com nenhum deles.
Entrei para o CNRS graças ao patrocínio de Raymond Aron. Ele disse-me: - “Vou entregar-te a um jovem sociólogo chamado Pierre Bourdieu, ele é um verdadeiro sociólogo,15 vai treinar-te.” Assim, conheci Pierre Bourdieu. O meu primeiro projeto no CNRS chamava-se “A escolha da profissão” e Bourdieu tinha-me dito: - “Aceitámo-lo porque vem da Polytechnique, mas o seu projeto não vale nada; não é sociologia.” Eu disse-lhe: - “Pode ajudar-me a reescrevê-lo?” Ele respondeu: - “Sim, sim… Comece por ler os meus trabalhos!” Então li Bourdieu… Era muito estruturalista. Bom, tudo na época era muito estruturalista. E com a minha formação em ciências físicas, estava preparado para este discurso. Abracei realmente o estruturalismo. Adorei o estruturalismo, achei que era fantástico. Esta ideia de que somos apenas peões, de certa forma, animados por forças que nos ultrapassam, por forças coletivas, ia ao encontro do que eu sabia do universo, das leis da natureza. Na natureza inanimada, coisas, objetos - planetas, continentes, rios… - não agem; são acionados pelas leis da natureza. O estruturalismo de Althusser estendeu esta conceção aos seres animados, aos seres humanos… Na visão estruturalista de Athusser - ou de Bourdieu - não há lugar para os sujeitos, para o Sujeito do qual Alain Touraine falará [muito mais tarde].
Eu procurava, por isso, esse tipo de leis imanentes e invisíveis que determinam a trajetória social das pessoas [designada (erradamente) “mobilidade social”…]. E Bourdieu também procurava isso. Talvez até, de certa forma, ele me tenha visto como concorrente. De qualquer forma, passaram dois anos, nada acontecia, Bourdieu não me pedia nada.
Publiquei o meu primeiro artigo sobre mobilidade social na prestigiada Revue française de sociologie. Eu tinha-o reescrito seis vezes antes de o enviar para a revista. Desenvolvi a ideia de mobilidade estrutural. Era novo e interessante. O artigo tornou-se viral, como dizemos hoje.
Depois, uns jovens investigadores que [Raymond] Boudon tinha reunido à sua volta vieram buscar-me. Disseram-me: - “Boudon está a formar uma equipa pequena de sociólogos, não é estruturalista, mas ele gostou do teu artigo, tens uma mente muito lógica; ele gostaria que te juntasses à sua equipa.” Eu já estava farto, e foi assim que saí do centro de Bourdieu para ir para o de Boudon. Era um tipo bastante simpático e disse-me: - “Sou um liberal, faça o que quiser, não vou interferir, tenho a minha própria maneira de pensar sobre a ação.” Eu estava interessado na ação. No estruturalismo de Bourdieu, não há ação autónoma: a ação é predeterminada por estruturas. Pensei: aqui está alguém que leva a coisa da ação a sério, talvez eu aprenda alguma coisa.
Mas rapidamente, as coisas correram mal. Porquê? Eu lia Marx, era um marxien, não um marxista organizado, comunista ou trotskista, mas um leitor sério de Marx. A pedido de Boudon, fiz um projeto em que falei da educação como qualificação da força de trabalho. Então, Boudon disse-me: - “Li o seu projeto, tem de eliminar ‘força de trabalho’, não gosto.” - “Mas vem de Marx.” - “Sim, sim: elimine!” - “Mas ouça, Sr. Boudon, o senhor é um liberal.” Ele retorquiu: - “Mas o liberalismo tem os seus limites.” Por isso, decidi procurar outro lugar.
