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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.21 no.3 Lisboa out. 2017

 

ARTIGOS

 

Políticas prisioneiras e gestão penitenciária: incitações, variações e efeitos

 

Prison politics and management: incitements, variations and effects

 

 

Karina BiondiI

IDepartamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Maranhão, Brasil. E-mail: ka.biondi@gmail.com

 

 


RESUMO

O Primeiro Comando da Capital (PCC), coletividade originada nas prisões no início da década de 1990, hoje está presente na maioria dos estabelecimentos penais e das áreas urbanas de São Paulo (Brasil). Em pesquisa anterior, o abordei como um “movimento” cujas principais características são: (1) não possui início ou fim definidos; (2) não obedece a restrições territoriais; (3) é composto por inúmeros movimentos; (4) não restringe o que pode com ele se movimentar. A partir dessa perspectiva, iniciei nova fase da pesquisa atenta para tudo o que pode compor o PCC. Isso permitiu enxergar como ele também deriva do exercício da Justiça, das operações da segurança pública, da legislação vigente, das políticas estatais. Essa abordagem possibilita descrever de que maneira os presos transformam as ações administrativas e políticas penitenciárias em movimento, bem como a forma como esses movimentos incitam a gestão das prisões. Com isso, os limites entre o dentro e o fora da prisão deixam de ser tão evidentes.

Palavras-chave: prisioneiros, prisões, crime organizado, micropolíticas, movimento


ABSTRACT

A collective originated in prisons in Brazil in the early 1990s, Primeiro Comando da Capital (PCC), is currently present in most penitentiary institutions and urban areas in São Paulo, Brazil. In previous research it was examined as a “movement,” mainly characterized by: (1) undefined beginning or ending; (2) absence of territorial boundaries; (3) inclusion of many different movements; (4) openness as to what can move with it. From this perspective, a new research phase was intended to aprehend all that PCC can be composed of, and revealed it is also a result of Justice processes, public security operations, current law, and state policies. This approach is used to describe how prisoners convert administrative acts and prison policies into “movement,” and also how such movements become incitements to prison management. The boundaries separating the inside from the outside of the prison thus become blurred.

Keywords: prisoners, prisons, organized crime, micropolitics, movement


 

 

O Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu no início da década de 1990, no interior das prisões do estado de São Paulo, Brasil.[1] De acordo com os presos, o PCC apareceu como uma forma de eles se organizarem para evitarem maus-tratos do sistema prisional, mas também para coibir a violência entre presos. No início, o PCC era somente uma das diversas gangues presentes nas prisões e com elas disputava espaços em guerras sangrentas. No entanto, com o passar dos anos, ele ganhou muitas adesões e se expandiu para a grande maioria do sistema carcerário de São Paulo.

O nascimento do PCC é visto por muitos presos como o fim de um tempo em que agressões físicas e violências sexuais eram bastante recorrentes; para evitá-las, muitas vezes não havia outra saída senão aniquilar o agressor e adicionar um homicídio à pena.[2] Os prisioneiros se apoderavam dos bens disponíveis, desde um rolo de papel higiênico até a cela, para vendê-los àqueles que não conseguiam conquistá-los à força. Nesse quadro, a proposta do PCC, que envolvia uma mudança na ética dentro das prisões, era sedutora, motivo pelo qual rapidamente conquistou adesões dentro e fora das prisões.

No começo dos anos 2000, já era possível notar a presença do PCC na maioria das unidades prisionais. Isso ficou explícito em 2001, quando 29 prisões se rebelaram simultaneamente, no que ficou conhecido como a primeira megarrebelião. Em 2006, ocorreu a segunda megarrebelião, que envolveu 84 instituições penitenciárias e foi acompanhada por 299 ataques a órgãos públicos, 82 ônibus incendiados, 17 agências bancárias alvejadas a bombas, 42 policiais e agentes de segurança mortos e 38 feridos. Isso deixou evidente que o PCC não mais se restringia às prisões, mas havia se expandido para a maior parte das áreas urbanas do estado. À época, intelectuais, políticos e profissionais ligados à segurança pública foram chamados a refletirem acerca desse novo fenômeno carcerário e urbano. Desde então, muito se disse sobre ele, sobre suas leis, sua hierarquia, sobre o organograma do que seria essa “organização criminosa”.

