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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.12 n.1 Lisboa maio 2008

 

Paulo Granjo

“Trabalhamos sobre um Barril de Pólvora”. Homens e Perigo na Refinaria de Sines

Lisboa, ICS, 2004, 329 páginas.

 

Correspondente à dissertação de doutoramento em Antropologia do autor (2001, ISCTE), este estudo interroga a produção de segurança em contexto de perigo industrial.

Enunciado o objectivo – “compreender de que forma resultam, do quadro de relações sociais em que estes homens trabalham, diversos mecanismos que irão limitar ou potenciar o perigo tecnológico e laboral” (p. 19) – discutem‑se o percurso aí conducente, a metodologia (“observação participante”, “entrevista semidirectiva” e “questionário sociológico”) e os aspectos da relação do pesquisador com a problemática e com o terreno (em particular, a sua perda de acesso aos engenheiros ao revelar consistente interesse pelos operários). O autor ocupa-se ainda, revendo bibliografia, da “necessidade de reinventar a teoria” (p. 30) em que se encontrou, por não identificar “quadros teóricos” directamente pertinentes para o seu trabalho.

São depois brevemente apresentados o espaço físico da refinaria, os processos de fabrico e as ocupações directamente observadas: operadores de exterior (que executam, directamente sobre a maquinaria, monitorização do, e intervenções no, processo produtivo), operadores de consola (que desempenham funções similares mas de forma mediatizada, via consola electrónica, e mais abrangente, tanto na dimensão da área fabril a seu cargo, como no leque de informação de que dispõem) e chefes de turno. Analisam-se, a seguir, as “representações do trabalho” nestes grupos, por identificação de características-chave (“responsabilidade”, “qualificação”, “perigo”, etc.) e avaliação da sua incidência e valoração (“positiva” ou “negativa”) no discurso. Estudam-se as várias fronteiras identitárias que, mobilizando espaços e máquinas, funções e qualificações, posições hierárquicas ou horários de trabalho (o autor explora, sobretudo, as implicações do trabalho a turnos), os operadores de exterior e de consola desenham e activam, consoante as circunstâncias. É dada atenção especial ao seu autoposicionamento face a algumas categorias propostas pelo autor, em particular a categoria “operário”. Elementos sobre as relações de patrocinato que percorrem a fábrica e um inventário dos “perigos existentes” completam este múltiplo enquadramento.

O texto volta depois a centrar-se, principalmente, nos pensamentos e emoções dos observados, analisando a sua percepção e valorização dos perigos antes listados, a forma como concebem a ameaça que estes representam e os seus modos de a “verbalizar”. É então que o autor desenha, a partir de Luhmann, o contraste “perigo versus  risco” e o situa na geografia social da fábrica: engenheiros e outros com dominância hierárquica, física e funcionalmente distantes da ameaça, ponderam o risco – que, do seu ponto de vista, é (probabilisticamente) calculável – contra ganhos (de produtividade, de rentabilidade, etc.), tendendo a “arriscar” para prossecução destes; já aqueles “que têm ou tiveram contacto directo e conti­nuado com os perigos laborais” (p. 167) partilham uma representação de perigo contínuo e imprevisível, tendendo à prudência na sua relação com o processo produtivo.

Estabelecido este contraste, central na argumentação, é abordado um díspar conjunto de representações e práticas, quanto à sua capacidade potenciadora ou minoradora face ao perigo. Potenciam-no a “ideologia de gestão” dominante – em particular o imperativo de reduzir custos fixos de mão-de-obra e a tónica na produtividade e na rentabilidade, mesmo sob “risco” – assim como as dinâmicas de poder, formal e informal, que transpõem tais orientações para o gesto dos operadores. Já as formas e conteúdos da aprendizagem informal do ofício – que é, ao mesmo tempo, socialização no grupo ocupacional e “aculturação” nas representações partilhadas do perigo e do acidente – são considerados, juntamente com a acumulação, pelos operários, de conhecimento prático sobre o efectivo funcionamento do dispositivo técnico, factores maiores de segurança.