Fui então ver [Alain] Touraine. Ele, sim, é um macho alfa. Na realidade, Touraine acolhia pessoas que estavam a fugir de outros centros. Pessoas que estavam fartas de Bourdieu, pessoas que estavam fartas de Boudon, como eu e outros. Touraine recebia-os porque ele queria ter muita gente no seu centro. Penso que ele era mais criativo, mas também mais fraco a nível teórico do que os outros dois. Foi alguém que desenvolveu teorias, com convicções muito fortes, mas quando as comparamos com cinco anos de intervalo, as suas teorias mudam significativamente. Ele compreende muito bem o poder, as relações de poder, os jogos de poder, as alianças objetivas entre forças aparentemente opostas, porém, não sabe escrever bem sobre isso. Lembro-me que, uma vez, eu disse: - “Ouça, Sr. Touraine, você publica dois ou três livros por ano, o que significa que o que escreve é um primeiro rascunho e que não o relê. Se se trabalhar um texto várias vezes, consegue-se encontrar a forma escrita que corresponde ao pensamento; mas se não se faz isso, então é a pessoa que lê que tem de fazer esse trabalho, que tem de reler o texto várias vezes para finalmente compreender o que quer dizer.” Ele encarou isso muito mal. No entanto, era verdade.
L.A. & V.C.S: Qual a sua visão do campo da sociologia em França?
Em França, depois de Durkheim e de Mauss, a sociologia desapareceu durante 30 anos entre as duas guerras mundiais. Reapareceu depois de 1945 com Raymond Aron, Georges Friedmann, Pierre Naville e Edgar Morin. A geração seguinte ainda era pouco numerosa e era dominada por três mandarins, Bourdieu, Boudon e Touraine. Cada um dos três era como um senhor da guerra: queria conquistar todo o campo da sociologia. Podemos desenhar um triângulo e em cada um dos vértices do triângulo colocar o nome de cada um deles. Bourdieu é um estruturalista, como Althusser. Para Bourdieu, há apenas estruturas - estou a caricaturar - mas a ação autónoma não existe. Sim, há ação, mas a ação é produzida pelo habitus que é, citando Bourdieu, “uma estrutura estruturada que funciona como uma estrutura estruturante”. Uma vez, perguntei-lhe: “o que quer dizer com isso?”. Ele respondeu: - “ouça, é óbvio: as crianças são estruturadas pelos seus pais, trazem dentro de si essa estrutura que, quando são adultos, é a matriz de produção dos seus comportamentos”. Isto é estrutura, na visão de Bourdieu.
Por outro lado, há Boudon. De certa forma, foi obrigado a assumir uma posição completamente oposta, focando-se apenas na ação individual. Assim, para ele, a sociedade é um conjunto de indivíduos e cada um age em função dos seus próprios interesses. Portanto, é rational choice, mas é a versão francesa. Ele tinha encontrado o fenómeno dos efeitos perversos.16Tudo bem, podemos explicar algumas coisas, mas é um paradigma limitado. Para ultrapassar estas limitações, é necessário o conceito de curso de ação, que eu considero extremamente útil e poderoso. Depois havia Touraine, que procurou conjugar estrutura e ação, mas o que lhe interessava eram os conflitos… em torno do poder. […]
Retomando o triângulo, Bourdieu queria estar no centro, Boudon queria estar no centro e Touraine queria estar no centro. […] Eram de facto três mandarins, digamos, aprendizes-mandarins, que estavam numa guerra, como nos dias da aristocracia, uma guerra entre castelos. E eles tentavam realmente matar os seus rivais e todos os jovens discípulos dos seus rivais. Eram muito agressivos, mas Bourdieu era o mais agressivo de todos, pensei muito sobre isso e posso dizer que foi Bourdieu quem começou esta luta muito violenta…
L.A. & V.C.S: Sabemos que é um homem de convicções. Pode dizer-nos o que o tem guiado ao longo do seu percurso de sociólogo?
A decisão mais importante de minha vida foi virar as costas à carreira de engenheiro militar na aeronáutica e entrar no CNRS como simples investigador em sociologia. Perdi um terço do meu salário. Foi uma decisão de peso, especialmente porque eu já era casado e já tinha duas filhas. Foi uma escolha em função das minhas convicções. Porque considerava que fazer aviões de combate para bombardear pessoas com napalm… era tornar-me cúmplice de uma abominação. Eu tenho convicções pacifistas, por assim dizer. Não gostava da profissão de engenheiro e odiava a coisa militar, por isso… Perdi dinheiro, mas nunca me arrependi da minha decisão.