Atualmente as produções acadêmicas a respeito do PCC são bastante numerosas e uma revisão bibliográfica do tema extrapola os propósitos e os limites deste artigo. Cabe destacar, entretanto, que entre os pesquisadores que se dedicam a esse tema há diferenças éticas, metodológicas, analíticas e ­epistemológicas. Um dos eixos nos quais esses trabalhos se distribuem tem, em uma de suas pontas, uma perspectiva que postula o PCC como problema de segurança pública, uma ameaça ao Estado democrático de direito, e cuja abordagem está preocupada com sua morfologia, geralmente análoga ao próprio Estado. Próxima analítica e epistemologicamente das investigações policiais, essa é a perspectiva hegemônica sobre o PCC, presente nos discursos da mídia e da opinião pública. Entre as pesquisas que se aproximam dessa ponta, destaco as de Adorno e Salla (2007) e Dias (2011). Na outra ponta do eixo encontra-se uma perspectiva preocupada em ouvir o que os próprios participantes do PCC têm a dizer, suas reflexões, os problemas que levantam e a forma como buscam solucioná-los. Geralmente traçando diálogos com abordagens epistemológicas contra-hegemônicas nas ciências humanas, entre os trabalhos que se aproximam dessa ponta do eixo estão os de Marques (2014) e Telles e Hirata (2007).

Alinhada a estes últimos, minha pesquisa aponta para um PCC substancialmente diferente da imagem forjada pelos discursos hegemônicos. Minhas etnografias (Biondi 2010, 2014) apresentaram quatro aspectos do PCC que sobressaem por suas dissonâncias com relação ao que costuma ser dito: (1) ele não funciona na base de leis; (2) ele não é uma estrutura hierárquica piramidal (embora formações hierárquicas não cessem de aparecer em seu interior); (3) o conceito de crime organizado não é apropriado para qualificar o PCC; (4) ele é melhor definido como um movimento, cujas principais características são que (a) não possui início ou fim definidos, (b) não obedece a restrições territoriais, (c) é composto por inúmeros movimentos e (d) não restringe o que pode com ele se movimentar.

Como exporei adiante, essas características permitem abordar de maneira original a relação entre prisioneiros, gestão prisional, políticas de segurança e legislação. Neste artigo, apresento os resultados de minha mais recente pesquisa, realizada em uma prisão situada na região metropolitana de São Paulo. Depois de seis anos da pesquisa que eu havia realizado dentro de prisões, retornei a uma instituição penal a fim de, por um lado, observar as mudanças pelas quais o PCC passou e, por outro, abordar as especificidades de sua composição local, especialmente em relação à gestão da unidade prisional. Para fins de exposição, dividi este artigo em quatro secções. Na primeira, abordarei algumas das principais características do PCC; na segunda, apresentarei a unidade prisional onde foi realizada a pesquisa e os presos que ali estavam abrigados; a terceira secção descreverá as mudanças pelas quais o PCC passou nos últimos anos; a última mencionará alguns problemas decorrentes dessas mudanças, colocados tanto por presos quanto por funcionários da instituição.

 

Políticas prisioneiras

A característica mais marcante do PCC é que sua presença não está atrelada à de seus integrantes. Ele não se restringe à soma de seus membros. Uma prisão onde não há “irmãos” (membros do PCC) pode, mesmo assim, ser uma “cadeia do Comando” e ter o PCC atuando intensamente ali. Isso torna inadequado o conceito de “crime organizado” – intimamente relacionado a uma composição de indivíduos em torno de negócios ilícitos – para lidar com o PCC. Por outro lado, as propostas de antropólogos contemporâneos para superar os conceitos de sociedade, de cultura ou de grupo como forças exteriores que modelam os indivíduos que os compõem (Wagner 1974; Strathern 1996; Latour 2005) mostram-se bastante apropriadas para realizar essa tarefa.