Perante os dados que assim constrói, o autor passa da interpretação à intervenção, advogando o reconhecimento organizacional explícito da competência e da acção dos operadores em matéria de segurança e a adopção da sua representação de perigo, na refinaria estudada como em outros “sistemas tecnológicos hipercomplexos e perigosos” (p. 266). Prevê obstáculos a uma tal diligência (“desconfiança” por parte dos trabalhadores; resistência dos dominantes, na fábrica e fora dela, perante o implícito questionamento das relações de poder vigentes), mas considera‑a “necessária a uma eficaz estratégia de gestão do perigo” (p. 267), a estender à “sociedade no seu conjunto” – numa viragem “conceptual e social” em cujo âmbito a “antropologia do perigo” avança, poderá revelar-se central (pp. 278‑9).

Após anexos, o volume acolhe em posfácio dois capítulos da dissertação original, que mobilizam argumentos diversos para afirmar a importância dos estudos de antropologia em meio fabril.

Desvelar o social onde a “­tecnologia” parece imperar é, certamente, uma proposta aliciante. Porém, em contexto industrial, o social está também – e decisivamente – na técnica. E o gesto assume, neste olhar sobre indústria, uma presença ­surpreendentemente discreta. O autor pormenoriza o que dizem aqueles trabalhadores, mas pouco transmite sobre o que fazem: sobre os seus gestos, a corporalidade do trabalho (contudo entrevista na referência de um informante ao cheiro persistente pelo qual a fábrica irrompe na intimidade interpessoal [p. 203]), os utensílios, os processos de decisão perante a máquina. Sente-se falta de uma etnografia da técnica, dirigida ao social contido no gesto e na maquinaria – aos processos pelos quais, por exemplo, como referiu ao autor um projectista de refinarias, duas instalações idênticas na origem se tornam materialmente diferentes, após algum tempo de laboração, “sem que se saiba porquê” (p. 162). Considerando as aquisições dos estudos sobre a técnica (em antropologia, em sociologia, em história), sabe-se porquê.

Situar as relações com o perigo, e a diversidade destas na fábrica, no todo social-e-técnico das práticas de trabalho (e não especialmente no grau de proximidade aos espaços e procedimentos perigosos) ajudaria a melhor compreender o facto de, como reporta o autor, também os operários (e não apenas os engenheiros) equacionarem custos e benefícios (ainda que a sua linguagem de cálculo não seja a matemática) e, nesse equacionamento, envolverem a produção; de também os operários “arriscarem” (embora convocando não a probabilidade, mas a “sorte”, ou a ideia, mais ou menos irónica, de que “paira aqui por cima a Nossa Senhora dos Petróleos” [p.167]); de os “truques” operários na condução do maquinismo (a respeito dos quais teria sido útil pormenorizar) se apresentarem ambivalentes face ao perigo. De resto, os elementos fornecidos sobre a aprendizagem ocupacional corroboram a inserção profunda dos modos de lidar com o perigo nos modos de lidar com a técnica e com a produção: a atitude operária face ao perigo emerge no âmbito de um processo de construção, controlo e reprodução do conhecimento técnico, da qualificação e do próprio grupo ocupacional, que apresenta dinâmicas comuns a muitos contextos operários (aos quais facilmente se aplicaria o conceito de “aprendizagem situada”, pese a opinião contrária dos seus próprios criadores, citados pelo autor). Por exemplo, o apertado controlo do novato, que aqui se faz sob a retórica do perigo (e sob outros idiomas noutros locais), é usual nestes contextos.

O carácter socialmente localizado dos modos de construir e reproduzir atitudes face ao perigo não deixa de sugerir um contraste interessante (que poderia ter sido explorado à volta da ideia, cara ao autor, da relação risco vs. perigo) com o individualismo que Beck associa à “sociedade do risco”. O mesmo carácter torna problemática, por outro lado, a proposta de apropriação organizacional das “boas práticas” operárias, uma vez que as situa num património de conhecimento endógeno, identi­tário e estratégico nas relações de poder fabris – logo, reservado por inerência.

Rodeados de objectos materiais, tendemos, contudo, a render‑nos ao “fetichismo da mercadoria” (Marx), escamoteando os seus contextos, materiais e simbólicos, de produção. Também por isso é esta uma leitura a ter em conta: pelo que desvela do mundo industrial, pelas portas que entreabre ao seu conhecimento e interpretação, pelo estímulo à interrogação destes processos, fascinantes e decisivos no desenhar dos “mundos contemporâneos” (Augé).

 

Emília Margarida Marques

CEAS/CRIA, CEEP/CRIA, bdp FCT

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