Depois, quando fui trabalhar com Bourdieu e que era preciso tornar-me num aprendiz, ignorante, do grande mestre Bourdieu… A minha convicção foi de não aceitar essa servidão. As pessoas que ficaram com Bourdieu sofreram muito. Então, por convicção, saí da equipa de Bourdieu e fui ter com Boudon. Eu tinha convicções marxistas, lia Marx e mantive as minhas convicções; e, por isso, fui dispensado da equipa de Boudon. Resumindo, defendi sempre as minhas convicções e nunca fui oportunista, é também por isso que a minha carreira nunca alavancou. […].
Não vim para a sociologia para me tornar um grande mandarim, vim para a sociologia para compreender a sociedade e as suas lógicas sociais - porque tenho uma mente científica. Aliás, eu não fui professor. A ideia de poder, a ideia de ter muitos estudantes e tudo isso, esteve ausente da minha vida. […] Não gosto de ser ambicioso. A ideia de sucesso social foi-me completamente estranha. O meu interesse é intelectual: compreender.
L.A. & V.C.S: Partilhou a vida e o trabalho com duas sociólogas. Que papéis tiveram as mulheres na sua carreira e na sua obra?
Catherine [Delcroix] despertou-me para o campo das migrações. Eu não sabia nada sobre isso, aprendi muito com ela. Vivo com Catherine há 35 anos e falamos de sociologia todo o santo dia. Vamos dormir a falar de sociologia, acordamos a falar de sociologia.
A minha primeira mulher, Isabelle [Bertaux-Wiame], foi também muito importante na minha vida. É a mãe dos meus três filhos. O pai dela era artesão, canalizador por conta própria; e, no estudo sobre a padaria, quando fizemos as primeiras entrevistas, ela compreendeu logo tudo, porque também era uma profissão artesanal, self-employed… Aprendi muito com ela. Contratei Isabelle para fazer investigação histórica sobre a padaria porque ela era formada em história, sabia trabalhar com arquivos e eu não sabia. E eu formei-a em sociologia. […]
Este é talvez o momento da verdade… vou falar claramente sobre uma das minhas fragilidades, é o trabalho de terreno. Tenho uma espécie de timidez no momento de pedir uma entrevista, acho isso difícil. Depois, quando estabeleço o contacto com uma pessoa para a entrevistar, corre muito bem, porque sei escutar. […]
Tanto Isabelle como Catherine têm boas ideias. As ideias mais interessantes foram elas que as tiveram, porque, precisamente, são ideias que vieram do terreno, e para as quais contribuíram a sensibilidade de Isabelle para o pequeno negócio artesanal e talvez as ideias feministas de Catherine e o facto de ela ter convivido… houve sempre imigrantes na família dela. Elas têm ideias que eu não tenho. Em contrapartida, fui sempre bom a escrever, bastante bom com o estilo [de escrita]. Não no primeiro esboço, mas depois volto atrás, releio-me e posso encontrar finalmente a forma que corresponde à substância do que eu queria dizer. […]
L.A. & V.C.S: Quer falar-nos um pouco sobre essa pesquisa?
Fizemos uma pesquisa numa periferia de Paris para tentar compreender porque havia tantas famílias cujos pais estavam separados e onde as crianças já não viam o pai ou pouco o viam. A hipótese inicial foi-nos inspirada por um livro de Barbara Ehrenreich,17 que foi um best seller nos Estados-Unidos. A tese desta autora era que os homens americanos, afetados pelo individualismo, só pensavam em si próprios e quando havia um problema no casal, iam-se embora e não se preocupavam com os filhos. Na altura, ninguém tinha qualquer ideia sobre isto e, curiosamente, esta hipótese inicial, que parecia muito provável, em França, revelou-se completamente falsa. Primeira reviravolta de hipótese: no início, pensávamos que a culpa era dos homens, depois percebemos que a culpa seria mais das mães, que impediam as suas crianças de ver o pai. Muitos pais sofriam por não poderem ver os seus filhos e filhas crescer. Mas escavámos mais fundo e aí percebemos que a culpa não era apenas das mulheres. Era também dos juízes!