Não é somente essa característica que afasta o PCC do conceito de crime organizado. A descrição de como ele é produzido independentemente de seus integrantes faz aparecer os efeitos, para a formação do “Comando”, da ideia de “igualdade”, uma das palavras que compõem o lema do PCC: “Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade”. A “igualdade” está muito presente na vida dos prisioneiros e nas reflexões que eles acionam. Ela instaurou tensões que infiltraram e percorreram as capilaridades do PCC, implicando construções e dissoluções simultâneas de hierarquias. Diversos mecanismos e estratégias são acionados para a construção de um “Comando” entre “iguais”. Desde então, dizem os prisioneiros, o que mais se faz numa cadeia é “debater” sobre o que é “o certo”, “debates” que dizem respeito desde o que é mais cotidiano até decisões capitais. O que, em um tempo anterior ao PCC, era decidido pela força bruta, hoje é objeto de “debates”.

Após a adição da “igualdade”, a expressão “é de igual” passou a ser uma das mais proferidas entre os prisioneiros. No entanto, manter a posição “de igual” não é nada fácil. Exige muitos investimentos, por parte de cada preso, no sentido de não subjugar ninguém e nem ser subjugado, não mandar e nem receber ordens de outros prisioneiros, em nenhum âmbito de sua experiência prisional. Mesmo com todos esses esforços, as diferenças não param de aparecer e, com elas, manifestações hierárquicas. Mas, assim que aparecem, deparam com esse importante princípio norteador vigente no PCC: a “igualdade”. O resultado disso é a existência de hierarquias que aparecem a todo momento, mas que não se cristalizam em uma estrutura hierárquica.

Enxergar o PCC sob o prisma do “crime organizado” nos levaria a atribuir-lhe uma estrutura e um modo de funcionamento condizente com as características que dão sentido a esse conceito (hierarquia, previsão de lucros, divisão do trabalho, planejamento empresarial, simbiose com o Estado, conforme Mingardi 2007). Nos levaria, ainda, a considerá-lo como um “Estado paralelo” ou uma “empresa capitalista”. Definir o PCC como “organização criminosa” conduz a revesti-lo dessa figura fantasmática (Misse 2006) que, além de não revelar muito acerca de seu funcionamento, é capaz de esconder uma grande variedade de elementos da vida prisional que penetraram as existências dos prisioneiros quando passaram a configurar uma maneira singular de ver e pensar o mundo, mas também de conduzir suas vidas. A esse modo de condução de existências, os integrantes do PCC dão o nome de “ética”.

Longe de produzir uma reificação do PCC, essa “ética” permite a existência de PCC muito diferentes uns dos outros, a depender de como, onde, quando se vê. Ao mesmo tempo, é capaz não só de conduzir a existência das pessoas que a operam, mas de promover formações sociais singulares. Ou “ritmos”, como lhes chamam meus interlocutores: “cada cadeia [ou quebrada, ou cela] tem um ritmo, mas a ética do Comando é uma só”. Isso porque o PCC é, também, um “movimento”, cujas características mencionei acima. Pessoas, “situações”, telefones, relações afetivas, “ideias”, “lutas”, vidas, mortes, “quebradas”, transações comerciais, não há restrições quanto ao que pode compor os movimentos. Ademais, eles não se conformam a espaços ou a intervalos de tempo, pois não têm origem ou fim definidos. Assim, o “Comando” não se limita às trajetórias das pessoas, mesmo às dos “irmãos”, e nem permanece confinado em redutos.

No intenso fluxo de movimentos simultâneos constituintes do PCC, eles se cruzam, convivem, disputam, acoplam-se, tensionam uns aos outros. Isso leva cada um que transite pelo seu interior não só a se engajar simultaneamente em vários movimentos, como também a saltar constantemente de um a outro. De cada uma das posições assumidas nesse fluxo emerge um ponto de vista singular. Nenhuma perspectiva é idêntica a outra. Logo, os movimentos vistos por um estão ocultos para outros, e vice-versa. Nesse trânsito, é inevitável que movimentos sejam perdidos de vista ao mesmo tempo em que outros apareçam. Isso não quer dizer, entretanto, que eles só sejam apreensíveis fragmentária ou parcialmente, pois partes e fragmentos só fariam sentido em relação a um todo que supostamente um dia compuseram, do qual se desprenderam ou ao qual estão submetidos. De acordo com Strathern, “um motivo para desejar que as coisas se encaixem repousa na suposição de que elas foram cortadas de algo” (2004 [1991]: 109). Para ela, se não tivermos como ponto de partida a relação entre parte e todo, o corte não produz fragmentos; ele revela relações.

Nesse sentido, longe de serem uma unidade natural pronta a ser apreendida, os movimentos são exatamente o que os diferentes pontos de vista são capazes de apreender. Além disso, a cada manifestação, eles recebem as marcas das condições locais nas quais ocorrem e variam de acordo com essas mesmas condições. A “malandragem” denomina as variações apresentadas como “ritmo”, nome dado também às próprias condições que fazem os movimentos variarem. Veremos, a seguir, as consequências dessa abordagem na descrição dos movimentos que compõem o “ritmo” de uma unidade prisional.

 

A prisão e sua população

A prisão onde realizei minha pesquisa é uma unidade de regime semiaberto, destinada a presos que conquistaram o direito à progressão de pena e com infraestrutura destinada a atividades laborais. Com capacidade para 246 presos, abriga atualmente 568 homens, divididos em dois pavilhões. Boa parte deles trabalha, se não na própria unidade prisional, fora da cadeia.

Segundo os homens com quem conversei, naquela unidade de regime semiaberto ele era “realmente semiaberto”, em contraposição a prisões que definiam como “semifechado”. Eles destacavam as oportunidades de trabalho e ensino oferecidas, contrastantes com as que encontraram em outras cadeias. Em contrapartida, ali ainda existia o que eles definiam como injustiças praticadas pela equipe de funcionários da prisão em relação aos presos. Além disso, o convívio entre os presos não era o melhor que já haviam vivido. Isso devia-se a três fatores.

Em primeiro lugar, por se tratar de um regime de progressão de pena que geralmente antecede o regime aberto, muitos presos tinham o receio de reagir a essas injustiças e, com isso, voltar ao regime fechado. Adicionalmente, suas saídas temporárias seriam prejudicadas e eles poderiam ser encaminhados para a solitária. Diziam os presos, ainda, que o juiz responsável pela vara de execuções criminais “soltava bastante”, motivo pelo qual, avaliavam, não era o melhor momento para cometer qualquer tipo de falta que pudesse prejudicar a oportunidade de, como tantos outros, “ganhar a liberdade”.

Podemos ver, aqui, como a legislação penal, em sua regulação a respeito dos regimes de cumprimento de pena, a execução penal, com suas orientações sobre benefícios, e a gestão carcerária, com a previsão de castigos, são transformadas em movimentos pelos presos. Eles passam não só a avaliar as possibilidades de ação dentro da “situação” na qual se encontram, como, também, a transitarem por esses movimentos. Esses elementos, ao comporem os movimentos nos quais os presos se engajam, tornam-se parte integrante do cotidiano da prisão e não mais podem ser considerados fatores externos à vida carcerária. Assim, nesse caso, visto a partir daquela instituição penitenciária, é possível notar que dentre os movimentos que compõem as “situações” nas quais aqueles presos se encontram estão elementos da gestão prisional, da execução e da legislação penal.