Segunda reviravolta de hipótese. Os juízes davam sistematicamente a guarda da criança à mãe. Embora, por vezes, o pai quisesse, mais do que a mãe, ter a guarda da criança; mas os juízes tinham o preconceito de que as crianças pequenas deveriam estar com a mãe. […] Apercebemo-nos de que existiam dois tipos de juízes, os juízes homens tradicionais e em fim de carreira que diziam: “dou sempre as crianças à mãe, porque a família é a célula de base da nossa sociedade”. Depois de Maio de 68, uma nova geração muito mais à esquerda, com muitas mulheres jovens, tinha entrado na magistratura, e dizia: - “Eu dou as crianças à mãe, claro! Porque os homens têm todo o poder económico, político, mediático e o que resta às mulheres? O único lugar em que elas ainda têm algum poder é na família, não lhes vamos tirar isso!” Curiosamente, tanto os homens conservadores como as mulheres progressistas concediam, por motivos quase opostos, a guarda das crianças às mães. E as mães, sentindo-se apoiadas pelos juízes, faziam o que queriam…
Publicámos apenas um relatório de investigação, mas foi uma boa pesquisa e o mais interessante naquilo que estou a dizer é esta ideia de reviravolta de hipóteses, isto é, partir-se de uma hipótese e ela não se verificar de todo. Dizemos sempre que há uma hipótese e que temos de a verificar, mas neste caso não foi assim. Acho que foi Gregory Bateson que disse “the field has to hit you”, ou seja, vamos para o terreno com ideias preconcebidas e quando encontramos um fenómeno contraintuitivo, ou sobre o qual não tínhamos pensado, geralmente, não o vemos. Por isso, é mesmo preciso ter abertura de espírito e estar atento ao inesperado.
L.A. & V.C.S: Sobre o seu conceito de antroponomia, pode dizer-nos como é que ele surge e do que é que se trata?
Não o encontrei em lado nenhum. O termo antroponomia apareceu, penso eu, em 1975, em alguns trabalhos que escrevi. O subtítulo do meu livro publicado em 1977,18Para uma crítica da antroponomia política, é obviamente uma espécie de copy-paste da expressão de Marx: crítica da economia política.
O conceito veio-me à ideia quando estava a escrever. Estava a trabalhar na mobilidade social. Comecei por analisar estatísticas, mas estas não mostravam os processos de transmissão intrafamiliares de capitais [como Bourdieu os chama] de uma geração para a seguinte. Ao contrário do que ele sugere, não há nada de automático nestas transmissões. Mesmo os pais que querem transmitir alguma coisa aos seus filhos [não é o caso de todos, longe disso], não é certo que consigam, se estes últimos não o quiserem… Para compreender o fenómeno, para compreender o que acontece entre pais e filhos dentro das famílias, é necessário fazer muito mais pesquisa de terreno. Há muitas mediações concretas que ainda estão por descobrir.
Os meus primeiros artigos na Revue française de sociologie foram muito apreciados. Nicos Poulantzas, em cujos seminários eu participava e que se tinha tornado um amigo, sugeriu que escrevesse um livro sobre o tema da mobilidade social.