O segundo fator que, segundo os presos, fazia o convívio entre eles ser problemático dizia respeito à população prisional ali abrigada, formada majoritariamente por presos primários que cumpriam penas pequenas. Muitos haviam sido condenados diretamente ao regime semiaberto. Para os presos com quem conversei, a grande maioria desses primários “não era do crime”, mas sim “noia” (usuários de drogas).

Um dos presos disse que a população prisional poderia ser classificada da seguinte maneira: os que são “do crime” (o que não quer dizer exatamente que sejam praticantes de atividades criminosas, mas sim que orientam suas condutas de acordo com a “ética do PCC”), os “zé-povinho” (aqueles que, ainda que tenham praticado a atividade criminosa que os levou à cadeia, não orientam sua existência de acordo com o “crime”), os “noias” (usuários de drogas levados à prisão em virtude de ações praticadas para sustentar seu vício, como furtos ou assaltos, ou, ainda, que foram presos como traficantes quando portavam substâncias que seriam usadas para consumo próprio) e, finalmente, os “treze” (pessoas com algum tipo de deficiência mental). Desses, apenas o “ladrão” (aquele que é “do crime”) contribuiria para uma boa convivência entre os detentos, regida pela “ética do Comando”. A ele, disse o preso, cabia ser um “psicólogo”, para saber com quem estava tratando. Afinal, disse,

“não dá pra cobrar de um noia, de um treze ou de um zé-povinho o proceder de ladrão. Tem que analisar com quem está falando e agir diferente com cada um. O ladrão é – e tem mesmo que ser! – mais cobrado porque ele está mais ciente de como as coisas funcionam. Com os outros, tem que ter mais paciência, explicar, mas tá difícil”.

Para os presos, a impossibilidade ou a dificuldade de cobrar energicamente determinada postura desses homens fazia com que a convivência dentro da cadeia ficasse “desgovernada”. Era “muita falta de proceder”, diziam, “ninguém respeita ninguém”. Diante dessa situação, os que se consideram “malandros” procuravam se diferenciar dos demais, mantendo para si a “ética do crime” e tentando fazer com que os demais aderissem minimamente a ela, o necessário para tornar seu cotidiano mais tranquilo. Diziam que graças a isso havia o mínimo de condições de convivência, sem a ocorrência de brigas, agressões e, no limite, mortes. Asseguravam também, com isso, a presença do PCC naquela prisão, na forma de sua “ética”. Disseram-me também que não raras vezes aquela unidade prisional fica sem nenhum “irmão”, mas que isso nunca impediu que a prisão fosse considerada uma “cadeia do Comando” ou que ela fosse ameaçada pela invasão de outras facções.

É possível notar que os movimentos que passam por aquela unidade são compostos pela gestão da Secretaria da Administração Prisional do Estado de São Paulo (que define o perfil dos presos abrigados na unidade), pela legislação que descriminalizou o consumo de drogas, pela atuação policial e ação dos tribunais de justiça (que levaram à prisão como traficantes os que antes eram considerados usuários)[3] e, finalmente, pela “ética do PCC”, de acordo com a qual, por um lado, evita-se ao máximo agressões entre os prisioneiros e, por outro, a postura dos presos é cobrada em diferentes graus, em função de seu envolvimento com o “crime”. Assim, todos esses elementos eram transformados nos movimentos que compunham as “situações” em que os presos viviam e moldavam o “ritmo” daquela prisão. A grande presença de “noias” entre os apenados incitava movimentos que faziam aquela cadeia ser mais “desgovernada” (no tocante ao convívio entre os presos), que levavam os demais presos a adotarem posturas específicas diante dessa população e, além disso, que conduziam os usuários a vivenciarem mais intensamente a “ética do Comando”.[4]

 