No verão de 1976, a minha mulher, Isabelle Bertaux-Wiame, aceitou tratar de tudo: compras, cozinhar e lavar, enquanto eu escrevia, fechado no quarto. E foi um momento de extraordinária criatividade. Estava sempre a pensar sobre a mobilidade social e a distribuição das pessoas nas profissões e nas posições de classe, de uma geração para a outra. Como tinha lido Marx, sabia que se há distribuição, antes há produção e depois há… consumo. Portanto, há a produção de pessoas, há a distribuição de pessoas [a mobilidade social] e depois há o consumo: não as comemos, não somos antropofágicos, mas há o consumo da sua força de trabalho. Então haverá um processo de produção, distribuição e consumo de seres humanos. De tanto repetir isso pensei em arranjar-lhe um nome: antroponomia. […] O meu modelo era Marx, transferi a ideia de economia política para os seres humanos e procurei saber o que quereria dizer produzir pessoas, distribuí-las e consumi-las. Consumir as suas energias. O conceito de energia surgiu-me, não o encontrei em lado nenhum na literatura, ninguém tinha falado de energia humana. […]
Então, o que significa antroponomia? O que significa “produzir pessoas”? Em primeiro lugar, há uma frase de Marx que diz: “A produção de uma sociedade é dupla: a produção de coisas, por um lado, e a produção das pessoas, por outro.” Ah, ah! É o que diz Marx: dá legitimidade à coisa. Mas ele não desenvolveu a ideia…
Foram as feministas dos anos 197019 que nos ensinaram - que me ensinaram - que o que as mulheres fazem em casa não são tarefas femininas: é trabalho. É trabalho de produção. Se é trabalho, há um produto. Mas que produto? Onde está? Como é que é? Podemos usar a metáfora do agricultor: Se ele semeia o trigo e o colhe, vemos muito claramente o que é que produziu o agricultor. Se ele leva as suas vacas para o pasto e as recolhe à noite, limpa os estábulos e assim por diante, não fez nada, não trabalhou? Sim, trabalhou muito, mas o que produziu ele? Não se consegue ver nada do que produziu. Bem, o que produziu foi vida: vacas, vitelos… Isso é trabalho de produção de energia viva […].
O conceito de antroponomia, “produção de pessoas”, foi pouco adotado, mal compreendido. Na altura, quando pensei sobre isso, disse: já não vivemos como no século XIX, hoje há muito trabalho envolvido na produção/criação de crianças, muitos cuidados, muito care, muitas coisas… educamos os seus corpos, as mentes e os gostos. Depois, delegamos parte disto a creches, infantários e escolas. De repente, tive um flash: basicamente, todo o sistema educativo faz produção antroponómica. Não se vê, não produz algo externo, palpável, mas a criança transforma-se. Quando o corpo está doente, também tem a ver com produção antroponómica. […] Assim, conceptualizei a educação e todos os cuidados de saúde como parte da produção das próprias pessoas, produção material, diria eu. Não é um sector da economia; é algo paralelo. É enorme, de uma ordem de grandeza comparável à da produção económica. […] Há serviços de produção antroponómica como a saúde e a educação, e também todos os serviços dirigidos a pessoas idosas [isto é cada vez mais importante] e outras categorias de pessoas dependentes: portadoras de deficiências físicas e/ou mentais, etc. E também toda uma série de serviços de mercado, como por exemplo a restauração. Os cuidados com o corpo são produção antroponómica: a estética e o desporto, na medida em que contribuem para manter o corpo, também são produção antroponómica. Portanto, a antroponomia percorre um caminho paralelo ao da economia, mas, a certa altura, separa-se, atendendo a que as mercadorias são produzidas para serem vendidas, enquanto as pessoas não, e isso muda tudo. O que é fascinante é que, tendencialmente, a antroponomia não segue uma lógica de mercado, enquanto a produção das coisas obedece, tendencialmente, a uma lógica de mercado. A antroponomia não funciona dessa maneira, na realidade, quase parece funcionar ao contrário.
Quando falo de antroponomia e produção de seres humanos, estou a assumir uma abordagem muito materialista. O que digo é: há muito trabalho na criação de uma criança, muito trabalho. E não estou sequer a considerar a complexidade da dimensão psicológica. Digo apenas: é um trabalho e deve ser considerado e concebido como tal. O produto não é materialmente visível porque está na cabeça da criança, mas está lá. Imaginem só se uma criança fosse criada sem mãe e sem pai, isso faria uma grande diferença. Veja-se o exemplo do menino-lobo.20 Ele tem um corpo de ser humano, mas é um lobo. Portanto, aqui está a diferença.