Oportunidade e resgate

Segundo os homens com quem conversei, o terceiro fator pelo qual o convívio entre os presos não era o melhor que já haviam vivido era o PCC estar pouco rigoroso, o que dava margens para recorrentes atitudes não condizentes com a “ética do Partido”. Eu já havia ouvido, nas ruas, queixas parecidas: “a quebrada está largada”, “o PCC está fraco”, “ele já não é mais o mesmo”. Foi esta pesquisa, entretanto, que revelou com maior nitidez a mudança pela qual o PCC passara e que motivava esses enunciados. De acordo com os presos, “cadeia era cadeia de verdade até 2009; depois virou bagunça”. Isso porque atualmente “o Comando não cobra mais ninguém, não coloca uma disciplina, e o povo abusa”. Explicaram que, até 2009, alguém que cometesse algum erro recebia uma “cobrança” (repreensão, agressão, expulsão do convívio com os demais presos ou, em último caso, morte). De 2009 em diante, o PCC se tornou “mais tolerante”; seus integrantes passaram a preferir “conscientizar” os presos a cobrá-los. Com isso, dizem, não há mais “seguro” (espaço destinado a presos cujas vidas correm risco quando em convívio com os demais). Somente estupradores, delatores e membros de outras facções, casos considerados muito graves, são mandados para prisões de “oposição” (onde não há PCC).[5]

Para os presos, isso fazia com que os erros fossem mais comuns a cada dia, com que os prisioneiros (especialmente os “primários”) não respeitassem o “Comando” e, consequentemente, com que o convívio entre os presos ficasse mais problemático. Isso porque a maioria das “cobranças” realizadas anteriormente dizia respeito a erros que um preso cometia com relação ao outro, muitos considerados falta de respeito. A “disciplina do Comando”, para eles, fazia com que um respeitasse o outro. Citaram como exemplos de “disciplina” que deixou de existir nas cadeias o cuidado para não usar palavras de baixo calão, a atenção à maneira adequada de se sentar na cama do companheiro de cela, o cuidado na forma de se comportar nos dias de visita. Dizem que até agressões físicas e furto de um preso a outro não são “cobrados” como eram antes, sendo motivos para a “conscientização” daqueles que o praticaram. No tocante à inexistência de “seguro”, disseram que até ex-policiais, ex-seguranças e pessoas que já cumpriram pena em “cadeias de oposição” são, atualmente, aceitos no convívio. Presos pertencentes a outras facções passam pelas cadeias do PCC sem serem agredidos (só pedem para que eles solicitem à administração a sua transferência imediata a outra prisão). Antes de 2009, essas pessoas nem podiam pisar em “cadeias do Comando”, sob risco de morte.

Os presos que cumpriram pena antes de 2009 manifestavam sua indignação com essa postura do PCC. Encontrei apenas dois prisioneiros que defenderam explicitamente essa mudança. Segundo eles, era melhor trazer as pessoas para o lado do “Comando” do que rejeitá-las e enviá-las definitivamente para a “oposição”. Argumentaram que, se essa mudança não tivesse ocorrido, hoje o seguro seria maior do que o convívio e, consequentemente, a “oposição” seria maior do que o PCC. Disseram, por fim, que essa postura evita muitas “injustiças” que poderiam acontecer (e, com efeito, aconteceram, de acordo com os casos por eles lembrados) no convívio das “cadeias do PCC”. Era mais correto, na visão deles, dar uma oportunidade para os que erraram e tentar conscientizá-los do que arriscar cometer “injustiças” e, adicionalmente, contribuir para o aumento da “oposição”. Nessas duas situações nas quais presos defenderam a postura do PCC, os demais prisioneiros presentes chegaram a concordar com os argumentos lançados e disseram que, embora reiterassem que ainda preferiam a forma como as prisões funcionavam até o ano de 2009, não sabiam qual seria a alternativa para contornar os problemas que essa outra postura veio tentar enfrentar.

Os relatos sobre os problemas decorrentes dessa postura “mais tolerante” do PCC eram acompanhados por exemplos que evidenciavam que, ao contrário de o PCC mostrar-se como fraco, ele atuava intensamente nessa nova configuração. A questão não era, portanto, de um PCC ausente, mas de uma presença intensiva do PCC sob outros modos. Afinal, como diziam os próprios críticos a essa postura, se não fosse o “Comando”, eles já haveriam lançado mão de agressões físicas contra os “vacilões” que não paravam de cometer erros. Diziam, ainda, que metade dos presos que estavam naquela prisão não mereciam, de acordo com suas considerações, habitar o “convívio”.

É possível notar que os movimentos que passam por aquela unidade são compostos pelas mais diversas avaliações a respeito de como tratar aqueles que cometem erros. Muitas das avaliações negativas a respeito da recente postura do PCC levam em conta os efeitos dessa disposição nas ruas. A política faccional e as estratégias para manter o PCC presente na maioria das prisões paulistas tensionam esses movimentos, que não deixam também de ter, entre os seus componentes, a prerrogativa do poder público de realocar os presos entre as unidades prisionais de acordo com seus pertencimentos a uma ou a outra facção.

 

Celulares, responsa e castigo

Um caso ocorrido durante minha pesquisa ilustrou os problemas de convivência apontados. Depois de 15 dias de castigo, quando um pavilhão inteiro ficou fechado, sem que os presos pudessem sair para trabalhar, estudar ou para o banho de sol (e mesmo para colaborar com minha pesquisa), explicaram-me o que ocorrera. Segundo os presos, houve uma revista que apreendeu mais de 40 telefones celulares. Os agentes penitenciários solicitaram que os presos responsáveis pelos aparelhos se apresentassem, mas ninguém se manifestou. Algo parecido havia acontecido algumas semanas antes, quando foi feita uma apreensão de drogas e, também, ninguém se apresentou como responsável por elas. Nas duas ocasiões, todos os presos sofreram o castigo de ficarem trancados no pavilhão.

Uma funcionária disse-me que, nesses casos, a administração precisa de um nome a quem atribuir o material encontrado e que geralmente os próprios presos apresentam alguém para se responsabilizar. Os presos confirmaram que isso funciona, ou ao menos deveria funcionar, dessa maneira: um preso assume o material apreendido para que o castigo não recaia sobre todos. No entanto, ninguém assumiu a responsabilidade e todos foram castigados. Se, por um lado, isso mostrou a falta de solidariedade entre os presos ou a falta de alguém entre eles que tivesse força argumentativa para convencer um preso a assumir a falta (o que denota uma certa fraqueza, se não a inexistência, dos “irmãos” na unidade prisional), por outro lado isso revelou que a “igualdade”, tão valiosa na “ética do Comando”, estava ali com toda a sua força. Afinal, nenhum preso se viu obrigado a assumir a falta.

Um detento cuja primeira prisão ocorrera no começo da década de 1990 mostrava-se inconformado com o que ocorrera. Segundo ele, diante da ausência de um preso que se apresentasse como responsável pelos celulares, o diretor do presídio foi ao pavilhão para palestrar sobre como as coisas funcionam nesses casos. “Foi um tapa na cara dos pilotos”, disse, referindo-se aos presos responsáveis por manterem a “disciplina do Comando” na unidade. E continuou:

“Uma coisa é o diretor ou o funcionário falar sobre o trabalho dele, o que pode, o que não pode, o que tem a ver com o funcionamento da cadeia. Mas o convívio entre os presos é assunto de preso. Nós temos que resolver entre nós. Mas daí o diretor foi dar uma palestra pra falar como nós temos que nos comportar entre nós. Isso não tem cabimento!”

Segundo ele, eram os “pilotos” que deveriam explicar para os presos como as coisas funcionam no caso da apreensão de objetos não permitidos. Algum voluntário para assumir a responsabilidade pelos objetos deveria aparecer para evitar que 300 presos fossem prejudicados e era responsabilidade do PCC cuidar para que isso acontecesse.

Ao mesmo tempo, a tolerância e permissividade do PCC havia criado um problema para a administração da prisão: a ausência de um nome a quem responsabilizar pelas apreensões.