Na verdade, algumas mulheres compreendem-me, mas os homens, lamento dizer, não. Provavelmente levará anos ou décadas até que as pessoas digam: - “Ah, sim, claro, como é que eu não vi isso antes?” As mulheres carregam a vida e, portanto, sabem muito bem o que é produzir vida. Enquanto os homens, ignorantes sobre o que é a produção da vida, deixam-se seduzir por histórias de poder e dominação. Há uma agressividade extraordinária por parte dos homens e, por isso, a história da humanidade é terrível.
L.A. & V.C.S: Como é que, atualmente, olha para o conceito de antroponomia?
Bem, já não há assim tantos empregos na agricultura ou na indústria. Onde estão atualmente os empregos? Estão precisamente nos serviços, e em particular nos serviços antroponómicos. Efetivamente, a economia contemporânea dos países mais desenvolvidos está agora quase totalmente recentrada na produção antroponómica. Penso que a antroponomia é uma descoberta fundamental, a descoberta da minha vida. Em 2014, publiquei um texto na Revue des sciences sociales.21
A única pessoa que ficou realmente convencida com a ideia de antroponomia foi um escritor português que nunca conheci, infelizmente. Ele traduziu o meu livro para português assim que foi publicado. O seu nome era José Saramago… Em França, não sabia quem ele era, que grande escritor ele era. E quando descobri, dez anos mais tarde, já era demasiado tarde para lhe agradecer calorosamente. Por isso comprei e li os seus romances; era o mínimo que eu podia fazer.
L.A. & V.C.S: No seu trabalho, refere-se a agentes antroponómicos. Aplicando este conceito a si próprio, consegue identificar quais foram os seus principais agentes antroponómicos?
Bem, essa é uma questão difícil. Estaremos cientes do ar que respiramos? Posso falar da minha mãe; do meu pai; tenho irmãos mais novos que não me influenciaram muito. Mas houve outras pessoas, houve a minha primeira mulher, a minha segunda mulher, os meus filhos talvez me tenham influenciado e eu próprio me influenciei. Não sei dizer como é que a minha mãe me influenciou, é através dos contrastes que se veem as coisas. Posso dizê-lo apenas em relação ao meu avô. Quando o meu avô cá estava, era o paraíso. Eu tinha apenas quatro, cinco ou seis anos, mas estava plenamente feliz com ele. E quando ele morreu, demasiado cedo, quando eu tinha apenas sete anos, fiquei sozinho, senti-me como um órfão. Como se todas as fontes de significado na minha pobre vida tivessem subitamente desaparecido. Atualmente, estou a tentar escrever uma história sobre tudo o que ele me deu. E olho para a minha neta de seis anos… Ela está a ajudar-me um pouco a saber quem eu era quando tinha quatro, cinco, seis, sete anos e ia passear com o meu avô.
L.A. & V.C.S: Sabemos que os seus passeios e as histórias contadas pelo seu avô foram estruturantes. Fale-nos da literatura e da importância de ouvir contar histórias na sua imaginação sociológica?
O meu avô teve uma grande influência na minha vida e contou-me muitas histórias. A uma criança não se diz: “isto é um lagarto”, tem de se contar uma história sobre o lagarto, onde vive, o que faz, o que come… Por exemplo, eu nunca vi coelhos, mas eles estiveram sempre presentes, em forma de histórias. Então, de que é feita uma história? Numa história, há um enredo, há um tempo, há uma ação, elementos totalmente ausentes nas ciências naturais, porque os objetos são inanimados.