É possível ver como movimentos incitados por essa postura do PCC contribuem para a composição da população carcerária daquela unidade. Afinal, fosse outra a postura, muitos dos presos que cumpriam suas penas ali estariam em “cadeias de oposição”. Assim, a composição daquela unidade prisional, definida pela gestão carcerária, é tensionada por movimentos acionados pela política prisioneira. Além disso, a diminuição de casos de agressão e de mortes dentro do sistema prisional cria condições específicas para a gestão das cadeias. Por fim, a postura do PCC de ser leniente com os erros ou de não garantir que algum preso se apresente como responsável por apreensões cria impasses para a administração da prisão e para os processos administrativos que decorrem desses eventos.

 

Considerações finais

Vimos que, segundo os presos, aquela unidade prisional não era a melhor pela qual já haviam passado em virtude do regime de cumprimento de pena a que se destina, do perfil dos presos que abriga e da recente postura do PCC. Todos esses fatores reúnem elementos que não findam nos limites da unidade prisional e envolvem políticas faccionais, políticas penitenciárias, a gestão da unidade, o corpo de funcionários, a legislação vigente, a atuação policial, ações do tribunal de justiça e da vara de execuções penais.

Neste artigo, procurei mostrar que, quando se aborda o PCC como um “movimento” composto por inúmeros movimentos, a distinção entre dentro e fora (seja do “Comando”, seja da unidade prisional) deixa de ser tão evidente.[6] Ainda que se considere as prisões como núcleos duros do PCC, ou que “nunca se está mais dentro do Estado do que numa prisão”, como lembra ­Barbosa (2005: 72) inspirado em Foucault (1996 [1975]), a abordagem adotada ­permitiu ­oferecer uma perspectiva que nem o coloca exatamente às margens do Estado (Das e Poole 2008) e nem como algo que surge na ausência do mesmo. Diferentemente, dediquei-me a ver de que maneira os presos abrigados naquela prisão transformavam as ações administrativas e políticas penitenciárias em movimento, bem como a forma como esses movimentos incitavam a gestão das prisões.

 

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NOTAS

[1]             Este artigo é resultado da pesquisa de pós-doutorado “Quando tudo se torna movimento: uma etnografia acerca das relações entre presos e a gestão de prisões”, desenvolvida na Universidade Estadual de Campinas, com bolsa da Capes, entre janeiro de 2015 e fevereiro de 2016. É importante mencionar que a FAPESP apoiou minhas pesquisas anteriores na forma de bolsa de pesquisa e o CNPq destinou recursos para a realização desta pesquisa. Agradeço aos colegas do Laboratório de Estudos sobre Agenciamentos Prisionais (LEAP) pela parceria, ao Prof. Jorge Villela pela dedicação e ao parecerista anônimo desta revista pelas valiosas sugestões.

[2]             Registros de casos como esses podem ser encontrados em Ramalho (2002 [1979]) e Mendes (2001).

[3]             Em 2006 passou a vigorar a Lei N.º 11.343 / 06, que diferencia usuários de traficantes de drogas e aplica aos dependentes químicos penas alternativas à prisão. Desde então, muitos usuários de drogas passaram a ser julgados como traficantes. Algumas prisões passaram a ser chamadas, por outros detentos, de “cadeias de noia” e se tornaram centros informais de recuperação da dependência de crack. Apesar de isso ser de conhecimento geral nas cadeias e nas quebradas (bairros), essa questão precisou ser documentada segundo os padrões governamentais de práticas de conhecimento – com estatísticas, gráficos, tabelas, entrevistas padronizadas, metodologias estabelecidas e financiamento institucional – para ganhar status de verdade e passar a ser oficialmente debatida (ver Jesus et al. 2011).

[4]             Raramente a prisão é o primeiro contato dos usuários de drogas com a ética do “Comando” (cf. Rui 2014).

[5]             Sobre cadeias de oposição, ver Marques (2014) e Boldrin (2017).

[6]             Cunha (2008) e Godoi (2015) já haviam apontado a porosidade das instituições penais, a partir de abordagens distintas das aqui apresentadas.

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