Do meu avô retive esta ideia de literatura, de vida lá fora, de ação…Muito mais tarde, descobri a ideia de curso da ação. O curso da ação descreve o que estamos a fazer e o que é importante naquilo que estamos a fazer. O curso de ação pressupõe que se vá atrás de objetivos. Então, o que fazemos para saber o que os indivíduos perseguem nas suas vidas? Bem, não os podemos seguir, porque o curso de ação pode durar meses, anos, a única coisa que podemos fazer é perguntar-lhes: diga-me como tentou perseguir estes objetivos e como superou os obstáculos? Como mobilizou os recursos, os amigos, a família, como convenceu as pessoas a ajudá-lo/a? A resposta assumirá uma forma narrativa, simplesmente porque, para descrever uma ação no tempo, tem de se usar uma forma narrativa.22 […]
No mundo dos humanos, existe esta imprevisibilidade, esta incapacidade de prever porque é que há ação. A ação é muito misteriosa. É o contexto que determina a maioria das nossas ações. Catherine diz que são as pessoas que fazem a diferença e ela tem razão.
Isto é certamente verdade para as mulheres e homens políticos que conseguem ascender ao poder estatal, para o bem ou para o mal… Hitler, Churchill, De Gaulle, Kennedy, Thatcher, Merkel, agora Putin… Portanto, as pessoas fazem a diferença, é verdade. Mas acho que, ao mesmo tempo, a maior parte da nossa ação é predeterminada pelo contexto em que nos encontramos.
L.A. & V.C.S: Que papel desempenhou a imaginação sociológica no seu trabalho?
Obviamente, não se trata de imaginar de forma delirante. A questão é how does it works out there? Como é que as coisas acontecem? Se encontrarmos um fenómeno contraintuitivo, isso é muito bom. Porque é que esse fenómeno ocorre? A sociedade tem sempre razão. Se há uma contradição são os intelectuais que estão errados! Esse é o meu ponto de vista fundamental, como cientista. Os filósofos tendem a pensar que as ideias estão certas e que o mundo está errado. Exceto Foucault, que foi revolucionário e sempre disse: é preciso adaptar os conceitos à verdade histórica…. Respondendo à questão: a imaginação sociológica é tentar responder corretamente à pergunta: como é que isso funciona? E por vezes funciona de uma forma muito estranha.
L.A. & V.C.S: Ainda sobre a imaginação sociológica e sabendo que é uma pessoa viajada, em que medida viajar, sair do gabinete e da sua zona de conforto é importante para um/a sociólogo/a?
Já sabem todo o bem que penso acerca da sociologia portuguesa. Não está presa ao seu país. Porque é um país demasiado pequeno, vocês têm de aprender outras línguas e leem outras sociologias, dos Estados Unidos da América [EUA], Inglaterra, França e Itália. Isso é muito importante. Provavelmente, acontece o mesmo com a sociologia dos Países Baixos, exceto que os neerlandeses fazem uma sociologia completamente aplicada. […]
Sair da própria cultura… Há várias maneiras de o fazer, por exemplo, fazendo um Erasmus quando se é estudante. Para mim, foi o facto de ter sido enviado para os EUA. Foi realmente fantástico ter lá estado, ser forçado a adaptar-me a uma nova cultura, falar outra língua, descobrir coisas e tipos de comportamento diferentes. Compreender outras culturas é muito importante. Já mencionei que viajei durante um ano pelo mundo, vivendo a vida das pessoas comuns, comendo a comida local e tudo isso, adorei. Quando me tornei sociólogo, foi tão agradável discutir, trocar ideias com pessoas num meio internacional. Bem, viajar é muito importante, e sugiro que viajem e que tentem compreender culturas diferentes. Não é preciso ir longe, basta ir de Portugal para Espanha, ou para Marrocos, ou para o Brasil… O importante é sair da sociedade em que se cresceu, porque só assim se pode compreender que todas as formas sociais são contingentes. São o produto de uma história específica que em parte é contingente. São histórico-sociais…
L.A. & V.C.S: Que conselhos daria aos jovens sociólogos, estudantes e sociólogos/as em início de carreira? O que gostaria de lhes transmitir da sua vasta experiência?
O que me interessa é ter uma sociedade melhor, não tanto uma sociologia melhor. Uma sociedade melhor seria uma sociedade onde a democracia estivesse no centro das coisas, onde houvesse um estado social desenvolvido, uma sociedade onde houvesse um reequilíbrio das relações entre homens e mulheres, entre ricos e pobres. Se houvesse uma reflexão sociológica mais desenvolvida, mais geral, se a sociologia fizesse parte da cultura geral no ensino secundário, não Durkheim, mas uma sociologia que explica as sociedades contemporâneas: por que é que é melhor ter um estado social do que uma economia de mercado pura; por que é que é bom ter um reequilíbrio das relações entre mulheres e homens? Porque vai no sentido da paz, vai no sentido da democracia. Em contrapartida quanto mais patriarcado houver, mais se vai no sentido da agressividade, da guerra, certo? Portanto, penso ser necessário uma sociologia mais feminista, se quiserem, mais feminina, em que as mulheres ocupem um lugar maior, é isso que precisa de ser desenvolvido e que deve fazer parte da cultura geral. A minha mensagem seria esta. Aos jovens sociólogos, digo: ocupem todo o lugar que têm de ocupar, em função desta visão. O que faz a humanidade progredir é uma sociologia humanista.
L.A. & V.C.S: O que faz um sociólogo depois de reformado?
Há dois tipos de académicos, se quisermos esquematizar. Há aqueles para quem ser professor universitário é um trabalho: ele ou ela poderia ter feito outra coisa qualquer, é assim que ganha a vida, mas assim que se reformar, acabou! Recebe uma pensão e faz finalmente o que gostaria de ter feito durante toda a sua vida, por isso vai viajar, mantém-se ocupado, etc. E depois, há as pessoas que têm uma paixão, não são numerosas e, em geral, para se ser investigador/a, é preciso ser-se apaixonado/a, caso contrário… é muito triste. Ora bem, eu tenho paixão, e por isso, quer me aposente ou não, é óbvio que continuo a pensar. O que é que um sociólogo reformado faz? Depende. Se tem paixão pelo que faz, continua até ao fim, se era apenas um trabalho, faz outra coisa qualquer. […]
Uma das coisas que tentei fazer na reforma foi escrever um romance. Tive uma ideia extraordinária e escrevi 250 páginas que, infelizmente, perdi entre mudanças de casa. Talvez um dia reapareça, não sei, mas podia começar a escrevê-lo novamente… Trata-se de um romance onde abordo o que acontece depois da morte, onde tudo é plausível.
L.A. & V.C.S: Para concluirmos a nossa entrevista, quer-nos falar sobre esse romance?
Tentei imaginar um planeta onde o nosso espírito emigra após a morte terrena e renasce num corpo para uma segunda oportunidade, uma vida que pode durar até cem anos. Um planeta idêntico à Terra, mas onde as pessoas teriam uma espécie de sabedoria: evitariam guerras, evitariam tudo o que é destrutivo, evitariam o racismo, etc. Portanto, neste romance, o que tentei imaginar é como seria essa outra sociedade e posso dizer-vos que seriam as mulheres a deter o poder. Em contrapartida, os homens teriam pouco poder. Os homens não teriam direito ao voto, só as mulheres. Há muito tempo que penso nisso. Quem vota a favor da extrema-direita, por exemplo? São mais os homens. Normalmente as pessoas que votam nos ditadores são homens. […] Eu não era feminista, eu nasci em 1939, não é? Mas tornei-me feminista, porque se existe uma forma de a humanidade continuar a viver e a desenvolver-se, é a forma das mulheres. Porque as mulheres dão sempre - na grande maioria - preferência à vida, não é o caso de todos os homens…
L.A. & V.C.S: Terminada a nossa entrevista, que planos tem para o fim da pandemia?
Assim que esta pandemia terminar, pegamos no carro e vamos até Lisboa. Queremos voltar a saborear o vinho e a comida portuguesa e caminhar na praia.